Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
55/19.4SWLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
INIMPUTÁVEL
PERIGOSIDADE CRIMINAL
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Afirmar que a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade não é viável quando o agente é um inimputável, por natureza quem por força de uma anomalia psíquica é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
II - Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada.
III - imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir. É uma tarefa com duas faces e a tarefa do perito constitui apenas uma das faces da mesma realidade
IV - O último momento em que é processualmente possível questionar o juízo de prognose relativo à perigosidade é o da decisão do último tribunal que tenha ainda poderes de cognição da questão de facto, dado essa questão não conforma em si mesma, isto é, quanto à subsistência ou insubsistência da perigosidade, uma questão de direito.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 55/19.4SWLSB.L1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Tribunal Judicial da Comarca  …., Juízo Central Criminal ….. - Juiz …., foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

«a) declarar que o arguido AA praticou factos subsumíveis aos tipos do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22., 23, 73, 131, 132, n.°s 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal; e do crime de detenção de arma proibida, previsto e punível, pelo artigo 86, n.° 1, alíneas c) e d), da Lei n.° 5/2006, de 23 de fevereiro;

b) declarar o arguido AA inimputável (no momento da prática dos factos) e perigoso e, em consequência, absolvê-lo da prática dos referidos crimes;

c) determinar o internamento do arguido AA em estabelecimento destinado a inimputáveis, fixando em 3 (três) anos a duração mínima da medida de segurança de internamento efectivo, não podendo exceder 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses».

(…)

2. Inconformado o arguido interpôs recurso para o TR….. que decidiu (transcrição):

«(…) negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida».

3. Ainda inconformado, recorre o arguido para o Supremo tribunal de Justiça rematando a sua alegação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A           I No nosso ordenamento jurídico viola o princípio nulla poena sine culpa. Isto mesmo decorre do Artigo 40º, n.º 2 do Código Penal.

II Os Senhores Desembargadores, por um lado consideram que o Recorrente era inimputável, por outro, consideram que o mesmo deve ser punido criminalmente…

III A perícia tem um carácter instrumental relativamente à boa decisão forense: pretende-se do perito médico-legal que forneça a base científica imprescindível para que o julgador possa decidir pela verificação ou não, in casu, dos elementos definitórios da perigosidade normativa.

IV O Tribunal a quo, à semelhança do que tinha feito o Juízo Central Criminal …….., na prolacção do seu Acórdão, divergiu do juízo contido no parecer da Senhora Médica Perita:

“… na actualidade, não está indicado um internamento e, em rigor, para a manutenção da abstinência não será necessária a manutenção de qualquer tratamento psiquiátrico psicofarmacológico. Da mesma forma, nesta data, uma medida de segurança em internamento não trará benefícios significativos relativamente à perigosidade. Assim, recomendamos que o arguido mantenha acompanhamento psicoterapêutico no sentido de reforçar a importância da abstinência, podendo eventualmente beneficiar de uma passagem por uma Comunidade Terapêutica para melhor sedimentar as estratégias necessárias à manutenção da abstinência, nomeadamente no que concerne à impulsividade e nos traços desadaptativos de personalidade de tipo antissocial.”

V A Senhora Perita procede a uma análise de perigosidade, médico-legalmente avaliada. E, era sobre a discordância desta perigosidade médica que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se e não o fez.

VI O Tribunal a quo não fundamentou a sua divergência antes tendo decidido em sentido diverso da posição plasmada pela Senhora perita;

VII Apresentando argumentos, com o devido respeito, completamente desrazoáveis, como foi o facto de se afirmar que “… se o arguido fosse libertado sem qualquer sanção, tal equivaleria a dar-lhe carta branca para… cometer quaisquer crimes.”

VIII Assim, e salvo o devido respeito por opinião diversa, entende o Recorrente que o Recurso proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ferido de nulidade, nos termos dos artigos 374º, n.º 2, por falta de fundamentação suficiente – Cfr. artigo 379º, n.º 2 do C.P.P.

B IX O Recorrente invocou a Errónea Qualificação Jurídica dos Factos em duas vertentes:

1. No Enquadramento dos Factos como a Prática de um crime de Homicídio na Forma Tentada;

2. No Enquadramento da Conduta do Arguido no Crime de Homicídio Qualificado na Forma tentada.

X Dos elementos concretos que nos podemos socorrer podemos concluir o seguinte:

•              O Arguido nunca teve qualquer intenção de, face à manifestação exterior perceptível pelo julgador, de matar o Ofendido;

•              O Arguido apontou a caçadeira à cabeça do Ofendido e depois baixou-a para a zona da perna, quando efectuou o primeiro disparo;

•              O Arguido estava a cerca de 4 (quatro) metros do Ofendido, de frente para este;

•              O segundo disparo foi efetuado, principalmente, contra um móvel que se encontrava no corredor que dava acesso à residência do Ofendido (Vide fotogramas de folhas 242);

•              O Arguido, sentindo o Ofendido ferido, se a sua intenção fosse tirar-lhe a vida poderia- o ter seguido com o intuito de o matar, o que comprovadamente não fez;

•              O Arguido tinha, pelo menos, mais 4 (quatro) cartuchos por deflagrar;

•              O Ofendido foi assistido no Centro Hospitalar ……. E.P.E. e teve alta nesse mesmo dia;

•              As lesões sofridas pelo Ofendido não representaram qualquer défice funcional ou estético grave;

• Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do Examinado/Ofendido;

XI No caso sub judice, por tudo o que acima se encontra exposto, entende a defesa do ora Recorrente, que estaríamos perante a prática de um crime de Ofensas à Integridade Física, p. e p. pelo artigo 143º do C.P., e não perante um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal;

XII Assim, ao considerar que o Recorrente havia praticado o referido crime o Tribunal a quo violou os artigos 143º, 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2, alínea e) todos do Código Penal;

C XIII O Tribunal a quo, por um lado, considerou que o Recorrente estava numa situação de inimputabilidade, isto é, não era capaz de avaliar a ilicitude da sua conduta, por outro lado, entendeu que o mesmo agiu com especial censurabilidade ou perversidade, havendo nesta parte, notória contradição, a nosso ver insanável.

XIV Conforme decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 382/14.7JALRA.C1, de 15-05-2019, disponível em www.dgsi.pt: “A declaração de inimputabilidade, implicando a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio.”

XV Pressupondo o homicídio qualificado um tipo especial de culpa, sendo a culpa a medida da censurabilidade do facto, um inimputável é incapaz de culpa, assim como, incapaz de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, a que se reporta o crime de homicídio qualificado, porquanto a punibilidade, nestas circunstâncias, exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar, cabalmente, a ilicitude do facto, sempre teria que se concluir que o Recorrente não cometeu o crime de homicídio qualificado na forma tentada, mas sim o homicídio tentado na forma simples.

