Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1859/11.1TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: SERVIDÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / SERVIDÕES PREDIAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º2, 1288.º, 1543.º, 1547.º, 1564.º, 1565.º.
Sumário :
I - A servidão quando se constitui por usucapião há-de ter o desenho que teve na data de início da posse onde se estriba a aquisição – arts. 1547.º e 1288.º do CC.

II - Tendo estado na génese da aquisição da servidão por usucapião um caminho marcado e delimitado, em toda a sua largura e extensão, pela passagem de pessoas e carros de bois, a forma como os proprietários colhem e fruem todas as utilidades dos seus prédios, utilizando o caminho para a eles acederem, há-de todavia ser hoje radicalmente diferente do que era há 20 e muitos mais anos atrás.

III - A servidão dos novos tempos já não pode consubstanciar-se na “passagem a pé e com carros de bois” mas é exercitada por máquinas agrícolas ou veículos motorizados, sejam automóveis ou motociclos; é assim que deve ser hoje entendido o conteúdo de uma qualquer servidão de passagem.

IV - A normalidade e previsibilidade a que se refere o comando ínsito no art. 1565.º, n.º 2, do CC, bem pode compreender a transformação de uma utilização rústica numa utilização urbana, se esta transformação se contiver dentro dos limites da evolução da propriedade para aquele concreto local e aquele tipo de superfície.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



AA e mulher BB

intentaram, no Tribunal Judicial de Barcelos, em processo que foi distribuído ao 2º Juízo Cível e recebeu o nº1859/11.1TBBCL, contra

    CC e mulher DD

     acção declarativa, na forma ordinária, pedindo que os RR fossem condenados a:

reconhecerem que o caminho referido nos arts. 16º a 18º da p.i. é público, no sentido de estar ao serviço e para utilidade de todos;

desobstruírem tal caminho, deixando-o inteiramente livre de obstáculos em toda a sua extensão e em largura não inferior a três metros e meio, de modo a que toda a gente possa lá passar como quiser e quando quiser;

absterem-se de praticar qualquer acto que o perturbe, impeça ou diminua livre utilização por toda a gente de tal caminho.

Ou, subsidiariamente:

reconhecerem que existe um direito de servidão de passagem, adquirido por usucapião, a onerar o prédio dos réus a favor do prédio dos autores referido no art.1º da petição inicial;

desobstruírem o referido caminho deixando-o inteiramente livre de obstáculos, em toda a sua extensão e largura não inferior a três metros e meio, de modo a que os AA ou quenquer que se desloque ao seu prédio, possa lá passar como quiser e quando quiser;

absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe, impeça ou diminua a livre utilização de tal caminho por parte dos autores ou de quem se dirija ao prédio deste.

Ou, subsidiariamente:

ser constituída servidão legal de passagem, a onerar o prédio dos réus e em favor do prédio dos autores, com a caracterização circunstanciada, nomeadamente nos arts.73º a 75º da p.i.;

desobstruírem tal caminho deixando-o inteiramente livre de obstáculos, em toda a sua extensão e largura não inferior a três metros e meio, de modo a que os AA ou quenquer que se desloque ao seu prédio, possa lá passar como quiser e quando quiser;

absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe, impeça ou diminua a livre utilização de tal caminho por parte dos autores ou de quem se dirija ao prédio deste.

Alegaram, em suma:

são proprietários do prédio – rústico - que identificam no art.1º da p.i. e os réus proprietários de um prédio urbano e um prédio rústico prédios estes situados nas imediações do primeiro;

existe um caminho público a delimitar o prédio dos autores e o prédio rústico dos réus, caminho esse que serve ambos os prédios;

o qual é o único meio de acesso ao prédio dos autores e está afecto ao uso directo de todas as pessoas da freguesia há mais de 100 anos, que o usam com o conhecimento de todos e sempre na convicção de que o dito caminho é público, o mesmo acontecendo com os autores e seus antecessores;

em Fevereiro de 2011, os réus começaram a ocupar o dito caminho, lavrando-o juntamente com o seu prédio rústico, eliminando os seus vestígios e implantando pedras de grande porte, inviabilizando o acesso de qualquer veículo ao prédio dos autores;

de qualquer modo - dizem os autores - por si e por seus antepossuidores, já vêm utilizando o referido caminho para acederem ao prédio identificado no art. 1º da p.i., há mais de 100 anos, de forma ininterrupta, sem oposição de ninguém, na convicção que sobre o referido caminho exercem um direito próprio de passagem;

por fim – dizem ainda os autores - o seu prédio é um prédio encravado, pelo que gozam da faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem ao abrigo do art.1550º do CCivil, sendo certo que atentando na configuração dos circundantes, a servidão descrita constituirá encargo menos oneroso para os réus.

