Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2239/20.3T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ATO INÚTIL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
ÓNUS DO RECORRENTE
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA.
Sumário :
I - Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto.
II – De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte.
III – Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio.
IV – Visando-se com a revista que a Relação conheça de um recurso de facto exclusivamente incidente sobre segmentos da petição inicial que, mesmo que fossem aditados aos factos provados, nunca poderiam influir na decisão da causa, à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, o recurso de revista é inútil, pelo que não deve conhecer-se do seu objeto.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1
MBM/JG/DM

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. AA, médica, intentou ação sob a forma de processo comum contra “Hospital de Santo André, E.P.E.”, invocando, essencialmente, que o R. tem vindo a pagar-lhe salário inferior ao correspondente à sua categoria profissional, discriminando-a em relação a outros profissionais com funções idênticas,

2. A ação foi julgada improcedente na 1ª instância.

3. A autora apelou, impugnando a matéria de facto e de direito, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra decidido: (i) rejeitar a impugnação fáctica, por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640.º, n.º 1, b), do CPC; (ii) confirmar a sentença apelada.

4. Inconformada, interpôs a mesma a presente revista.

5. O R. não contra-alegou.

6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista, parecer a que apenas respondeu o R, pronunciando-se em sentido contrário.

7. Posteriormente, o relator, entendendo estar verificada circunstância impeditiva do conhecimento do objeto do recurso, proferiu despacho a suscitar tal questão prévia.

8. Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre o teor deste despacho, ambas responderam, desfavoravelmente a recorrente e em sentido oposto o recorrido.
9. Cumpre conhecer da questão prévia suscitada pelo relator.

E decidindo.

II.