XVI O Recorrente, tendo sido declarado inimputável, não pode ser agente de factos ilícitos típicos correspondentes ao homicídio qualificado, ou seja, a declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. - Ac. STJ, de 18-2-2009, no proc. n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no proc. n.º 412/09.4PATNV.C1 in www.dgsi.pt. Mas mais,

XVII No caso sub judice, conforme resulta do ponto 15 da matéria de facto dada como provada, o Arguido agiu convencido que o Ofendido mantinha uma relação extraconjugal com a sua mulher tendo-se movido por sentimentos de ciúme;

XVIII Conforme se decidiu no douto Acórdão do STJ, processo n.º 894/09.4PBBRR.S1, de 31-01-2012, disponível em www.dgsi.pt:  VII - É certo que há circunstâncias que indiciam a motivação passional do crime. Aliás, essa será a explicação plausível da conduta do arguido. Contudo, daí não se poderá concluir automaticamente pela qualificação do crime. É que a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a “futilidade” do motivo não resulta, submetido à cláusula do n.º 1 do art. 132.°, especialmente censurável ou perverso. VIII - É óbvio que o motivo passional não poderá nunca ser valorado positivamente, em termos atenuativos, gerais ou especiais, como por vezes se pretende. Mas o mesmo se dirá em termos de qualificação do crime. Para que o homicídio possa ser qualificado como de especial censurabilidade ou perversidade é necessário que haja outras circunstâncias que a revelam, que não a mera intenção de eliminar o “rival”. Conclui-se, pois, que, ainda que entendido o crime praticado pelo arguido como motivado passionalmente, não existem circunstâncias que permitam, no caso, qualificar a motivação como especialmente censurável ou perversa, não podendo assim o arguido ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, antes devendo sê-lo pelo de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.° do CP.”

XIX Tendo sido o Recorrente dominado por um estado de psicose e por ciúmes, na convicção de que o Ofendido mantinha uma relação com a sua mulher, não se pode considerar que tenha actuado com especial perversidade ou censurabilidade;

XX Assim, ao manter a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância o Tribunal da Relação de Lisboa violou os artigos 20º, 31º, 40º, n.º 2, 131º e 132º todos do Código Penal.

D XXI No Acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Lisboa foi violado o Princípio In Dubio Pro Reo;

XXII O Tribunal da Relação ……, para sustentar a resposta á matéria de facto dada como provada socorreu-se das declarações do Arguido, vejam-se a título de exemplo, na página 60, último parágrafo, página 62, dois últimos parágrafos, contudo, para concluir por uma “intenção” que é manifestamente interior do sujeito, já desconsiderou as suas declarações.

E XXIV A Senhora Perita foi clara ao considerar que: “… uma medida de segurança em internamento não trará benefícios significativos relativamente à perigosidade.”

XXV Nos termos do Artigo 91º, n.º 1 do C.P. para que a medida de segurança seja aplicável será necessário que o Arguido padeça, à data em que lhe é aplicada a medida, de anomalia psíquica.

XXVI Deixando de se verificar a situação de perturbação psíquica que levou ao cometimento de factos suscetíveis de serem configurados como crime, e não podendo o Recorrente ser punido criminalmente, não pode ser aplicada uma medida de segurança;

XXVII Se à data em que é proferido o Acórdão a perícia médica atestou que o Arguido já não padecia de qualquer anomalia psíquica e que, o internamento não tinha qualquer efeito a nível da sua perigosidade, não tem justificação a medida aplicada, pelo que, ao aplicar a referida medida o tribunal a quo violou o artigo 91º do C.P.

F XXVIII No caso sub judice o Recorrente tem demonstrado interiorização da necessidade de se abster do consumo de produtos estupefacientes, como acentuou a Senhora Perita do Instituto Médico Legal;

XXIX Uma medida de suspensão com a imposição de condutas, nomeadamente, com a obrigatoriedade de efetuar com regularidade exames de despistagem do consumo de produtos estupefacientes, acautela todos os efeitos que se pretendem com a aplicação destas medidas.

XXX A Senhora Médica Perita entendeu que seria adequado à situação do arguido: “… que o arguido mantenha acompanhamento psicoterapêutico no sentido de reforçar a importância da abstinência, podendo eventualmente beneficiar de uma passagem por uma comunidade terapêutica para melhor sedimentar as estratégias necessárias à manutenção da abstinência…” Mas nunca o internamento!!!

Termos em que deve o presente Recurso obter provimento, com o que farão V. Exas. a esperada justiça

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo (transcrição):

1. O recurso é manifestamente improcedente.

2. O acórdão recorrido não está ferido de qualquer nulidade por falta de fundamentação.

3. O Tribunal não só se pronunciou quanto à questão da perigosidade do arguido e da divergente posição face ao depoimento da senhora perita, como o fez de forma clara e exaustiva, não existindo qualquer nulidade que careça de apreciação.

4. Afigura-se-nos, bem justificada a aplicação ao recorrente da medida de segurança de internamento, com correta ponderação e verificação de todos os pressupostos legalmente exigíveis para o efeito.

5. O tribunal a quo apreciou a prova produzida segunda as regras da experiência e a livre convicção do julgador, analisando os meios de prova ao seu alcance relacionando-os criticamente entre si de acordo com os princípios da experiência comum.

6. A matéria de facto mostra-se assim, no nosso entendimento, incólume por ausência de erro ou contradição na sua apreciação, inexistindo qualquer dúvida sobre os factos em apreço que exigisse a aplicação do princípio in dubio pro reo, mostrando-se também correta a qualificação jurídica feita dos mesmos.

7. No que concerne à eventual suspensão da medida de segurança aplicada acompanhamos, mais uma vez o acórdão recorrido corroborando a posição assumida na decisão de 1ª instância.

8. Havendo fundados receios de que o arguido possa vir a cometer novos factos criminalmente graves e eventualmente de natureza análoga aos dos presentes autos, não é possível fazer um juízo de prognose favorável à suspensão da medida de segurança de internamento, só assim se assegurando as necessidades de prevenção geral e especial.

9. É, pois, manifesta a improcedência do recurso do arguido, claudicando todos os seus argumentos.

Termos em que, face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o decidido no douto acórdão recorrido, assim se fazendo a costumada justiça!

Neste tribunal o M.º P..º foi de Parecer que o recurso não merece provimento.

Na resposta o arguido reiterou o provimento do recurso.

Após os vistos realizou-se conferencia nada obstando a que se conheça de mérito.

Factos provados:

A matéria de facto provada é a seguinte:

1. No dia 04 de julho de 2019, e após terem convivido amigavelmente nessa mesma noite, pela 01 hora, o arguido AA, munido da espingarda caçadeira semiautomática de calibre 12, de marca Pietro Beretta, modelo ……, com o número de série G……. e de diversos cartuchos do mesmo calibre, próprios para municiar tal arma, deslocou-se até à residência do ofendido, o seu amigo BB, conhecido como "EE", sita na ………, com o propósito previamente formulado de disparar sobre o mesmo, com vista a tentar tirar-lhe a vida, uma vez que estava convicto que BB mantinha uma relação extraconjugal com a sua companheira, CC.

2. Aí chegado, o arguido chamou pelo ofendido, que abriu a porta da sua residência, saiu da mesma e deslocou-se até à porta do prédio onde reside, deparando-se com o arguido empunhando a mencionada arma de fogo.

3. Em ato contínuo, o arguido apontou-lhe a caçadeira à cabeça e dirigiu-lhe as seguintes expressões: "Há quanto tempos andas metido com ela nessa merda?', "então agora és tu que andas a foder com a minha mulher; só podes ser tu, só podes ser tu."

4. O ofendido, receando pela sua vida, tentou acalmar o arguido, seu amigo que baixou um pouco a arma.

5. No entanto, de imediato, o arguido efetuou um disparo, que atingiu o ofendido na coxa direita.

6. Com receio pela própria vida, o ofendido fechou rapidamente a porta do prédio, em vidro, e fugiu pelo corredor na direção da sua residência.

