Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1182/20.0T8VRL-C.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
REVISÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CASO JULGADO FORMAL
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
DESPACHO
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
PROGENITOR
NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- O caso julgado formal (art. 620º, 1, CPC), relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais: (i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC); (ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC).

II- Em acção judicial de promoção e protecção a favor de criança menor, o despacho proferido a ordenar a notificação pessoal no domicílio da progenitora por força e causa da impossibilidade de contacto da mandatária com a referida progenitora representada, para efeitos de aplicação do art. 85º, em especial n.º 1, da LPCJP («Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.»), esgota enquanto tal a sua eficácia dentro do processo no âmbito dos seus limites objectivos, determinados de acordo com o âmbito e pressuposto do requerimento a que respondeu, ficando objectivamente restrita e limitada e, como tal, insusceptível de ser exigida fora do seu contexto de aplicação intraprocessual como decisão constitutiva de caso julgado formal para toda e qualquer notificação ulterior no processo, nomeadamente para afastar a aplicação da notificação através de mandatário judicial, nos termos do art. 247º, 1, do CPC; sem violação, portanto, dos arts. 620º, 1, e 621º do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1182/20.0T8VRL-C.G1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, ... Secção
Reclamação de Decisão Sumária Liminar: arts. 656º, 652º, 1, c), 3, 679º, CPC


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. Na presente acção judicial de promoção e protecção a favor de criança menor, foi proferida decisão que, em sede de revisão, manteve e prorrogou a medida de apoio do menor AA junto dos pais, a executar junto do progenitor, por mais seis meses, nos termos do art. 62º, 3, c), da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), passando a medida a incluir a atribuição de apoio económico sugerido pela Segurança Social (v. despachos e decisões de 11/9/2019, 15/5/2020 e 15/1/2021).

2. Em despacho de 19/11/2020, foi feita promoção a determinar o cumprimento do disposto nos arts. 84º e 85º da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP) para o efeito da revisão da medida; em 23/11/2020, despacho houve a proferir: “Como se promove.”
Notificada a patrona-mandatária da progenitora nos termos do art. 85º (24/11/2020), veio ao processo (30/11/2020), considerando que, “até à presente data, não conseguir contactar com a beneficiária”, “de forma a ser possível salvaguardar o direito ao contraditório/direito de pronúncia”, requerer que “a progenitora seja notificada, no seu domicílio, para efeito dessa norma”.
Por despacho proferido em 7/12/2020, foi decidido: “Nada a opor”.
Por despacho proferido em 11/12/2020, foi decidido e ordenado: “Notifique pessoalmente a progenitora conforme requerido”.
Em cumprimento, a progenitora foi notificada por via postal (carta registada para o seu domicílio) em 14/12/2020; a carta respectiva veio devolvida em 17/12/2020 com o descritivo “Mudou-se”.

*

Interposto recurso de apelação (1/2/2021) junto do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) pela progenitora, em face da última decisão de manutenção e prorrogação da medida de apoio proferida em 15/1/2021, tendo por base a nulidade por falta de notificação de acordo com o regime da citação e em execução do despacho de 11/12/2020, foi proferido despacho singular de não admissão do recurso (21/5/2021), sem prejuízo de, tendo sido arguida a nulidade no prazo de 10 dias, se remeter para tribunal de 1.ª instância a fim de este se pronunciar sobre a arguida nulidade; deduzida Reclamação para a Conferência, foi proferido acórdão com julgamento de indeferimento, confirmando a decisão do Relator de não conhecimento do objecto do recurso (13/7/2021).

3. A progenitora mãe, BB, atravessou requerimento (9/11/2021) a peticionar pronúncia sobre a nulidade invocada no requerimento de apelação de 1/2/2021, tendo em conta a decisão proferido pelo TRG e, subsidiariamente, a solicitar a notificação pessoal para os efeitos do art. 85º da LPCJP.
Foi proferido despacho em 26/11/2021, que indeferiu a pretendida notificação pessoal da progenitora nos termos e para os fins previstos no art. 85º, invocando a aplicação do art. 247º, 1, do CPC.
A progenitora mãe interpôs recurso de apelação deste despacho, sendo concedido provimento ao recurso em Decisão Sumária (27/1/2022) proferida pelo TRG, declarando-se a nulidade da decisão proferida em 26/11/21 por omissão de pronúncia e determinando-se que, após baixa do processo ao Tribunal recorrido, fosse proferido, de imediato, despacho a conhecer da nulidade em causa.