Contestaram os RR (fls. 50) esgrimindo a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e, impugnando a essencialidade do que os AA alegaram na petição inicial, sustentaram por sua vez:

o prédio dos autores foi servido por acesso de utilização sazonal de ligação à via pública, que iniciava junto à estrada e se desenvolvia em linha recta sobre o prédio rústico dos réus, ao longo da extrema murada do seu prédio urbano, acesso esse que em tempos também onerou o prédio dos autores, pois que o atravessava;

na sequência de diversas alterações dos prédios confinantes, a sul, o referido acesso termina hoje no prédio dos autores;

por mais de 50 anos os réus e seus antepossuidores deram passagem aos proprietários dos prédios situados a sul, que pretendiam aceder às suas bouças, a pé ou com carro de bois, para recolherem a madeira e apenas nos anos em que tal ocorria, acesso esse com largura não superior a 1,70 m em todo o seu cumprimento;

isso não acontece há mais de 25/30 anos.

 Por outro lado,

os réus sempre cultivaram a totalidade do seu prédio rústico, não obstante terem de ceder a passagem àqueles prédios encravados;

o prédio dos autores não é encravado, já que o acesso do prédio dos autores à via pública pode ser feito através do prédio situado a nascente, conhecido como o prédio do Eng. EE, prédio através do qual se alcança a via pública de forma mais rápida;

esse prédio é terreno de mato, enquanto o terreno dos réus é de lavradio, pelo que seria sempre mais oneroso para os réus a constituição de servidão sobre o seu prédio;

há cerca de 20 anos que o terreno dos autores não tem nem mato, nem pinheiros, pelo que desde essa data que não é usado aquele direito de passagem.

Responderam os AA (fls. 64).

Foi elaborado (fls. 80) despacho saneador que, além do mais, julgou improcedente a invocada excepção da ineptidão e fixou os factos assentes (o facto C mais tarde rectificado por despacho de fls. 238) e alinhou a base instrutória.

Efectuado julgamento, com respostas nos termos do despacho de fls. 296, foi proferida a sentença de fls. 306 a 319 que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

A) declarar que existe o direito de servidão de passagem a pé, com carro de bois e tractor, adquirido pelos autores por usucapião, a onerar o prédio rústico dos réus, inscrito na matriz rústica da freguesia de ... sob o nº …º, a favor do prédio rústico dos autores, descrito na CRP de Barcelos sob o nº …/20081001, sobre uma faixa de terreno que se inicia no lugar dos Visos, a poente do prédio dos réus, começando em curva junto à estrada municipal (Rua …), seguindo depois em linha recta no sentido norte/sul, sobre o prédio rústico dos réus ao longo da extrema murada do seu prédio urbano, terminando no prédio dos autores, com 2,5 metros em toda a sua extensão;

B) condenar os autores a reconhecerem tal direito de servidão de passagem e a desobstruírem tal caminho, deixando-o livre de obstáculos em toda a sua extensão;

C) absolver os réus dos pedidos formulados nas al. a) a c);

D) não conhecer, porque prejudicado, o 2º pedido subsidiário.

Inconformados, os AA interpuseram ( fls. 325 ) recurso de apelação mas o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de fls.600 a 611, datado de 15 de Setembro de 2014, sem voto de vencido, julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.

Ainda inconformados, os autores/apelantes vêm agora (fls. 634 ) interpor recurso para este Supremo Tribunal uma vez que – dizem – a « oposição entre acórdãos é fundamento para o presente recurso, nos termos do art.672º, nº1, al. c ) do CPCivil ) » e, « sobre esta questão fundamental de direito | a questão de saber se em caso de transformação de prédio rústico em urbano a servidão constituída para ser utilizada a pé, de carros de tracção animal ou tractores possa ser utilizada por outros veículos automóveis | o acórdão do qual aqui se recorre está em contradição com outros, designadamente com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/12/2002 ( Rosa Tching, proc. nº1178/02-2 ) ».

