Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
590/12.5TTLRA.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: FACTOS CONCLUSIVOS
ASSÉDIO MORAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
Data do Acordão: 03/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / PRESUNÇÃO DE CULPA NO NÃO CUMPRIMENTO.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / SUJEITOS / DIREITOS DA PERSONALIDADE / DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / PODER DISCIPLINAR - CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / ILICITUDE DE DESPEDIMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA.
Doutrina:
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pp.268-269.
- António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina,1997, I, p. 586.
- Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, 2011, pp. 450, 738-739.
- Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, Almedina,1982, pp.315, 337 - 349.
- Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, I, 2007, pp. 410/(1079), 412, 431, 436, 439, 448, 951.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, pp. 152 e 161 – 162, 821.
- Maria Victória R. F. Rocha, “A Imputação Objetiva na responsabilidade Contratual”, Revista de Direito e Economia, Ano XV, pp. 80, 83, 94 – 96.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª edição, pp.1038 – 1039.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Direito das Obrigações, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 478 – 485, 603 e ss..
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, p.312.
- Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 16ª edição, p. 160.
- Pedro Romano Martinez (e outros), Código do Trabalho Anotado, 9ª edição, p. 187.
- Rita Garcia Pereira, Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho, Coimbra Editora, 2009, pp. 100, 220-221.
- Vaz Serra, “Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos”, BMJ 72, p.259 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.ºS 2 E 3, 799.º, N.º1, 800.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 646º, N.º 4, 1ª PARTE (607.º, N.º 4, DO NCPC, A CONTRARIO SENSU), 662.º, N.º 4, 674.º, N.º 3, E 682.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) – ARTIGOS 15.º, 23.º, 24.º, 25.º, 29.º, N.º1 E 2, 128º, N.º 1, A), 129.º, N.º 1, C), 330.º, N.º1, 351.º, N.ºS 1, Nº 2, B), C), I) E J), E 3, 357.º, N.º4, 382.º, N.º2, AL. D).
LEI N.º 41/2003, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGOS 5.º, N.º 1, E 7.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23-09-2009, PROCESSO N.º 238/06.7TTBGR.S1; DE 15.12.2011, PROCESSO N.º 342/09.0TTMTS.P1.S1, E DE 11.07.2012, PROCESSO N.º 3360/04.0TTLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 09-12-2010, PROCESSO N.º 838/06.5TTMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.

II - Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista da gravidade da conduta da trabalhadora a apreciar no contexto de uma ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, o termo «ameaçou», devendo, por isso, ser declarado como não escrito.

III - O assédio moral implica comportamentos (em regra oriundos do empregador ou de superiores hierárquicos do visado) real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências.

IV - Estando demonstrado que a superiora hierárquica da trabalhadora praticou uma sequência de comportamentos encadeados que, para além de atentatórios da sua dignidade, se traduziram num ambiente intimidativo, hostil e desestabilizador, com o objetivo de lhe causar perturbação e constrangimento, mostra-se preenchido o condicionalismo previsto no artigo 29.º, n.º 1, do Código do Trabalho, que confere ao lesado o direito a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

V - Ao contrato de trabalho corresponde, paradigmaticamente, uma relação obrigacional complexa, da qual emergem, a par dos deveres principais (prestar uma atividade e pagar a retribuição), deveres secundários e deveres acessórios de conduta suscetíveis de se reconduzirem a três categorias: i) deveres de proteção da pessoa e/ou património da contraparte; ii) deveres de lealdade; iii) e deveres de esclarecimento.

VI - Nas situações de assédio moral, a lesão dos direitos de personalidade surge no quadro da especial vulnerabilidade que caracteriza a posição do trabalhador na relação laboral e em infração de deveres de proteção e segurança emergentes desta relação.

VII - Sendo os atos de assédio praticados, culposamente, por um superior hierárquico do trabalhador, o empregador é responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos, por força do disposto no artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil.

VIII - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade/exigibilidade e proporcionalidade.

IX - Sendo embora censurável a conduta da trabalhadora – que, exaltada e enervada, apontou uma tesoura de que estava munida à sua superiora hierárquica, sendo, no entanto, omissa a factualidade provada quanto às circunstâncias que rodearam esse facto –, não pode subvalorizar-se que a mesma decorreu de anteriores, sistemáticos e muito graves comportamentos desta última, que fortemente mitigam a sua culpa, pelo que é de reputar de ilícito o despedimento da Autora.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I.

1. AA instaurou a presente ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra BB Portugal-Confeções, Unipessoal, Lda., ambas com os sinais nos autos.

2. A R. apresentou articulado motivador do despedimento, invocando ter procedido ao mesmo com justa causa.

3. A A. contestou, por impugnação, sustentando inexistir justa causa de despedimento, e excecionando: i) a caducidade do direito da ré proceder disciplinarmente; ii) a invalidade do procedimento disciplinar, por violação dos direitos de defesa e por falta de fundamentação da decisão de despedimento.

Também deduziu reconvenção, peticionando a condenação da R.:


a) Na reintegração da autora no seu posto de trabalho ou, em caso de opção pela indemnização substitutiva da reintegração, que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia correspondente a 45 dias por cada ano ou fração de antiguidade, no valor de € 7.916,45.

b) No pagamento à autora de retribuições intercalares - incluindo todas as prestações regulares (subsídios de férias e de Natal) – que deixou de auferir desde a data do despedimento e até ao trânsito em julgado da decisão (em montante a liquidar em execução de sentença).

c) A pagar-lhe indemnização por danos não patrimoniais, decorrentes de assédio moral, em montante não inferior a € 10.000,00.

d) A pagar-lhe juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias atrás indicadas, desde a data da citação até integral pagamento.

4. Respondeu a ré, pugnando, no essencial, pela improcedência das exceções arguidas pela autora, bem como da reconvenção.

5. Foi proferida sentença:


a) A declarar a ilicitude do despedimento da A. e, assim, condenando a R.:

a.1.) Tendo a trabalhadora optado por indemnização em substituição da reintegração, a pagar-lhe quantia correspondente a 45 dias por cada ano ou fração de antiguidade, no valor total de € 7.916,45;

a.2.) A pagar à A. as retribuições intercalares que a mesma deixou de auferir,  incluindo subsídios de férias e de natal, desde a data do despedimento e até ao trânsito em julgado da decisão, no montante que se vier a liquidar oportunamente, após dedução dos montantes referidos nas alíneas a) e c) do n.º 2 art 390.º, do CT;

b) A condenar a R. a pagar à A., a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de assédio moral, a quantia de € 10.000,00, acrescendo a todas estas quantias juros legais, desde a data da citação e até integral pagamento.

6. Interposto recurso de apelação pela R., bem como, subordinadamente, pela A., o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), decidiu:


- Julgar procedente a apelação da ré, declarando-se lícito o despedimento da autora e absolvendo-se aquela de todos os pedidos contra ela formulados;

- Julgar improcedente a apelação subordinada da autora, na parte em que a mesma pugnava pela invalidade do procedimento disciplinar que lhe foi movido pela ré.
 