*

Em execução do decidido e ordenado, no Juízo de Família e Menores de Vila Real, foi proferido o seguinte despacho em 21/2/2022:

“Da nulidade arguida no requerimento de recurso apresentado pela progenitora no dia 1 de Fevereiro de 2021:
Em sede de alegações de recurso invoca a progenitora que a notificação pessoal determinada no despacho proferido no dia 11 de Dezembro de 2020 não foi efetuada, porquanto deveria ter obedecido às regras da citação, nos termos conjugados dos artigos 250.º e 225.º do CPC.
Conforme se afere dos autos, excecionalmente foi determinada a notificação pessoal da progenitora para o seu domicílio, nos termos e para os fins previstos no art. 85.º da LPCJP, na sequência de requerimento apresentado pela sua ilustre Patrona Oficiosa, no âmbito do qual a mesma invoca não ter logrado o contacto com a sua patrocinada “até à presente data”, ou seja, até à data do requerimento em causa – 30 de Novembro de 2020.
A notificação foi efetuada por carta registada, nos termos do art. 249.º, n.º 1, do CPC, sendo-lhe aplicável o n.º 2 desta mesma norma legal.
Quer isto dizer que a notificação não deixou de produzir efeito pelo facto de o expediente ter sido devolvido, uma vez que foi remetida para o domicílio da progenitora, a qual até ao momento não comunicou aos autos qualquer alteração do mesmo, presumindo-se a notificação feita no terceiro dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja – cf. parte final do n.º 1 do citado art. 249.º.
Consideramos, pois, aqui inaplicável o preceituado no art. 250.º do CPC, tanto mais que não estamos perante uma notificação com a finalidade de dar conhecimento do processo à parte pela primeira vez.
Presumindo-se feita a notificação, nos termos acima enunciados, nenhuma diligência se impunha tomar em face da devolução da carta registada remetida à progenitora.
Não se verifica, pois, qualquer nulidade processual, razão pela qual se indefere a pretendida anulação do processado posterior à prolação do despacho de 11 de Dezembro de 2020.
Notifique.

*

No requerimento sob a referência ...63 a progenitora requereu novamente a sua notificação pessoal no âmbito do art. 85.º da LPCJP.
A progenitora do menor mantém-se devidamente representada pela ilustre Patrona Oficiosa que lhe foi nomeada.
E, nessa qualidade, foi a ilustre Patrona notificada para se pronunciar sobre a revisão da medida, notificação que se presume efetuada no dia 02.11.2021.
Ora, nos termos do preceituado no art. 247.º, n.º 1, do C. P. Civil, em processos pendentes as notificações às partes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais, o que se verificou no caso em apreço.
Em face do exposto, indefere-se a pretendida notificação pessoal da progenitora nos termos e para os fins previstos no art. 85.º da LPCJP.
Notifique.”

4. Inconformada, a Requerente progenitora veio interpor novo recurso de apelação para o TRG, visando revogar a decisão de 1.ª instância “na parte em que considerou que não se verificava qualquer nulidade processual e indeferiu a notificação pessoal da progenitora nos termos do artigo 85º LPCJP”.
Foi proferida Decisão Sumária (9/5/2022), julgando improcedente o recurso.
Tendo em vista este julgamento, foi atendida a seguinte factualidade:

