Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5824/17.7T8GMR-J.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SOCIEDADE COMERCIAL
INSOLVÊNCIA FORTUITA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
PRESSUPOSTOS
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 05/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A declaração da insolvência como fortuita, apenas assume relevância para os administradores (gerentes) da sociedade insolvente, no âmbito do processo insolvencial, porquanto neste específico procedimento não são condenados a satisfazer qualquer indemnização aos credores daquela.
II - Tal «desresponsabilização», não implica que os administradores não possam vir a ser demandados, pelos credores e/ou pelo administrador da insolvência, em representação desta, por prejuízos causados, fora daquele âmbito procedimental, isto é, em processo autónomo, nomeadamente em sede de responsabilidade contratual e subjectiva por danos ilícitos provocados pela inobservância de deveres específicos nos termos do disposto no art. 72.º do CSC no qual se predispõe no seu n.º 1 «Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.», acrescentando o n.º 2 que «A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.», vg por violação dos deveres de cuidado e de lealdade decorrentes das alíneas a) e b) do art. 64.º daquele mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:


PROC 5824/17.7T8GMR-J.G1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I MASSA INSOLVENTE DE IMOBILIÁRIO OUTEIROCAMBEZES LDA, representada pelo Administrador da Insolvência, veio intentar acção declarativa sob a forma de processo comum, contra AA e BB, ex sócios e gerentes da insolvente.

Para tanto e, em síntese, alegou que, no decurso do apenso B – incidente de qualificação de insolvência - BB, em requerimento dirigido àquele apenso, datado de 22 de Abril de 2019, refere o seguinte: “32. Já a 29 de agosto o sócio AA, enganou o Opoente, pois, convenceu-o a assinar a escritura de compra e venda da fração “G” a favor de CC, tendo sido declarado que a venda se efetuou pelo preço de € 72.500,00 e que tal montante foi recebido, quando na realidade tal pretensa “venda” se destinou também a liquidar uma dívida que a firma José Manuel Almeida Gonçalves, Lda., tinha para a firma de eletricidade que o mesmo é proprietário”.

Em 29.08.2016, na Notária DD, em ........., a fração “G” correspondente ao rés do chão centro, entrada B, habitação com aparcamento automóvel na subcave com o número onze, integrada no prédio urbano sito no………, freguesia…….., concelho ........., descrito na conservatória, ainda na extinta freguesia………, sob o número …….25, registada a favor da sociedade vendedora, inscrita na matriz sob o artigo ……10, foi objeto de venda na escritura de compra e venda, em que como outorgantes intervieram na qualidade de representantes da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., ora insolvente, AA e BB, e como comprador CC, tendo a referida fração sido vendida a este pelo valor declarado de 72.500,00.

Mais alegou que para pagamento do preço, foi entregue um cheque no montante de 72.500,00, o qual foi assinado no endosso pelos seus dois únicos gerentes da insolvente à altura. Ao endossarem o referido cheque, os gerentes subtraíram da caixa da sociedade a importância de 72.500,00€, pelo que são solidariamente responsáveis por reembolsar a sociedade insolvente do montante que ilegitimamente lhe subtraíram.

Terminou, pedindo que os Réus sejam solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia de 72.500,00€, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento.

Os Réus contestaram, tendo o primeiro Réu, AA, alegado que o referido endosso teve por base o pagamento de uma dívida da sociedade ora insolvente ( e não da sociedade José Manuel Almeida Gonçalves, Lda) à firma Hiperluz, Instalações Elétricas, Lda, a que acresceu o pagamento do distrate da hipoteca relativamente à fração G); por sua vez, o Réu BB alegou que tinha um acordo com o Réu AA, no sentido de que todos os valores resultantes das vendas de imobiliário reverterem para aquele, e que apenas assinou o cheque, sem que tivesse recebido qualquer quantia a título pessoal, nem o mesmo se destinou ao pagamento de uma dívida sua ou da insolvente, pelo que nenhum benefício daí retirou.

A final foi proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente.

Inconformada a Autora Massa Insolvente interpôs o presente recurso de Apelação, tendo a mesma sido julgada procedente com a revogação da decisão recorrida e a condenação solidária dos Réus a pagar à Autora a quantia de 42.500,00 euros, acrescida de juros desde a data da citação, à taxa legal, até integral pagamento.

Irresignados com este desfecho, recorrem agora os Réus, de Revista, apresentando o seguinte acervo conclusivo:

Réu AA

- A Autora, ora recorria, fundou a ação na responsabilidade dos gerentes, nos termos do artigo 483.º do Código Civil em conjugação com o artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais.

- Tal responsabilidade, prevista no art. 72.º, n.º 1, do CSC, é uma responsabilidade contratual e subjetiva, que pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil: facto, ilícito, culpa, dano (danos emergentes e lucros cessantes) e nexo de causalidade.

- O administrador/diretor, gerente tem, atenta a presunção que sobre si recai, o ónus de provar a inexistência de culpa (cfr. art. 72º nº 1 do CSC).

- Sendo que, o critério relevante para a determinação da culpa é o indicado, como se viu, no art. 64º, nº 1 a) do CSC, ao referir-se à “diligência de um gestor criterioso e ordenado”.

- A propósito do nexo de causalidade, importa saber se em abstrato, aquela ação ou omissão que causou o evento é normalmente, idónea a produzir aquele resultado ou ele não é indiferente à sua produção.

- Conforme resulta do disposto nos arts. 342º nº 1, 344º nº 1 e 799º nº 1 do CC e art. 72º do CSC resulta que é à Autora que cumpre provar que as ações (ou omissões) dos Réus violadoras de um dever (ilicitude) foram determinantes para o elevado nível de endividamento da sociedade insolvente, e tal matéria nem sequer foi alegada pela Autora.