À invocação do art.672º, nº1, al. c) do NCPCivil, foi mandado subir o processo ( fls. 707 ) a este STJ, concretamente à formação desenhada no nº3 deste mesmo artigo. Que concluindo pela existência da contradição invocada, admitiu a revista … excepcional.

Na sua alegação recursiva, os recorrentes CONCLUEM:

a) …

b) - O espírito do legislador, ao conceder aos donos dos prédios encravados a faculdade de exigirem passagem através dos terrenos vizinhos, foi permitir uma exploração económica normal dos prédios de modo a que possam ser livremente fruídos pelos seus proprietários;

c) - A alteração da natureza do prédio dos Autores/Recorrentes, de rústico para urbano, configura alteração natural e previsível, podendo qualquer prédio rústico, a determinada altura, obter capacidade construtiva;

d) - A actualização dos veículos não traduz um acréscimo de qualquer encargo ou prejuízo para os Recorridos, pois que, como se sabe, os veículos automóveis são, em regra, mais silenciosos que os tractores, e provocam menos estragos no solo;

e) - Tendo os Recorrentes peticionado o reconhecimento do direito de passagem como quiserem e quando quiserem, nesta designação estão obviamente incluídos os veículos automóveis e motociclos, pelo que deveria a sentença recorrida ter reconhecido a actualização da servidão para a passagem daqueles veículos, consentânea com a natureza urbana do agora prédio dos Autores;

f) - Impõe-se, assim, a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que considere que a passagem de tais veículos, ainda que não se encontre abrangida pelo respectivo título constitutivo, reconheça que, em face da natureza actualmente urbana do prédio dos Recorrentes, a actualização que consagre a passagem de tais veículos automóveis de molde a que os Recorrentes possam fruir das utilidades normais e previsíveis do seu prédio;

g) - O acórdão do Tribunal a quo violou os artigos 1564.° e 1565.° do Código Civil.

h) - A sentença proferida em 1ª instância, ao considerar prejudicado, em face da procedência parcial do primeiro pedido subsidiário, o pedido de constituição de um direito de servidão de passagem sobre o prédio rústico dos Recorridos, violou os artigos 1550.° e ss. do Código Civil, sendo nula nos termos do artigo 615.° nº 1, alínea d), do NCPC;

i) - Diz-se pedido subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso do pedido principal não obter acolhimento;

j) - Perante a improcedência do pedido principal, entram em jogo os pedidos formulados a título subsidiário, apresentados na petição inicial por ordem de preferência, pelo que competia ao Tribunal considerar o último pedido efectuado subsidiariamente, sendo essa, como é notório, na medida em que é esse o fim último visado pela acção, ou seja, a fruição das utilidades normais do seu prédio urbano;

k) - Está assente que o prédio dos Recorrentes, de natureza urbana, se encontra numa situação de encrave em virtude da impossibilidade de ao mesmo aceder com veículos automóveis, e assim satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante;

1) - A procedência parcial do primeiro pedido subsidiário revela-se mais prejudicial para os Recorrentes do que o conhecimento do último pedido subsidiário, através do qual peticionam a constituição de uma servidão legal de passagem em caso de encrave do seu prédio, sendo esse o verdadeiro interesse perspectivado com esta demanda;

 m) - A sentença proferida em lª instância, tendo deixado de se pronunciar sobre uma questão que lhe foi colocada à apreciação, como é o caso do pedido de constituição de uma servidão legal de passagem, violou os artigos 1550.° e ss. do Código Civil, sendo ainda nula por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615.°, nº 1, alínea d), do NCPC, o que expressamente se invoca com as legais consequências;

n) - O Tribunal a quo deveria ter declarado nula a referida sentença, por omissão de pronúncia quanto ao pedido subsidiário de constituição de uma servidão legal de passagem extensiva a veículos automóveis, a onerar o prédio rústico dos RR., inscrito na matriz rústica da freguesia de ... sob o nº…°, em favor do prédio actualmente urbano dos AA., nos termos nos termos do artigo 615° nº1 alínea d) do NCPC, conjugado com o artigo 1550° e ss. do Código Civil, e substituída por outra que conhecesse do mérito do indicado pedido subsidiário, concedendo-lhe, porque sustentado na prova produzida, o merecido provimento.