7. Nesse momento, o arguido disparou um segundo tiro, tendo a munição atravessado a porta de vidro do prédio, partindo-a, e vindo a atingir o ofendido nas nádegas, costas e parte traseira da cabeça.

8. O arguido efetuou ainda um terceiro disparo, que não veio a atingir o arguido, uma vez que o mesmo, convicto que o arguido pretendia matá-lo, se colocou, em fuga, no interior da sua habitação.

9. O ofendido conseguiu entrar em casa e fechar a porta, mas acabou por saltar da marquise, que dá para as traseiras de sua casa, com cerca de 2 (dois) metros de altura, com receio que o arguido fosse atrás de si e conseguisse tirar-lhe a vida.

10. Veio a ser auxiliado no local pelo seu vizinho, DD, tendo sido acionada a VMER que assistiu o ofendido no local, transportando-o em seguida para o Hospital …….., onde foi sujeito a cirurgia e permaneceu internado até às 18 horas e 52 minutos, do próprio dia 04 de julho.

11. No local onde os factos ocorreram e no mesmo dia pelas 04 horas e 30 minutos, foram localizados e apreendidos 3 (três) cartuchos de calibre 12, deflagrados, uma bucha de um cartucho calibre 12 e um pedaço de chumbo pertencente a uma munição que se encontrava alojado num degrau do hall do prédio onde reside o ofendido, correspondentes aos disparos efetuados pelo arguido.

12. O ofendido deu entrada no hospital apresentando as seguintes lesões como consequência direta e necessária da conduta do arguido: chumbos de caçadeira em trajetos múltiplos e superficiais pelo corpo, revelando a imagiologia múltiplas imagens milimétricas de densidade metálica na espessura dos músculos das regiões lombar, dorsal e nadegueira; feridas puntiformes pelas costas; ferida antero-medial e pósterio medial com cerca de 2/3 superficiais.

13. De tais lesões resultaram: no crânio; cicatriz plana, eucrómica, com cabelo, na região parietal direita com diâmetro inferior a 1 cm (um centímetro); na face dorsal do tronco: múltiplas cicatrizes circulares e elípticas, eucrómicas e hipercrómicas, dispersar por toda a região dorso-lombo-sagrada e glútea bilateralmente, a menor com 0,2 cm de diâmetro e a maior elíptica com 1,2 cm (um vírgula dois centímetros) por 1 cm (um centímetro) de maior eixo vertical, modularidade subjacente em cicatriz circular na região paravertebral direita a nível dorsal, compatível com projétil de arma de fogo (chumbo); no membro inferior direito: cicatriz hipertrófica no terço distai da face póstero-interna da coxa, irregular e deprimida, eucrómica/hipercrómica, com 6 cm (seis centímetros) por 4 cm (quatro centímetros) de maior eixo grosseiramente horizontal, com crosta serosa no seu centro; ferida de saída com 11 cm (onze centímetros) por 5,5 cm (cinco vírgula cinco centímetros) de maior eixo horizontal no terço distai da face ântero-interna da coxa; limitação da flexão e extensão da anca num arco entre 5° e 100°; marcha claudicante à direita, sem recurso a auxiliares de marcha; dores constantes na coxa direita, sensação de edema e hipostesia na fase interna do terço distai da coxa direita e dificuldade em deambular por períodos prolongados, com marcha claudicante.

14. As lesões sofridas pelo ofendido BB, na sequência da conduta do arguido, foram causa direta e necessária para o mesmo de 76 (setenta e seis) dias de doença, com o mesmo período de afetação de capacidades para o trabalho geral.

15. O arguido, agindo com base numa mera suspeita de que o seu amigo mantivesse uma relação extraconjugal com a sua mulher e movido por sentimentos de ciúme, atuou com intenção de tirar a vida ao ofendido BB, não o conseguindo apenas por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque o ofendido conseguiu fugir.

16. O arguido sabia que a arma de fogo que detinha, devidamente, municiada, era um objeto perigoso e apto a atentar contra a vida do ofendido, como sucedeu.

17. No mesmo dia 04 de julho de 2019, pelas 05 horas, no parque de estacionamento do restaurante "……", sito na ………, o arguido detinha no interior da sua viatura automóvel, de marca ……., com a matrícula …-…-PJ: um bastão semelhante em aparência ao utilizado pelas forças de segurança oficiais, com 73 cm (setenta e três centímetros) de comprimento; quatro cartuchos carregados, de calibre 12; a arma de fogo do tipo espingarda caçadeira, de marca Pietro Beretta, calibre 12, com o número de série G……, exibindo as inscrições "P.Beretta" e "Mod. ……" do lado esquerdo da caixa de mecanismos e "P. Beretta" e "Made in Italy", no lado direito da caixa de mecanismos, em boas condições de funcionamento, que havia utilizado horas antes, na prática dos factos sub judice.

18. O arguido sabia que a sua conduta, pelo objeto utilizado, zonas do corpo a que apontou e número de disparos que efetuou, era apta a atentar contra a vida do ofendido, o que conseguiu fazer, apenas não logrando matá-lo por motivos alheios à sua vontade.

19. O arguido não tem licença de uso e porte de arma.

20. O arguido conhecia a natureza e características da arma de fogo, munições e bastão que detinha, bem como que a sua posse era proibida e punida por Lei.

21. O arguido sabia, em todos os momentos, que a sua conduta era proibida e punida por Lei, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

*

Mais resultou provado:

22. À data dos factos, o arguido mantinha consumos excessivos de cocaína, que originaram uma anomalia psíquica grave - psicose tóxica -, caracterizada por sintomas psicóticos de auto-relacionação, ideias delirantes, de temática paranoide e de infidelidade conjugal, alucinações auditivo- verbais, insónia, irritabilidade fácil e agressividade, que terão perturbado o sentido da realidade.

23. A sua capacidade de se determinar perante a avaliação feita estaria significativamente alterada, afetando a sua capacidade volitiva, encontrando-se numa situação de inimputabilidade.

24. Sem abstinência total, a probabilidade de reaparecimento de sintomas psicóticos é elevada, e consequentemente a repetição de factos típicos semelhantes, sendo a perigosidade significativa.

25. Do certificado do registo criminal do arguido AA consta a condenação, por sentença proferida em 04 de abril de 2019, proferida pelo Juiz …., do Juízo Local Criminal de ……., transitada em julgado em 14 de maio de 2019, pela prática, em 25 de abril de 2013, de 1 (um) crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210, n.° 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução, mediante regime de prova, por igual período, vigiado pela D.G.R.S.P., com as obrigações de manter-se laboralmente ativo e de frequentar um programa para agressores.

26. O arguido AA viveu com ambas as figuras paternas até cerca dos seus 10 (dez) / 12 (doze) anos, aquando da separação do casa\ parental.

27. A sua infância decorreu em contexto de bairro social, em casas abarracadas, conotando-se o bairro com práticas criminais, numa dinâmica familiar pautada pela marcante carência económica - o progenitor era calceteiro e a progenitora era prostituta.

28. O arguido era o 4.º (quatro) filho de um total de 5 (cinco) descendentes.

29. O desenvolvimento do arguido pautou-se pela atitude de abandono da sua progenitora e pelo facto do seu progenitor ter sido preso pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.