- Aliás, concatenando todo o processo de insolvência, poder-se-á constatar que a firma insolvente tinha, como tem, bens suficientes para o pagamento de todas as dívidas reclamadas, ou seja, o seu ativo é muito superior ao passivo.

- A firma insolvente não estava insolvente, sendo que foi requerida por uma credora que nem sequer o crédito lhe foi reconhecido (Cfr. teor da sentença que decretou a insolvência).

- Pese embora, o Tribunal recorrido ter concluído que a quantia de 42.500,00€ foi utilizada para liquidação de uma dívida que não era da insolvente, mas sim de outra sociedade, não tendo tal quantia retornado às contas da insolvente, mas sim de outra sociedade, é factualidade que não resulta da matéria de facto dada como provada, e nem sequer foi alegada pela Autora.

- Nos que aos autos interessa, temos que, o 1º Réu, ora recorrente, juntou uma fatura na contestação, de onde resulta que, não é a firma do sócio AA que devia à firma Hiperluz Instalações Elétricas, Lda., o valor de 67.921,25€, mas sim a firma Imobiliária Outeirocambezes, Lda., ou seja, a sociedade insolvente.

- No nosso modesto entendimento, o Tribunal da Relação na decisão que proferiu não indicou, não interpretou, nem aplicou as normas jurídicas correspondentes, aos artigos 374º e 376º, ambos do CC, em violação clara daqueles preceitos.

- Dispõe o art. 374º, nº 1 do CC, que a letra e assinatura, ou só a assinatura de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado.

- Ora, o documento foi apresentado contra a Autora, que não o impugnou, nem da matéria alegada na p.i se pode concluir, com o devido respeito, que se mostra tal fatura impugnada.

- Acrescentando o art. 376º, nº 1 do CC que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

- Neste caso, a Autora, ora recorrida, não só não impugnou o aludido documento posteriormente à sua junção em sede de contestação (como admitiu o Tribunal recorrido), como também não logrou demonstrar, nem sequer através de prova testemunhal, que a respetiva fatura, não correspondia à vontade de quem a emitiu ou que essa vontade tenha sido afetada por vício de consentimento do declarante, ou sequer suscitou o incidente da falsidade do documento em crise.

- Ora, como estatui o art. 376º, nº 2 do CC, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.

- Subsumindo o preceito legal em análise ao caso vertente, é óbvio que se a dívida não fosse da sociedade insolvente Outeirocambezes, Lda, a mesma não teria emitido a aludida fatura e na data em que o foi.

- Desde que esteja estabelecida a autoria de documento particular e nele se contenha uma declaração feita ao declaratário e contrária aos interesses do declarante, como sucede no caso vertente, tal declaração representa uma confissão do seu autor, pelo que a esse documento deve ser atribuído valor probatório pleno, nos mesmos termos em que o é a confissão.

- Portanto, o 1º Réu, ora recorrente, goza da presunção da realidade da escrita porquanto o documento em questão (fatura), foi lançado na contabilidade da sociedade insolvente, como custos.

- E esta presunção da realidade escrita só é ilidível mediante prova em contrário que a Autora, ora recorrida não fez.

- Tendo o 1º Réu junto com a contestação a fatura que reconhece que a dívida era própria insolvente, e não de outra firma qualquer, e não tendo tal fatura sido impugnada, a mesma tem força probatória plena, não podendo consequentemente ser valorado o depoimento do co-réu (inimigo do outro sócio e também réu AA), em sentido contrário.

- Portanto, é totalmente falso que, os gerentes da insolvente tenham destinado parte da verba proveniente do pagamento da venda de um imóvel, para pagamento da dívida de uma outra sociedade, violando o disposto no art. 64º, nº 1 a) do CPC.

- Mesmo que assim não se entenda, o que não concebe nem concede, a dicotomia entre uma insolvência ser qualificada como culposa ou fortuita tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de fatores alheios à vontade do Insolvente.

- Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.

- No incidente de qualificação culposa (art. 186º nº 1 do CIRE), exige-se que essa atuação seja dolosa ou, pelo menos, integradora do conceito de culpa grave, devendo estes conceitos ser entendidos nos termos gerais do Direito Civil.

- No caso que nos ocupa, importa dilucidar que, a insolvência que correu termos no apenso B, foi declarada fortuita, o que permite concluir que, a atuação dos administradores/gerentes, não foi negligente ou com intuito fraudulento.

- Fazendo jus, ao proferido na sentença de primeira instância, não tendo sido qualificada a presente insolvência como culposa, forçosamente se tem de concluir que, os atos praticados, pelos então gerentes, podem ser incluídos apenas e somente, em atos de mera gestão.

- Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que, o Réu logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia.

Contudo e sem prescindir,

- Não é possível extrair dos factos provados pelas instâncias, em abstrato um nexo de causalidade exigido pela norma do art. 72º do CSC.

- Efetivamente, se conduta ativa o nexo de causalidade exige que se conclua pela sua idoneidade a produzir o dano, que não teria ocorrido se não fosse aquela ação, a matéria de facto provada - e sobre a qual este Supremo não pode sindicar - não permite concluir que a quantia de 42.500,00€, foi subtraída pelos gerentes, do património da insolvente, para um fim proibido, pois tal factualidade nem sequer resultou provada.

- Aliás, como vimos supra, a fatura junta aos autos (e que não foi impugnada pela Autora/recorrida), demonstra que, a dívida de 67.921,25€, não era da sociedade AA, Lda., da qual também era sócio, mas sim da própria insolvente.

