Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4500/11.9TJCBR.C1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
POSSE
CORPUS
ANIMUS
PRESUNÇÕES LEGAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO ADMITIDO E RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA EM CASOS ESPECIAIS – DIREITO DAS COISAS / POSSE / EXERCÍCIO DA POSSE POR INTERMEDIÁRIO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – NATUREZA E VALOR DO REGISTO / OBJECTO E EFEITOS DO REGISTO / PRESUNÇÕES DERIVADAS DO REGISTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 629.º, N.º 2, ALÍNEA C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 343.º, N.º 1 E 1252.º, N.º 2.
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMADOR DE JURISPRUDÊNCIA DE 14-05-1996, IN DR II SÉRIE, DE 24-06-1996;
- ACÓRDÃO UNIFORMADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2008, IN DR, I.ª SÉRIE, DE 31-03-2008;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 448/09.5TCFUN.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Constitui entendimento pacífico do STJ que a regra especial de recorribilidade das decisões prevista no art. 629.º, n.º 2, al. c), do CPC apenas tem aplicação quando as decisões se encontrem em oposição frontal com o decidido em AUJ e exista identidade substancial relativamente à questão de direito objecto de apreciação, sendo irrelevante para este efeito a contradição meramente implícita ou pressuposta.

II - No processo em que foi proferido o AUJ de 14-05-1996, estando provado o corpus da posse, o STJ entendeu que, verificado este, se presumia, nos termos do n.º 2 do art. 1252.º do CC, o animus, ou seja, que uma vez assente o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, se deve presumir que quem o exerce o faz em nome próprio, recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse idónea para adquirir por usucapião.

III - De harmonia com o AUJ n.º 1/2008, a impugnação judicial da escritura de justificação notarial faz recair sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito nos termos do art. 343.º, n.º 1, do CC, sem que o mesmo possa beneficiar da presunção registral emergente do art. 7.º do CRgP.

IV - Não se verifica a necessária identidade substancial entre a questão de direito tratada no AUJ de 14-05-1996 e o decidido no acórdão recorrido, susceptível de caracterizar a contradição frontal que facultaria aos recorrentes o acesso ao recurso para o STJ, quando no segundo não resultaram provados factos integradores do corpus da posse.

Decisão Texto Integral:            
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


           

I. Relatório:

AA, e BB, intentaram, em 21 de Dezembro de 2011, no Tribunal da Comarca de … – Instância Local a presente acção comum contra CC, e marido DD, pedindo que se reconheça que o prédio urbano conhecido como a “casa da …”, composto de rés-do-chão, 1º e 2º andares, sito em Penhas Douradas – …., freguesia de Manteigas (….), inscrito na matriz urbana sob o artigo nº 2, era pertença dos seus avós EE e FF, também avós da ré, e que por óbito dos mesmos ficou a pertencer, em comum e sem determinação de parte ou direito, aos 7 filhos, onde se incluía a justificante GG, por não ter havido partilhas, e, consequentemente, que se declare a nulidade total ou parcial da escritura de justificação e doação celebrada, em 29/06/2006, por esta, a qual prestou declarações falsas e praticou um acto ilícito e abusivo, já que o seu quinhão era de 1/7 do prédio, sendo os restantes 6/7 pertencentes aos seus irmãos vivos ou aos herdeiros deles, por direito de representação.

Mais peticionam o cancelamento de qualquer registo que haja do prédio urbano referido proveniente da escritura que se impugna, bem como todos os registos posteriores.

Requereram ainda os autores a intervenção principal provocada dos herdeiros da referida GG, também conhecida por HH, constantes da escritura de habilitação junta.

Contestaram os réus, dizendo, em suma, que o prédio em causa pertenceu à herança dos pais da justificante. Porém, os restantes herdeiros abandonaram-no e, nos inícios da década de 60, estava em estado de degradação, tendo a referida HH iniciado a sua recuperação desde 1961/1962 e assumido os respectivos encargos com a consciência de ser dona da casa, em exclusivo, como era reconhecida por todos, o que passou a ser feito pelos réus a partir da doação da mesma, sempre na convicção de serem os seus donos.