“- Em (…) 11-09-2019 foi proferida decisão de homologação de acordo obtido entre os progenitores, ficando o jovem AA sujeito à medida de apoio junto dos pais, na pessoa do seu pai.
- Por despacho de 23/11/20 o Sr. Juiz determinou a notificação dos progenitores nos termos e para os efeitos do disposto no art. 85º da LPCJP, relativamente à revisão da mencionada medida.
- Na sequência desse despacho, a Il. Patrona da mãe do menor veio juntar requerimento com o seguinte teor:
“CC, patrona de BB, tendo sido notificada nos termos do artigo 85º da Lei 147/99 e uma vez que, até à presente data, não conseguiu contactar com a beneficiária requer, de forma a ser possível salvaguardar o direito ao contraditório/direito de pronúncia, que a progenitora seja notificada, no seu domicilio, para efeito dessa norma.”
- Esse requerimento foi deferido por despacho de 11/12/20.
- A carta enviada para notificação da progenitora veio devolvida com a indicação “Mudou-se”.
- Em 27/10/21 a Srª Juiz determinou o cumprimento do disposto nos arts. 84º e 85º da LPCJP, o que foi cumprido, quando à mãe do menor, na pessoa da sua patrona.
- Por decisão de 15/1/21 decidiu-se manter a medida de promoção e proteção de acompanhamento do menor junto do pai por mais 6 meses.
- Em 27/10/21 foi novamente determinado o cumprimento do art. 85º da Lei nº 147/99, com vista à eventual revisão da medida aplicada ao menor.
- Em 9/11/21, a mãe do menor BB veio requerer que a progenitora fosse notificada pessoalmente no âmbito do art. 85º da Lei 147/99.
- Em 26/11/21 foi proferida decisão que indeferiu a notificação pessoal da progenitora do menor e que manteve a medida de acompanhamento do menor junto do seu pai.”

A Recorrente deduziu Reclamação para a Conferência, conduzindo a ser proferido acórdão (13/7/2022) em que se confirmou a Decisão Sumária e, consequentemente, manteve-se o despacho recorrido.

5. Inconformada, veio a Requerente progenitora interpor recurso para o STJ, finalizando com as seguintes Conclusões:

“1.    O presente recurso tem como objecto o acórdão que manteve o despacho datado de 21.02.2022 na parte em que considerou que não se verificava qualquer nulidade processual e na parte em que indeferiu a notificação pessoal da progenitora nos termos do artigo 85º LPCJP.


2. No seguimento do requerimento apresentado no dia 30.11.2020, o tribunal a quo, por despacho de 11.12.2020, ordenou a notificação pessoal da aqui recorrente nos termos e para o efeito do art. 85º da Lei nº 147/99 sobre a aplicação de revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção.


3. Sucede que, após consulta do processo, verifica-se que a notificação pessoal não foi efectuada. A notificação pessoal, nos termos do artigo 250º CPC conjugado com o artigo 225º CPC, deveria ter obedecido às regras da citação. Não só a carta foi apenas registada como veio devolvida com a indicação mudou-se, sem que o tribunal tenha notificado tal facto a patrona nomeada nem tomado qualquer providência, conforme prevê o artigo 226º n.º 2 do CPC.


4. Essa ausência de procedimento representa uma nulidade processual que claramente influi no exame da causa, nomeadamente no exercício do direito ao contraditório, pelo que deve ser anulado o processado e efectuada a notificação pessoal à aqui recorrente para a morada que resultar da pesquisa efectuado à base de dados.


5. O acórdão recorrido refere que “o facto de no processo ter existido um despacho a determinar a notificação pessoal da progenitora no âmbito da anterior revisão da medida, não constitui qualquer caso julgado formal pois ocorreu numa outra situação”.


6. Sucede que o recurso versa sobre essa situação, e por isso considera a recorrente que se verifica a nulidade, o tribunal a quo, após ter proferido esse despacho, tem de o cumprir.

7. Refere o despacho recorrido que “… excepcionalmente foi determinado a notificação pessoal da progenitora”, contudo a recorrente considera que o despacho a ordenar a notificação pessoal deve ser mantido até ao arquivamento do processo.


8. Caso assim não se entenda sempre se dirá que “o artigo 85 LPCP refere que “ - Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.”


9. A recorrente considera que para ser cumprida essa obrigatoriedade os pais devem ser notificados pessoalmente, e evidentemente se tiverem representado por advogado devem dar conhecimento ao mesmo.


10. Mas a notificação ao advogado não substitui a notificação aos progenitores, estes TÊM DE SER OUVIDOS, e o tribunal só cumpre essa obrigação legal se os notificar para esse o efeito, devendo como é óbvio verificar a efectiva recepção.


11. Aliás o n.º 2 do artigo 247º refere isso mesmo, o artigo 85º presume que os progenitores pratiquem um acto pessoal, e não um acto meramente processual.


12. O tribunal para fugir ao cumprimento dessa obrigação refere que basta a notificação da patrona.


13. O tribunal tem de ouvir obrigatoriamente a aqui recorrente, se não pretender convocá-la para esse efeito (prestação de declarações) tem de a notificar para dizer o que tiver por conveniente por escrito, não pode haver presunções de notificações, dado que se a ouvisse presencialmente também o não fazia!