7. Deste acórdão recorre agora, de revista, a A., sustentando, essencialmente, nas conclusões das suas alegações:

- Em face do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, deve considerar-se não escrita a expressão "ameaça", por não se tratar de um facto mas de um juízo de valor ou facto conclusivo.

- Na decisão disciplinar de despedimento, entre outras circunstâncias que no caso relevam, não foi feita referência nem ponderado o quadro de gestão da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros, o que viola os arts. 351º, nº. 3, e 357º, n.º 4, do Código do Trabalho.

- Consequentemente, o procedimento disciplinar deve ser julgado inválido e o despedimento ilícito, nos termos do art. 382.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código.      

- A atuação da trabalhadora não foi culposa, dado o circunstancialismo que a motivou e as circunstâncias em que ocorreu.

- As alterações de atitude e comportamento da trabalhadora ocorreram em estado de exaltação e como reação e consequência de práticas vexatórias e humilhantes a que reiteradamente foi sujeita pela sua superior hierárquica, num quadro de afetação psicológica/emocional e ansiedade - que impôs a realização de tratamento médico com medicação antidepressiva –, afetação do trato digestivo e intestinal e emagrecimento.

- Verifica-se quebra de coerência disciplinar pela entidade empregadora e constata-se que, no quadro de gestão da empresa e das relações interpessoais nela consentidas, a sanção disciplinar aplicada à recorrente não foi justa e proporcionada, não estando verificada a impossibilidade da subsistência da relação de trabalho.

- A recorrente foi vítima de mobbing praticado por uma direta superiora hierárquica, devendo a correspondente indemnização por danos não patrimoniais ser fixada nos €10.000,00 arbitrados em 1.ª Instância.

8. A R. contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso.

9. O Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam.

10. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões das alegações, as questões a decidir são as seguintes:[2]


1.ª - Se deve considerar-se não escrito o vocábulo "ameaça".

2.ª - Se o procedimento disciplinar é inválido, por insuficiência de fundamentação.

3.ª - Se in casu se configura uma situação de assédio moral;

4.ª - Na afirmativa, se, pelos danos não patrimoniais decorrentes de atos praticados pela sua superiora hierárquica, a A. tem direito a ser indemnizada pela R.

5.ª - Se existe justa causa para o despedimento da A.

11. Cumpre decidir, sendo aplicável à revista o regime processual que no CPC foi introduzido pela Lei 41/2003, de 26 de Junho, nos termos dos arts. 5.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, deste diploma[3].

E decidindo.


II.

12. A matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte:

1- A autora foi admitida pela sociedade ré a 18 de Abril de 2003.

2- Atualmente, exercia as funções correspondentes à categoria profissional de 1ª caixeira da Loja sita no ..., em ... e auferia a quantia de € 579,00 mensais.

3- A 23.02.2012 a encarregada da loja da ré, CC, enviou uma participação de factos imputados à autora, à técnica de recursos humanos DD.

4- Por sua vez, a técnica de recursos humanos, DD, decidiu dar conhecimento da participação apresentada pela encarregada da loja à Direção de Recursos Humanos da ré, a 07.03.2012, alegando “temer que as ameaças da trabalhadora passassem a atos, pondo em risco a segurança dos seus companheiros de trabalho e o funcionamento da Loja”.

5- Ao tomar conhecimento da participação apresentada por CC, a Diretora de Recursos Humanos da Entidade Empregadora, Dra. EE, emitiu um despacho, a 08.03.2012, a ordenar a imediata instauração de um procedimento disciplinar contra a trabalhadora.

6- Por carta datada de 16.03.2012, a entidade Empregadora comunicou à Trabalhadora que iria dar início a 19.03.2011 a um processo prévio de inquérito com vista ao apuramento concreto dos factos que lhe estavam a ser imputados pelos seus companheiros de trabalho.

7- O processo prévio de inquérito iniciado a 19.03.2012 terminou a 29.03.2012.

8- A 18.04.2012 foi entregue à trabalhadora a respetiva Nota de Culpa.

9- A Trabalhadora respondeu via fax à nota de culpa a 04.05.2012, último dia do prazo.

10 - Na referida resposta, que se encontra documentada a fls. 137 a 141 dos autos e aqui se dá por reproduzida, a trabalhadora não arrolou testemunhas nem requereu quaisquer outros meios de defesa.

11- Tal resposta foi admitida não obstante a Entidade Empregadora estar na convicção de que seria extemporânea

12 – A 30.05.2012, a trabalhadora rececionou a decisão final da entidade empregadora a aplicar-lhe a sanção disciplinar de despedimento (fls. 143 a 157, aqui dadas por integralmente reproduzidas), acompanhada do relatório final da instrutora do processo disciplinar (fls. 158 a 194, aqui dadas por integralmente reproduzidas), dado como reproduzido naquela decisão como fazendo parte integrante da mesma (fls. 143), tendo sido dados como não provados todos os factos alegados pela trabalhadora na sua resposta à nota de culpa, designadamente nos seus artigos 3º, 4º, 5º, 47º e 50º.

13- A autora nunca havia sido sancionada disciplinarmente.

14- Após a abertura do Shopping ..., há cerca de 2 anos, foi colocada na loja BB de ..., onde a autora exercia funções, a nova superiora hierárquica, CC.

15- Aquando do início de funções dessa superior hierárquica a autora não acompanhou as alterações introduzidas de imediato na loja, por ter estado ausente ininterruptamente entre Outubro de 2009 e Agosto de 2010, por baixa médica e sucessiva licença de maternidade e férias, tendo o seu filho nascido em ……20….

16- Quando regressou ao trabalho a autora foi incumbida por CC de exercer funções de “Responsável de Acessórios”.

17- Tendo estado fora da loja durante cerca de um ano conforme 15, tal tarefa revelou-se para a autora bastante exigente, impondo a retoma da atividade laboral a um acelerado ritmo de trabalho e muita aptidão para a coordenação de tarefas.

18- Com efeito a autora teria de desempenhar as seguintes tarefas inerentes ao exercício daquelas funções: atendimento direto a clientes; arrumação de acessórios em armazém e colocação dos mesmos em loja, com coordenação (cuidando da imagem destes em loja de acordo com fotos enviadas pela sede); efetuar o pedido de reforço de stock dos acessórios (controlando para tanto as vendas dos artigos do respetivo stock, de modo a que a reposição não determinasse quebra na disponibilidade de artigos, principalmente aqueles com maiores vendas).

19- A autora já tinha desempenhado essas tarefas e gostava de as desempenhar.

20- Sempre fora uma boa trabalhadora e nenhuma reclamação fora apresentada quanto ao seu desempenho sendo gabada por outros trabalhadores e superiores hierárquicos.

21- Iniciou então essas funções de “Responsável de Acessórios”.

22- Porém, logo de início pela encarregada CC foram introduzidas alterações no funcionamento da loja, nomeadamente na secção de acessórios, sendo que estabelecia um mapa de distribuição de funcionárias pretendendo que fossem exercidas em cada momento as funções indicadas nesse mapa, mediante: colocação dos acessórios na loja à hora estipulada nesse mapa; ou proibição do exercício dessas funções nos dias em que não estivesse previsto o respetivo exercício nesse mapa.