Em sede reconvencional pediram que se declarasse serem donos e legítimos possuidores do dito prédio, por o terem adquirido por usucapião, propriedade essa que se presume por terem registado a casa a seu favor com base na escritura de doação.

Contestaram ainda os intervenientes II e mulher JJ, impugnando a generalidade dos factos e aceitando apenas o descrito nos factos 1º a 7º da petição inicial.

No decurso da acção foram habilitados os herdeiros do chamado KK, já falecido, e da ré CC, entretanto falecida.

Os autores responderam à reconvenção deduzida, impugnando os factos alegados e pugnando pela sua improcedência.

     Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador e foram fixados o objecto do litígio e os temas da prova.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, na qual se decidiu:

1) Julgar a acção parcialmente provada e procedente e em consequência:

a) Declarar que o prédio urbano identificado no art.º 8º da p.i. e nos pontos 2) e 10) dos factos provados desta sentença pertencem às heranças indivisas, não partilhadas, por óbito de FF e seu pai EE, da qual os AA e RR são herdeiros.

b) Declarar a ineficácia da justificação notarial e a nulidade da doação constantes da escritura lavrada em 29 de junho de 2016, no Cartório sito na …, nº …, 1º andar, do Sr Notário LL, livro 39-A, fls 65 e segs, outorgada por GG e por CC (esta como donatária).

c) Determinar o cancelamento de quaisquer inscrições registrais levados a cabo com base no título supra referido sobre o prédio descrito na CRP com o nº 1… da freguesia de … de Manteigas, nomeadamente a aquisição a favor da Ré CC, através da Ap 1 de 2007/10/24.

d) Absolver os RR do demais peticionado.

2) julgar a reconvenção totalmente não provada e improcedente, absolvendo os AA do pedido reconvencional.

3) Condenar os RR nas custas da acção.


Desta sentença apelaram, sem êxito, o réu DD e MM, NN, OO e PP, sucessores habilitados da ré CC.

    Persistindo inconformados, pedem agora revista do acórdão da Relação de … proferido em 27 de Junho de 2017.

    Fundamentam a admissibilidade do recurso no disposto no artigo 629º nº 2 al. c) do Código de Processo Civil, porquanto entendem que o acórdão da Relação de Coimbra ora em recurso decidiu contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.


Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1) Os avós dos AA. e da Ré mulher eram EE, falecido a 9/08/1952 e FF, falecida a 16/10/1948.

2) EE e mulher foram os donos e legítimos possuidores de um prédio urbano destinado a habitação, sito nas Penhas Douradas, …, inscrito na matriz predial urbana de Manteigas sob o art.º nº ….

3) Por óbito dos mesmos foram instaurados os competentes processos de imposto sucessório junto da Repartição de Finanças de …, tendo tal bem sido relacionado, sendo no processo por óbito do cônjuge mulher, primeiramente falecida, apenas a metade do prédio.

4) Tal bem não foi objecto de escritura ou de partilha judicial por óbito dos mesmos, nem incluído na partilha por óbito de HH ou GG.

5) EE e mulher tiveram sete filhos, que lhes sucederam, a saber: QQ (pai do A. AA), RR (pai do A. BB), GG, também conhecida por HH, SS, TT e UU.

6) HH e SS faleceram no estado de solteiras e sem filhos.

7) Os herdeiros das mesmas foram os irmãos, ou os sobrinhos, em representação dos pais, identificados na escritura de habilitação de herdeiros de fls 21 e segs.

8) GG ou HH faleceu no dia 3 de Janeiro de 2008, no estado de solteira e não deixou irmãos, descendentes e ascendentes, tendo apenas deixado como seus herdeiros sobrinhos, nomeadamente os ora AA., a Ré mulher e os requeridos intervenientes conforme consta da escritura de Habilitação Notarial realizada em 15/2/2008 no Cartório Notarial de VV – fls 21 a 25.