30. Estas circunstâncias induziram a que o arguido e os seus irmãos fossem entregues, separadamente, aos cuidados da família alargada.

31. O arguido ficou, então ao cuidado de um tio paterno, que apresentava hábitos etílicos, sendo sujeito a maus-tratos, conjuntamente com os primos.

32. Com cerca de 14 (catorze) / 15 (quinze) anos, o arguido foi viver com uma tia paterna, num ambiente descrito como pernicioso e maltratante, sendo aos 16 (dezasseis) anos de idade integrado num contexto familiar de tios maternos, residentes em bairro social, numa estrutura funcional.

33. Aos 19 (dezanove) anos, após um período de 9 (nove) meses de prisão preventiva, o arguido retomou a coabitação com a progenitora, numa habitação social atribuída a esta e à irmã uterina.

34. Por seu turno, o progenitor, após 7 (sete) anos de prisão efetiva, refez a sua vida afetiva, passando a residir numa localidade nas imediações ……., mantendo com este um relacionamento cordial.

35. Em termos escolares, o arguido concluiu o 7o ano de escolaridade com cerca de 19 (dezanove) anos de idade, tendo no seu percurso escolar registado duas retenções, não especificadas, no seguimento de faltas relacionadas ao estilo de vida, associado a pares com práticas ilícitas e vivências familiares desestruturantes.

36. Desde os 12 (doze) / 13 (treze) anos, o arguido trabalhou na área da construção civil, ajudando o tio paterno.

37. Após um período de inatividade e desde os 21 (vinte e um) anos / 22 (vinte e dois) anos, exerceu trabalhos indiferenciados - numa pastelaria, como servente da construção civil e motorista.

38. Desde há 4 (quatro) anos, o arguido realizou biscates na área da reparação e manutenção de pequenas obras de habitação, como empregado de mesa para uma coletividade desportiva do bairro e empregado de balcão numa padaria.

39. Afetivamente, o arguido teve a sua primeira relação de namoro aos 17 (dezassete) anos, vivendo em comum por volta dos 21 (vinte e um) anos, no seguimento de uma gravidez não planeada, data coincidente com a retoma do relacionamento com a sua progenitora.

40. Deste relacionamento nasceu um filho, presentemente com 11 (onze) anos de idade.

41. A rutura conjugal ocorreu cerca dos 30 (trinta) anos.

42. A data dos factos, o arguido vivia com a sua atual companheira, desde há 3 (três) anos, com a filha comum do casal, de 2 (dois) anos de idade, com o filho menor de 11 (onze) anos e com a filha menor da sua companheira, na habitação desta.

43. Os encargos familiares - consubstanciados na renda de casa, no valor de € 60 (sessenta euros), consumos domésticos (água, eletricidade e gás), no v alor de € 130 (cento e trinta euros), da mensalidade da creche da filha, no valor de € 90 (noventa euros), despesas com comunicações, no valor de € 80 (oitenta euros) e a prestação mensal para aquisição de um automóvel, no valor de € 220 (duzentos e vinte euros) - eram suportados com os rendimentos mensais da companheira do arguido - como empregada de balcão, auferindo € 640 (seiscentos e quarenta euros), a prestação do rendimento social de inserção, na ordem dos € 200 (duzentos euros), prestações familiares dos menores, no valor de € 300 (trezentos euros).

44. Até janeiro de 2019, o arguido teve contrato de trabalho como operador ……… no …….. e, desde há 10 (dez) anos, é praticante e instrutor  ……, e antes era praticante de ….. e …….. .

45. Em julho de 2018 o arguido sofreu um acidente de moto, partindo um pé e reiniciou o consumo de cocaína, tornando-se um indivíduo muito ciumento e muito agressivo, surgindo conflitos conjugais, com suspeita de uma relação extraconjugal por parte da companheira, que levou a que intensificasse o consumo de cocaína e álcool.

46. Face aos consumos e consequente desorganização/perturbação emocional, o arguido foi internado na Psiquiatria do Hospital ……., de onde veio a fugir 2 (dois) dias depois, vindo a ser preso no âmbito destes autos.

47. Presentemente, o arguido encontra-se reconciliado com a sua companheira, mantendo um comportamento adequado às normas, apesar do seu temperamento "explosivo" e impulsivo quando frustrado ou contrariado, sintomatologia que está atenuada, em face à mediação antidepressiva e ansiolítica e da prática desportiva a que se dedica em meio prisional.

48. Em meio prisional, no Estabelecimento Prisional junto …….., foi agredido, tendo fraturado uma perna e, por isso, foi sujeito a intervenção cirúrgica.

49. Recebe os progenitores, cunhada e companheira no meio prisional, pretendendo voltar a viver em união de facto quando em liberdade.

50. Na sequência da conduta do arguido, o ofendido sofreu lesões, que afetaram a sua integridade física, que demandaram o recebimento de tratamento médico, prestado pelo demandante.

51. Tal tratamento médico orçou em € 470,10 (quatrocentos e setenta euros e dez cêntimos).

52. Do evento resultaram para o examinado as consequências permanentes descritas, neste caso cicatrizes dispersas pela face dorso-lombar do tronco e o membro interior direito, as de maiores dimensões na face ântero-interna e póstero-interna da coxa, as quais, considerando a sua localização, não se considera que representem défice funcional ou estético grave.

53. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado.

54. O arguido foi sujeito ao internamento no âmbito do processo com o NUIPC 521/19……., encontrando-se em fuga da unidade hospitalar aquando da prática dos factos.

Matéria de facto não provada:

1. Aquando do referido em 2. dos factos provados, o arguido tocou à campainha.

2. Aquando do referido em 3. dos factos provados, o arguido disse ainda "és tu, não há dúvida."

O Direito:

As questões a decidir são as seguintes:

a) Recorribilidade e poderes de cognição;

b) Vícios da decisão;

c) Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.

d) Errónea qualificação jurídica dos factos, (1) no enquadramento dos factos como a prática de um crime de homicídio na forma tentada; (2) quer no enquadramento da conduta do arguido no crime de homicídio qualificado na forma tentada;

e) Perigosidade;

f) Medida da reação penal e a possibilidade de suspensão.

§ 1. Foi aplicada ao arguido em primeira instância e confirmada em recurso «a medida de segurança de internamento (…) em estabelecimento destinado a inimputáveis, fixando em 3 (três) anos a duração mínima, não podendo exceder 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses». A questão a que liminarmente importa dar resposta prende-se com a (ir)recorribilidade da decisão do TR…. . Numa primeira aproximação, somos tentados a pensar nos estritos quadros fornecidos pelos arts. 400.º, CPP, (decisões que não admitem recurso) e 432.º, CPP, (recurso para o STJ), para o efeito de encontrar o critério definidor do patamar de recorribilidade, mas, as normas em causa apenas tratam da aplicação de penas e não de medidas de segurança, não podendo esquecer-se que essas diferentes sanções jurídico-criminais são conhecidas do legislador na Constituição (arts. 29.º e 30.º), quer, obviamente, na legislação ordinária (artigos 1.º, 2.º e 40.º, CP, artigos 1.º, 2.º, CPP). O silêncio legislativo quanto à recorribilidade das decisões que apliquem medidas de segurança, não pode ser ultrapassado por uma qualquer conversão ou equivalência restritiva levada a cabo pelo intérprete, procedimento que esbarra desde logo com a dificuldade de a medida de segurança aplicada ter uma duração mínima e máxima (arts. 91.º e 92.º/2, CP) enquanto a pena (não a relativamente indeterminada, art. 83.º, CP) tem um quantum fixo. A solução sistemática é fazer valer a regra da recorribilidade (art. 399.º, CPP, ac. STJ 07.02.2018).