Contra – alegando ( fls. 654 ), CONCLUEM por sua vez os recorridos:

1 - Decidiu-se bem negando-se provimento ao recurso e o enquadramento técnico-jurídico não merece qualquer reparo, tendo sido feita boa justiça;

2 - A questão de saber se o prédio dos AA-Recorrentes tem natureza rustica ou urbana não é objecto do processo;

3 - A natureza urbano do terreno continua, nesta instância, a ser "uma questão nova que nem sequer é aqui admissível entrar em discussão" (sic., pág. 19,2° §, do Acórdão referido);

4 - Sendo evidente, como o Acórdão recorrido bem realça, que os AA-Recorrentes descrevem o seu prédio no item 1° da petição inicial como prédio rustico;

5 - Não está alegado, não está quesitado e não está provado que o terreno dos AA-Recorrentes tenha natureza urbana;

6 - Mas está provado que o acesso a esse terreno rústico é feito por caminho particular da propriedade dos RR-Recorridos;

7 - Os AA-Recorrentes iniciaram a construção no seu terreno rústico, já depois de findos os articulados e do saneamento do processo;

8 - A natureza urbana do prédio, ou a sua declaração como urbano, estando ausente do pedido e da causa de pedir, inviabilizando o seu conhecimento pelas instancias, mais não é que uma aspiração carente de fundamento de fato e de direito;

9 - A matéria de facto que resultou provada da discussão da causa, mereceu a mesma apreciação de direito nas instâncias, quer quanto à qualificação do caminho, quer quanto à inexistência da alegada nulidade resultante da eventual omissão do conhecimento dos pedidos subsidiários formulados.

Estão cumpridos os vistos legais.

Há que apreciar e decidir.

FACTOS tais como vêm fixados no acórdão recorrido:

1. Encontra-se inscrito na matriz, sob o artigo …º, a favor do autor marido, o prédio rústico da freguesia de …, concelho de Barcelos, composto por terreno de lavradio, sito em Carvalhal ou Visos, com a área constante da matriz e descrição predial de 440 m2, e que confronta do Norte com CC e Caminho Público, do Sul com FF - Confecções, Lda., do Nascente com Caminho Público e de Poente com GG, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º …/20081001 (Al. A dos Factos Assentes).

2. O prédio identificado em 1º adveio à posse e propriedade dos autores por compra efectuada a HH e mulher II, mediante acto notarial celebrado em 07 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial de Barcelos, do Notário JJ, extraída de fls. 4 a fls. 5 do livro de notas para escrituras diversas n.º 252-A (Al. B dos Factos Assentes).

3. Por sua vez, aqueles vendedores HH e esposa haviam adquirido o prédio identificado em 1º por compra efectuada a KK e mulher LL, por acto notarial outorgado em 26 de Novembro de 1982, no antigo Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, extraída de fls. 55 verso a fls. 56 verso do livro de notas para escrituras diversas n.º 95-D (Al. C dos Factos Assentes).

4. E aquele KK e esposa, haviam adquirido o prédio identificado em 1º mediante Inventário facultativo registado sob o n.º 20/70 por óbito de MM, que correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos (Al. D dos Factos Assentes).

5. O prédio referido em 1º encontra-se registado a favor dos autores na CRP de Barcelos (Al. E dos Factos Assentes).

6. Os réus são proprietários de dois prédios sitos nas imediações do prédio identificado em 1, designadamente de um prédio urbano – que aliás constitui a sua residência – inscrito na matriz predial sob o n.º 191 (Al. F dos Factos Assentes).

7. E de um prédio rústico, descrito na matriz da dita freguesia de ..., sob o n.º … (Al. G dos Factos Assentes).

8. O prédio urbano dos réus confronta com o prédio dos autores referido em 1 do seu lado Sul (Al. H dos Factos Assentes).

9. A delimitação entre o prédio urbano pertença dos réus e o prédio dos autores está delimitada por um muro (Al. I dos Factos Assentes).

10. O autor marido, sentindo-se lesado no seu direito, participou de imediato às forças policiais que os réus haviam mandado lavrar o caminho, conforme melhor se apura do NUIPC n.º 249/11.0GBBCL (Al. J dos Factos Assentes).

