Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
042367
Nº Convencional: JSTJ00015074
Relator: FERREIRA DIAS
Descritores: CONDUÇÃO AUTOMOVEL
FALTA DE CARTA DE CONDUÇÃO
TRANSGRESSÃO
INFRACÇÃO CRIMINAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDENCIA
Nº do Documento: SJ199205200423673
Data do Acordão: 05/20/1992
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: ASSENTO DR 157/92 Iª SERIE A 10-05-20, PÁG. 3273 A 3275 - BMJ Nº 417 ANO 1992 PÁG. 130
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 712/90
Data: 02/13/1991
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O TRIBUNAL PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 437.
DL 123/90 DE 1990/04/14 ARTIGO 1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RC PROC561/90 DE 1990/12/12.
ACÓRDÃO RC PROC719/90 DE 1991/02/13.
Sumário :
Constitui crime e não contravenção, a infracção constante do artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril (condução sem habilitação).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em plenario, os Juizes das sub-Secções Criminais do Supremo

Tribunal de Justiça.

I - O Excelentissimo Magistrado do Ministerio Publico junto do Tribunal da Relação de Coimbra veio, ao abrigo do artigo 437 do Codigo de Processo Penal, interpor o presente recurso extraordinario para fixação de jurisprudencia, do acordão da Relação de Coimbra proferido no recurso penal n. 712/90, de 13 de Fevereiro de 1991, alegando em substancia e com interesse:


- No citado acordão considerou-se que constitui crime a infracção prevista e punida pelo artigo 1 do Decreto- -Lei n. 123/90, de 14 de Abril;
- Em sentido inverso, o acordão da mesma Relação de 12 de Dezembro de 1990, prolatado no Recurso Penal n. 561/90, qualificou a mesma infracção como contravenção;


- Ambos os acordãos transitaram em julgado e foram proferidos no dominio da mesma legislação e estão em oposição.
Juntou documentos.


II - Subiram os autos a este Alto Tribunal e, ouvido o Excelentissimo Representante do Ministerio Publico e colhidos os vistos legais, decidiu-se, por acordão de 4 de Dezembro de 1991, constante de folhas 24 e seguintes:


- Que existia oposição, sobre a mesma questão de direito;


- Que ambos os acordãos foram relatados no dominio da mesma legislação, ja que, durante o intervalo da sua prolação, não ocorreu modificação legislativa que interferisse directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida; e


- Que o processo prosseguisse os seus termos.


A folhas 29 e 39 mostravam-se juntas as doutas alegações escritas, respectivamente, do recorrente e do recorrido.


Em tais destras peças processuais, os sujeitos processuais interessados - recorrente e recorrido - perfilham pontos de vista totalmente antagonicos.
Assim, enquanto o Ministerio Publico propende no sentido de que deve fixar-se jurisprudencia considerando a infracção como crime, outra teoria abraça o recorrido, quando terça armas na direcção de que deve estabelecer-se a tese de que a infracção reveste a natureza juridica de uma contravenção.


III - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:


Antes de mais e a guisa de introito, cumpre sublinhar que representando hoje os recursos penais com vista a fixação da jurisprudencia uma estrutura normativa autonoma, que obedece a principios proprios, na medida em que o novo Codigo de Processo Penal de 1987 procurou a todo o transe estabelecer uma regulamentação total e governada por leis proprias, tornando-a o mais possivel independente do processo civil, salvo em rarissimos casos (confirma artigo 4), e não aparecendo no itinerario dos recursos em apreço qualquer disposição correspondente ao artigo 649 do Codigo de Processo Penal de 1929, que estatuia que "os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos de petição em materia civel ...", somos de parecer de que no caso do pleito não ha que ter em consideração o que dispõe o artigo 766 n. 3 do Codigo de Processo Civil, quando proclama: "O acordão que reconheça a existencia da oposição não impede que o Tribunal Pleno, ao apreciar o recurso, decida em sentido contrario".