9) Ainda em vida, HH dirigiu-se a um Cartório Notarial em …, acompanhada de três testemunhas, e aí, no dia 29 de Julho de 2006 outorgou uma escritura de justificação e doação a favor da Ré mulher, sua sobrinha, do prédio referido em 2) e de seguida melhor identificado. – escritura de fls 29 a 32.

10) Nesse acto declarou que “com exclusão de outrem, é dona e legitima possuidora do seguinte prédio a seguir identificado, não descrito na Conservatória do Registo Predial de …: urbano, composto de casa de rés do chão, primeiro e segundo andar, com a superfície coberta de cento e nove metros quadrados e logradouro com a área de três mil novecentos e cinco metros quadrados, sito em Penhas Douradas-…, Manteigas (…) inscrito na matriz sobre o art.º 2.(…)

Mais declarou que “o prédio veio à sua posse por lhe haver sido doado, no ano de mil novecentos e quarenta e cinco, pelo titular da inscrição e sua mulher, FF, pais da justificante (…) possui-o, como se vê, há mais de vinte anos e tal posse sempre foi exercida de forma pública, pacífica e sem interrupção tal como se correspondesse ao exercício do direito de propriedade, por isso o habitando e cuidando do seu arranjo e manutenção (…)

Nessa mesma escritura declarou que “doa à terceira outorgante CC, sua sobrinha, o identificado prédio”.

11) O prédio identificado em 2) e 10) está registado na CRPredial de … com o nº 1…/20…4 e mostra-se inscrito a favor de CC através da AP 1 de 2007/10/24 tendo como causa aquisitiva a doação supra referida. – documento de fls 91 e 92

12) Os recibos da água e electricidade da casa eram emitidos, pelo menos desde 1975, em nome de HH, sendo ela que pagava essas despesas – docs de fls 78 a 82.

13) Em 1992 continuava a ser ela a ser a titular do contrato com a EDP – doc de fls 88.

14) Pelo menos em 1974 arrendou a casa e recebeu as respectivas rendas – docs de fls 83 a 88.

15) Nos anos de 1978/1979, mandou fazer e pagou obras na casa, colocando um vidro, uma torneira, válvula e anilhas e serviços de electricidade e canalização. – fls 86 e 87.

16) Desde o falecimento de FF e de EE que a casa foi sendo usada pelos seus filhos, quer por HH, quer pelos restantes irmãos e seus descendentes e familiares, incluindo os RR habilitados com a sua mãe CC, em especial durante fins-de-semana e férias da Páscoa e de Verão.

17) O A. AA e sua família passaram férias e fins-de-semana nessa casa, até ao ano de 1991.

18) E tinham uma chave da casa, que lhes havia sido dada pelo pai QQ.

19) Era a “Tia HH” quem geria a conservação e ocupação da casa, sendo a ela que os irmãos e os sobrinhos se dirigiam quando pretendiam ir à Serra e ocupar a casa, de modo a evitar sobreposição de famílias.

20) Os demais familiares, irmãos da Tia HH e seus descendentes, também procediam a pequenas reparações na casa, quando a ocupavam.

21) A partir da doação, os RR., e depois os herdeiros habilitados, continuaram a usar e vigiar a casa, a pagar as despesas da casa, a fazerem obras de restauro, contactando empreiteiro para o efeito e suportando as despesas, accionando judicialmente o mesmo para a eliminação de defeitos, pagando IMIs

22) Sendo que o fizerem continuadamente, perante toda a população e convictos de serem donos exclusivos da mesma, sem a consciência de lesarem os direitos dos demais herdeiros dos avós e de HH.