10. Entre outros[1] que desinteressa descrever, as instâncias consideraram provados os seguintes factos:
(…)
3) A A. foi admitida ao serviço do R., por contrato de individual de trabalho, sem termo, celebrado em 28 de setembro de 2007, com início em 01 de outubro de 2007, para exercer, sob a autoridade, direção e fiscalização daquela, as funções correspondentes à categoria profissional de ....
4) (…)
5) O horário de trabalho acordado foi de quarenta horas semanais, tendo-se definido, à partida, que as 24 horas do referido período normal de trabalho serão cumpridas em regime de turnos no serviço de urgência do Hospital sendo as restantes 16 distribuídas por atividades programadas, sendo que cabia ao R. a determinação do período normal de trabalho.
6) Quanto ao pagamento, acordaram que o R. pagaria à A., uma remuneração base mensal de € 3.500,00, sujeita aos descontos legais, sendo que tal remuneração base seria paga em 14 mensalidades, doze das quais corresponderiam a cada mês do ano, uma ao subsídio de férias e outra ao subsídio de Natal.
7) O referido contrato foi objeto de aditamento, em 20 de abril de 2018, tendo as partes acordado dar nova redação à cláusula primeira, tendo nesta ficado consignado o seguinte:
“1- O primeiro contraente admite ao seu serviço, a segunda contraente para exercer as
funções correspondentes à categoria profissional de ....
2- Pelo presente contrato, a segunda contraente compromete-se a executar, sob
autoridade e direção do primeiro contraente, a tempo inteiro, as funções que correspondem à
sua categoria profissional”.
8) (…)
9) (…)
10) (…)
11) Por circular normativa n.º 5 de 2005/03/14, o R. deu a conhecer a todos os seus trabalhadores a revisão do Estatuto Contratual dos Trabalhadores do Hospital de Santo André, S.A.
12) Nessa circular, divulgou-se a deliberação do Conselho de Administração de 2005.03.04, na qual se aprovaram, entre outras, as condições contratuais, para o pessoal médico com efeitos a 1 de março de 2005, a saber:
Período normal de trabalho semanal – 40 horas
Retribuição mensal
Categoria – Assistente
c/ posse de título até 3 anos - € 3.500;
c/ posse de título de 3 a 6 anos - € 3.750;
c/ posse do título com mais de 6 anos - € 4.000.
13) A A. iniciou a sua especialidade de ..., em 2001, tendo concluído essa especialidade, adquirindo o respetivo título, em 13.07.2007.
14) Por requerimento dirigido ao senhor presidente do conselho de administração do Hospital de Santo André, EPE, em 05 de janeiro de 2011, a A. solicitou a alteração do valor da sua remuneração, com base no Estatuto Contratual do Pessoal Médico vinculado da R.
15) Por referência a este requerimento, a R. não deu qualquer resposta.
16) Por requerimento dirigido ao presidente do conselho de administração do Hospital de Santo André, EPE, em 09 de setembro de 2014, a A. solicitou, novamente, a alteração do valor da sua remuneração, com base no Estatuto Contratual do Pessoal Médico vinculado do R.
17) Em resposta, no dia 18/09/2014, os serviços de Gestão de recursos humanos do R. verteram o seguinte:
• “A requerente celebrou contrato individual de trabalho com esta instituição para exercer as funções correspondentes à categoria profissional de assistente de ..., com efeitos a 2007/10/01.
• Do seu processo individual constam documentos comprovativos de que possui o grau de assistente de ... desde 13 de julho de 2007.
• De acordo com a Deliberação do Conselho de Administração deste Hospital – Revisão do Estatuto Contratual do Pessoal Médico vinculado com Contrato Individual de Trabalho, os médicos, com um período normal de trabalho semanal de 40 horas, com a categoria de Assistente e com posse de título à mais de 6 anos, tem direito a uma retribuição mensal no valor de 4.000,00 €.
• A requerente completou 6 anos de posse de título de ... em 13 de julho de 2013.
• Porém, refere o artº 24º da Lei nº 55-A/201 de 31/12 – Lei Orçamental para 2011, revogado pelo nº 1 do artº. 20º da Lei nº64-B/2011 de 30/12, artigo 35º da Lei nº66-B/2012 de 31/12 e artº 39º da Lei nº83-C/2013 de 31/12, que é vedada a prática de quaisquer atos que consubstanciem valorizações remuneratórias dos titulares dos cargos e demais pessoal identificado nº 9 do artº 33º, nomeadamente os trabalhadores das Entidades Públicas
Empresariais (alínea r) do referido nº 9).
• Como tal está abrangida pelas restrições fixadas na referida Lei, nomeadamente a alínea a) do nº 2 do artigo 39º.”
18) Por despacho datado de 30.11.2016, o R. reconheceu à A. a progressão na carreira integrando-a na categoria superior de assistente graduada, tendo ainda considerado que a mesma auferia um valor superior ao valor previsto para a 1ª posição remuneratória da categoria de assistente graduado, a qual correspondia a € 3.209,67.
19) Em 26.02.2018 a A. voltou a insistir com a R. para que a mesma esclarecesse sobre o seu pedido efetuado a 05/01/2011 e que tinha por objeto a alteração do valor da sua remuneração por ter completado os 3 anos de especialidade, não tendo obtido qualquer resposta.
20) A colega da A., Dra. BB celebrou contrato individual de trabalho com o R., então HSA, em 11.10.2006, para exercer as funções inerentes à categoria de assistente hospitalar, com a remuneração base mensal de € 3.500,00.
21) A Dra. BB concluiu a especialidade em 09.02.2006, conforme publicação em DR, de 29.03.2006.
22) Tendo esta perfeito três anos de título em 09.02.2009, tendo visto a sua remuneração base aumentada, por Despacho de 17.04.2009, de € 3.500,00 para € 3.750,00, valor que aufere até hoje.
23) O colega da A., Dr. CC, celebrou contrato individual de trabalho com o R., em 22.12.2010, com efeitos a 03.01.2011, para exercer as funções inerentes à categoria de assistente hospitalar, com a remuneração base mensal acordada de € 3.750,00, valor que se manteve.


III.

11. No plano da impugnação da matéria de facto, a recorrente limitou-se, na apelação, a pugnar pelo aditamento aos factos provados dos seguintes segmentos da petição inicial (p.i.):

- Do art. 32º da p.i.: “Não existe portanto paridade salarial entre a A. e os seus outros colegas que exercem as mesmas funções, executando tarefas idênticas e por vezes conjuntamente.”
- Do art. 33º da p.i.: “O horário de trabalho praticado por todos tem a mesma duração.”
- Do art. 34º da p.i.: “A R. não moveu à A. qualquer processo disciplinar com fundamento em quebra de produtividade ou falta de qualidade do seu desempenho profissional.”



Ora:

12. O segmento relativo ao art. 32º da p.i. tem natureza puramente conclusiva, seguindo-se, precisamente à laia de mero remate, aos artigos 30º e 31º da petição inicial (a que se reportam os pontos 20 a 23 dos factos provados), do seguinte teor:

30º. - Assim, por referência à sua colega, Dra. BB, que presta serviço à R. no mesmo local de trabalho e que possui a mesma especialidade de ..., neste caso terminada no ano anterior à da A., o respetivo vencimento é de 3.750,00 €;

31º. - Já o seu colega Dr. CC, quando, em 04.01.20211 celebrou contrato com a R. para as mesmas funções e categoria da A., começou logo a auferir o salário mensal de 3.750,00 €.

