Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
825/06.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
JUIZ
ERRO GROSSEIRO
CONDENAÇÃO
TESTEMUNHA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
Sumário : I - Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis.

II - O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a referida essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

III - Configura um erro grosseiro a condenação do lesado numa multa de montante superior a € 167 000 num processo crime em que interveio como testemunha indicada pela acusação.

IV - Provado que ao tomar conhecimento da decisão judicial em causa o autor ficou desvairado, deixou de comer e de dormir, esteve oito dias sem sair de casa, ficou ensimesmado e chorava, tomava sedativos para descansar, receou ficar na miséria, os seus cabelos da cabeça ficaram brancos e emagreceu, é indiscutível que o erro grosseiro de que foi vítima teve consequências danosas cuja seriedade não pode nem deve ser ignorada, já que estão situadas muito para além dos simples incómodos ou meros contratempos a que se expõe quem vive em sociedade.

V - Considerando que as dores físicas e morais infligidas ao autor não adquiriram carácter permanente, antes tendo uma duração relativamente curta, sem embargo da sua intensidade; ponderando o facto de não ter sofrido qualquer penhora ou diminuição patrimonial em resultado directo da errónea decisão judicial, para além de não transparecer dos autos que o caso tenha tido repercussão pública com reflexos negativos no seu bom nome e reputação; atendendo ainda a que, por via do recurso logo interposto e atendido em toda a linha, não precisou de esperar mais do que seis meses para ver reposta a legalidade e reconhecido jurisdicionalmente o erro que o lesou; e tendo em conta, finalmente, que este Supremo Tribunal tem fixado compensações que raramente ultrapassam os € 15 000, mesmo em casos de perdas mais significativas do que as sofridas pelo autor (por exemplo, perda da liberdade por prisão ilegal ou manifestamente infundada), deve a compensação de € 25 000 arbitrada pela Relação ser reduzida e estabelecida no montante de € 10 000 arbitrado na sentença da 1.ª instância.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

AA propôs uma acção ordinária contra Estado Português, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe: 

a) Os preparos que liquidou no recurso da decisão da 1ª instância, no valor de 178,00 €, acrescido de juros à taxa legal desde a citação e até integral pagamento;

b) O custo da certidão, junto como documento nº 1, no montante de 58,74 €, acrescido de juros à taxa legal desde a citação e até integral pagamento;

c) A quantia  de 83.670,06 €, a título de indemnização pelos danos morais que lhe foram causados;

d) Os juros vincendos, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, a calcular sobre o montante de indemnização arbitrado a final;

e) As custas e todas as demais despesas que venha a despender com esta acção, a liquidar a final.

Em resumo, alegou ter sido indicado como testemunha  pelo Ministério Público no processo  que  com  o  nº .../96.8JAPRT correu termos pela 8ª Vara Criminal de Lisboa, aí tendo comparecido e prestado depoimento.

No dia 13/4/04, e mediante prévia convocatória nesse sentido, compareceu na Esquadra da PSP, onde foi notificado da sentença proferida naquele identificado processo.

Tal sentença condenava-o a pagar ao Estado a quantia equivalente em euros a 33.548.681$00, condenação que não entendeu visto ter sido ouvido apenas como testemunha no processo.

Interpôs recurso da decisão, que veio a ser declarada inexistente por acórdão da Relação de Lisboa.

Em virtude daquela condenação, ilegal e ilícita, sofreu os danos patrimoniais e morais que discrimina e cujo ressarcimento pretende.

O réu contestou.

Por excepção, alegou a incompetência do tribunal em razão da matéria, sustentando que a jurisdição competente é a administrativa, e ainda a caducidade do direito accionado, por ter decorrido mais de um ano sobre o trânsito em julgado do acórdão da Relação de Lisboa que decidiu definitivamente a situação do autor.

Por impugnação, contrariou a versão dos factos invocados na petição inicial e concluiu pela improcedência da acção por entender que não foi cometido nenhum facto ilícito no exercício da função jurisdicional; isto porque a condenação do autor - que não desembolsou qualquer quantia - baseou-se na interpretação de normas de direito e na valoração dos factos e da prova.

O autor replicou, mantendo na íntegra a posição defendida na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção da incompetência material, mas procedente a excepção da caducidade e, em consequência,  absolveu o réu do pedido.

O autor recorreu e a Relação deu-lhe razão, tendo o Supremo Tribunal, por acórdão de 27/3/08, confirmado a decisão da 2ª instância que julgou improcedente a referida excepção. 

De novo na 1ª instância, fixou-se a matéria de facto assente e controvertida e conheceu-se dos pedidos formulados sob as alíneas a) e b) da petição, julgando-os improcedentes. Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente provada, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de 10.000 € a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até ao efectivo reembolso.

Ambas as partes apelaram.

Por acórdão de 14/6/11 (fls 558 e sgs) a Relação, depois de introduzir algumas modificações na matéria de facto, julgou totalmente improcedente a apelação do réu e parcialmente procedente a do autor, fixando a indemnização a pagar-lhe pelo Estado Português no montante de 25.000 €.