Não se provaram os seguintes factos:

a) EE e FF doaram a casa identificada em 2) e 10) dos factos provados à filha GG ou HH (no ano de 1945 ou em qualquer outro).

b) Os demais herdeiros de EE e FF, ou seja, os irmãos de GG, abandonaram a casa identificada em 2) e 10)

c) E que, por isso mesmo, estava no início da década de 60 do século XX em adiantado estado de degradação.

d) Uma vez que apenas HH queria recuperar a casa, já que os demais não tinham dinheiro ou não tinham interesse nisso, por sugestão dos irmãos … e TT a casa foi dada à Tia HH por todos os irmãos, a fim de esta a recuperar para si, propondo-se os referidos irmãos a ajudar monetariamente a irmã HH nessa recuperação.

e) A partir desse acordo com os irmãos, HH passou a considerar-se como dona e senhora da casa da serra como era conhecida, pondo e dispondo dela como se coisa sua fosse e com tal convicção.

f) Sendo como tal reconhecida, quer pelas pessoas de …, quer pelos seus próprios irmãos.

g) As despesas com a recuperação da casa tidas por HH foram comparticipadas pelos irmãos.

h) Nos anos de 78/79 foi recuperado o soalho da casa e colocadas portas novas e reformulado o sistema de electricidade.


            De direito:

    Coloca-se como primeira questão a apreciar saber se o presente recurso de revista é admissível, como sustentam os recorrentes.

Com efeito, o acesso ao recurso não é, como sabemos, um direito absoluto das partes, tendo o mesmo sido conformado pelo legislador, em consonância com o princípio da proporcionalidade, à verificação de determinados pressupostos, sem os quais não é admissível.

O artigo 629º nº 1 do Código de Processo Civil (ao qual se referirão os preceitos doravante citados sem outra menção) enuncia os pressupostos ou requisitos objectivos de cuja verificação depende, por regra, a possibilidade de impugnação da decisão pela via do recurso ordinário. São eles: (i) ter a causa um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e (ii) ser a decisão impugnada desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

Também a admissibilidade do recurso de revista, seja normal ou excepcional, está condicionada à observância dos referidos requisitos gerais de recorribilidade – valor da causa e valor da sucumbência –.

Só assim não será nos casos excepcionais previstos no nº 2 do citado artigo 629º, preceito que faculta a interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça desde que ocorra qualquer uma das situações especiais ali previstas, mesmo quando o valor da causa ou da sucumbência não o permitiriam ou a ocorrência de dupla conformidade das decisões proferidas pelas instâncias não o consentiriam (artigo 671º nº 3).

No caso em apreço, o acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação em processo declarativo, instaurado no dia 21 de Dezembro de 2011, com o valor de € 8.000,00, manifestamente inferior ao da alçada daquele Tribunal de 2ª instância, fixado em € 30.000,00 pelo artigo 44º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.

Acresce ainda que esse acórdão confirmou a decisão proferida na 1ª instância sem voto de vencido e com fundamentação essencialmente coincidente à da sentença da 1ª instância, sendo, por isso, susceptível de integrar o conceito de dupla conforme plasmado no nº 3 do artigo 671º, impeditiva, em princípio, de recurso de revista.

Não obstante a falta de verificação do requisito geral e objectivo atinente ao valor da causa e da ocorrência de dupla conforme, defendem os recorrentes a admissibilidade da revista com fundamento em que o acórdão recorrido contrariou a doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça proferido em 14.05.1996, publicado no DR II série, de 24.06.96, caindo, por isso, no âmbito da previsão da alínea c) do nº 2 do falado artigo 629º, que admite, excepcionalmente, recurso de decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contrárias a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Vem sendo entendimento pacífico deste Supremo Tribunal que esta regra especial de recorribilidade das decisões proferidas nas instâncias apenas tem aplicação quando se encontrem em oposição frontal com o decidido em acórdão uniformizador de jurisprudência e exista identidade substancial relativamente à questão de direito objecto de apreciação, sendo irrelevante para este efeito a contradição meramente implícita ou pressuposta.

O Acórdão Uniformizador proferido em 14.05.1996, referenciado pelos recorrentes, fixou jurisprudência no sentido de que: "Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa".

   Considerou, então, este Supremo Tribunal de Justiça que:

A posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indica. É o fenómeno da usucapião, definido no artigo 1287, como todas os a seguir indicados sem menção em contrário, do actual Código Civil.

Mas a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não a posse precária ou detenção.