Não ha, pois, que nesta fase, apurar se existe ou não oposição entre os acordãos em discussão.


Esta nos parece a doutrina que tem sido seguida em todos os acordãos proferidos neste Supremo Tribunal.


No entanto, mesmo que assim não fosse entendido, como alguns defendem (confira Codigo de Processo Penal Anotado de Maia Gonçalves - Edição de 1990 - a paginas 571), uma analise global do que consta dos autos transporta-nos, em linha recta, a consideração de que, efectivamente, tal oposição manifestamente se revela.


IV - Isto assente, passemos, sem mais dilação, a resolução da equação posta ao veredicto deste Supremo Tribunal.


Traduz-se ela, em sintese, em averiguar e decidir se a infracção emoldurada no normativo do artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril, constitui um crime ou se, ao inves, reveste a natureza juridica de uma contravenção.
E desde ja devemos anotar que a tenção de tal problema não tem interesse meramente academico, como numa primeira mirada se poderia rematar, mas um alto e relevante interesse pratico, designadamente, quanto aos prazos de prescrição, amnistias e a negligencia, etc.
No imperio do Codigo Penal de 1886 era reconhecida a existencia bi-partida das infracções criminais: de um lado os crimes e do outro as contravenções ou transgressões, como eram tambem cognominadas.
Para as distinguir surgiram na Doutrina as mais diversas teorias, quer no estrangeiro, quer no nosso Pais.


Não vamos, como e obvio, debruçarmo-nos sobre as posições que então foram assumidas, e que modernamente e a fase do Novo Codigo Penal de 1982 ja não tem qualquer cabimento.


Não deixaremos, no entanto, de salientar que elas deram origem as maiores hesitações.


Desde ha muito, porem, que os tratadistas estrangeiros e nacionais vinham propugnando no sentido de que, sendo impossivel, como era, a elaboração de uma doutrina com viabilidade bastante para estabelecer, com segurança, a distinção entre crimes e contravenções, pois que, o Direito Positivo, ao qualificar algo como crime ou como contravenção, ou se decide por umas razões, ou por outras, nem sempre as mesmas, e variaveis com as condições ambientais do momento (confira Infracção Criminal de Battaglini a paginas 65), as contravenções deveriam, ou fazer parte de um conjunto de disposições, a parte dos Codigos Penais ou, então, expurgar, pura e simplesmente, as contravenções destes diplomas.


O actual Codigo Penal de 1982 seguiu este segundo caminho, limpando de toda a sua estrutura - o que, alias, não sucedia no anterior Codigo Penal - as contravenções e passando tão so a curar dos crimes, mas instituindo, a parte, uma nova instituição juridica denominada o "Ilicito de mera ordenação social", consignado no Decreto-Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, no qual se estipula:


Artigo 1:


"1- Constitui contra-ordenação todo o facto ilicito e censuravel que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima ...".
Quer tudo isto significar que o Codigo Penal de 1982 deixou de reconhecer, na sua estrutura, a figura juridica das contravenções, substituindo-as, porem, pelo chamado ilicito de mera ordenação social, mas sem prejuizo do reconhecimento das contravenções pre-existentes e todas aquelas que, em diplomas futuros, como tais fossem proclamadas (confira V. Moreira e Gomes Canotilho in Constituição Anotada II - a paginas e artigo 6 n. 1 do Decreto-Lei n. 400/82, de 23 de Setembro).


Passaram, assim, a existir duas modalidades de infracções: de um lado os crimes desenhados no Codigo Penal e do outro os ilicitos de mera ordenação social.


Perante esta dicotomia, facil sera averiguar quando nos achamos em face de qualquer das referenciadas situações.


Achamo-nos em face de um ilicito de mera ordenação social, quando, no tipo legal, se comine uma coima, e de um crime quando no seu tipo legal se estigmatize o arguido com qualquer outra sanção (prisão, multa, prisão e multa, ou prisão substituida por multa).