14. Face ao exposto o despacho recorrido deve ser anulado nos termos do artigo 195º CPC, por violação do caso julgado do despacho de 11.12.2020, do direito ao contraditório, nos termos do artigo 85º da LPCJP, artigo 250º conjugado com o artigo 225º CPC e n.º 2 do artigo 226º CPC.”

O Ministério Público apresentou contra-alegações: (i) pugnou pelo incumprimento do art. 639º, 1, do CPC, quanto às conclusões apresentadas na revista, ainda que susceptível de convite ao aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do preceito; (ii) sustentou o não conhecimento do objecto da revista tendo em conta a aplicação do art. 671º, 3, do CPC.

6. Após proferido despacho pelo Ex.mo Juiz Desembargador Relator do TRG de não admissão do recurso de revista, então convolado da apelação interposta, tendo por base o preenchimento do art. 671º, 3, do CPC (“dupla conformidade decisória”), a progenitora apresentou Reclamação, nos termos do art. 643º do CPC, junto do STJ.
Tal Reclamação foi objecto de decisão singular de admissão do recurso pelo aqui Relator, transitado em julgado, no qual se circunscreveu o objecto da revista ao conhecimento e apreciação da questão de saber se o acórdão recorrido incorreu em vício de “ofensa de caso julgado”, tendo em conta a interpretação e aplicação ao caso dos arts. 620º, 1, e 621º do CPC (Conclusões 2., 5., 7., 14., 1ª parte).

7. Uma vez recebidos os autos no STJ (art. 643º, 6, do CPC), o aqui Relator proferiu Decisão Sumária Liminar, usando da prerrogativa dos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC, julgando improcedente a revista e confirmando o acórdão recorrido.

8. Sem se resignar, veio novamente a Requerente progenitora e Recorrente deduzir Reclamação para a Conferência, no âmbito de impugnação previsto pelo art. 652º, 3, do CPC, apresentando Conclusões, que, no que revela em adição ao já exposto nas Conclusões da revista (supra, 5.), expõem que “o objeto do recurso relaciona-se com a eficácia desse despacho [de 11/12/2020]dentro do seu contexto de aplicação intraprocessual”, e que “[o] Tribunal a quo ordenou a notificação pessoal e o acórdão de 13.7.2022 considera que como não era obrigatório notificação pessoal não há nulidade, ora a questão a apreciar para a recorrente é saber se por ter sido proferido esse despacho, mesmo não sendo obrigatório a notificação pessoal, o tribunal deve executá-la, se o mesmo pode ser exigido no processo e para o contexto em que foi proferida (notificação da recorrente para a revisão da medida de 2020)”.


II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

1.1. A revista tem por objecto decisão proferida em processo de jurisdição voluntária (arts. 34º, 35º, 1, a), 100º da Lei 147/99, de 1 de Setembro: LPCJP; 986º-988º, CPC) e sendo o acórdão recorrido objecto de impugnação em sede de interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita quanto a normas processuais (art. 988º, 2, CPC, a contrario sensu; em especial, arts. 225º, 247º, 249º e 250º do CPC, em conjugação com o art. 85º da LPCJP + “ofensa de caso julgado”: arts. 620º, 1, e 621º do CPC), legitimando-se assim a recorribilidade em 3.º grau junto do STJ.