- Sendo certo que, tendo a insolvência sido declarada fortuita, dúvidas não restam de que, os atos praticados, pelos gerentes, podem ser incluídos em atos de mera gestão, inexistindo assim, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

- Tanto assim é que, no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo que correu termos neste Juízo sob o nº 1046/16.2 T8GMR-B pode ler-se que: No âmbito da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de direito ou de facto, da devedora/Insolvente realizaram: 1) atos de disposição; 2) de bens do devedor; 3) em proveito pessoal (do Administrador) ou de terceiros.

- Ora, sobre os factos referidos de h) a j), havia também aqui que demonstrar nomeadamente pela análise circunstanciada dos elementos contabilísticos que nenhum desses valores em termos finais entrou na insolvente ou que a sua utilização tenha sido em proveito próprio do referido sócio ou de terceiros.

- Tanto mais que como resulta de fls. 43 do parecer do Sr. A.I. (apenso B) a insolvente mantinha capitais próprios positivos até 2016, ano anterior ao da declaração de insolvência.

- Neste conspecto, não podemos olvidar a factualidade dada como provada na alínea p), onde resulta que, deu entrada na conta bancária pertença da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., a quantia de 30.000,00€, pelo que, dúvidas não subsistem de que, o restante montante (42.500,00€), foi para pagar a aludida fatura.

- Face ao exposto, verifica-se a inobservância dos requisitos do art. 72º do CSC, pelo que, a ação intentada pela Autora, tem obrigatoriamente de improceder.

- A decisão violou, frontalmente, o disposto nos arts. 64º e 72º, nº 1 do CSC, arts. 342º, nº 1, 344º, nº 1, 374º, nº 1, 376º nºs 1 e 2, 483º, 563º e 799º, todos do CC.

Réu BB

- Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que revogou a sentença proferida pela 1ª Instância e, em consequência, condenou os Réus a pagar, solidariamente, à Autora a quantia de € 42.500,00 euros, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento, por entender que os Réus não lograram ilidir a presunção de culpa do art. 72.º, n.º 1, do CSC. Ora, o Recorrente não se conforma com esta decisão, a qual faz uma errada interpretação dos factos e aplicação do Direito, bastando atentar à matéria de facto dada como provada, da qual não se extrai qualquer ilicitude na conduta do Recorrente, seja por acção, seja por omissão; e, mesmo que se verificasse essa ilicitude, é diáfano que o Recorrente fez prova cabal da sua inexistente culpa.

- A insolvente era uma sociedade por quotas, competindo, por isso, as funções de administração e representação à gerência (conforme disposto no artigo 252º CSC), a qual era constituída pelos dois Réus - únicos sócios, em partes iguais -, cabendo-lhes, pois, a orientação e concretização dos negócios sociais e a prática de todos os actos correntes necessários à prossecução do objecto social, em cumprimento do seu escopo lucrativo, sempre observando a exigência legal do artigo 64º do CSC, ou seja, “a diligência de um gestor criterioso e ordenado”.

- Os gerentes ficam sujeitos a responsabilidade civil (artigos 71º a 73º, 78º e 79º, do CSC), e a responsabilidade criminal (artigos 509º e seguintes do CSC),quer pelos actos que pratiquem, quer pelas omissões em que incorram, no exercício das suas funções e que infrinjam o seu dever de diligência e os demais deveres que sobre eles impendem, designadamente os legalmente consagrados nos artigos 6º, n.º 4, 254º, 398º e 428º. Pois, a preterição dos deveres legais ou contratuais podem causar danos, quer à sociedade, quer aos sócios, quer a terceiros, ou seja, esta responsabilidade dos gerentes é tríplice: i) responsabilidade para com a sociedade; ii) responsabilidade para com os sócios e terceiros; e iii) responsabilidade para com os credores sociais.

- Dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do CSC, “os gerentes, administradores ou directores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.” Ou seja, os gerentes respondem civilmente para com a sociedade relativamente a danos causados a esta, por factos próprios e violadores de deveres legais ou contratuais, a não ser que demonstrem ter agido sem culpa. Fixando-se, portanto, uma responsabilidade subjectiva, fundada sempre na culpa, ainda que culpa presumida; ao contrário da responsabilidade objectiva, em que a culpa é elemento essencial. Isto é, estando preenchidos os requisitos da responsabilidade civil (i) facto ilícito; ii) culpa; iii) dano; e iv) nexo de causalidade), o gerente é civilmente responsável.

- Impõe-se, então, analisar se o Recorrente, enquanto gerente da insolvente e por acto próprio, seja por acção, seja por omissão, e em contravenção aos deveres legais e contratuais a que estava adstrito, causou danos à insolvente. E, ainda, em caso afirmativo, se agiu com culpa. A resposta é sonora: NÃO e NÃO!

- A ilicitude da conduta geradora de responsabilidade pode consistir na violação do contrato ou da lei, por acção ou omissão, implicando, necessariamente, uma desconformidade entre a conduta do gerente e aquela que lhe era normativamente exigível. Sendo que, é exigida ao gerente uma actuação consentânea com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, sempre no interesse da sociedade, dos sócios e demais credores sociais – cfr. art. 64º do CSC. E, para além deste dever de diligência que se encontra especificado na lei, estão os gerentes/administradores, no exercício das suas funções, adstritos ao cumprimento de outros deveres que decorrem também de obrigações de conduta, impondo-se-lhes, nomeadamente, que observem um dever geral de cuidado e de lealdade (vide o citado artigo 64º). A este respeito, leia-se Coutinho de Abreu, in “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades, página 18”, quando diz que “o dever geral de cuidado poderá ser assim formulado: os administradores hão-de aplicar nas actividades de organização, decisão e controlo societários o tempo, o esforço e conhecimento requeridos pela natureza das funções, das competências específicas e das circunstâncias”. Querendo dizer-se que,os gerentes devem possuir conhecimentos e competências técnicas na área de actividade a desenvolver pela sociedade, porque só, assim, poderão ser o pretendido “gestor criterioso e ordenado”; devem mostrar possuir o chamado “businesss judgment rule”, ou seja, que agem de modo informado, livres de qualquer interesse pessoal e segundo critério de racionalidade empresarial. Não basta ser um gestor zeloso e diligente.