Deste acórdão pediram revista o réu e, subordinadamente, o autor.

O recurso do autor foi julgado deserto por falta de alegações (fls 597).

O réu, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:

1) - Estes autos têm a sua origem no processo comum colectivo n° .../96.8 JAPRT da 3ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa, em que o aqui autor foi condenado a pagar uma quantia monetária ao Estado ao abrigo do disposto no artº  111° n°s 2 e 4 do Código de Processo Penal, como “terceiro de má fé”;

2) - Tal decisão não pode considerar-se ferida de erro grosseiro, apesar de ter sido posteriormente revogada por uma outra decisão proferida, em sede de recurso, por um Tribunal Superior;

3) - A questionada decisão do colectivo que, à data, constituía a 3ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa, longe de poder atribuir-se a um lapso indesculpável, palmar, evidente, consagrando soluções absurdas, graves e claramente arbitrárias que demonstrem, sem margem para dúvidas, a negligência culposa do julgador, inscreve-se, pelo contrário no exercício da actividade de apreciação das provas e da interpretação e aplicação das normas que constituem o núcleo essencial da função de julgar, protegido e tutelado por normas legais constitucionais e infra-constitucionais, sendo, por isso, insusceptível de gerar responsabilidade civil, sob pena de ofensa aos princípios fundamentais da independência dos Tribunais e dos Juízes.

4) - Inexiste, pois, acto ilícito gerador de responsabilidade aquiliana por parte do Estado Português.

5) - Para além disso, tomando em conta a matéria dada como provada pelo Tribunal recorrido, não é possível extrair factos que estabeleçam o necessário nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos invocados pelo autor.

6) - Percorrendo os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido somente o quesito 1º -  “Ao tomar conhecimento da decisão judicial referida na alinea A) da matéria assente o autor ficou nervoso, deixou de falar e desmaiou...” - reflecte uma ténue coincidência meramente temporal entre ambos os elementos, o que é manifestamente insuficiente para considerar que a decisão de condenação do autor constitua causa adequada para provocar os efeitos danosos por ele alegados.

7) - De qualquer modo, e fazendo apelo aos legais critérios de previsibilidade, normalidade e razoabilidade, o segmento do acórdão da 3ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa de 1/3/04 que condenou o autor a pagar ao Estado a quantia em euros equivalente a 33.548.681 $00, jamais se poderia considerar causa adequada dos danos que invocou, pois o autor sempre admitiu como possível e até como provável a frustração do negócio de compra do imóvel realizado nas circunstâncias descritas no referido acórdão e que levaram aquele Tribunal a considerá-lo como “terceiro de má fé”. Tanto mais que o autor foi constituído arguido, como melhor consta de fls. 107 a 246 (que, por brevidade, aqui se reproduzem integralmente, para todos os efeitos);

8) - Dito de outra forma, o autor foi condenado como “terceiro de má fé”, não propriamente por ter “ido à missa”, mas por ter praticado, conscientemente, factos que à luz da legislação em vigor constituíam crime, cujo procedimento criminal, à data do mencionado acórdão da 3ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa, já estava legalmente prescrito.

9) - Ao condenar o réu Estado Português a pagar ao autor 25.000 mil € e juros a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrentes de acto praticado no exercício da função jurisdicional, o acórdão recorrido violou, por erro de aplicação e de interpretação, as normas dos artºs 203° e 216° da Constituição, 395° e 665° do CPC, 4° e 5° do Estatuto dos Magistrados Judiciais (aprovado pela Lei n° 21/85 de 30 de Julho e alterado pelas Leis n° 342/88 de 28 de Setembro, n° 2/90 de 20 de Janeiro, n° 10/94 de 5 de Maio, n° 44/96 de 3 de Setembro, n° 91/98 de 3 de Dezembro, n° 143/99 de 31 de Abril e n° 42/2005 de 29 de Agosto), 3° e 4° da LOFTJ (aprovada pela Lei n° 3/99 de 13/1 e alterada pelo Dec.-Lei n° 38/2002 de 8/3 e pelas Leis n° 105/2003 de 10/12 e n° 42/2005 de 29/8), 483° n° 1, 496° e 563°, todos do Código Civil.

10) - O acórdão agora em crise atribui uma indemnização superior, em 75%, à fixada na primeira instância.

Com base nestas conclusões pediu a revogação do acórdão da 2ª instância e a sua substituição por outro  que absolva o Estado Português da totalidade do pedido formulado pelo autor.

O autor contra alegou, defendendo a improcedência do recurso.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

1) O autor foi indicado pelo Ministério Público como testemunha no âmbito do Procº nº .../96.8JAPRT, que correu termos na 3.ª Secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa.

2) No âmbito do processo referido em 1) foi proferido acórdão em 1/3/04 que julgou parcialmente procedente a acusação, absolveu os arguidos da prática do crime de burla qualificada e condenou a arguida “BB, Ldª” pela prática de um crime de frustração de créditos da Segurança Social, previsto e punível pelos artºs 12º, nº 3, e 88º, nº 1, do RGIT, na pena concreta de 150 dias de multa à taxa diária de 25 euros. Mais condenou o autor AA a pagar ao Estado o equivalente em euros a 33.548.681$00, nos termos do art. 111º, nºs 2 e 3, do Código Penal.