1.2. Em segundo lugar, cumpre configurar a revista no quadro de impugnação contemplado no art. 671º, 2, do CPC: reapreciação pela Relação de decisões interlocutórias de 1.ª instância que incidem sobre a relação processual; é o caso do despacho proferido em 1.ª instância, tendo por objecto a apreciação de nulidade processual e o requerimento de notificação pessoal da mãe progenitora.
Assim sendo, a revista só é admissível se for fundada nas hipóteses das als. a) e b) desse n.º 2.
Independentemente de se aplicar ou não a inadmissibilidade recursiva contemplada pelo art. 671º, 3, do CPC à revista “continuada” prevista pelo n.º 2 do art. 671º para as “decisões interlocutórias velhas” (proferidas originariamente em 1.ª instância), atenta uma interpretação sistemática e racional de todos os normativos do art. 671º[1], o certo é que a revista sempre pode ainda ser admitida, nos termos da 1.ª parte do art. 671º, 3, ou independentemente dela (usando somente do art. 671º, 2, al. a) («Nos casos em que o recurso é sempre admissível»)), se tiver como fundamento alguma das situações de revista extraordinária previstas nas als. do art. 629º, 2, em cuja al. a) se abrange a “ofensa de caso julgado”, formal ou material.
Assim foi decidido no âmbito da Reclamação deduzida ao abrigo do art. 643º do CPC – cfr. supra, ponto 6. do Relatório.
Na verdade, a Recorrente alega que o despacho proferido em 1.ª instância e aqui sindicado viola o caso julgado constituído pelo despacho proferido em 11/12/2020, baseando portanto o seu recurso (também) na “ofensa de caso julgado”; assim, a revista foi admitida, nos termos preditos, para análise do fundamento previsto no art. 629º, 2, a), in fine, do CPC.

1.3. Em síntese, pretende saber-se se o despacho proferido em 21/2/2022 viola o prescrito no despacho proferido em 11/12/2020, ofendendo o alegado “caso julgado formal” constituído por este despacho.


2. Factualidade

Em adição ao que é relevante e descrito no precente “Relatório”, vejamos a factualidade tida em conta pelo acórdão recorrido (sublinhado nosso):

“- Em (…) 11-09-2019 foi proferida decisão de homologação de acordo obtido entre os progenitores, ficando o jovem AA sujeito à medida de apoio junto dos pais, na pessoa do seu pai.
- Por despacho de 23/11/20 o Sr. Juiz determinou a notificação dos progenitores nos termos e para os efeitos do disposto no art. 85º da LPCJP, relativamente à revisão da mencionada medida.
- Na sequência desse despacho, a Il. Patrona da mãe do menor veio juntar requerimento com o seguinte teor:
“CC, patrona de BB, tendo sido notificada nos termos do artigo 85º da Lei 147/99 e uma vez que, até à presente data, não conseguiu contactar com a beneficiária requer, de forma a ser possível salvaguardar o direito ao contraditório/direito de pronúncia, que a progenitora seja notificada, no seu domicilio, para efeito dessa norma.”
- Esse requerimento foi deferido por despacho de 11/12/20.
- A carta enviada para notificação da progenitora veio devolvida com a indicação “Mudou-se”.


3. Fundamentação do acórdão recorrido

Na sequência, vejamos agora como fundamentou o acórdão recorrido, no que interessa para a questão da alegada “ofensa do caso julgado” (igualmente com sublinhado nosso):

“Considera a Recorrente que a notificação da progenitora para se pronunciar no âmbito de uma revisão de medida de promoção e proteção, deve obedecer às regras da citação, não sendo suficiente que tal notificação se efetue à sua patrona.
Sob a epígrafe “audição dos titulares das responsabilidades parentais”, o art. 85º da LPCJP dispõe o seguinte:
“1 – Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
2 – Ressalvam-se do disposto no número anterior as situações de ausência, mesmo que de facto, por impossibilidade de contacto devida a desconhecimento do paradeiro, ou a outra causa de impossibilidade, e os de inibição do exercício das responsabilidades parentais.”
Assim, e no que respeita ao interesse para o caso em apreço, nomeadamente a revisão da medida de promoção e proteção tem de ser obrigatoriamente precedida de audição dos progenitores.
Não sendo cumprido o contraditório, nos termos do mencionado preceito, estamos perante uma nulidade por tal omissão ser suscetível de influir na decisão da causa (v. art. 195º, nº 1 do C. P. Civil)
No caso foi cumprido o disposto no art. 85º acima citado, mas apenas na pessoa da patrona da progenitora do menor.
Sobre as notificações no âmbito de processos pendentes, dispõe o art. 247º do C. P. Civil o seguinte:
“1 – As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.
2 – Quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de ato processual, além de ser notificado o mandatário, é também expedido pelo correio um aviso registado à própria parte, indicando a data, o local e o fim da comparência.”
Assim, a notificação pessoal aplica-se quando, no âmbito de um processo, é necessário chamar a parte para a prática de ato processual ou quando, no caso, se justifique que se apliquem as regras da citação, como por exemplo quando “a lei atribua ao silêncio ou omissão da parte um efeito dispositivo ou pré-dispositivo dos seus direitos e obrigações” (v. Ac. R.L. de 21/10/21 in www.dgsi.pt), como ocorre no caso da notificação à parte de transação subscrita pelo seu mandatário que não tem poderes especiais para tal.
No caso, não se vê qualquer razão para que a notificação dos progenitores para se pronunciarem no âmbito de revisão de medida de promoção e proteção, estando representados por advogado, tenha que ser feita com recurso às normas que regulam a citação.
O facto de a Il. Patrona da progenitora não saber do seu paradeiro é apenas imputável a esta, que não o comunicou àquela nem ao Tribunal, não podendo esse facto influir no cumprimento das regras processuais aplicáveis.
Não se vê, pois, razão para revogar o despacho recorrido.
O facto de no processo ter existido um despacho a determinar a notificação pessoal da progenitora, no âmbito da anterior revisão da medida, não constituiu qualquer caso julgado formal, pois ocorreu numa outra situação e no âmbito da apreciação de um requerimento da Il. Patrona que dizia que não conseguia contactar com a sua patrocinada.
Atualmente estamos perante situação diversa em que, além do mais, se sabe que a progenitora mudou a sua residência sem prestar qualquer informação sobre a nova morada no processo ou mesmo à sua Patrona.”