11. O autor marido participou à GNR que no dia 12-2-2011 os proprietários do terreno do lado, os aqui réus, descarregaram pedras na sua propriedade e tinham um tractor a impedir a sua passagem, dando origem ao auto de ocorrência n.º 69/1 (Al. K dos Factos Assentes).

12. Os autores, por si, seus antecessores e ante proprietários, há mais de vinte anos, que colhem e fruem de todas as utilidades do prédio identificado em 1, à vista e com conhecimento de todas as pessoas, designadamente dos réus, sem a oposição ou embaraço de quem quer que seja, ininterruptamente, convictos de estarem a exercer um direito próprio, sem prejudicar ou lesar direitos alheios, em tudo se comportando como donos (resposta aos quesitos 1º a 5º).

13. O prédio urbano propriedade dos réus – matriz urbana n.º ... - confronta com o prédio dos autores, identificado em 1, do seu lado Sul/Nascente (resposta ao quesito 6º).

14. O prédio rústico dos réus - matriz rústica nº … - também confronta, em parte, com o prédio dos autores a sul/nascente (resposta ao quesito 7º).

15. Actualmente existe um "caminho" que se inicia no lugar dos Visos, a poente do prédio dos réus, começando em curva junto à estrada municipal (Rua …), seguindo depois em linha recta no sentido norte/sul, sobre o prédio rústico dos réus ao longo da extrema murada do seu prédio urbano, terminando no prédio dos autores (resposta aos quesitos 9º, 10º, 11º, 12º).

16. Esse caminho é o único meio de acesso ao prédio identificado em 1 (resposta ao quesito 13º).

17. Pelo menos desde a década de 1940 até há cerca de 25/30 anos, as pessoas que se queriam deslocar às bouças ali existentes para sul e nascente transitavam pelo referido "caminho" para ir buscar mato e lenha, sem qualquer oposição de alguém e com o conhecimento de toda a gente (resposta aos quesitos 16º, 17º, 18º, 19º).

18. Há mais de vinte anos que os autores e seus antecessores utilizam o caminho para acederem ao prédio referido em 1 (resposta ao quesito 20º).

19. O que sucede de forma contínua, ininterrupta e reiterada, sem oposição de quem quer que seja, designadamente dos réus, na convicção de sobre o referido acesso exercerem um direito próprio de passar, que se verifica há mais de 20 anos (resposta aos quesitos 21º, 22º, 23º, 24º).

20. O caminho em questão esteve assinalado no solo e delimitado em toda a sua largura e extensão, de forma visível, pela passagem de pessoas e carros de bois (resposta aos quesitos 25º e 26º).

21. Tal caminho servia os proprietários dos prédios encravados situados a sul e a nascente (resposta ao quesito 27º).

22. Em inícios de Fevereiro de 2011, os réus lavraram o dito caminho juntamente com o seu prédio rústico (art. …º) - (resposta aos quesito 29º e 30º).

23. Dessa forma eliminaram os vestígios da existência do referido caminho (resposta ao quesito 31º).

24. No dia 12 de Fevereiro de 2011, os réus, procederam, auxiliados por um tractor agrícola, a nova delimitação do referido caminho, tendo para o efeito procedido a escavações (resposta ao quesito 32º).

25. E, posteriormente, à soterração de pedras de considerável dimensão, inviabilizando dessa forma a possibilidade de remoção das mesmas (resposta ao quesito 33º).

26. Com a colocação das pedras, o caminho ficou delimitado a cerca de dois metros de largura (resposta ao quesito 35º e 36º).

27. A execução dos referidos trabalhos eliminou os vestígios do referido caminho (resposta ao quesito 37º).

28. Os réus reivindicam a privacidade daquele acesso (resposta ao quesito 40º).


~~


Para um mesmo e único “pretendido” caminho – o que descrevem nos artigos 16º a 18º da sua petição inicial e “transitou” para os pontos 10º, 11º e 12º da base instrutória – os AA faziam um triplo pedido, em escada subsidiária: que fosse julgado caminho público; ou que – no segundo degrau da escada – fosse reconhecido como uma servidão de passagem adquirida por usucapião; ou – no fundo – que com ele fosse constituída uma servidão legal de passagem.

O primeiro degrau foi julgado improcedente, mas não é contra essa improcedência que os AA reagem.