- Todavia, é ao gerente que cabe provar a sua ausência de culpa, quando verificados os demais requisitos da responsabilidade civil, dado que a a culpabilidade presume-se, conforme resulta do artigo 72º, n.º 1 do CSC, bastando, por isso, a prova da violação de deveres por parte do gerente, independentemente dessa mesma culpa. E, para avaliar a eventual culpa do gerente, temos de socorrer-nosdo referido art. 64º do CSC, o qual contém um critério de apreciação da culpa em abstracto particularmente exigente. Isto porque, a eventual responsabilidade só será afastada por ausência de culpa quando o gerente ou administrador tenham actuado tal como faria um gestor medianamente criterioso em face das mesmas circunstâncias.

- Acrescendo que, sendo o dano pressuposto da responsabilidade civil, subjectiva ou objectiva, a conduta ilícita do gerente só dará lugar a responsabilidade civil se dela tiverem decorrido prejuízos, e na exacta medida desses prejuízos como causa directa e necessária do dano (art. 563º do Código Civil).

- In casu, o Tribunal a quo entendeu que “preenche os pressupostos do art. 72º o comportamento dos gerentes da insolvente que vendem um imóvel do património da insolvente e destinam parte da verba proveniente do pagamento do preço ao pagamento da dívida de uma outra sociedade, violando o disposto no art. 6º 1 e 2 e 64º, n.º 1, alínea a) do CPC, verificados que estejam os demais pressupostos da responsabilidade civil”. Todavia, no que toca ao Recorrente, tal entendimento padece de flagrante erro de interpretação dos factos e de errada aplicação do Direito, bastando, para tal concluir, atentar à matéria factual dada como provada pela 1ª Instância e, apesar de sindicada, inalterada pela Relação de Guimarães, que sucintamente se elenca como segue:

a) O Recorrente não recebeu, nem fez suas, quaisquer quantias pagas pelo comprador da fracção autónoma propriedade da insolvente;

b) O Recorrente era totalmente estranho ao negócio entre a sociedade do seu sócio, o co-Réu, e a sociedade Hiperluz – Instalações Eléctricas, Lda.;

c) O Recorrente apenas assinou a referida escritura porque tal lhe foi solicitado pelo seu sócio, co-Réu, e tendo por base o acordo já celebrado para cessão da quota daquele a este; e

d) A insolvência foi qualificada como fortuita.

- Quanto ao Recorrente, é cristalino que não se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil: inexiste facto ilícito, seja por violação de quaisquer deveres legais ou contratuais, seja por omissão; não se verificando, portanto, o correspondente dano nem, por razões óbvias, o nexo de causalidade.

- Na alínea q) dos factos provados consta que “aquela escritura apenas foi assinada pelo 2º Réu, dado o acordo celebrado para cessão da sua quota na Imobiliária Outeirocambezes, Lda. ao 1º Réu.” Ora, demonstrado está que o Recorrente não violou, por acção nem por omissão, qualquer dever legal ou contratual a que estava adstrito. Tendo ficado assente que o Recorrente assinou a escritura de compra e venda daquela fracção autónoma, a solicitação do ainda sócio, com o qual já havia acordado os termos da cessão da sua quota, ou seja, por via do acordo alcançado, agindo já sem o espírito de gerente ou de sócio, pois, naquele momento, o Recorrente era tão só gerente de direito, não tendo sequer o animus de sócio e detentor de parte do capital social. Mais, o Recorrente não tomou qualquer decisão conducente à venda do imóvel, nem sequer sobre o destino do preço recebido. Tendo-se limitado a comparecer no Cartório Notarial e a assinar a escritura de compra e venda no rigoroso cumprimento do que lhe foi solicitado pelo Sr. AA, o qual era, para o Recorrente, o único sócio e gerente da insolvente, ainda que o contrato de cessão de quota não se encontrasse já formalizado e legalizado. Ou seja, actuou, apenas, como um homem que honra a sua palavra e o acordo celebrado, e não quis lesar a sociedade, como não lesou.

- Acresce que, ainda que o Recorrente tivesse o animus de gerente e detentor de parte do capital social, a assinatura daquela escritura de compra e venda não desrespeitou nenhum daqueles deveres. Note-se que, nunca poderia consubstanciar um acto desleal para com a sociedade, tampouco seria um acto escuso; nem sequer o Recorrente se estaria a aproveitar daquele negócio em benefício próprio, o qual não apresentaria, portanto, qualquer conflito de interesses. Tanto mais que, do valor correspondente ao preço da venda da fracção autónoma, o Recorrente nada recebeu, não se tendo, integral ou parcialmente, apropriado de quaisquer quantias da sociedade insolvente por via dessa venda de património. Em suma, a assinatura daquela escritura de compra e venda não constituiu uma conduta ilícita do gerente, aqui Recorrente, o qual agiu como um criterioso e responsável gestor e ainda como um homem que honra a sua palavra, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial (que o tinham conduzido à decisão de vender a sua quota na agora insolvente ao sócio). Destarte, a conduta do Recorrente – assinatura da escritura de compra e venda – não foi originadora de qualquer dano na insolvente.