23- O tempo estipulado para o exercício dessas funções, nos moldes agora impostos, não era suficiente para que as mesmas fossem desempenhadas como anteriormente eram, sendo certo que a autora estivera ausente durante cerca de um ano.

24- Ante as dificuldades da autora no cumprimento das funções que lhe eram incumbidas CC, começou a dirigir à autora, nomeadamente; as seguintes expressões: “és burra”; “come palha”; “Só estás na BB porque de certeza mais ninguém te queria”; “O que é que aprendeste em 8 anos de casa? Não sabes fazer nada”; “não vales nada”, “Não tens onde cair morta”, “Trata-te”, “Eu sou a hierarquia e tu és o povo”; “eu mando e tu fazes”.

25- Esta atitude hostil, com expressões desta natureza foi-se tornando cada vez mais frequente e ocorreu durante vários meses antes da data em que a autora foi suspensa da sua prestação de trabalho pela entidade empregadora.

26- Quando a autora tinha dúvidas que expunha a CC a mesma ou ignorava a autora voltando-lhe costas; ou respondia “São perguntas estúpidas”.

27- Quando CC entendia que uma tarefa não era bem desempenhada pela autora também se dirigia a outras funcionárias para que estas fizessem reparo à autora.

28- Quando a autora tentava junto de CC questionar o que não estava corretamente executado, aquela ou ignorava a autora, voltando-lhe as costas ou respondia “São perguntas estúpidas”.

29- Desta forma a autora esteve apenas alguns meses a exercer as funções de “Responsável de Acessórios” após o que CC determinou o exercício de funções pela autora no armazém da loja.

30- No armazém apenas permitiu que a autora permanecesse acompanhada pela colega FF, que antes aí exercia as funções de “Responsável de Armazém” durante cerca de uma semana.

31- Após esse tempo a autora passou a estar sozinha no armazém, sendo que antes sempre a FF estivera acompanhada por, pelo menos, outra colega

32- Assim, a autora passou a ter exclusivamente a seu cargo o exercício das seguintes funções: dobrar roupa e mudar cabides para as peças caberem no armazém; redobrar os dobrados; pendurar o mostruário, ordenando-o pela ordem do armazém; muitas vezes, arrumar os acessórios; fazer os 25´s (reposição da roupa vendida, de hora a hora), com a mudança integral dos cabides para madeira antes de os levar para a loja, o que também estava a seu cargo; etiquetar (colocação de cartões onde se colam as referências imprimidas no t.g.t., por baixo de cada peça correspondente no armazém); atender as colegas, recebendo os seus pedidos de peças em falta na loja e levando-lhes as peças; repor cabides na loja; levar os sortidos para a coordenação a realizar na loja: fazer “centrados”, “movimentos” e “Devoluções” para outras lojas e para o armazém central (para tanto tendo que recolher as peças existentes no armazém e em loja, passando-as na Cassiopeia, para serem emitidas etiquetas e guias de remessa para acompanhar o transporte dessas peças); ocasionalmente tinha que exercer essas funções e também substituir colegas em falta na loja (quer em substituição por períodos mais longos de tempo, quer nos 15 minutos de pausa diária; quase diariamente, também, tinha que exercer essas funções e fazer o fecho de uma das secções da loja ao fim do dia; tinha a seu cargo também o preenchimento de folha de informação dos 25´s – reposição da roupa vendida, de hora a hora.

33- A superior hierárquica CC chegava a dizer à autora que esta tinha um “sorriso falso”, certamente “por ter muitos problemas na vida; que falava português com sotaque; que arranjara mal o cabelo ou a pintura, ou não tinha sapatos adequados.

34- CC fazia críticas à autora em reuniões diárias de trabalho onde estavam acompanhadas das demais trabalhadoras da loja tal como em “reuniões” que mantinha a sós com a autora.

35- Numa altura, numa “reunião” com todas as trabalhadoras chamou a todas “burras”.

36- Nas reuniões a sós com a autora muitas vezes a CC gritava, tal como a autora, ambas em estado de grande exaltação, proferindo a CC expressões pejorativas contra a autora tal como “és burra”, “come palha”, o que fazia que a autora saísse a chorar dessas reuniões.

37- Daí que a autora, muitas vezes, ante o comportamento repetido e insistente de CC, em muitas ocasiões não conseguia manter a calma, sentia grande tensão emocional, desgaste físico e psicológico e respondia agressivamente.

38- A autora, como era do conhecimento de CC e de outras trabalhadoras da Loja, passou a ficar abalada e a sofrer de depressão, tendo tido acompanhamento médico.

39- A autora por vezes mascava pastilha na loja, para o que era chamada a atenção tanto por CC como por outras encarregadas.

40- Em data indeterminada, aquando do fecho da loja, encontrando-se ainda clientes dentro da mesma, a autora, ao sentir uma interferência nos seus auriculares disse em voz alta” mas quem é que está a gritar ao mike”, tendo sido chamada a atenção pela encarregada.

41- Em dia indeterminado, a autora, depois de sair do local de trabalho, e face às pressões sobre ela exercidas pela CC, disse, referindo-se a CC: “ a minha vontade é pôr uma bomba e rebentar tudo com ela cá dentro”.

42- Em dia indeterminado, perante a exigência de CC para que a autora dissesse tudo o que sentia acerca dela e após ambas se exaltarem a autora disse “no dia em que morreres eu vou de vermelho ao teu funeral”.

43- Em data indeterminada, CC convocou uma reunião com a autora para a qual chamou também GG, HH e II para a confrontar com alegados comportamentos menos próprios que a autora teria dentro da loja e para com outras colaboradoras.

44- A autora, face a críticas que lhe foram dirigidas por CC disse “Em 30 anos de vida, nem a minha mãe me tratou como tu me tratas, só me apetece matar-te”.

45- Até estas situações ocorrerem a autora era pessoa bem disposta e disponível para as colegas; tinha muita facilidade em saber onde estavam os artigos quer no armazém onde exercia funções, quer nas várias secções da loja.

46- Por esse motivo, com frequência, quando as roupas eram recebidas ou do camião ou dos provadores, muitas colegas perguntavam à autora onde estavam colocadas peças idênticas para poder arrumá-las.

47- Muitas colegas, por isso, consideravam a autora uma das colegas mais disponíveis da loja.

48- As situações causaram na autora “sintomas psíquicos passíveis de enquadrar em estado de stresse/ansiedade valorizáveis” que impuseram e impõem ainda hoje à autora a realização de tratamento médico com medicação antidepressiva.

49- Geraram-lhe ainda a afetação do trato digestivo e intestinal; e emagrecimento.

50- Estas situações causaram na autora humilhações, vergonha, tristeza, ansiedade, instabilidade e afetação da sua dignidade uma vez que, conforme supra, existia um ambiente laboral intimidatório, hostil e desestabilizador.

51- A atuação da superior hierárquica CC teve como objetivo causar perturbação e constrangimento na autora.

52- Antes da ocorrência destes factos a autora era pessoa alegre, extrovertida, comunicativa e sociável com grande vitalidade e motivação pessoal e profissional.

53- Passou a revelar uma baixa autoestima, acometida de frequentes crises de choro, dificuldades de concentração.