Com esta simples e ajustada penada, pos a lei penal termo a controversia que imperava no ambito do Velho Codigo Penal de 1886 a proposito da distinção entre crimes e contravenções.


V - Postas estas breves cogitações, que apenas fizemos para melhor compreensão do "thema decidendum", vejamos agora o problema suscitado no processo.


Reza o mandamento do artigo 46 do Codigo da Estrada, na parte que ora nos interessa, o seguinte:


"1- So poderão conduzir veiculos automoveis nas vias publicas: a) Os titulares das cartas de condução a que se refere o artigo seguinte: ...".
A contravenção do disposto neste numero sera punida ...
Este normativo estradal foi, por diversas vezes, alterado, mas tão so no aspecto da sua medida punitiva, e nunca no ponto da qualificação da

infracção nele encaixilhada.

So ultimamente, com a publicação do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril, e que o aludido artigo 46 n. 1 foi revogado, em parte.
Dispõe, assim, tal Decreto-Lei:


Artigo 1:


"Quem conduzir veiculos automoveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado, nos termos do artigo 46 do Codigo da Estrada, sera punido com prisão ate um ano ou multa ate 120 dias."


E o artigo 12:


"E revogado o penultimo paragrafo do n. 1 do artigo 46 do Codigo da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n. 39987, de 20 de Maio de 1954".
Da leitura atenta dos preceitos legais acabados de transcrever dimana, seguramente, que duas foram as grandes modificações operadas:
- a primeira, consubstanciada no estabelecimento de uma mais penosa punição para o condutor que for detectado a timonar o seu veiculo, sem se achar habilitado com a necessaria carta de condução; e
- a segunda, segundo cremos, concretizada no afastamento da atribuição de contravenção a infracção, nesse caso, perpetrada pelo condutor.
Pensando alguns momentos sobre as razões que levavam o legislador a elaborar o predito Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril, verifiquemos as condições que o fizeram surgir no nosso firmamento juridico-criminal.
Relata-nos o preambulo do Decreto-Lei em estudo que "foram os elevados indices de sinistralidade com que se defronta o nosso Pais que determinaram a adopção de medidas susceptiveis de desincentivarem a pratica de infracções que, pela sua gravidade, põem em causa a vida de todos os que circulam nas estradas nacionais".


Por outro lado, refere-se logo a seguir ao dito preambulo que "no uso da autorização legislativa concedida pelas alineas c) e d) do artigo 2 da Lei n. 31/89, de 23 de Agosto, e nos termos das alineas a) e b) do n. 1 do artigo 201 da Constituição, o Governo decreta o seguinte ...".
E bem se compreende que se assim haja acontecido, na medida em que, "ex vi" dos artigos 164 alinea e) e
168 n. 1 alinea c) da Constituição da Republica, e da sua exclusiva competencia não so a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal, mas tambem a concessão ao Governo de autorizações legislativas para o efeito em referencia, mas com respeito pelos parametros estatuidos no n. 2 do mencionado artigo 168 e que são os seguintes: as autorizações legislativas devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, que pode ser prorrogada.