(…)

São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no artigo 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente.

Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse.

Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.

Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados.

O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.

Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com o direito aparente, estabelece o nº 2 do artigo 1252, como já o fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).

Donde, e tendo em conta o que se dispõe no nº 1 do artigo 350, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor O que não lograram fazer nem na hipótese versada no acórdão fundamento nem na contemplada no acórdão recorrido. Contudo, enquanto no primeiro, com invocação, expressa no parágrafo 1 do artigo 481 do Código Seabra, se deu como provado o animus da posse, por os réus não terem ilidido a presunção legal, no segundo, e apesar de os réus também não terem logrado afastar a presunção, ora recebida no nº 2 do artigo 1252, não se deu como preenchido o animus possidendi, precisamente por os autores não terem demonstrado que o seu antecessor E o tivesse exercido. O que vale por dizer que o acórdão recorrido desrespeitou a regra do citado nº. 2 do artigo 1253 [1352]. Se a tivesse acatado, não poderia deixar de considerar preenchido o animus possidendi por parte do referenciado E, em conformidade com a presunção legal.

Julgam-se, assim, preenchidos não só o requisito corpus mas também o requisito animus por parte de E, tanto no momento da aquisição da posse como no da sua conservação, em conformidade com o que se dispõe no artigo 1257. E os mesmos requisitos são de considerar preenchidos por parte dos seus herdeiros, ora recorrentes, como continuadores da posse, nos termos do artigo 1255.

E por a aludida posse ter decorrido pelo tempo necessário à aquisição do imóvel dos autos por usucapião, não pode a acção deixar de proceder como julgou a Relação.

Do exposto decorre que no processo em que foi proferido o invocado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência se encontrava provado o corpus da posse, centrando-se a questão de direito controvertida apenas em saber se, nesse caso, deveria operar a presunção legal do animus possessório.

Neste contexto, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que, verificado o corpus possidendi, deve actuar a presunção legal inserta no nº 2 do artigo 1252º, isto é, assente o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, deve presumir-se que quem o exerce o faz em nome próprio, recaindo sobre a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção de posse idónea para adquirir por usucapião.

No caso vertente, referem os recorrentes que têm a seu favor duas presunções legais:

(i) - a presunção derivada do registo definitivo a seu favor do prédio em causa com base na escritura de justificação e doação

(ii) - a presunção de a sua antecessora e eles por acessão serem possuidores em nome próprio do prédio descrito, face à presunção de animus possidendi resultante do provado poder de facto sobre o bem em causa;

    Relativamente à presunção prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial, observou o acórdão recorrido que a mesma se não verifica de acordo com a doutrina do Acórdão Uniformador de Jurisprudência n.º 1/2008, in DR, I.ª Série, de 31 de Março de 2008, o qual decidiu que : “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Cód. de Registo Predial e 89.º e 101.º do Cód. do Notariado, tendo sido os réus que nela firmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Cód. de Registo Predial”.

Em harmonia com a jurisprudência assim fixada, o Tribunal da Relação considerou que a impugnação judicial da escritura de justificação notarial faz recair sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do disposto no artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil, sem que este possa beneficiar da presunção registral emergente do mencionado artigo 7.º.

E, citando, a propósito e entre outros, o Acórdão do STJ, de 09/07/2015 (proc. n.º 448/09.5TCFUN.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj), afastou a aplicabilidade de tal presunção legal no caso.

      No que tange à presunção legal consagrada no artigo 1252º nº 2 do Código Civil, questão de direito alegadamente decidida no acórdão recorrido em sentido contrário à doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido em 14.05.1996, adiantamos, desde já, que tal contradição se não verifica.

       Efectivamente, ao contrário do que sucedeu neste Acórdão Uniformizador, no acórdão agora sob censura não se teve por provado o corpus da posse dos recorrentes, como ressalta das passagens do mesmo que passamos a transcrever:

“(…) defendem os réus, ora recorrentes, que a presente acção deve improceder, por se dever considerar terem provado que, por si e antepossuidores, adquiriram a propriedade do imóvel em causa, através da usucapião; para além do que, gozam da presunção derivada do registo, que sobre o referido imóvel, têm a seu favor, nos termos do disposto no artigo 7.º do Cód. de Registo Predial.