- Consta dos Factos Provados, nas suas alíneas n), o) e p), que parte do valor recebido pela sociedade destinou-se ao cancelamento da hipoteca que onerava o imóvel vendido e a parte remanescente destinou-se ao pagamento parcial de uma factura, cujo pagamento era da responsabilidade do co-réu, dado ser devido por outra sociedade comercial detida por este. Portanto, se naquele momento, o aqui Recorrente não era já gerente e sócio de facto (alínea q) dos factos provados), todas estas decisões foram alheias ao mesmo. Pelo que, a existir prejuízo para a insolvente, o mesmo derivou da actuação isolada do co-Réu AA. O que ficou demonstrado nos factos provados sob as alíneas m) e o).

- Na senda do que vimos de alegar, e por razões óbvias, também não existe nexo de causalidade entre a conduta do Recorrente – assinatura da escritura – e o alegado dano – subtracção de € 42.500,00 às contas da sociedade. Se o Recorrente não agiu enquanto gerente de facto, se o gerente era apenas gerente de direito uma vez que o contrato de cessão da sua quota ao co-Réu não havia sido formalizado, como pode existir essa correlação entre a sua conduta e falta de entregado supra referido montante nas contas da sociedade? Não pode e não existe!

- Na hipótese do Tribunal ad quem considerar que a conduta do Recorrente preenche os requisitos para a efectivação da sua responsabilidade civil – facto ilícito, dano e nexo de causalidade -, a qual se contempla por mera hipótese académica, haverá sempre em falta um dos pressupostos essenciais: a culpa. Isto porque, a presunção de culpa do Recorrente, que operaria por via do n.º 1 do art. 72º do CSC, foi pujantemente ilidida, bastando atentar à matéria factual dada como provada pela 1ª Instância e que, mesmo após sindicância por parte do co-Réu, se manteve inalterada na decisão em crise da Relação de Guimarães.

- Em primeiro lugar, o Tribunal a quo desvalorizou completamente a qualificação da insolvência como fortuita, o que não se concebe! Desde logo, porque os factos essenciais para esta qualificação, foram a existência de considerável património social, bem como a circunstância de, até ao ano anterior ao da insolvência, a sociedade manter capitais próprios positivos. Ora, tais factos não poderiam ser absolutamente ignorados, uma vez que, estes factos assentes são demonstrativos que o Recorrente sempre agiu como o gestor criterioso e moderado que a lei exige. Logo por aqui se perspectiva que o Recorrente conseguiria ilidir a presunção de culpa prevista no n.º 1 do art. 72º do CSC. O que foi totalmente insondado pelo Tribunal a quo. Note-se que, no âmbito da qualificação da insolvência, onde foram escrutinados todos os negócios realizados pelos gerentes e analisadas as suas condutas, não foi possível apurar factos de onde decorresse que os gerentes praticaram actos de disposição dos bens da insolvente, em proveito próprio ou de terceiros – pressupostos fundamentais para a qualificação da insolvência como culposa, conforme vem sendo entendimento da Relação de Guimarães (veja-se o Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1046/16.2 T8GMR-B, que correu termos no Juízo de Comércio de Guimarães – Juiz 2).

- Em segundo lugar, e mais uma vez, não se pode olvidar a matéria de facto constante das alíneas m), n), o), p) e q), tendo ficado provado que o Recorrente apenas assinou aquela escritura de compra e venda, dado o acordo celebrado com o co-Réu para a cessão da sua quota da sociedade insolvente, bem como também ficou provado que parte do preço recebido (€ 30.000,00) destinou-se ao pagamento da hipoteca que onerava o imóvel e o valor remanescente (€ 42.500,00) foi destinado ao pagamento de uma dívida de outra sociedade detida pelo co-Réu à firma Hiperluz – Instalações Eléctricas, Lda.. Ora, a decisão em crise fez tábua rasa destes factos provados, o que não se concebe, nem concede!

- Em suma, tratando-se de uma presunção legal no art. 72º, n.º 1, infine, do CSC, esta pode ser ilidida mediante prova em contrário – vide art. 350º do Código Civil -, o que o aqui Recorrente logrou.

- Ainda que assim não fosse, mais uma vez atentando à matéria factual dada como provada, a responsabilidade do Recorrente estaria excluída nos termos no n.º 2 do art. 72º do CSC, uma vez que, o Recorrente agiu de forma informada (pelo cessionário da sua quota na insolvente e, naquele momento, único gerente de facto da insolvente, o qual celebrou o negócio), livre de qualquer interesse pessoal (movido, tão só, pela sua palavra de honra face ao acordo celebrado com o co-Réu e sem retirar qualquer proveito daquele negócio) e segundo critérios de racionalidade empresarial (que o tinham conduzido à decisão de vender a sua quota na agora insolvente ao sócio).

- Nesta matéria, atente-se ao teor do Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 11/11/2014, e proferido no âmbito do processo n.º 5314/06.3TVLSB.L1, in www.dgsi.pt, quando diz que:

“Concretizando, dir-se-á que os administradores devem comportar-se com correcção quando contratam com a sociedade, não concorrer com ela, não aproveitar em benefício próprio oportunidades de negócio societárias, assim como bens e informações da sociedade e não abusar do estatuto ou posição de administrador.

A sociedade demandante tem o ónus de provar os factos constitutivos do direito a indemnização (art. 342º, nº 1, do C.Civil), isto é, tem de provar que actos ou omissões ilícitos do administrador causaram danos ao património social.