54- Em dia exato que não possível determinar de Fevereiro de 2012, no armazém da loja onde trabalhava, exaltada e enervada, a autora ameaçou a encarregada da loja CC, apontando-lhe uma tesoura de que estava munida.

55- No dia 29/02/2012, entre as 12:30 e as 13:30, a segunda-caixeira, HH, encontrava-se no armazém, onde tinha ido buscar roupa, uma vez que estava a fazer a coordenação da loja, quando a autora, que tinha acabado de sair da zona dos cacifos, onde tinha ido desfardar-se, a abordou para lhe perguntar “Oh HH! Quem é que eu tenho de “foder” para me arranjarem umas caixas daquelas?”, referindo-se a umas caixas de acrílico que se encontravam no armazém, onde são guardados os acessórios.

56- Chocada com as palavras que a autora acabara de proferir, HH respondeu-lhe “Vou fingir que não ouvi o que disseste!”.

57- Uma vez que perante essa resposta a autora começou a rir-se, HH disse-lhe” Escusas de estar a rir que eu não estou a achar piada nenhuma!”.

58- Em dia exato que não foi possível determinar de Fevereiro de 2012, na sequência de um pedido de esclarecimento que lhe foi dirigido pela testemunha JJ sobre um incidente ocorrido nesse mesmo dia entre a autora e KK, a autora disse, muito nervosa, a chorar e furiosa que as colegas não faziam nada e que “a minha vontade é a de pegar numa metralhadora e matar todas”.


III.



(a) – Se deve considerar-se não escrito o vocábulo "ameaça".

13. A matéria de facto “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”[4], pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas (embora o NCPC não contenha norma correspondente à ínsita no art. 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual art. 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga provados).

Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”[5]), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum[6], verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.[7]

Vale isto por dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”.[8] 

Identicamente - e com o mesmo critério, como tem sido sustentado pela jurisprudência[9] -, são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, na expressão do Ac. de 09-12-2010 deste Supremo Tribunal[10], que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.

Posto isto.

14. Embora esteja vedado ao Supremo Tribunal de Justiça avaliar a bondade da decisão de facto propriamente dita, não lhe está vedado, todavia, por tal constituir matéria jurídica (cfr. arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, CPC), apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado - consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita, nos termos sobreditos.

Consta do ponto n.º 54 da matéria de facto que “[e]m dia exato que não possível determinar de Fevereiro de 2012, no armazém da loja onde trabalhava, exaltada e enervada, a autora ameaçou a encarregada da loja CC, apontando-lhe uma tesoura de que estava munida”.

Considerando que "ameaça" não se trata de um facto mas antes de um juízo de valor ou facto conclusivo, pretende a recorrente que esse vocábulo se considere não escrito.

E com razão, pois é patente que na formulação em apreço o termo ameaçou reveste natureza jurídico-conclusiva, traduzindo um conceito puramente normativo cuja utilização não é neutra do ponto de vista da valoração da gravidade da conduta da autora, nem, consequentemente, quanto à solução do litígio [cfr. infra nºs 26 a 28].


Deste modo, declarando-se não escrito tal vocábulo, o ponto n.º 54 da matéria de facto passa a ter a seguinte redação: "Em dia exato que não possível determinar de Fevereiro de 2012, no armazém da loja onde trabalhava, exaltada e enervada, a autora apontou uma tesoura de que estava munida à encarregada da loja CC."

XXXXX

(b) – Se o procedimento disciplinar é inválido, por insuficiência de fundamentação.

15. Sustenta a recorrente que na decisão disciplinar de despedimento, entre outras circunstâncias que no caso relevam, não foi feita referência nem ponderado o quadro de gestão da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros, o que viola os arts. 351.º, n.º. 3, e 357.º, n.º 4, do CT/2009[[11]]; e, consequentemente, que o procedimento disciplinar deve ser julgado inválido e o despedimento ilícito, nos termos do art. 382.º, n.º 2, d).    

Sem razão.

Prescreve o art. 382.º, n.º 2, d), nomeadamente, que o procedimento disciplinar é inválido se a comunicação ao trabalhador da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito, ou não esteja elaborada nos termos do nº 4 do art. 357.º.

Por seu turno, segundo esta última disposição legal, na decisão são ponderadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as referidas no n.º 3 do artigo 351.º (de acordo com o qual “na apreciação da justa causa, deve atender -se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”), a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador e os pareceres dos representantes dos trabalhadores, não podendo ser invocados factos não constantes da nota de culpa ou da resposta do trabalhador, salvo se atenuarem a responsabilidade.

Ora, como bem se ponderou na decisão recorrida:


“(…) analisada a decisão disciplinar sob censura, verifica-se que na mesma são descritos os vários deveres a que a autora estava adstrita enquanto trabalhadora, deveres esses que foram identificados na referida decisão (deveres de obediência, de zelo e diligência, de respeito – fls. 193, ponto VI), e concluiu-se que esses factos revelavam uma gravidade tal que comprometiam irremediavelmente a confiança que deve existir entre empregadora e trabalhadora, razão pela qual assistia à ré justa causa para despedir a autora, dada a circunstância de estar prática e irremediavelmente comprometida a subsistência da relação de trabalho, identificando-se os normativos em que deveriam integrar-se os factos dados como provados para efeitos de se concluir pela verificação da aludida justa causa (fls. 194).

Essa decisão foi tomada por escrito e assim foi comunicada à trabalhadora.

Crê-se, assim, que a decisão disciplinar de despedimento respeitou, no seu núcleo essencial, os requisitos formais decorrentes dos arts. 351º/3, 357º/4/5 do CT/09, com a consequente inverificação de qualquer causa de invalidade do procedimento disciplinar.

Resta dizer que saber se a ré respeitou ou não os critérios substantivos decorrentes dessas mesmas normas legais, ao concluir que se registava uma situação de justa causa de despedimento, é questão que contende com a matéria substantiva da ilicitude do despedimento, que não com a matéria adjetiva da ilicitude do procedimento disciplinar.”.

Improcede, deste modo, a questão em apreço.

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(c) – Se in casu se configura uma situação de assédio moral.

16. Em linha com o preceituado no art. 15.º, segundo o qual o trabalhador goza do direito à respetiva integridade física e moral, e ainda nos arts. 23.º, 24.º, 25.º, e 129.º, n.º 1, c), estabelece o art. 29.º, n.º 1, CT, que por assédio se entende “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.

Com amplitude acrescida em relação ao regime consagrado no CT/2003, as condutas neste âmbito relevantes deixam de estar necessariamente reportadas a situações de discriminação, abrangendo agora a lei, expressis verbis, as seguintes formas de assédio:

- O assédio sexual, que é uma discriminação de género definida no nº 2 do art. 29º;

- O assédio moral discriminatório, baseado, nomeadamente, num dos fatores discriminatórios descritos no art. 24.º;

- O assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em qualquer fator discriminatório concreto, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis[12].

A este propósito, e seguindo muito de perto o exposto por Júlio Manuel Vieira Gomes[13], importa destacar que “as humilhações são proibidas porque são uma afronta à dignidade da pessoa e uma violação dos seus direitos e não porque constituem um tratamento desigual” [“o assédio não é mais aceitável só porque o empregador insulta indiscriminadamente todos os seus trabalhadores”], pelo que as situações em que o assédio não reveste natureza discriminatória em nada lhe retiram ou diminuem a ilicitude/gravidade.