O que reagem é contra o facto de o tribunal entender prejudicado o conhecimento do terceiro degrau. Mas é óbvio que assim mesmo tinha de ser, porque o segundo degrau foi declarado procedente.

Num e noutro dos degraus é de um e de um só e desenhado caminho que se conhece. E quando se julga procedente o pedido quanto ao segundo, não há que conhecer já do terceiro.

Coisa diferente seria se diferente fosse o desenho do caminho para um e outro dos degraus do conhecimento. Mas aqui não - até onde se desenhou ( com o julgamento ) o caminho, o pedido foi procedente desde logo como servidão de passagem adquirida por usucapião, como pediam os AA. Sem necessidade, por isso, de descer até ao terceiro degrau, cujo conhecimento fica inevitavelmente prejudicado.

Poderia pensar-se que há um mais entre o desenho a que se chegou – direito de servidão de passagem a pé, com carro de bois e tractor – e o que os autores pedem no ponto 3 da sua escada subsidiária – que os AA ou quenquer que se desloque ao seu prédio possa lá passar com quiser e quando quiser, e que se impunha portanto o conhecimento desse mais quando a procedência do ponto 2 da escada se fica por um menos.

Só que não há nenhuma estrutura petitória que sustente factualmente esse mais como algo de autónomo, que deva ser conhecido em 3 quando não for englobado em 2. Tudo está dentro de um mesmo pedido que o direito deva reconhecer ou de um modo ou de outro modo ou de um outro modo, como caminho público, ou como servidão de passagem ou como servidão legal a constituir.

E, se é assim, a medida do reconhecimento do direito em 2 afasta a possibilidade do conhecimento em 3 até porque – repete-se – não há factos que sustentem um agravamento que façam somar ao que se declarou … o que vem a mais.

Nenhuma censura há que fazer ao acórdão recorrido quando declara isso mesmo e quando, em consequência, não vê qualquer nulidade na sentença que exactamente isso mesmo afirmara.


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Colocada como objecto do recurso está a questão do concreto conteúdo da servidão que foi declarada ter sido constituída por usucapião como encargo do prédio dos RR em benefício do prédio dos autores.

O pedido dos AA - que descrevem o seu prédio nos arts.1º e 2º da petição inicial como «prédio rústico da freguesia de ..., do concelho de Barcelos, composto por terreno de lavradio que adquiriram por compra em 7 de Novembro de 2008» - era, como se viu, o de que se reconhecesse a existência de uma servidão de passagem, com « largura não inferior a três metros e meio, de modo a que os autores ou quenquer que se desloque ao seu prédio, possa lá passar como quiser e quando quiser »; a sentença ( e o acórdão recorrido ) declaram a existência do « direito de servidão de passagem a pé, com carro de bois e tractor, adquirido pelos autores por usucapião, a onerar o prédio rústico dos RR |…| com 2,5 metros em toda a sua extensão »

A procedência da acção é, assim, claramente restritiva em relação ao pedido formulado.

Acontece que não vem posta em causa, no recurso, a restrição relativa à largura do caminho.

É, pois, essa parte da decisão questão que nos não ocupa – o caminho que suporta a servidão de passagem tem 2,5 metros de largura em toda a sua extensão. E a servidão, em si mesma, está aceite pelos réus.

Pergunta-se então – o direito de passar só pode ser exercitado a pé, com carro de bois e tractor, como se escreve na sentença confirmada no acórdão recorrido? Ou, como pretendem os recorrentes, poderão exercitá-lo « como quiserem e quando quiserem, nesta designação incluídos os veículos automóveis e motociclos »?

Um a servidão é – art.1543º do CCivil – o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.

Ora um encargo é um encargo e – aqui, como em qualquer outra situação – há-de ser o encargo que conste do respectivo título constitutivo.

Quando, como aqui, a servidão se constitui por usucapião - art.1547º, nº1 do CCivil - o encargo há-de ter o desenho que teve na data do início da posse onde se estriba a aquisição – art.1288º.

E nessa altura – são os factos – o prédio dos AA, o prédio dominante, é um prédio rústico composto por terreno de lavradio, onde eles, AA, colhem e fruem de todas as utilidades e há mais de vinte anos eles e os seus antecessores utilizam o caminho para a ele acederem, um caminho que esteve assinalado no solo e delimitado em toda a sua largura e extensão, de forma visível, pela passagem de pessoas e carros de bois.