Para além de este segmento ser meramente conclusivo, é manifesta a sua irrelevância, em face do mais alegado e provado neste âmbito.

13. Em face do conjunto dos factos provados e do tratamento jurídico dado à causa em ambas as instâncias, também é patente a insusceptibilidade de o alegado no art. 33º da p.i. (O horário de trabalho praticado por todos tem a mesma duração) determinar, só por si, a alteração do julgado, em sentido (agora) favorável à recorrente.

Na verdade, e como refere o Tribunal a quo:
“(…)
Compete ao trabalhador, nos termos do artigo 342º/1 do CC, alegar e provar factos que permitam afirmar a prestação de trabalho objetivamente semelhante em natureza, qualidade e quantidade relativamente ao trabalhador (ou trabalhadores) face ao qual se diz discriminado e permitam concluir que a diferente progressão na carreira e o pagamento de diferentes remunerações viola o princípio da igualdade, não bastando, para o efeito do juízo comparativo a estabelecer, a prova da mesma categoria profissional e da diferença retributiva.

Ora, lidos os factos provados não se descortina um só tratamento desigual que à autora tenha sido dispensado pela ré com base em qualquer dos fatores de discriminação pressupostos na lei ou noutros qualitativamente equiparáveis, pelo que não tem aplicação o que dispõe o nº 5 do artigo 25º do CT/2009.

Por outro lado, lidos esses mesmos factos, não é possível concluir-se no sentido de que a aqui apelante desempenhou e desempenha trabalho igual, designadamente quanto à quantidade e qualidade, ao que era e é prestado pelos outros trabalhadores por referência aos quais se considera discriminada salarialmente.

Não se provando que a autora presta trabalho igual ao prestado pelos outros trabalhadores em relação aos quais se considerada discriminada, também não tem aplicação a Lei 60/2018, de 21/8, posto que indemonstrada aquela igualdade indemonstrada fica, também, a discriminação salarial em razão do sexo que constitui pressuposto essencial de aplicação daquela Lei.

Tudo visto, não resulta demonstrada a discriminação salarial da autora relativamente a outros trabalhadores do réu, com a consequente improcedência da pretensão da autora a que tal discriminação fosse reconhecida e declarada, com os efeitos pecuniários a tanto associados.”

14. Tendo em conta os termos em que – no plano jurídico – o pleito foi dirimido, também é absolutamente inócua a afirmação ínsita no art. 34º da p.i. (A R. não moveu à A. qualquer processo disciplinar com fundamento em quebra de produtividade ou falta de qualidade do seu desempenho profissional).

Para além de ser um facto negativo, não aflora minimamente dos autos qualquer ligação entre a remuneração da A. e eventual quebra de produtividade ou falta de qualidade do seu desempenho profissional, fatores que de forma alguma se mostram discutidos nos autos.

15. Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto.


Com efeito, de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte (cfr. arts. 6.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, e 130.º, do CPC). Neste sentido, v.g., os Acs. do STJ de 19.05.2021, Proc. n.º 1429/18.3T8VLG.P1.S1 (desta 4.ª Secção), de 09.02.2021, Proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1 (1.ª Secção), de 30.06.20, Proc. n.º 4420/18.6T8GMR-B.G2.S1 (6.ª Secção), de 28.01.2020, Proc. nº  287/11.3TYVNG-G.P1.S1 (6.ª Secção), de 22.03.2018, Proc. n.º 992/14.2TVLSB.L1.S1 (7.ª Secção) e de 10.10.2017, Proc. n.º 8519/12.4TBCSC-A.L1.S1 (1.ª Secção).

Vale por dizer que o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar todos os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final (cfr. o citado aresto de 09.02.2021).

Com a presente revista pretende-se que a Relação conheça de um recurso de facto exclusivamente incidente sobre segmentos da petição inicial que, pelas razões expostas, mesmo que fossem aditados aos factos considerados provados, nunca poderiam influir na decisão da causa, à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito.

Dada a sua inutilidade, não se conhecerá, pois, do objeto da revista.
                                
                                                             
IV.

16. Em face do exposto, acorda-se em não conhecer do objeto da revista.
Custas pela recorrente.
Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 22 de junho de 2022



Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Domingos Morais


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[1] Apenas se elencam os factos necessários para a cabal compreensão e caracterização do litígio.