Na verdade, “as proibições de discriminação visam (…) evitar a injustiça criada pela circunstância de um comportamento que, em si mesmo, seria legítimo, se tornar ilegítimo por uma diferenciação injusta”; e, ao invés, “no comportamento humilhante ou insultante, não é preciso fazer qualquer comparação com outros trabalhadores para identificar a injustiça”, uma vez que “o comportamento é injusto em sim mesmo, e não por comparação com outros”.

Podendo resultar, pois, dos mais díspares sentimentos e motivações envolvidos nas relações interpessoais no seio da empresa[14], é possível distinguir, agora em função da motivação da conduta, duas modalidades de assédio moral:

- O assédio emocional/psicológico (decorrente, por exemplo, de animosidade, antipatia inveja, desconfiança ou insegurança), em regra dirigido à obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (animus nocendi);

- O assédio estratégico, merecedor de especial atenção e que se reconduz a uma técnica perversa de gestão, dirigida a objetivos estratégicos definidos, com frequência utilizada como meio para contornar as proibições de despedimento sem justa causa[15] e, por outro lado, como instrumento de alteração das relações de poder no local de trabalho (por exemplo, com o fito de levar o trabalhador a aceitar condições laborais menos favoráveis) ou para implementar determinados padrões de cultura empresarial e/ou de disciplina.

17. É patente que uma abordagem da disposição legal supra transcrita apenas assente no seu elemento literal se revela demasiado abrangente, pelo que se impõe um esforço adicional para adequadamente delimitar a sua esfera de proteção.

Com efeito, como enfatiza Monteiro Fernandes, “a definição do art. 29º não parece constituir o instrumento de diferenciação que é necessário”, uma vez que “nela cabem, praticamente, todas as situações que o mau relacionamento entre chefes e empregados pode gerar”[16].


E, como realça Júlio Manuel Vieira Gomes[17], “importa (…) advertir que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um “mobbing”, sendo (…) importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direção são necessariamente um “mobbing”, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante, quer porque não são realizados com tal intenção”.

18. Ensaiando uma interpretação “capaz de servir as finalidades operatórias” do conceito de assédio, diz-nos Monteiro Fernandes[18]:


“Entrando em conta com o texto da lei e os contributos da jurisprudência, parece possível identificar os seguintes traços estruturais da noção de assédio no trabalho:

a) Um comportamento (não um ato isolado) indesejado, por representar incómodo injusto ou mesmo prejuízo para a vítima (…);

b) Uma intenção imediata de, com esse comportamento, exercer pressão moral sobre o outro (…);

c) Um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, consistente na obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (…).

A definição do art. 29.º parece, por exemplo, prescindir do elemento intencional que parece essencial à diferenciação da hipótese de assédio, face a outros tipos de comportamento incorreto, abusivo ou prepotente do empregador ou dos superiores hierárquicos do trabalhador. A interpretação do preceito deve, pois, ser feita no sentido indicado.”

19. Não podendo deixar de reconhecer-se (no tocante à exigência de uma dimensão volitiva/final no conceito de assédio) a necessidade de uma interpretação prudente da sobredita disposição legal, também não pode olvidar-se que não pode ser considerado pelo intérprete um “pensamento legislativo” que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo ainda presumir-se que o legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados e que consagrou as soluções mais acertadas – art. 9.º, n.ºs 2 e 3, C. Civil.

De acordo com o entendimento perfilhado pela generalidade da doutrina, pode dizer-‑se, numa formulação sintética, que o assédio moral implica comportamentos (em regra oriundos do empregador ou de superiores hierárquicos do visado) real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador[19], aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências.

A propósito do elemento volitivo, a doutrina sempre se mostrou dividida, pois, “enquanto para alguns o mobbing pressupõe uma intenção persecutória ou de chicana (ainda que não necessariamente a intenção de expulsar a vítima da empresa), para outros, o essencial não são tanto as intenções, mas antes o significado objetivo das práticas reiteradas”.[20]

Incontornavelmente, a lei estipula que no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” do comportamento adotado pelo “assediante”.

No entanto, quanto aos precisos contornos desta exigência, duas observações se impõem.

Em primeiro lugar, uma vez que a esfera de proteção da norma se circunscreve, como vimos, a comportamentos que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos, não pode deixar de notar-se que é dificilmente configurável a existência de (verdadeiras) situações de assédio moral que, no plano da vontade do agente, não imponham concluir que ele, pelo menos, representou as consequências imediatas da sua conduta, conformando-se com elas.

Por outro lado, para referir que a circunstância de o legislador ter prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento não obsta à afirmação de que o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem em regra[21] associado um objetivo final “ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável” (v.g. a discriminação, a marginalização/estigmatização ou neutralização do trabalhador, atingir a sua auto-estima ou, no tocante ao “assédio estratégico”, os objetivos específicos supra expostos).

20. Sendo certo, como acima se referiu, que nem todos os conflitos no local de trabalho constituem mobbing, não pode, concomitantemente, deixar de ter-se presente que as situações de grave e sistemática conflitualidade/animosidade configuram com frequência situações deste tipo, em especial quando têm lugar num quadro de exercício arbitrário e excessivo do poder de direção, como se verifica no caso sub judice.

Na verdade, paradigmaticamente, decorre da factualidade provada (que não se encontra em discussão neste momento e cuja fixação deverá neste tipo de casos merecer especial atenção), maxime dos pontos nº 24 a 28, 33 a 38, 45 e 48 a 53:

- Uma sequência de comportamentos encadeados da superiora hierárquica da A., no seio da empresa e por causa da relação de trabalho;

- Esses comportamentos, para além de atentatórios da dignidade da A., traduziram-‑se num ambiente intimidativo, hostil e desestabilizador, sendo certo que a atuação da superior hierárquica CC teve como objetivo causar perturbação e constrangimento na autora (intencionalidade ofensiva da conduta);

- Tais factos provocaram à A. múltiplos danos, físicos e psicológicos.

Quanto à modalidade de assédio moral, é patente, desde logo, que in casu nos encontramos fora do âmbito do conceito de assédio estratégico, uma vez que nada na matéria de facto sugere qualquer tipo de ação concertada entre os responsáveis cimeiros da R. e a superiora hierárquica da A. que contra esta dirigiu hostilidade, nem, por outra banda, qualquer conduta da entidade empregadora enformada pelas finalidades que a esta figura inerem (v.g., como vimos, afastar o trabalhador da empresa, forçá-lo a aceitar condições laborais menos favoráveis ou implementar determinados padrões de cultura empresarial e/ou de disciplina).

Também nada sugere que a conduta da superiora hierárquica da A. tenha qualquer conexão com fatores de discriminação, o que reconduz a situação em apreço para o âmbito do “assédio emocional”.

Todavia, apesar de os comportamentos em causa apresentarem as características tipicamente definidas no art. 29.º, n.º 1, CT – e de a prática de assédio conferir ao lesado direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, em conjugação com o art. 28.º) -, cumpre determinar se a R. é responsável por atos cuja autoria apenas pertence a uma sua subordinada.