Foram estes factos, que estiveram na génese e no nascimento da posse que conduziu à aquisição por usucapião – um caminho sempre marcado no solo e assinalado e delimitado em toda a sua largura e extensão, de forma visível, pela passagem de pessoas e carros de bois – que determinaram a vertente decisória da procedência da acção, no segundo degrau a que já fizemos referência, no respeito indeclinável pelo disposto nos arts.1564º - as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título – e 1565º, nº1 – o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.

Só que a forma como os proprietários colhem e fruem de todas as utilidades dos seus prédios, utilizando o caminho para a eles acederem, é hoje radicalmente diferente do que era há vinte anos e muito mais anos atrás.

De modo que a normalidade e previsibilidade – veja-se o nº2 do art.1565º - dessa fruição não tem nada a ver, hoje, com o que ficou assinalado e delimitado no solo em toda a sua extensão, de forma visível – a passagem de pessoas e carros de bois.

Hoje as pessoas passam, para colher e fruir todas as utilidades dos seus prédios (seja qual for a natureza deles) a pé, de tractor, em veículos automóveis ou motociclos – é assim que as pessoas se deslocam hoje, mesmo em meios rurais que ainda restam no país.


Os bois, “ nobres e mansos, os boizinhos” que encheram os campos (e a poesia!) do país, foram afastados pela evolução tecnológica no modo de vida das populações, ainda que rurais, de modo que a servidão dos novos tempos já não pode « consubstanciar-se na passagem a pé e com carro de bois » mas é exercitada, sem que isso possa ser considerado um agravamento não normal e previsível, por máquinas agrícolas ou veículos motorizados, sejam automóveis sejam motociclos. É assim que as pessoas se deslocam para os seus afazeres, e assim deve ser hoje entendido o conteúdo de uma qualquer servidão de passagem.

É com este sentido que o recurso interposto pelos autores merece procedência. Não, como eles pretendem, de poderem passar « como quiserem e quando quiserem » mas no sentido de que, no uso e fruição do seu prédio, e apenas para esse uso e fruição, podem utilizar o tractor e outros veículos motorizados, sejam automóveis sem motociclos.

Apenas para esse uso e fruição, sejam eles quais forem, desde que não ultrapassem a normalidade e previsibilidade do comando do art.1565º, nº 2, que bem podem compreender a transformação de uma utilização rústica numa utilização urbana, se esta transformação se contiver dentro dos limites da evolução da propriedade para aquele concreto local e aquele tipo de superfície.

In casu a procedência do recurso, nos termos atrás mencionados, tem a ver com as considerações que antecedem e não com a alegação da alteração da natureza do prédio deles, autores, de rústico em urbano pois que, como bem acentuam as instâncias, esse é um facto inteiramente novo, que em nenhum momento, na petição inicial ou em momento processual posterior, apareceu com integrando a causa de pedir na presente acção.

Na verdade, a simples e não sustentada referência à transformação de um prédio rústico em urbano – veja-se o nº 2 do art.204º - sempre deixaria margem para perguntar: seria normal essa transformação? Seria previsível? Que transformação se verificou? Que concreto prédio urbano nasceu dessa transformação? Com que dimensão ou personalidade? Susceptível de um uso não especialmente penalizador para o prédio serviente ou, ao contrário, altamente agravador do encargo deixado nascer?

E sem as ( convenientes ) respostas a estas perguntas não poderia proceder, com essa base, um pedido de alteração do modo de exercício da servidão, tal como foi constituída.

A alteração que se aceita tem a ver, apenas e tão só, com o diferente modo de uso e fruição de qualquer prédio, que a vida vivida tem demonstrado que mudou radicalmente no quadro vivencial português.


D   E   C   I   S   à  O


Na procedência parcial do recurso,

concede-se em parte a revista, determinando-se que o direito de passagem que, onerando o prédio rústico dos réus, beneficia o prédio dos autores, pode ser exercido a pé, de tractor ou com veículos motorizados, sejam automóveis sejam motociclos.

Custas a cargo dos recorridos.


LISBOA, 05 de Novembro de 2015


Pires da Rosa (Relator)

Salazar Casanova

Lopes do Rego