§ 2. A afirmada regra da recorribilidade (art. 399.º, CPP) tem de ser conciliada com os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispondo o art. 434.º, CPP, que, sem prejuízo do disposto no art. 410.º/1/2/3, o recurso (…) visa exclusivamente o reexame de matéria de direito. O art. 410.º/2, CPP, estabelece que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; (c) e, finalmente, erro notório na apreciação da prova. Como é jurisprudência pacífica, o STJ deparando-se com os referidos vícios da decisão de facto que inviabilizem correta decisão de mérito, pode, por sua iniciativa, sindicá-los.

§ 3. Na matéria provada da decisão recorrida consta que «21. o arguido … tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento». E também que «23. a sua capacidade de se determinar perante a avaliação feita estaria significativamente alterada, afetando a sua capacidade volitiva, encontrando-se numa situação de inimputabilidade». Encurtando razões, não sofre dúvida que «encontrando-se [o arguido] numa situação de inimputabilidade», conclusão concordante da perícia e das decisões judiciais das instâncias, ditando a inimputabilidade como efeito normativo a incapacidade do agente, no momento da prática do facto, para avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação (ac. STJ de 20.12.2006, CJ on line, (ref. 7147/2006) então importa que se afirme no ponto 23. da decisão da matéria de facto que «23. a sua capacidade de se determinar perante a avaliação feita estava [e não simplesmente estaria], significativamente alterada, afetando a sua capacidade volitiva, encontrando-se numa situação de inimputabilidade».

§ 4. A afirmação de que no momento dos factos «21. o arguido … tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento» é contraditória com a subsequente afirmação de que «23. a sua capacidade de se determinar perante a avaliação feita estava significativamente alterada, afetando a sua capacidade volitiva, encontrando-se numa situação de inimputabilidade». Essa contradição é insanável, mas é possível ultrapassar essa contradição, sem necessidade de reenvio, dado que a manutenção na redação do n.º 21 da «capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento», tal como constava da acusação, só pode derivar de mero lapso resultante de menor cuidado na redação da matéria de facto provada e não provada, sem atender à alteração superveniente resultante da inimputabilidade, pois concluindo as instâncias, com boas e fundadas razões, pela inimputabilidade do arguido, não pode do mesmo passo afirmar-se a capacidade e liberdade do arguido… Impõe-se, assim, considerar como não provado que o arguido «tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento».

§ 5. Sustenta o recorrente que «o tribunal a quo, à semelhança do que tinha feito o Juízo Central Criminal ……, na prolacção do seu acórdão, divergiu do juízo contido no parecer da senhora médica perita. (…) e era sobre a discordância desta perigosidade médica que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se e não o fez; o Tribunal a quo não fundamentou a sua divergência antes tendo decidido em sentido diverso da posição plasmada pela senhora perita; assim,  (…) entende o recorrente que o recurso proferido pelo Tribunal a quo encontra-se ferido de nulidade, nos termos dos artigos 374º, n.º2, por falta de fundamentação suficiente – cfr. artigo 379º, n.º2 do C.P.P».

§ 6 Sobre a questão posta pelo recorrente disse o acórdão recorrido:

«Quanto à perigosidade criminal e necessidade de internamento alega o recorrente que, divergindo a decisão recorrida do juízo contido no parecer da Senhora Médica Perita, não fundamentando a sua divergência e tendo decidido em sentido diverso da posição plasmada pela Senhora perita, violou o art° 163° do C.P.P. (…)

Vejamos.

(…)

No presente recurso não se discute a declaração de inimputabilidade do arguido, porquanto ficou demonstrado que o arguido AA incorreu na prática de dois ilícitos típicos graves (contra a vida, no caso do homicídio na forma tentada e contra a segurança geral das pessoas e dos bens, no caso de detenção de arma proibida), resultando da prova pericial produzida a configuração de anomalia psíquica sofrida pelo ora arguido à data da prática dos factos, que o tornou incapaz, nesse momento, de avaliar a ilicitude dos mesmos, termos em que concluiu que o arguido é inimputável relativamente à prática dos factos em referência.

Mas, é quanto à perigosidade criminal e necessidade de internamento que se centra a discussão no presente recurso.

O art. 91° do C. Penal reflete uma conceção da perigosidade criminal fundamentalmente devedora do pensamento probabilístico que, conforme refere Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de Inimputáveis e in dúbio pro reo, Universidade de Coimbra-Coimbra Editora-1997 pp 89 a 92), aproxima-se do conceito de perigo com que opera a dogmática penal e que o perspetiva como dano provável, na mais abrangente das definições. Tendo como conteúdo normativo a probabilidade de o agente de um facto-crime repetir a sua conduta típica e ilícita, o conceito legal de perigosidade corporizado no art. 91° reporta-se à perigosidade subjetiva, ou seja, à perigosidade referida à personalidade do agente (contraposta à perigosidade objetiva, de uma dada ação), o que implica que o juízo adequado a aferir daquela probabilidade não pode deixar de ser um juízo de previsão ou de prognose em que o julgador, projetando-se no horizonte do que ainda não ocorreu, procurará ajuizar sobre a eventualidade de aquela personalidade vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos no futuro.

Não está em causa, pois, a prova da probabilidade no sentido da demonstração de uma qualquer certeza matemática assente em métodos estatísticos ou mesmo a consagração de presunções legais, mas antes a formulação de um juízo de prognose simples sobre a probabilidade de repetição do facto típico e ilícito, ou seja, na terminologia legal, sobre o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Embora seja inegável a relevância da perspetiva normativa na determinação do sentido e alcance do conceito no caso concreto, o apontado juízo de prognose, assente na análise do caso individual e apoiado em regras da experiência e em factos comprováveis, apresenta, assim, uma vertente eminentemente factual.

Concluiu a Senhora médica Perita na perícia médico legal de Psiquiatria:

"Actualmente o arguido reporta não estar a consumir substâncias ilícitas no Estabelecimento Prisional, afirmando o propósito de não voltar a fazê-lo. Importa referir que o tratamento actualmente em curso - antidepressivos - não visa a abstinência dos consumos, sendo que não existem tratamentos que anulem o efeito da cocaína ef ou dos canabinoides - como acontece com os opióides. Desta forma, a manutenção da abstinência está maioritariamente dependente da motivação e empenho do arguido. (sublinhado nosso).

O modo como se encontra enunciado este ponto de relativo à perigosidade, revela bem a estreita imbricação entre facto e direito no que lhe respeita e de como nos afastamos de uma mera operação de subsunção dos factos ao direito, na matéria em apreço.

Por um lado, faz-se coincidir a referência legal ao receio fundado da prática de novos factos com a sua probabilidade, atribuindo assim um sentido determinado ao texto legal. Por outro, condiciona-se a afirmação da probabilidade da prática de novos factos à manutenção da abstinência que está maioritariamente dependente da motivação e empenho do arguido, o que reflete igualmente um entendimento determinado sobre o sentido do pressuposto legal (matéria de direito), qual seja o de que não deixa de afirmar-se o juízo de prognose sobre a repetição homótropa, que constitui pressuposto necessário da aplicação de reação penal pela prática de factos típicos por parte do inimputável - cfr. Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 13 de maio de 2014.