No entanto, em face da factualidade tida como provada e não provada, não podem ver satisfeita a sua pretensão, uma vez que não se provaram factos bastantes para que se dêem como verificados os requisitos necessários para a verificação da aquisição do almejado direito de propriedade sobre o imóvel em causa, através da usucapião; bem como porque os réus não beneficiam da alegada presunção derivada do registo, nos termos que se passa a expor.

Efectivamente, a usucapião mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal – cf. artigo 1287.º CC.

Por seu turno, a posse, nos termos do artigo 1251.º do mesmo Código é o poder que se manifesta (exercício de poderes de facto) sobre uma coisa, em termos equivalentes ao direito de propriedade ou de outro direito real, traduzindo-se no corpus: elemento material, que mais não é do que a assunção de poderes de facto sobre a coisa e no animus: o exercício de tais poderes de facto como titular do respectivo direito de propriedade ou de outro direito real”.

(…) de acordo com a factualidade provada e constante dos itens 16.º a 22.º, demonstrou-se que todos os herdeiros usavam a casa em questão, dela tendo uma chave, sendo a justificante que geria a conservação e ocupação da casa, mas na qualidade de herdeira, como os demais e só a partir de 2006, mercê da doação que lhes foi feita é que os réus passaram a exercer actos de posse, com virtualidades suficientes para a aquisição do respectivo direito de propriedade, através da usucapião, como resulta dos itens 21.º e 22.º, o que não sucedeu relativamente à Tia HH, como resulta do teor das alíneas e) e f), dos factos não provados”.

(…)

 “Como acima referido, a posse exercida durante certo lapso de tempo conduz à aquisição do direito correspondente, nos termos consignados, quanto aos imóveis, nos artigos 1293.º e seg.s do Código Civil, prazos esses que, como explicitado na decisão recorrida, relativamente aos réus ainda não decorreram e a Tia HH, em face da não demonstração dos factos referidos nas alíneas e) e f), dos factos não provados, não pode ser considerada como possuidora, em função do que, igualmente, não se mostra violado o firmado no invocado AUJ, de 14 de Maio de 1996, pela simples razão de que inexiste a invocada posse e, consequentemente, a alegada presunção decorrente da prática de actos de posse, que não existiram.

Pelo que, com base nesta fundamentação é de manter a decisão recorrida”.

      Diversamente do que aconteceu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência invocado pelos recorrentes, no qual não se questionava a demonstração de facticidade evidenciadora do poder de facto do alegado possuidor sobre a coisa (corpus da posse), no caso em análise o Tribunal da Relação, tal como a 1ª instância, considerou não terem resultado provados factos integradores do alegado corpus da posse dos recorrentes, prova indispensável e que lhes cabia realizar para poderem beneficiar da presunção legal contida no citado nº 2 do artigo 1252º.

       E foi esta, aliás, a razão que conduziu ao expresso afastamento da aplicação da sua doutrina pela Relação no acórdão recorrido.

Note-se que, cientes dessa dificuldade e visando contornar este obstáculo de índole probatória quanto à demonstração da existência de matéria de facto reveladora da existência do necessário poder de facto sobre o prédio objecto desta acção, os recorrentes impugnaram, sem sucesso, na apelação a decisão sobre a matéria de facto, pugnando para que fossem considerados provados os pontos de facto descritos nas conclusões D), F) e I) da sua alegação.

Não se verifica, por conseguinte, a necessária identidade substancial entre a concreta questão de direito tratada no aludido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência e o decidido no acórdão recorrido susceptível de caracterizar a indispensável contradição frontal relativamente a tal questão, que facultaria aos recorrentes o acesso ao recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.


III. Decisão:

Nos termos expostos, decide-se que é inadmissível o recurso de revista interposto e, consequentemente, dele não se toma conhecimento.

Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 21 de Junho de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado