Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4427
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: MÚTUO NULO
DECLARAÇAO DE DÍVIDA
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: SJ200902190044277
Data do Acordão: 02/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1 – O título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro.
2 – Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele.
3 – Dentro do invólucro de uma “declaração de dívida” retratando um mútuo nulo por falta de forma está, no que concerne ao montante do capital mutuado, a obrigação de restituir consequente à declaração de nulidade.
4 – Nessa medida, a “declaração de dívida” é título executivo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA, veio, por apenso ao processo de execução que, com o nº728/2005, lhe move e a outra, como sucessoras de BB, no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes, CC deduzir oposição, começando por defender a sua própria ilegitimidade passiva, depois pedindo a declaração de nulidade do título executivo e invocando de seguida a prescrição dos juros devidos até 27 de Maio de 2000. Continuou com a impugnação dos factos articulados pela exequente, e concluiu pela improcedência do pedido.
Admitida a oposição, apareceu a exequente a contestar ( fls.21 ).
Efectuada ( fls.69 ) uma audiência preliminar na qual foi tentada, sem êxito, a conciliação das partes, foi proferido despacho saneador-sentença de fls.70 a 83 que julgou totalmente procedente a oposição à execução instaurada por AA contra CC e, consequentemente, determinou a extinção da execução a que estes autos se mostram apensos.

Inconformada, a exequente CC interpôs recurso mas o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de fls.121 a 123, julgou improcedente a apelação pelo que, em conformidade, manteve a sentença recorrida.
De novo inconformada, a exequente pede agora revista para este Supremo Tribunal.
Alegando a fls.138, CONCLUI:
1ª - No documento apresentado como título executivo, assinado em Janeiro de 1998 pelo devedor, com reconhecimento presencial da sua assinatura, este confessa-se devedor da quantia de 4 000 000$00 desde Junho de 1991; obriga-se a assinar a escritura de confissão de dívida logo que para tanto seja notificado por escrito; e obriga-se ao pagamento de juros à taxa legal sobre aquela quantia.
2ª - Existe, pois, título executivo no que respeita à dívida de juros, a partir da data da assinatura da declaração, por força da autonomia do crédito de juros – art.561° do Código Civil.
3ª - Estes juros de mora vencem-se a partir da data da assinatura da declaração de dívida, que constitui acto equivalente ao da citação do réu para a acção ou à interpelação admonitória feita ao mutuário, no sentido da restituição das importâncias emprestadas, uma vez que a partir daquele momento cessa a presunção de que o mutuário está de boa fé e, como tal, goza do direito de fazer seus os frutos civis, nos termos do artigo 1270°, nº1 do CCivil.
4ª - o devedor reconheceu e confessou a existência "a posteriori" o direito da Exequente no que se refere ao capital e simultaneamente assumiu também a obrigação acessória de pagamento de juros à taxa legal a partir da data da assinatura da declaração, coincidindo precisamente com a solução legal consagrada para o caso de ter sido a credora a interpelá-lo para restituir aquele capital.
5ª - Tendo força executiva no que toca à obrigação de juros o referido documento particular assinado pelo devedor e que importa a constituição e reconhecimento da correspondente obrigação, cujo montante é determinado ou determinável em face da mesma declaração.
6ª - Nas alegações para a Relação, a recorrente suscitou esta questão na 6ª e 14ª conclusões - sem prejuízo de nesta última conclusão e por manifesto lapso se ter escrito alínea a) - que aquela instância todavia não apreciou, cometendo assim a nulidade prevista nos artigos 668° nº1 al. d) e 716° do C PC.
7ª - Da decisão proferida resultou, assim, a violação da norma do artigo 561° do Código Civil e do artigo 46°, nº1 al. c) do C PC, nada devendo impedir que, independentemente da invalidade do título quanto à obrigação de capital, o mesmo seja válido quanto à obrigação acessória de juros, devendo por isso os embargos serem julgados improcedentes pelo menos no que respeita à obrigação de juros.
8ª - Ao declarar implicitamente a nulidade da obrigação de juros a decisão recorrida violou a norma do artigo 405° do Código Civil, que estabelece o princípio da liberdade contratual, tanto mais que as executadas nem sequer questionam e até confirmam a existência do empréstimo.
9ª - A dita obrigação de juros foi assumida pelo devedor posteriormente à concretização do empréstimo e não ficou dependente da validade ou nulidade do correspondente contrato de mútuo.
10ª - No Acórdão de 20-02-2001 do Tribunal da Relação de Coimbra (Processo 3270/2000 DGSI) decidiu-se, no domínio da mesma legislação, que os documentos particulares com o título "Declaração de Dívida" que a exequente apresentou a servir de base à execução são exequíveis relativamente ao dever por parte do executado de restituir à exequente a quantia que lhe foi entregue a título de capital;
11ª - Também no Acórdão da mesma Relação de 12-12-2001, confirmado pelo Acórdão do STJ de 19-11-2002 (Processo 02A2657 DGSI) se considerou que constituía título executivo para cobrança da 62.781.452$00 - quantia esta confessada no processo executivo - o documento particular de confissão de dívida no valor de 175.413.706$00.
12ª - Ora, nos presentes autos e concretamente na decisão recorrida, o documento dado à execução com as mesmas características dos anteriores, não foi considerado título executivo, face ao disposto no artigo 46°, nº1, al. c) do CPCivil e no art.1143° do Código Civil.
13ª - Havendo assim justificação para que o julgamento do recurso se faça com a intervenção do plenário das secções cíveis, afim de ser assegurada a uniformidade da jurisprudência face ao disposto no artigo 732°- A, nº2 do CPCivil, o que se requer.
14ª - Vindo, dessa forma a ser fixada jurisprudência no sentido de que os documentos particulares referidos no artigo 46°, nº1, al. c) do CPC são exequíveis mesmo quando titulem mútuos nulos por falta de forma, relativamente ao dever do executado de restituir ao exequente a quantia que lhe foi entregue a título de capital.
15ª - A vingar a tese da exequibilidade de tais títulos, deverá então revogar-se a decisão recorrida também no que respeita à dívida de capital e decidir-se que a execução deverá prosseguir igualmente no que respeita à restituição do montante de 4 000 000$00 que foi entregue pela exequente a título de capital;
16ª - E sem prejuízo de tudo o que acima se defendeu a respeito da exigibilidade da obrigação autónoma de juros que o devedor voluntariamente se obrigou apagar a partir de 12 de Janeiro de 1998, reconhecendo explicitamente que pelo menos a partir desta data não podia fazer seus os frutos civis do capital recebido.
Contra – alegou a recorrida a fls.148 pugnando pelo bem fundado do acórdão.
O Relator, que começou por receber o recurso como o próprio, atempado e no efeito adequado ( despacho de fls.162 ) ordenou posteriormente a baixa do processo para que a Relação se pudesse pronunciar sobre a questão, suscitada pela recorrente nas suas alegações como de nulidade por omissão de pronúncia, de « não ter o acórdão recorrido conhecido do problema de saber se há que destrinçar a questão do capital e dos juros, para tratar os juros de forma diferente do capital ».
Em acórdão de fls.176 e 177, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente o arguido vício de nulidade do acórdão proferido.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
Haveremos de considerar, com as instâncias, o seguinte quadro factual:
1 - Mostra-se dado à execução o escrito constante de fls.10 dos autos principais, assinado por BB, com o seguinte teor:
" Declaração de dívida
O Signatário declara para os devidos e legais efeitos que CC, lhe emprestou no mês de Junho de 1991 a quantia de 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos).
Esta quantia destinou-se à construção de parte de uma casa de habitação e comércio em Souto - Abrantes.
Mais declara, ainda, que se obriga a assinar a escritura de confissão de dívida, logo que para tal seja notificado, por escrito, e que sobre esta quantia vence juros à taxa legal.
Abrantes, 30 de Junho de 1991"
2- Através do assento de óbito n° 000 mostra-se registado na Conservatória do Registo Civil de Abrantes que no dia 23 de Setembro de 2003, na freguesia de São João, concelho de Abrantes, faleceu o BB, no estado de viúvo de DD.
3 - A execução referida em 1 foi instaurada em juízo 27.05.2005.
E, depois, dizer:
toda a execução tem por base um título, o título ... executivo.
Esse título, « o título executivo é o documento ... » - Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pág.63.
Ou:
Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág.60 - « O título executivo é, pois, um documento; no caso da sentença, constituem título executivo as próprias folhas do processo em que é exarada ... » ;
Remédio Marques, Curso de processo Executivo Comum, SPB Editores, 199, pág.55 - « O título executivo é o meio legal de demonstração do direito do exequente ... cujo lastro material ou corpóreo é um documento ... ».
Diremos, por nós:
o título executivo é o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou direito que está dentro.
Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele, o direito ou a pretensão que é o seu conteúdo.
A causa de pedir na acção executiva é o conteúdo, não o invólucro.
O credor embrulhou o seu direito ou a sua pretensão no invólucro adequado, e pode por isso exercitá-lo em acção executiva.
Mas claro que, nela, e no lugar e meio adequados, pode o devedor vir dizer que afinal, ab initio, nada estava embrulhado ou estava embrulhada coisa diferente ou o que estava embrulhado não é o que parecia, ou que, a posteriori, o conteúdo se deteriorou ou morreu ou alterou.
In casu:
o invólucro existe: é a declaração de dívida subscrita pelo falecido BB, que a datou do dia 30 de Junho de 1991 mas cuja assinatura foi apenas reconhecida notarialmente em 12 de Janeiro de 1998.
Alguma coisa está dentro desse invólucro?
Estará dentro dele o « empréstimo ... da quantia de 4 000 000$00 » que a declaração do BB textualiza?
Não, esse não, ao menos validamente não.
O contrato de mútuo é um contrato formal e, ao tempo, « no mês de Junho de 1991 » o art.1143º do CCivil exigia para a validade do mútuo de valor superior a 200 000$00 a celebração de escritura pública.
Não há, pois, protegido pelo invólucro da “declaração de dívida”, um válido contrato de mútuo que constitua o seu subscritor ( as suas sucessoras ) na obrigação de restituir a quantia mutuada.
Mas está lá dentro, protegida por esse invólucro, um negócio nulo e quando se declara a nulidade de um negócio essa declaração tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado – art.289º, nº1 do CCivil.
Nesta exacta medida, mas evidentemente só nela, a exequibilidade intrínseca do título está em consonância com a sua exequibilidade extrínseca, para utilizar as expressões de Miguel Teixeira de Sousa – veja-se o acórdão deste STJ de 10 de Julho de 2008 ( Nuno Cameira ), no proc. nº08A1582, in www.dgsi.pt/jstj.
A “declaração de vida” à qual a ora recorrente CC se amparou para dinamizar a presente execução constitui assim, de acordo com o disposto no art.46º, nº1, al. d ) do CPCivil, o necessário e suficiente título executivo para o pedido de pagamento da quantia de 4 000 000$00, o capital mencionado.
E só do capital.
Não dos juros, como retribuição de um capital mutuado ... porque o mútuo é nulo.
E podendo, como pretende a recorrente nas conclusões 1ª a 9ª da sua alegação de recurso, aceitar-se a obrigação de juros como autónoma, nos termos desenhados no art.561º do CCivil, a verdade é que essa obrigação, aqui, não pode existir, porque não existe o que não pode ter nascido. E de um mútuo nulo – repete-se – não nasce uma obrigação que só um contrato de mútuo válido pode suportar como retribuição, nos termos do art.1145º, nº1 do CCivil.
Haverá juros sim, mas apenas os juros de mora, à taxa legal desde a citação para a acção executiva, por força do que dispõem os arts.805º, nº1 e 806º do mesmo código.
Nesta medida, nesta exacta medida, o recurso procede e a execução deverá prosseguir, para conhecimento da oposição deduzida, porque tem o necessário e suficiente título.
Quanto mais, quanto ao pedido de juros tal como vem formulado, falta à execução o necessário título e por isso, nessa parte, mantém-se o decidido nas instâncias.

D E C I S Ã O
Na parcial procedência do recurso, concede-se parcialmente a revista e revoga-se em parte a decisão recorrida, devendo a execução prosseguir todos os mais trâmites na parte que respeita ao capital de 19 951,91 euros ( equivalentes a 4 000 000$00 ), a que acrescerão os juros de mora à taxa legal, contados desde a citação.
No mais, no que respeita ao pedido de juros tal como vem formulado, no montante de 27 087,04 euros, mantém-se a decisão recorrida.
Custas, aqui e nas instâncias, na proporção do vencido.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2009

Pires da Rosa ( Relator )
Custódio Montes
Mota Miranda