Mostra-se, assim, de harmonia com os canones constitucionais, da Lei n. 31/89, de 23 de Agosto, que preceitua deste modo:
Artigo 1:
"E concedida ao Governo autorização legislativa para legislar em materia de segurança rodoviaria".
Artigo 2:
"No uso da autorização legislativa concedida nos termos do artigo anterior, pode o Governo: c) Definir o tipo legal de crime de condução de veiculos automoveis, motociclos, ciclomotores e velocipedes, nas vias publicas ou equiparadas, por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito ...".
Foi, portanto, com silhar nesta autorização legislativa da Assembleia da Republica que eclodiu o aludido Decreto- -Lei n. 123/90, de 14 de Abril.
E fazendo incidir a nossa objectiva sobre a aludida alinea c) da autorização legislativa em menção, logo deparamos com um argumento a favor da tese que sufragamos na antecedente 2 conclusão, pois falando-se ali "em definir o tipo legal de crime de condução de veiculos...", parece-nos que ja esta a tomar posição quanto a qualificação da infracção em causa e, ao mesmo tempo, a alertar o legislador para tal efeito.
Por outro lado, feita a exegese do Decreto-Lei n. 123/90, parece-nos tambem que o seu autor, ao revogar o penultimo paragrafo do artigo 46 n. 1 - onde se caracterizava a infracção nele compendiada como contravenção - nada mais quis do que suprimir tal reputação e qualifica-la como crime e punindo o que nele incorresse com pena mais severa.
So que o não referiu expressamente, certamente por lapso ou esquecimento - pois outra razão não se enxerga - circunstancia que não impede o julgador - malgrado a competencia para a definição de crimes pertencer a Assembleia da Republica ou ao Governo, no uso da autorização legislativa, repita-se, - de proceder ele proprio a caracterização da figura juridica que lhe foi presente.
Mas ha ainda mais um argumento a favor da orientação que nos arrogamos.
Extrai-se ele da interpretação do artigo 31 do Decreto- -Lei n. 117/90, de 5 de Abril, diploma este decretado sob a guarida da mesma autorização legislativa, atras indicada.
Determina, assim, tal normativo legal:
"1- A condução nas vias publicas ou equiparadas de motociclos, ciclomotores e velocipedes so e permitido a quem estiver habilitado para o efeito ...".
E mais adiante da-nos o artigo 46 as seguintes instruções:
"1- A condução de motociclos A 3 e A 2 em infracção ao disposto no n. 1 do artigo 31 constitui crime punivel com prisão ate um ano ou multa ate 120 dias.
2- A condução de motociclos A 1 em infracção a mesma disposição legal constitui igualmente um crime punivel com prisão ate 8 meses ou multa ate 80 dias.
3- A condução de ciclomotores em infracção aquela disposição legal constitui tambem crime punivel com prisão ate seis meses ou multa ate 60 dias.
4- A condução de velocipedes com motor em infracção ao disposto no n. 1 do artigo 31 constitui crime punivel com prisão ate seis meses ou multa ate 60 dias."
De harmonia com tais legais determinações, que consagram uma situação paralela a consignada no artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90 - se bem que muito menos grave, dada a qualidade dos veiculos sobre que incide - apura-se que a lei qualifica como crime a condução nas vias publicas ou equiparadas de motociclos, ciclomotores e velocipedes com motor, sem que os respectivos condutores se achem legalmente habilitados.
Ora, não seria razoavel nem justo, que numa situação semelhante - mas ate mais grave - a condução de veiculos ligeiros ou pesados, sem que os seus condutores se encontrassem legalmente habilitados, outra terapeutica juridica tivessem.
VI - Em conclusão:
A omissão da caracterização da infracção constante do artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril, deve ser colmatada, emprestando-se-lhe a dignidade de crime.
Procede, assim, a bem elaborada argumentação deduzida pelo Ilustre Procurador-Geral Adjunto e, consequentemente, não se da acolhimento a não menos erudita alegação do recorrido.
VII - Dest'arte e pelos expostos fundamentos, decidem os Juizes deste Supremo Tribunal de Justiça:
1- Confirmar o douto Acordão recorrido; e
2- Fixar a jurisprudencia com caracter obrigatorio, pela forma seguinte:
"Constitui crime e não contravenção, a infracção constante do artigo 1 do Decreto-Lei n. 123/90, de 14 de Abril".
Sem custas.
Cumpra-se o disposto no artigo 444 do Codigo de Processo Penal.

Lisboa, 20 de Maio de 1992.

Ferreira Dias,
Sa Nogueira,
Lucena e Valle,
Vaz de Sequeira,
Noel Pinto,
Pinto Bastos,
Ferreira Vidigal,
Cerqueira Vahia,
Sa Pereira,
Lopes de Melo.