Por conseguinte, o administrador só tem de provar que não teve culpa desde que se prove a violação de algum dos seus deveres legais ou contratuais, ou seja, a ilicitude de uma qualquer sua conduta, competindo à demandante, pretensamente lesada, a prova deste facto constitutivo da responsabilidade do demandado.

Na verdade, o que o nº 1, do art.72º, consagra é uma presunção de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova, e não uma presunção de ilicitude.”

- Transpondo para os autos, o que se provou é o que consta das alíneas l), m), n) o), p), q) e r) dos factos provados. Isto é, o gerente, aqui Recorrente, só tem que provar que não teve culpa, mesmo que se prove a violação de algum dos deveres legais ou contratuais a que estava adstrito, cabendo à demandante a prova desta violação, do facto ilícito. Sendo que, o gerente não tem uma obrigação de resultado, mas tem a obrigação de uma utilização diligente dos seus conhecimentos e experiência, de forma a obter os resultados pretendidos. Pelo que, não basta provar que aquele resultado pretendido não foi alcançado; sendo necessário provar que o mesmo não executou os actos exigidos por uma gestão diligente. Ora, da matéria de facto dada como provada, não resulta qualquer facto susceptível de fazer concluir que o Recorrente não desempenhou as suas funções de forma zelosa e adequada. O que significa que a Autora não conseguiu demonstrar que o Réu, enquanto gerente da insolvente, tenha praticado actos ou omissões ilícitos. Consequentemente, faltando a prova desse facto constitutivo da responsabilidade do Réu, não tem este de provar que não teve culpa.

- Muito mal andou o Tribunal a quo quando decidiu condenar o aqui Recorrente, por entender que o mesmo não logrou ilidir a presunção de culpa prevista no n.º 1 do art. 72º, pois, atenta a matéria de facto dada como provada, tampouco se fez prova da ilicitude da conduta que lhe foi imputada, pelo que, impõe-se revogar o Acórdão recorrido, decidindo-se, quanto ao aqui Recorrente, pela improcedência da acção, em rigoroso cumprimento da correcta aplicação do Direito aos factos provados nos autos.

- A decisão recorrida violou as normas constantes dos artigos 64º e 72º do Código das Sociedades Comerciais e artigo 350º do Código Civil.

Nas contra alegações a Autora Massa Insolvente pugna pela manutenção do julgado.

II Foram dados como provados os seguintes factos:

a) A sociedade comercial “Imobiliária Outeirocambezes, Lda.”, registada pela Ap. ……08, com sede na……, freguesia……, concelho ........., tinha como sócios, desde a sua constituição AA e BB.

b) O capital social, da referida sociedade é de 50.000,00€, detido por AA, titular de uma quota com o montante nominal de 25.000,00 € e por Senhor BB, titular de uma quota com o montante nominal de 25.000,00 €.

c) A Insolvente foi constituída com o objeto social de: “Indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas, nomeadamente construção de edifícios. Compra e venda de bens imóveis”.

d) Na data da constituição da agora insolvente “Imobiliária Outeirocambezes, Lda.”, foi nomeado para o cargo de gerente AA e BB.

e) Em 18 de fevereiro de 2017, AA renunciou à gerência, sendo tal situação levada a registo através da Ap.1/20170307.

f) Em 15 de Novembro de 2017, pelas 11:20 horas foi proferida sentença de declaração de insolvência da Imobiliária Outeirocambezes, Lda.

g) Em vinte e nove de Agosto de dois mil e dezasseis, na Notária DD, em ........., a fração “G” correspondente ao rés do chão centro, entrada B, habitação com aparcamento automóvel na subcave com o número onze, integrada no prédio urbano sito no…….., freguesia…….., concelho........., descrito na conservatória ainda na extinta freguesia………, sob o número dois mil seiscentos e setenta e seis/dois mil e oito zero seis vente e cinco, registada a favor da sociedade vendedora pela inscrição apresentação número setecentos e noventa e quatro de dois mil e treze/zero cinco/trinta, e em regime de propriedade horizontal pela inscrição apresentação número dois mil oitocentos e cinquenta e oito de dois mil e quinze/zero sete/vinte e um, e inscrita na matriz sob o artigo ….10 e com valor patrimonial tributável correspondente a 40.710,00€, foi objeto de venda na escritura de compra e venda, em que como outorgantes intervieram na qualidade de representantes da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., ora insolvente, AA e BB, e como comprador CC, e que a referida fração foi vendida a este pelo valor de 72.500,00€ - setenta e dois mil e quinhentos euros.

h) A mencionada escritura de compra e venda foi assinada pelos seus dois e únicos gerentes, à altura gerentes da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., então insolvente, e pelo comprador.

i) O cheque que serviu de pagamento à referida fração foi emitido à ordem de Outeirocambezes, Lda. e no seu verso foi o mesmo endossado, tendo sido, tal endosso assinado pelos seus dois e únicos gerentes à altura, AA e BB.

j) Também no verso do referido cheque, consta o número de conta bancária onde foi depositado, …….93 (dois dígitos ilegíveis) 5020.

l) Nunca a importância de 72.500,00€ - setenta e dois mil e quinhentos euros, referente ao pagamento da fração objeto de venda pela Imobiliária Outeirocambezes, Lda., deu entrada nas suas contas bancárias.

m) A firma do sócio AA devia à firma Hiperluz Instalações Eléctricas, Ldª o valor de 67.921.25€, respeitante à fatura fatura …..58.

n) A fração vendida a CC estava onerada com hipoteca para garantia da quantia de 30.000.00€.

o) Foi acordado, então, entre a Autora e a firma Hiperluz Instalações Eléctricas, Ldª que esta lhe endossava o cheque no valor de 72.500.00€, preço da venda da dita fração e é o cheque que foi junto com a pi.), para pagamento de parte (apenas a quantia de 42.500.00€) da dita fatura.

p) Pois, a firma Hiperluz obrigou-se a retirar daquele montante a quantia de 30.000.00€ para pagamento da hipoteca, daí o ter depositado a quantia de 30.000.00e na conta bancária pertença da Imobiliária Outeirocambezes, Ldª.

q) Aquela escritura apenas foi assinada pelo 2º Réu, dado o acordo celebrado para cessão da sua quota na Imobiliária Outeirocambezes, Lda. ao 1º Réu.

r) No apenso B relativo à qualificação da insolvência foi a mesma declarada fortuita.