Para isso, há que aferir da natureza/fundamento da responsabilidade do empregador nestas situações e, seguidamente, em função das respostas, determinar se estão verificados os requisitos legais desse tipo de responsabilidade.

 

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(d) – Se, pelos danos não patrimoniais decorrentes de atos praticados pela sua superiora hierárquica, a A. tem direito a ser indemnizada pela R.


- Responsabilidade contratual ou extracontratual?

21. Na expressão de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, “a complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas, antes, vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta.” [22]

Parte importante destes elementos que completam, integram e funcionalizam a prestação principal, reconduzem-se a ditames do princípio da boa-fé (objetiva), “cláusula geral” que constitui o vetor essencial do moderno paradigma do Direito das Obrigações e que se reconduz, em última análise, a uma obrigação de cooperação entre as partes cujos exatos contornos são determinados pelas especificidades de cada situação concreta (donde decorre que há que evitar condutas contrárias aos fins da relação e, por outro lado, que se impõe a prática dos atos necessários para atingir tal desiderato).

Na verdade, enquanto no paradigma clássico o centro do Direito das Obrigações residia na vontade dos sujeitos, através da boa-fé́ esse centro é deslocado para outro plano, no qual se confere especial ênfase ao comportamento das partes no cumprimento do programa contratual. Nesta perspetiva, para além do dever (formal) de prestar, a boa-fé́ impõe critérios éticos à atuação das partes, não só no cumprimento daquele estrito dever mas, mais amplamente, no desenvolvimento dinâmico da globalidade da relação jurídica obrigacional[23].

22. Como se sabe, ao contrato de trabalho corresponde, paradigmaticamente, uma relação obrigacional complexa[24], da qual emergem, a par dos deveres principais[25] (prestar uma atividade e pagar a retribuição), deveres secundários e deveres acessórios de conduta (também designados por deveres laterais).[26]

Estes últimos não são propriamente orientados para o cumprimento da prestação principal (não visam satisfazer o interesse no cumprimento), revestindo natureza instrumental/auxiliar no tocante à realização positiva do fim da relação obrigacional (ou, dito de outra forma, da globalidade dos interesses nela envolvidos), mediante a proteção dos interesses das partes conexos com o contrato (“interesses colaterais”) que, à luz dos princípios da boa-fé e da confiança, mereçam tutela.[27] Em função do seu âmbito, é possível reconduzi-los a três categorias[28]: i) deveres de proteção da pessoa e/ou património da contraparte[29]; ii) deveres de lealdade[30]; iii) e deveres de esclarecimento[31].

Ora:

Nas situações de assédio moral, a lesão dos direitos de personalidade surge no quadro da especial vulnerabilidade que caracteriza a posição do trabalhador na relação laboral e em infração de deveres de proteção e segurança emergentes desta relação.

Consequentemente – e sendo certo que na responsabilidade extracontratual a obrigação de indemnizar surge, em princípio, da violação de uma disposição legal ou de direitos absolutos desligados de qualquer vínculo contratual previamente existente entre o responsável pelo ressarcimento e o lesado –, é de perfilhar o entendimento segundo o qual, neste âmbito, a responsabilidade do empregador reveste natureza contratual. [32]

Deste modo, quando estejam em causa factos cuja autoria é do próprio empregador, incumbe-lhe provar que os factos lesivos invocados pela vítima não procedem de culpa sua, nos termos do art. 799º, n.º 1, C. Civil, ou, nas situações de assédio discriminatório, que a diferença de tratamento não assenta em fatores dessa natureza (cfr. nºs 5 e 6 do art. 25º, CT).


- Responsabilidade da R.  por atos praticados por uma sua subordinada.

23. “O devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor” – art. 800.º, n.º 1, C. Civil

Como se patenteia no regime aqui consagrado, que é “uma espécie de responsabilidade pelo risco inerente à colaboração”[33] dos representantes legais ou auxiliares que o devedor utilize no cumprimento da obrigação,  também no domínio contratual se manifesta a tendência para o objetivismo em matéria de critérios de imputação (à semelhança do que se verifica na responsabilidade extracontratual).

Na verdade, e como já o Prof. Vaz Serra[34] explanava em tempos bem recuados, é geralmente admitido nos direitos modernos que o devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados por ele próprio, compreendendo-se que este, tal como responde pelas “coisas materiais que emprega, responde pelas pessoas cujos serviços utiliza”, e que “a insuficiência das pessoas, tal como a das coisas que emprega, não constitui justificação de não ter obtido o resultado prometido[35].

Nesta ordem de ideias, continua o mesmo autor, “o devedor responde por todos aqueles que deixou penetrar no seu domínio de atividades ou que admitiu a colaborar com ele, de maneira mais ou menos permanente e mais ou menos completa, na execução das suas obrigações”, bastando que “sejam admitidos a participar na realização da prestação devida, empregados, criados, operários, ajudantes (...), para que o seu facto não possa já ser tido como caso fortuito ou um caso de força maior nas relações do devedor com o credor”.[36]

Agora na expressão de Maria Victória R. F. Rocha[37], “a ratio do preceito está na necessidade objetiva de tutela do crédito que na moderna organização empresarial se faz sentir”, sendo, nesta matéria, “irrelevante o tipo de obrigação, tanto podendo ser de meios como de resultado, como até uma obrigação negativa, de abstenção”,[38] como é o caso da situação do comerciante que, obrigado por um pacto de não concorrência, o viola por atuação do seu chefe de vendas.[39]

Deste modo, como explicita a mesma autora, a expressão “no cumprimento” deve entender-se como reportada à “relação obrigacional no sentido de relação obrigacional complexa”[40].

Na verdade: se, como vimos, o devedor não está apenas obrigado a realizar a prestação principal, é imperioso concluir que qualquer conduta que infrinja a globalidade da relação obrigacional - e que tenha lugar no âmbito da inerente dinâmica - consubstancia um incumprimento (lato sensu).

O que é decisivo nesta matéria, pois, é que a ilicitude da ação lesiva decorra do incumprimento de um dever de proteção transferido do devedor para o auxiliar. Vale por dizer que o devedor deverá ser responsabilizado pelos danos quando haja uma “conexão íntima” entre os atos lesivos dos auxiliares e a tarefa a estes cometida pelo devedor, ou seja, quando o dever de proteção violado decorre, especificamente, do contrato.

Como elucidativamente refere ainda a mesma autora: [41]


“Deve-se sempre partir da ideia de uma justa repartição de riscos entre credor e devedor relativamente ao comportamento do auxiliar. Por um lado, do princípio de que o devedor tem de suportar os riscos da utilização de auxiliares. Por outro lado, da ideia de que não pode caber ao devedor, enquanto tal, suportar os danos do credor inerentes aos riscos gerais da vida.

(…)

Há (...) que valorar se a ação ou omissão do auxiliar, cometida pelo devedor se teria traduzido na violação de um dever de cuidado, lealdade ou guarda, fundamentado na relação obrigacional. A atividade tem de ser suscetível de uma relação com o círculo, ou âmbito de tarefas de que o auxiliar é encarregado, mesmo quando a concreta atuação ultrapasse ou vá contra as ordens ou indicações dadas”.