Embora a Senhora Perita no exame médico pericial que realizou considere que a abstinência dos consumos dependerá mais da motivação do arguido do que de um tratamento psiquiátrico e/ou psicofarmacológico, conclui que, na actualidade, não está indicado um internamento e, em rigor, para a manutenção da abstinência não será necessária a manutenção de qualquer tratamento psiquiátrico psicofarmacológico. Da mesma forma, conclui que nesta data, uma medida de segurança em internamento não trará benefícios significativos relativamente à perigosidade, recomendando que o arguido mantenha acompanhamento psicoterapêutico no sentido de reforçar a importância da abstinência, podendo eventualmente beneficiar de uma passagem por uma Comunidade Terapêutica para melhor sedimentar as estratégias necessárias à manutenção da abstinência, nomeadamente no que concerne à impulsividade e nos traços desadaptativos de personalidade de tipo antissocial.

Ou seja, o teor do relatório pericial não é sequer contrariado pela decisão do tribunal a quo na parte em que este conclui que "Inexiste qualquer fundamento para que não se lhe aplique uma medida de segurança, visto ter resultado provado, por um lado, que o arguido era inimputável à data da prática dos factos - cfr. artigo 20, do Código Penal - e, por outro, revelar perigosidade, porquanto não estando afastada, em absoluto, a possibilidade de voltar a intoxicar-se e, com isso, ter outro surto psicótico, revela uma predisposição para comportamentos hétero-agressivos, que já conduziram quer a medidas de internamento compulsivo, quer a condenação penal pela prática de crime violento", pelo que sempre faltava pressuposto essencial à invocada violação da especial força probatória da prova pericial estabelecida no at. 163° do CPP.

Em todo o caso, a decisão contrária do tribunal a quo não violaria o disposto no art. 163° do CPP, segundo a qual o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, porque o juízo sobre a perigosidade criminal, ou seja, sobre o fundado receio de repetição homótropa de que fala o art. 91° do C. Penal, não integra o juízo técnico ou científico a emitir pelos peritos, cabendo antes ao tribunal decidir da mesmas, em os condicionalismos estabelecidos no art. 163° n°2 do CPP, pois a perigosidade criminal, como a inimputabilidade penal, não é um conceito médico-científico mas essencialmente jurídico.

Isto é, embora se entenda igualmente que a decisão judicial sobre o risco de repetição homótropa não dispensa o contributo das chamadas ciências do Homem, nomeadamente quanto à existência e relevância da anomalia psíquica, pode o tribunal de julgamento chegar a conclusão diferente sem que tenha de fundamentar especialmente a convicção divergente.

Seguindo de perto o citado Ac. da Relação de Évora, 13 de maio de 2014, Relator: António João Latas, ao qual aderimos: «Em termos não muito diferentes, afinal, do que é o entendimento doutrinário firme a propósito da relação entre a decisão sobre a verificação da anomalia psíquica no momento da prática do facto típico e ilícito e o juízo sobre a incapacidade de o arguido avaliar a ilicitude daquele facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, que constitui o chamado elemento normativo da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica prevista no art, 20° n° l do C. Penal. Enquanto o juízo sobre a verificação de anomalia psíquica e sua caraterização no momento do facto é necessariamente objeto de perícia médico-psiquiátrica, complementada ou não com outras especialidades, a decisão concreta sobre a inimputabilidade e, portanto, sobre a incapacidade de o arguido avaliar a ilicitude na situação concreta ou de se determinar de acordo com ela, em razão da anomalia psíquica verificada, é uma decisão da responsabilidade do tribunal, a que não se aplica o disposto no n° 2 do art. 163° do C.P.Penal. Ao pronunciar-se sobre as questões relativas à inimputabilidade, o parecer médico-psiquiátrico diz-nos se o arguido sofria de anomalia psíquica à data do facto e se de acordo com a ciência médica e a experiência do perito a anomalia psíquica verificada pode ter provocado a incapacidade de o arguido avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com ela naquele momento, cabendo ao tribunal decidir se tal se verificou no caso concreto sob julgamento, com base em todos os demais elementos de prova com relevância para aquela mesma questão.

Com vista à decisão da questão da inimputabilidade, pede-se àquela mesma perícia psiquiátrica e psicológica que se pronuncie sobre a persistência da anomalia psíquica num futuro próximo e em que medida a ciência médica e a experiência dos peritos sustentam um juízo de prognose positivo quanto ao risco de repetição futura de factos semelhantes (perigosidade criminal), embora caiba ao tribunal, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, a responsabilidade da decisão final sobre aquele risco de repetição em concreto, ponderando as razões ou argumentos de ordem clínica, estatística ou derivados aa experiência médica do perito (e não um qualquer veredito ou conclusão pericial, como parece supor o recorrente) avançadas no relatório pericial e os demais elementos relevantes resultantes do julgamento do caso concreto.

Tal resulta desde logo de não ser reconhecido ramo do saber que inclua no seu objeto a predição sobre a perigosidade criminal, tanto relativamente aos portadores de anomalia psíquica (que aqui importa) como aos demais, com o rigor e a certeza exigidos aos juízos técnicos ou científicos, nomeadamente para efeitos de ser exigida prova pericial em sentido próprio tal como a mesma pode definir-se a partir do estabelecido no art. 151° do C.P.P, ou seja, como prova necessária para a comprovação de determinados factos que, integrando o objeto da prova, apenas podem ser observados, ou que apenas podem compreendidos e valorados cabalmente por quem detenha especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

A prognose individual que interessa ao preenchimento dos pressupostos da medida de internamento acolhidos no art. 91° do C.Penal é uma prognose de base clínica (médica), pois assenta na anomalia psíquica como fator necessário e decisivo do risco de repetição homótropa, mas que não dispensa a ponderação - com base na experiência comum e nos conhecimentos e experiência de quem julga - de fatores pessoais e situacionais, como sejam o enquadramento familiar e social do arguido, mas também aspetos do facto típico e ilícito praticado ou do comportamento pretérito daquele, que possam ajudar a compreender - de acordo com a experiência comum - se é provável que aquela estrutura de personalidade seja levada a repetir ilícitos idênticos em determinadas circunstâncias.

Ponderação e decisão esta que, como referido, integra a decisão a proferir pelo tribunal em matéria de facto de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, ou seja, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, sem prejuízo de ser necessária perícia médica para aferir da existência da anomalia psíquica no momento do facto e da probabilidade da sua subsistência num futuro próximo, enquanto componente essencial da prognose de risco de repetição de atos da mesma espécie, para efeitos do disposto no art. 91° do C.Penal». (…)

Concluímos, porém, face ao atrás exposto, que a decisão do tribunal no sentido do risco de repetição de factos da mesma espécie em casos, como o presente, com a possibilidade de voltar a intoxicar-se e, com isso, ter outro surto psicótico, revelando uma predisposição para comportamentos hétero-agressivos, em que teve lugar a necessária perícia psiquiátrica sobre a existência de anomalia psíquica e sua caraterização, não violaria o princípio (ou exceção à regra da livre apreciação da prova) acolhido no art. 163° n°s 1 e 2 do C.P.P.