Analisando.

1.Da impugnação da matéria de facto.

Começando pelo recurso do Recorrente AA, vem este repristinar o que já havia aventado em sede de ampliação do recurso de Apelação, voltando a insurgir-se contra a não alteração da materialidade dada como assente, nomeadamente que a dívida de 67.921,25 não era da sociedade José Manuel Almeida Gonçalves, Lda, da qual era também sócio, mas sim da própria insolvente, alicerçando-se na fatura junta aos autos com a contestação como o documento nº 1 que a Autora não impugnou, uma vez que dispõe o artigo374º, nº 1 do CCivil, que a letra e assinatura, ou só a assinatura de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, acrescentando o artigo 376º, nº 1 do CCivil que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

O Supremo Tribunal é um Tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, nº 1 do artigo 674º do NCPCivil, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº 3 do artigo 674º do CPCivil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, cfr José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, tomo I, 2ª edição, 162/163 e inter alia os Ac STJ de 6 de Maio de 2004 (Relator Araújo de Barros), 7 de Abril de 2005 (Relator Salvador da Costa), 18 de Maio de 2011 (Relator Pereira Rodrigues), de 23 de Fevereiro de 2012 (Távora Victor), de 15 de Novembro de 2012 e de 18 de Junho de 2019 da ora Relatora, in www.dgsi.pt.

Está em causa a apreciação da matéria constante da alínea m), contudo sem qualquer razão, uma vez que como se constatou em sede de recurso de Apelação a factura junta aos autos, referente à dívida do Recorrente, junta com a sua contestação como documento nº 1, embora não impugnada directamente pela Autora, a sua contestação resulta da versão apresentada por aquela, cfr artigos 15º a 17º da Petição Inicial, sendo que a versão apurada resulta de matéria alegada pelo co-Réu BB nos pontos 30º e 50º da contestação apresentada.

O aludido documento, porque não assinado, estava, como está, sujeito à livre apreciação do Tribunal, nos termos do artigo 366º do CCivil, falhando-lhe, deste modo, qualquer força probatória acrescida, nomeadamente aquela que o Recorrente lhe confere, por não lhe ser aplicável, nestas circunstâncias o preceituado nos artigos 374º e 376º daquele mesmo diploma legal.

Improcedem assim as conclusões quanto a este particular.

2.Da declaração da insolvência como fortuita.

Insurgem-se ambos os Recorrentes contra a decisão plasmada no Acórdão, porquanto a mesma desconsiderou a circunstância de a insolvência ter sido declarada como fortuita o que, a seu ver, sempre deveria conduzir à sua desresponsabilização.

Prima facie, cumpre acentuar que a declaração da insolvência como fortuita, apenas assume relevância para os administradores (gerentes) da sociedade insolvente, no âmbito do processo insolvencial, porquanto neste específico procedimento não são condenados a satisfazer qualquer indemnização aos credores daquela.

Contudo, tal «desresponsabilização» em sede insolvencial, não implica que os administradores não possam vir a ser demandados, pelos credores e/ou pelo administrador da insolvência, em representação desta, por prejuízos causados, fora daquele âmbito procedimental, isto é, em processo autónomo, o que faz cair a argumentação porfiada pelos Recorrentes neste conspectu, cfr neste sentido Rui Pinto Duarte, Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, in III Congresso de Direito da Insolvência, 2015, 151/173.  

A Autora, aqui Recorrida, faz assentar o seu petitório no preceituado no artigo 72º do CSComerciais no qual se predispõe no seu nº 1 «Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.», acrescentando o nº 2 que «A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.», tratando este normativo responsabilidade contratual e subjectiva em que estão em causa danos ilícitos provocados pela inobservância de deveres específicos e com presunção de culpa, cfr Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, 337/341.

Sobre os administradores societários impendem deveres gerais e deveres específicos os quais compreendem determinadas condutas implícitas, cfr artigo 64º do CSComerciais, considerando este normativo nas suas alíneas a) e b), como deveres fundamentais a observar:

«a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.».

Convoca-se a seguinte materialidade com interesse para a resolução da questão

«g) Em vinte e nove de Agosto de dois mil e dezasseis, na Notária DD, em ........., a fração “G” correspondente ao rés do chão centro, entrada B, habitação com aparcamento automóvel na subcave com o número onze, integrada no prédio urbano sito no…………, freguesia……, concelho ........., descrito na conservatória ainda na extinta freguesia……, sob o número …………. vente e cinco, registada a favor da sociedade vendedora pela inscrição apresentação número setecentos e noventa e quatro de dois mil e treze/zero cinco/trinta, e em regime de propriedade horizontal pela inscrição apresentação número …………vinte e um, e inscrita na matriz sob o artigo ……10 e com valor patrimonial tributável correspondente a 40.710,00€, foi objeto de venda na escritura de compra e venda, em que como outorgantes intervieram na qualidade de representantes da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., ora insolvente, AA e BB, e como comprador CC, e que a referida fração foi vendida a este pelo valor de 72.500,00€ - setenta e dois mil e quinhentos euros.