24. É inequívoco que in casu os danos sofridos pela A. foram produzidos em estrita conexão com as funções desempenhadas pela sua superiora hierárquica (e com o risco associado a tais funções), tanto mais que a mesma era a encarregada da loja em que ambas desenvolviam a sua atividade, pelo que lhe estavam inerentemente delegadas as responsabilidades da R. no domínio da proteção dos trabalhadores.

Em face dos factos provados, também não é passível de qualquer dúvida a natureza culposa da atuação da dita superiora hierárquica, culpa que se “comunica” à R., em face do segmento final do transcrito n.º 1 do art. 800.º, C. Civil.

Conclui-se, assim, no sentido da responsabilidade da R. pelo ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela A.

25. Quanto ao montante da indemnização, constata-se que a R. – na apelação, bem como nas contra-alegações apresentadas no âmbito da presente revista - nunca questionou nos autos o montante a este título arbitrado na 1ª instância (€ 10.000,00), apenas tendo impugnado a obrigação de indemnizar, em si mesma.

Nada a decidir, pois, nesta matéria.

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(e) – Se existe justa causa para o despedimento da A.

26. Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (art. 351.º, n.º 1), pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade/exigibilidade (na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes - n.º 3 do mesmo artigo) e proporcionalidade (art. 330.º, n.º 1).

Neste âmbito, dois aspetos ainda a realçar: (i) a conduta do trabalhador deve ser apreciada no seu conjunto, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; (ii) deve verificar-se um nexo de causalidade entre a conduza do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata[42]) de subsistência do contrato de trabalho.[43]

27. Entendeu-se na decisão recorrida constituírem justa causa de despedimento determinados factos praticados pela A., que é possível agrupar da seguinte forma:


a) “A autora por vezes mascava pastilha na loja, para o que era chamada a atenção tanto por CC como por outras encarregadas.” (ponto 39º dos factos provados).

b) No dia 29/02/2012, a A. disse à colega de trabalho HH “Oh HH! Quem é que eu tenho de “foder” para me arranjarem umas caixas daquelas?”  (ponto 55º dos factos provados).

c) Em dia indeterminado a autora, depois de sair do local de trabalho, e face às pressões sobre ela exercidas pela CC, disse, referindo-se a CC: “a minha vontade é pôr uma bomba e rebentar tudo com ela cá dentro” (ponto 41º dos factos provados); Em dia indeterminado, perante a exigência de CC para que a autora dissesse tudo o que sentia acerca dela e após ambas se exaltarem a autora disse “no dia em que morreres eu vou de vermelho ao teu funeral” (ponto 42º dos factos provados); A autora, face a críticas que lhe foram dirigidas por CC disse “Em 30 anos de vida, nem a minha mãe me tratou como tu me tratas, só me apetece matar-te” (ponto 4º dos factos provados); Em dia exato que não foi possível determinar de Fevereiro de 2012, na sequência de um pedido de esclarecimento que lhe foi dirigido pela testemunha JJ sobre um incidente ocorrido nesse mesmo dia entre a autora e KK, a autora disse, muito nervosa, a chorar e furiosa que as colegas não faziam nada e que “a minha vontade é a de pegar numa metralhadora e matar todas” (ponto 58º dos factos provados).

d) "[E]m dia exato que não possível determinar de Fevereiro de 2012, no armazém da loja onde trabalhava, exaltada e enervada, a autora apontou uma tesoura de que estava munida à encarregada da loja CC" [ponto n.º 54 da matéria de facto],

28. Quanto à alínea a), considerou-se na decisão recorrida que a A. “violou o dever de obediência às instruções das suas superiores hierárquicas”.

Não nos parece que possa falar-se aqui em desobediência, uma vez que não decorre dos factos provados que alguma superiora hierárquica tivesse propriamente ordenado à A. que não mascasse pastilhas elásticas: ordenar, dirigir uma injunção comportamental, é diferente do mero “chamar à atenção”.

Em todo o modo, estes factos não revestem gravidade que suficientemente permita integrá-los no conceito de justa causa de despedimento.

29. Quanto aos factos atinentes aos outros três grupos, não se discute que a conduta global da autora é censurável e assume relevância disciplinar, por violação dos deveres de respeito, urbanidade e probidade [cfr. arts. 128º, n.º 1, a), e 351º, nº 2, b), c), i) e j), do CT].

Todavia, sabendo-se que o despedimento deve reservar-se para comportamentos graves, a que estejam aliadas “consequências apreciáveis” e uma “culpa grave[44], justificar-se‑á sancioná-la com a mais grave das sanções disciplinares? Na imagem global dos factos, isso será razoável e proporcionado?


Tendo em conta todas as circunstâncias disponíveis e o contexto global dos factos praticados, desde já se adianta que a resposta não pode deixar de ser negativa.




Com efeito:

30. Relativamente à expressão constante da alínea b), foi utilizado um termo com alguma carga de obscenidade, embora não esteja cabalmente apurado o contexto em que a frase em causa foi proferida, cujo alcance, aliás, não é inteligível.

Nada permite afirmar qualquer intencionalidade ofensiva ou agressiva por parte da autora, pelo que, tendo ainda em conta que o padrão de relacionamento entre colegas de trabalho se caracteriza hoje em dia por acentuada informalidade, não vemos que seja possível conferir-lhe especial relevo.  

31. Noutro patamar de gravidade se situam as expressões dirigidas pela A. à sua superiora hierárquica e à colega JJ [alínea c)], embora seja claro que a factualidade provada não permite ir tão longe (nem uma leitura tão drástica) como foi a decisão recorrida, ao considerar que a autora expressou publicamente a sua vontade de “atentar contra a integridade física e mesmo contra a vida da encarregada geral da loja onde trabalhava” e de “matar as colegas de trabalho”.

Ao invés, afigura-se-nos que tais ditos não podem ser dissociados do contexto de grande violência (dirigida à A.) em que tiveram lugar e que os mesmos de forma alguma traduzem reais manifestações de vontade.

Nesta matéria, aderimos, no essencial, ao entendimento da 1ª instância, que os considerou “desabafos” de “resposta a atos de que era vítima” a autora, com a seguinte argumentação:


“(…)
O contexto em que as condutas da trabalhadora ocorreram, justificadoras para a entidade patronal do seu despedimento com justa causa, tem (…) de ser enquadrado num desgaste emocional e psicológico da trabalhadora que, após baixa e licença de maternidade por longo período, viria naturalmente mais fragilizada e não acompanhara a reestruturação efetuada na loja pela nova encarregada (aliás bastante criticada por algumas ex-trabalhadoras face ao sistema implementado pela anterior encarregada).

As consequências deste comportamento hostil, persecutório e reiterado da superiora hierárquica apresentam-se assim como menorizando as condutas da trabalhadora que apenas revelam revolta, mau estar psicológico e emocional que até a conduziram a procurar ajuda médica por estado depressivo originado por aquele comportamento completamente desajustado ao de um superior hierárquico.


(…)

As palavras por si proferidas e as alegadas “ameaças” apenas podem assim entender-se como “simples desabafos” e “resposta a atos de que era vítima, e não como ofensas à integridade física e moral da dita encarregada, sendo demonstrativas da fragilidade em que a trabalhadora se encontrava.