E, como bem salienta o Digno Magistrado do M° P°, se o arguido fosse libertado sem qualquer sanção, tal equivaleria a dar-lhe carta branca para uma vez em liberdade, poder - consciente ou inconscientemente - colocar-se na mesmíssima situação que lhe provocou a psicose - bastando exceder-se no consumo de álcool ou de estupefaciente - e cometer quaisquer crimes sem que se lhe pudesse assacar a mínima responsabilidade!

Parece-nos, com efeito, que seria completamente irresponsável conceder-lhe, assim, um salvo-conduto que lhe garantiria a imunidade de modo perpétuo.

De resto, o Tribunal justificou a opção pela medida de segurança de cumprimento efectivo:

"Assinala-se novamente que o arguido padeceu de psicose tóxica, cuja verificação futura não está excluída, havendo fundados receios de que o arguido venha a cometer factos criminalmente graves e que continue a praticar factos de natureza análoga aos descritos nos autos.

Prevê a Lei que "Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o internamento tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social. " - cfr. artigo 91, n. ° 2, do Código Penal. Está arredada a possibilidade de promover a libertação do inimputável por razões de prevenção especial e de tranquilidade pública." A opção do Colectivo afigura-se coerente, conforme à lei e, sobretudo, capaz de assegurar as necessidades de prevenção geral e especial, não se verificando a invocada nulidade, por violação dos arts. 374° e 379° n° 1 al. a) do CPP. Improcede, nesta parte, a pretensão do recorrente».

§ 7. A crítica que o recorrente faz ao acórdão do TR…., já a tinha feito à decisão de 1.ª instância no recurso para a Relação. A longa transcrição que antecede, deixa claro que a decisão recorrida não omitiu pronúncia sobre a questão suscitada pelo recorrente, está profusa e corretamente fundamentada, pelo que, contrariamente ao que alega, não padece de falta de fundamentação não se verificando a invocada nulidade. O recorrente não pode afirmar (cf. ponto III das conclusões) que «a perícia tem um carácter instrumental relativamente à boa decisão forense: pretende-se do perito médico-legal que forneça a base científica imprescindível para que o julgador possa decidir pela verificação ou não, in casu, dos elementos definitórios da perigosidade normativa» e depois não aceitar a conclusão fundada a que chegou o tribunal, pretextando que violou o juízo pericial.

§ 8. Segundo o recorrente, há errónea qualificação jurídica dos factos, (a) no seu enquadramento como a prática de um crime de homicídio na forma tentada; (b) quer no enquadramento da conduta do arguido no crime de homicídio qualificado na forma tentada. Relativamente à subsunção jurídica questiona, agora, o arguido a intenção de matar e revisitando a matéria de facto (conclusão 10 e 11) – a matéria de facto não como ela é e ficou definitivamente assente no acórdão do TR…, mas como o recorrente entende que ela devia ser –, afirma estamos «perante a prática de um crime de Ofensas à Integridade Física, p. e p. pelo artigo 143º do C.P., e não perante um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal»; quanto à qualificativa entende que a inimputabilidade é incompatível com a especial censurabilidade ou perversidade.

§ 9. Nas conclusões X e XI, e na parte em que sindica a condenação pelo crime de homicídio na forma tentada, o que pretende o recorrente, como deixámos sumariamente referido, é o reexame da matéria de facto e a sua alteração, o que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça, pois que a reapreciação da matéria de facto está subtraída dos seus poderes de cognição como estabelece o artigo 434.º, CPP, como já referido no § 2. No caso, o recorrente já teve a oportunidade de recorrer da decisão da matéria de facto, aquando do recurso para a Relação, não se verificando nessa parte qualquer dos vícios elencados no art. 410.º/2, CPP.

§ 10. Perante os factos provados e definitivamente assentes, e é a eles que nos devemos ater, é insofismável a conclusão de que a conduta do arguido preenche o ilícito típico do crime de homicídio na forma tentada como foi decidido na 1.ª instância e confirmado no TRL.

§ 11. Diversamente ocorre com o juízo de que a conduta do arguido preenche a previsão do art. 132.º/1/2/e, CP. O homicídio qualificado ocorre quando «a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», sendo «suscetível de revelar a especial censurabilidade a circunstância de agente (…) ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil». É a consagração da técnica dos exemplos padrão (Regelbeispieltechnik). Mas o art.º. 132.º, CP, não consagra o exemplo padrão para dele retirar o efeito agravante de forma imediata, antes ele é feito funcionar por referência a uma cláusula agravante determinada (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1990, p. 70). As circunstâncias não são taxativas, nem de funcionamento automático. Pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se pode concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. A mera verificação da circunstância, não implica, por si só, a qualificação do crime (Eduardo Correia, Actas, parte especial p. 21 a 24, Jorge de Figueiredo Dias, CJ. XII t.4 p. 51, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1990, p. 126, Anabela Rodrigues, A Determinação da Pena Privativa de Liberdade, 1995, p. 594 (59), Margarida Silva Pereira) Direito Penal II Os homicídios, 2008, p. 67).

§ 12. O preenchimento de uma das circunstâncias do art. 132.º/2, CP, constitui, apenas e só, um indício da existência de especial censurabilidade ou perversidade na ação ou omissão que o agente levou a cabo e que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado. É a ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa que confirma esse indício, ou, inversamente o neutraliza e infirma. Por isso é que no art.º 132.º/2, CP, se estatui que é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente (…).

§ 13. As instâncias partiram, ao que parece, do funcionamento automático da circunstância, mas não se descortina que a factualidade assente preencha a circunstância da al. e), «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil», pelo que, resta concluir, a conduta do arguido não preenche o ilícito típico do art. 132.º/1/2/e, apenas o do art. 131.º, CP.

§ 14 Acresce, e esta razão é incontornável, afirmar que «a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», não é viável quando o agente é um inimputável, por natureza quem «por força de uma anomalia psíquica, é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação». Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada (ac. do STJ de 31.10.90, proc. 41.010, ac. do STJ de 12.4.00, CJ STJ, 2000, tomo II, com anotação favorável de Nuno Brandão, RPCC, 10º, 4, 2000, p. 618 e 624, ac. STJ 30.05.2001, CJ on line (ref. 8925/2001) ac. STJ 18.02.2009, disponível em www.dgsi.pt, Maria João Antunes, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, 2002, p. 359-360). A conduta do arguido preenche apenas o ilícito típico de homicídio (art. 131.º, CP), na forma tentada (art. 22.º, CP).

§ 15. Questiona o recorrente a conclusão quanto à perigosidade partindo de diversos pontos de vista, quer alegando violação do princípio in dubio pro reo, quer violação das regras de apreciação da prova em matéria pericial

Dispõe o art. 91.º/1, CP:

Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.

São pressupostos de imposição da medida de segurança de internamento do agente declarado inimputável em consequência de anomalia psíquica: (a) a prática por parte do agente declarado inimputável de um facto ilícito típico grave; e (b) a perigosidade criminal do agente.

§ 16. Como refere Maria João Antunes (ob. cit. p. 463) os arts 91.º/1/2, 20.º/1, e 40.º/1, CP, devem ser interpretados do seguinte modo: o facto que é pressuposto da imposição da medida de segurança de internamento coincide com o facto do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica. Na formulação de Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, p. 125 e 81) o juízo de inimputabilidade implica uma prova tríplice ou um triângulo probatório cujos lados são: o facto, a anomalia psíquica e o nexo que os junta numa mesma unidade de sentido. A aplicação de uma medida de segurança passa inevitavelmente por um juízo de prognose, que se reputa aliás decisivo e fundamental, o juízo sobre a perigosidade criminal do arguido. É este juízo que o recorrente questiona, pretensão que está votada ao fracasso por uma dupla ordem de razões, uma de natureza formal, outra substancial.