h) A mencionada escritura de compra e venda foi assinada pelos seus dois e únicos gerentes, à altura gerentes da Imobiliária Outeirocambezes, Lda., então insolvente, e pelo comprador.

i) O cheque que serviu de pagamento à referida fração foi emitido à ordem de Outeirocambezes, Lda. e no seu verso foi o mesmo endossado, tendo sido, tal endosso assinado pelos seus dois e únicos gerentes à altura, AA e BB.

j) Também no verso do referido cheque, consta o número de conta bancária onde foi depositado, 0003 108593 (dois dígitos ilegíveis) 5020.

l) Nunca a importância de 72.500,00€ - setenta e dois mil e quinhentos euros, referente ao pagamento da fração objeto de venda pela Imobiliária Outeirocambezes, Lda., deu entrada nas suas contas bancárias.

m) A firma do sócio AA devia à firma Hiperluz Instalações Eléctricas, Ldª o valor de 67.921.25€, respeitante à fatura fatura …..58.

n) A fração vendida a CC estava onerada com hipoteca para garantia da quantia de 30.000.00€.

o) Foi acordado, então, entre a Autora e a firma Hiperluz Instalações Eléctricas, Ldª que esta lhe endossava o cheque no valor de 72.500.00€, preço da venda da dita fração e é o cheque que foi junto com a pi.), para pagamento de parte (apenas a quantia de 42.500.00€) da dita fatura.

p) Pois, a firma Hiperluz obrigou-se a retirar daquele montante a quantia de 30.000.00€ para pagamento da hipoteca, daí o ter depositado a quantia de 30.000.00e na conta bancária pertença da Imobiliária Outeirocambezes, Ldª.».

Quer dizer que, os Recorrentes, na sua qualidade de sócios da sociedade agora insolvente intervieram na escritura de compra e venda de um imóvel pertencente a esta, tendo recebido o pertinente preço através de um cheque emitido à ordem daquela, mas por eles endossado à empresa Hiperluz Instalações Eléctricas, Ldª, à qual o Recorrente, AA, através de uma sua firma, devia um  valor de 67.921.25€, respeitante à factura FT1/158, tendo sido então acordado que a quantia titulada pelo cheque - 72.500.00€, preço da venda da dita fração – seria utilizada parcialmente, no montante de 42.500.00€, para satisfação daquela dívida e o restante, seria depositado pela empresa Hiperluz Instalações Eléctricas, Lda na conta bancária da sociedade agora insolvente, Imobiliária Outeirocambezes, Ldª, a fim de ser distratada a hipoteca incidente sobre o imóvel objecto da aludida transacção.

Esta actução dos Recorrentes reflecte uma violação dos deveres de lealdade que sobre si impendiam, uma vez que o seu comportamento não se orientou pelo interesse social, mas antes pelo interesse meramente pessoal, o que se traduz na sua censura e reprovação, por não terem usado, além do mais, «a diligência de um gestor criterioso e ordenado», cfr João Soares da Silva, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade: os Deveres Gerais e os Princípios da Corporate Governance, ROA, ano 57, 1997, 622; Pedro pães de Vasconcelos, Respoonsabilidade Civil dos Gestores das Sociedades Comerciais, DSR, Ano I, Vol I, 24;Pedro Paes de Vasconcelos, A Participação Social Nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, 2006, 71; Pedro Caetano Nunes, Corporate Governance, 2006, 34.

Ex adverso do invocado pelo Recorrente BB, que pretende fazer extrair a sua desresponsabilização das circunstâncias de não ter recebido, nem ter feito suas quaisquer quantias pagas pelo comprador da fracção autónoma propriedade da insolvente, ser totalmente estranho ao negócio entre a sociedade do seu sócio, o co-Réu, e a sociedade Hiperluz – Instalações Eléctricas, Lda, apenas ter assinado a referida escritura porque tal lhe foi solicitado pelo seu sócio, co-Réu, tendo por base o acordo já celebrado para cessão da quota daquele a este, tais vicissitudes conduzem, antes, a um cenário de manifesta displicência na intervenção num negócio enquanto gerente de uma sociedade, bem sabendo o destino da quantia recebida, cujo cheque, aliás, foi por si também endossado à empresa Hiperluz Instalações Eléctricas, Lda, como decorre da materialidade assente (alínea i)), comportamento este revelador da violação do seu dever de lealdade para com a sociedade de que era gerente e que, nessa qualidade, agiu como legal representante.

Como se conclui no Acórdão recorrido:

«[E]stão assim verificados os pressupostos exigidos pelo artº 72º do CSC:

. uma ação levada a cabo pelos gerentes com violação do disposto no artº 6º nº 1 e 2 do CSC que proíbe liberalidades que não possam ser consideradas usuais, segundo circunstâncias da época e violação do dever de diligência de zelar pelo património da sociedade;

. a culpa, pois os RR. não lograram ilidir a presunção, provando ter agido como um gestor criterioso;

. o dano, correspondente à quantia de 42.500,00 que não ingressou no património da sociedade; e,

.o nexo de causalidade entre a ação e o dano.».

De onde a condenação solidária dos Réus naquele montante não poder ser afastada, soçobrando assim as conclusões de recurso.

III. Destarte, nega-se a Revista, confirmando-se a decisão ínsita no Aresto impugnado.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 26 de Maio de 2021

Ana Paula Boularot (Relatora)

(Tem o voto de conformidade dos Exºs Adjuntos Conselheiros Fernando Pinto de Almeida e José Rainho, nos termos do artigo 15º-A aditado ao DL 10-A/2020, de 13 de Março, pelo DL 20/2020, de 1de Maio) 

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).