(…)

É, assim, o despedimento, que deve ser encarado como a ultima ratio, a sanção mais gravosa, porque determinante da cessação imediata da relação laboral sem direito a qualquer indemnização, totalmente desajustada não tendo o comportamento da trabalhadora, ao violar deveres de urbanidade e respeito para com a sua superior hierárquica (que lhe não poderiam ser de todo exigíveis sem mais face à atitudes provocatórias, humilhantes, atentatórias da dignidade da trabalhadora que era tratada como “mero objeto” e persecutórias desta), a gravidade suficiente que justificasse o seu despedimento.

(…)”.


32. Por fim, quanto à alínea d), estamos perante um facto que, numa primeira leitura, sugere um tipo de comportamento que não permite contemporizações.

Acontece que a factualidade provada não permite captar os precisos contornos da conduta da autora, sendo quase totalmente omissa quanto às circunstâncias concretas em que a mesma “apontou” a tesoura (cujas características, aliás, se desconhecem), nomeadamente no que concerne à sua intenção, sendo certo que nada permite concluir, para além do mais, que alguma tentativa de agressão ou real ameaça tenha estado associado a esse facto.

Apenas se sabe que este episódio teve lugar no “armazém da loja” – portanto num contexto de certo recato, não se mostrando provada qualquer repercussão, seja ao nível da empresa, seja ao nível do público que com ela se relaciona - e que a autora se encontrava “exaltada e enervada“.

Por outro lado, e determinantemente, também aqui não pode subvalorizar-se que a conduta da A. decorre de anteriores, sistemáticos e muito graves comportamentos da sua superiora hierárquica, que fortemente mitigam a sua culpa, pelo que, como já se referiu, não é possível integrar estes factos no conceito de justa causa de despedimento.


IV.


33. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, ficando a prevalecer, nos seus precisos termos, a decisão da 1ª instância.

As custas da revista e da apelação ficam a cargo da ré, repristinando-se igualmente o decidido na 1.ª instância quanto a custas.

Anexa-se sumário do acórdão.


Lisboa, 12 de Março de 2014

Mário Belo Morgado (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva


_________________________
[1] Todas as referências ao CPC são reportadas à versão mencionada no ponto n.º 11 do presente acórdão.

[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido,  não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem sequer vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 5, do mesmo diploma.
[3] Os autos tiveram início em 15.06.2012 e o acórdão recorrido foi proferido em 24.10.2013.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 312.

[5] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, 268-269.

[6] “Pagar”, “arrendar”, “emprestar”, “vender”, etc.

[7] Cfr. Anselmo de Castro, ibidem.

[8] Ibidem.

[9] V.g. Acs. de 23-09-2009, P. 238/06.7TTBGR.S1 (Bravo Serra), de 15.12.2011, P. 342/09.0TTMTS.P1.S1 (Pinto Hespanhol), e de 11.07.2012, P. 3360/04.0TTLSB.L1.S1 (Fernandes da Silva), in www.dgsi.pt. Todos os acórdãos citados sem menção em contrário promanam do STJ e encontram-se disponíveis no mesmo sítio.
[10] Proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1 (Mário Pereira).

[11] Referem-se a este diploma todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.

[12] Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 152 e 161 – 162.

[13] Ob. cit., p. 410/(1079) e 412.    
[14] V.g., a animosidade decorrente de diferenças políticas, culturais ou religiosas, a rivalidade inerente à dinâmica competitiva no local de trabalho, desafio, inveja, desconfiança, ambição, deslumbramento pelo exercício do poder, antipatia e insegurança.

[15] “Transformando-se num mecanismo mais expedito e económico da empresa se desembaraçar de trabalhadores que, por qualquer razão, não deseja conservar”, na expressão de Júlio Gomes, ibidem, p. 431.

[16] Direito do Trabalho, Almedina, 16ª edição, p. 160.

[17] Direito do Trabalho, I, 2007, p. 436.

[18] Ibidem.

[19] Cfr. Pedro Romano Martinez (e outros), Código do Trabalho Anotado, 9ª edição, p. 187, e Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, 2011, p. 450.

[20] Júlio Manuel Vieira Gomes, ob. cit., p. 436.

[21] Em regra, mas não necessariamente, sendo – no limite - configuráveis quadros de assédio resultantes de repetidas e graves “descargas emocionais do assediador, sem qualquer intenção [específica] de sujeição da vítima” – cfr. Rita Garcia Pereira, Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho, Coimbra Editora, 2009, p. 100.

[22]Da boa-fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina,1997, I, p. 586.
[23] Para além de deveres principais, deveres secundários e deveres acessórios de conduta, na relação obrigacional coexistem ainda outros elementos, como direitos potestativos, ónus, encargos, faculdades e exceções.

[24] Cfr., entre outros, arts. 14º, 15º, 16º, 24º, 25º, 29º, 126º, 127º e 128º do CT.
[25] Constituem o núcleo da relação obrigacional em ordem à realização do seu fim, definindo o tipo de contrato.
[26] Como ao contrato pode estar associada toda uma série de deveres integrantes da relação obrigacional (paralelos à prestação principal), pode por exemplo acontecer que dois contratos de compra e venda de determinado bem, com a mesma estipulação de direitos e deveres, produzam relações jurídicas diversas (“basta pensar numa venda de um objeto (…) a um leigo (…) e a um conhecedor, com o surgimento, no primeiro caso, de deveres de esclarecimento e informação”) – cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, Almedina,1982, p.315.

[27] Por vezes, são mesmo deveres pré ou pós-contratuais, uma vez que eles não decorrem do contrato em si mesmo, mas da interação pessoal/social que, por via do contrato, se gera entre as partes (razão pela qual este tipo de deveres pode ter implicações mesmo em caso de anulação do contrato), compreendendo-se, pois, que o seu alcance/conteúdo concreto dependa, entre outros fatores, da natureza, intensidade, duração e estabilidade dessa interação e, por outro lado, dos riscos que lhe estão associados - cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., p.337 - 349.
[28] António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 603 e ss., e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Direito das Obrigações, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2009, p. 478 – 485.
[29] V.g. cuidado e segurança.
[30] V.g. colaboração, cooperação e segredo.
[31] V.g. aviso, informação e prestação de contas.

[32] Cfr., neste sentido, Júlio Manuel Vieira Gomes, ob. cit., p. 439, e Rita Garcia Pereira, ob. cit., p. 220 – 221.

[33] Na expressão de Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª edição, 1038 – 1039.

[34] In Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Representantes Legais ou dos Substitutos, BMJ 72/259 e ss.

[35] P. 260 - 261.

[36] P. 261.

[37] A Imputação Objetiva na responsabilidade Contratual, in Revista de Direito e Economia, Ano XV, p. 80.

[38] Ibidem, p. 83.

[39] Como exemplifica a autora, na nota 141, citando Ana Prata.

[40] Ibidem, p. 94.

[41] Ibidem, p. 95 – 96.

[42] Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 821.

[43] Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, ob. cit., p. 738 – 739.

[44] Cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, ob. cit., p. 448 e 951.