§ 17. Como refere Jorge de Figueiredo Dias e é jurisprudência pacífica deste STJ o último momento em que é processualmente possível questionar o juízo de prognose relativo à perigosidade é o da decisão do último tribunal que tenha ainda poderes de cognição da questão de facto, dado que a questão da prognose não conforma em si mesma, isto é, quanto à subsistência ou insubsistência da perigosidade, uma questão de direito (Direito Penal Português, 1993, p. 445, ac STJ de 16.10.2014, ac STJ de 15.03.2017). Ora esse momento ocorreu aquando da decisão do TR…. pelo que a factualidade provada está definitivamente assente. É, assim, em face dessa matéria de facto que temos de averiguar se foi correta ou merece reparo a decisão de aplicar medida de segurança.

§ 18. No caso, o arguido praticou um ilícito típico grave, é(ra) inimputável no momento da prática dos factos e praticou-os em consequência da sua doença mental, pois provou-se que o ilícito por ele perpetrado está relacionado com a sua doença mental. Inquestionada a inimputabilidade do arguido, o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança depende exclusivamente de uma averiguação conclusiva no sentido de, em virtude da anomalia psíquica, haver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie. Como realça Maria João Antunes (ob. cit. p. 473) uma perigosidade específica «cometer outros da mesma espécie» a exigir o estabelecimento de uma ligação de causa e efeito entre a anomalia psíquica e o receio da prática de factos da mesma espécie do facto praticado anteriormente. Assim se confirmando, ao exigir-se que os factos receados sejam da mesma espécie do facto praticado pelo agente inimputável por motivo de anomalia psíquica, que do facto pressuposto é esperada a função de facto comprovativo de perigosidade criminal emergente da anomalia psíquica.

§ 19 O que está em causa é a perigosidade subjetiva, a prognose para o futuro. Nessa tarefa o julgador há de perscrutar o futuro, projetar a personalidade do arguido no horizonte do que ainda não ocorreu e procurará ajuizar sobre a eventualidade de ela vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit. p. 91). Nessa tarefa importa não desconsiderar, como faz o recorrente, o facto provado 24. «sem abstinência total, a probabilidade de reaparecimento de sintomas psicóticos é elevada, e consequentemente a repetição de factos típicos semelhantes, sendo a perigosidade significativa».

§ 20. A partir do momento em que, com o auxílio da perícia, se mostrou existir no arguido uma anomalia psíquica determinante da prática do ilícito típico, há a certeza da sua perigosidade – de que já foi perigoso. A incerteza residual resume-se então na pergunta: o agente ainda é perigoso ou já deixou de o ser? A argumentação do recorrente, centrada na opinião da senhora perita médica que quer fazer valer como decisiva, esquece que a imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir. É uma tarefa com duas faces e a tarefa do perito constitui apenas uma das faces da mesma realidade. A perícia tem um carácter instrumental relativamente à boa decisão forense: pretende-se do perito médico-legal que forneça a base científica imprescindível para que o julgador possa decidir pela verificação ou não, in casu, dos elementos definitórios da perigosidade normativa.

§ 21. Como já referido (§ 17) o juízo de prognose quanto à perigosidade foi em definitivo decidido pelo TR…., dado que se trata de questão de facto. A conclusão pela perigosidade assentou no risco de repetição de comportamentos que preencham ilícitos típicos da mesma espécie. Risco de «reincidência» que não deve ser suportado pela sociedade, mas por conta do agente perigoso.

§ 22. A questão a decidir, aquela que cabe no âmbito dos poderes de cognição deste STJ, prende-se com a medida da reação penal e a possibilidade da suspensão. Como nos movemos no plano da estrita legalidade e tipicidade penal entra aqui o princípio da proporcionalidade e da menor intervenção possível para a escolha da medida. Não basta a perigosidade; daí não deriva a imposição automática de uma medida de segurança, exige-se ainda que se verifique a necessidade da medida e que esta seja proporcionada.

§ 23. A medida é necessária, como até o recorrente chega a aceitar, e a opção em aberto perfila-se entre internamento efetivo e a suspensão da execução do internamento – autêntica medida de segurança de substituição – e será decidida em função de critérios de proporcionalidade e do princípio da menor intervenção possível, que é reconduzível ao princípio mais amplo da necessidade entendido de acordo com o art. 18.º/2 da Constituição: se uma medida menos gravosa serve de finalidade de proteção comunitária, a mais gravosa deve considerar-se desnecessária (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit. p. 132.).

§ 24. Recordemos o que o arguido «22. à data dos factos, mantinha consumos excessivos de cocaína, que originaram uma anomalia psíquica grave - psicose tóxica -, caracterizada por sintomas psicóticos de auto-relacionação, ideias delirantes, de temática paranoide e de infidelidade conjugal, alucinações auditivo- verbais, insónia, irritabilidade fácil e agressividade, que terão perturbado o sentido da realidade. 46. Face aos consumos e consequente desorganização/perturbação emocional, o arguido foi internado na Psiquiatria do Hospital …….., de onde veio a fugir 2 (dois) dias depois, vindo a ser preso no âmbito destes autos. 47. Presentemente [mantém] comportamento adequado às normas, apesar do seu temperamento "explosivo" e impulsivo quando frustrado ou contrariado, sintomatologia que está atenuada, em face à mediação antidepressiva e ansiolítica e da prática desportiva a que se dedica em meio prisional». Perante este quadro nem a perita médica sugeriu a medida de segurança de substituição, deixando o arguido entregue à sua sorte. A «solução» defendida pela perita médica, recordemos, foi um tercium genus, nem internamento nem liberdade, antes a passagem por uma comunidade terapêutica. Só que esse meio termo coabita mal com o princípio da legalidade das reações criminais pois «não podem ser aplicadas medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» (art. 29.º/3, CRP e 98.º, CP). Assim, a aquisição e o sedimentar das estratégias necessárias à manutenção da abstinência terá de ocorrer, por agora, no âmbito do cumprimento da medida de segurança.

§ 25. Medida de segurança que, em consequência da alteração da qualificação jurídica ocorrida (§ 13 a conduta do arguido não preenche o ilícito típico do art. 132.º/1/2/e, apenas o do art. 131.º, CP), e em vista do disposto nos arts. 91.º/2 e 92.º/2, CP, terá duração mínima de três anos, salvo se, entretanto, a libertação do arguido se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, não podendo exceder 10 (dez) anos e 8 (oito) meses.

Decisão:

Oficiosamente altera-se a matéria de facto:

a) A redação do n.º 23, dos factos provados passa a ser: «23. A sua capacidade de se determinar perante a avaliação feita estava significativamente alterada, afetando a sua capacidade volitiva, encontrando-se numa situação de inimputabilidade»;

b) Considerar como não provado o segmento do n.º 21.º onde se afirma que o arguido «tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento».

Na parcial procedência do recurso, a medida de segurança terá duração mínima de três anos, salvo se, entretanto, a libertação do arguido se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, não podendo exceder 10 (dez) anos e 8 (oito) meses.

Lisboa, 27.10.2021

António Gama (Relator)

Orlando Gonçalves