4. Direito aplicável

Quanto ao mérito da Decisão reclamada, cumpre recuperar a respectiva argumentação.

4.1. O art. 620º, 1, do CPC estatui:
«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»
Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:

(i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);

(ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão transitada.[2]

Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.

4.2. Perante esta disciplina, adere-se à argumentação do acórdão recorrido (art. 663º, 5, 2ª parte, CPC):

(i) o despacho de 11/12/2020 apresenta limites objectivos de decisão que são determinados de acordo com o âmbito e pressuposto do requerimento a que respondeu: notificação pessoal no domicílio da progenitora por força e causa da impossibilidade de contacto da mandatária com a referida progenitora  representada, para efeitos de aplicação do art. 85º, em especial n.º 1, da LPCJP – esta é a sua eficácia dentro do processo, objectivamente restrita e limitada e, como tal, insusceptível de ser exigida fora do seu contexto de aplicação intraprocessual como decisão esgotante e excludente de pronúncia ulterior que pudesse ser fundamento da revista por ofensa ou violação do mesmo como caso julgado;

(ii) tal despacho não pode significar, portanto, que, com efeitos no processo daí em diante, se tenha ordenado que toda e qualquer notificacão da progenitora mãe tivesse que ser pessoal e submetida ao regime dos arts. 250º e 225º, 2, do CPC (tal como alegado pela Recorrente, adicionando ainda o art. 226º, 2, do CPC) e/ou 247º, 2, do CPC (tal como mobilizado pelo acórdão recorrido, confirmando o despacho de 1.ª instância);

(iii) tal não impede, portanto, que seja de decidir depois desse despacho de 11/12/2020 que a notificação da progenitora, para cumprimento do estatuído no art. 85º, em especial n.º 1, da LPCJP,  seja feita através do seu mandatário judicial, nos termos do art. 247º, 1, do CPC, como foi decidido uniformemente pelas instâncias, sem violação dos arts. 620º, 1, e 621º do CPC.

4.3. Não se vislumbram razões para alterar estes fundamentos usados na Decisão Sumária reclamada, em todas as vertentes analisadas e na mobilização do regime legal aplicável.
Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação, que não é contrariada pela argumentação trazida pela Reclamante, e decidir em acórdão pela sua confirmação, o que se decidirá.


III) DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em indeferir a Reclamação e confirmar-se a Decisão Sumária reclamada, que julgou improcedente a revista de acordo com o dispositivo respectivo.

Custas da Reclamação pela Recorrente e Reclamante, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 3 (três) UCs.
 

STJ/Lisboa, 3 de Maio de 2023



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).



____________________________________________________


[1] Na doutrina, v. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 176, ID., “Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC)”, Julgar, Novembro de 2019, pág. 6; v. Acs. do STJ de 29/9/2020, processo n.º 731/16.3T8STR.E1.S1, e 2/3/2021, processo n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2021 (reimp.), “Artigo 620º”, págs. 752-753, “Artigo 621º”, págs. 754-755, 757.