3) Na sequência do recurso interposto pelo autor da decisão referida em 2) foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 28/9/04, nos termos do qual foi concedido provimento ao recurso e declarada a inexistência do acórdão recorrido na parte que condenou a testemunha - recorrente AA a pagar ao Estado o equivalente em euros a 33.548.681$00.

4) Ao tomar conhecimento da decisão judicial referida em 2) o autor ficou desvairado.

5) E deixou de comer e de dormir.

6) E esteve oito dias sem sair de casa.

7) E ficou ensimesmado e chorava.

8) E tomava sedativos para descansar.

9) E receou ficar na miséria.

10) E os seus cabelos da cabeça ficaram brancos.

11) E emagreceu.

b) Matéria de Direito

A questão posta no presente recurso tem a ver com a responsabilidade civil extra contratual do Estado.

Segundo o artº 22º da Constituição o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

De acordo com a generalidade da doutrina nacional, este preceito constitucional abrange na sua previsão a responsabilidade civil decorrente da actividade jurisdicional, para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos seus artºs  27º, nº 5 e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta). Isto porque, sem qualquer dúvida, o poder judicial é um poder do Estado, sendo certo que o vocábulo funções utilizado nesta norma da Constituição abrange todas as funções estaduais, incluindo, naturalmente, a jurisdicional. Além disso, como se refere no acórdão do STJ de 8.7.97 (CJSTJ, V, II, 153), embora este preceito não se inclua no Título II – Direitos, Liberdades e Garantias – o direito nele reconhecido deve ser visto em paralelo com as obrigações de indemnizar que podem derivar para o Estado do que se dispõe nos artºs 52º, nº 3, e 62º, nº 2, da Constituição, estendendo-se-lhe, por isso, o regime ditado pelo artº 18º, nº 3, em particular a sua aplicação directa, independentemente da existência de lei ordinária que o concretize [1].

Em qualquer caso, seria sempre defensável o entendimento de que, não tendo o legislador ordinário, na sequência desta norma constitucional, regulado a efectivação do direito de indemnização - delimitação do seu âmbito, caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, fixação do tribunal competente, etc subsistiria em vigor o diploma que anteriormente regulava a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública (o DL 48.051, de 21.11.67), na medida em que não contrarie os princípios constitucionais [2].

Certo é que, estando em causa conceber e caracterizar a responsabilidade civil do Estado  numa situação como a presente – sentença proferida no âmbito da jurisdição penal alegadamente eivada de erro de direito – é imperioso ter em conta as normas e princípios constitucionais, todos eles concretizados na lei ordinária, que definem a estrutura do poder judicial, a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes.

Assim, com interesse para o caso, é de referir que:

Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art.º 202º, nº 1, CRP);

Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art.º 202º, nº2, CRP);

Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art.º 203º CRP);

Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei (art.º 216º, nº 2, CRP);

Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art.º 3º, nº 2, do EMJ – Lei 21/85);

Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (art.º 4º, nº 1, do EMJ);

O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º 4º, nº 2, do EMJ);

Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões (art.º 5º, nº 1, do EMJ);

Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar (art.º 5º, nº 2, do EMJ);

Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, com fundamento em dolo ou culpa grave (art.º 5º, nº 3, do EMJ).

Perante as normas transcritas, já se vê como se torna difícil e delicado concretizar o comando do art.º 22º da Constituição, criando a tal “norma de decisão” a que os autores já citados aludem (cfr. nota 1), quando se trate de avaliar acerca da existência de um erro de direito cometido em acto jurisdicional e da sua relevância enquanto facto gerador de responsabilidade civil.

Com efeito, e desde logo, manifestação essencial do princípio da independência é a autonomia na interpretação do direito[3], ou, como refere o Prof. Gomes Canotilho, no exercício da jurisdição.  Segundo este autor, “qualquer relação hierárquica no plano da organização judicial não poderá ter incidência sobre o exercício da função jurisdicional. A existência de tribunais de hierarquia diferente e a consagração de órgãos de disciplina (Conselhos Superiores) também não perturba o princípio da independência do juiz no exercício da jurisdictio (Cfr. Ac. TC 257/98)”. Corolário de igual modo essencial do mesmo princípio é a independência funcional do juiz, que não significa outra coisa senão que no exercício da sua função jurisdicional ele apenas está sujeito às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas. Por outro lado, o princípio da irresponsabilidade  (cit. art.º 216º, nº 2, CRP) tem por finalidade assegurar a independência: como observa o autor acima citado, tal princípio transporta a ideia de que o juiz não pode ser condicionado na sua função pelo medo de uma punição ou pela esperança de um prémio.

A isto acresce que a ciência do Direito não é exacta: faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação. Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tri­bunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir em erro.

Daí que subscrevamos por inteiro as considerações que se seguem, inseridas no acordão deste tribunal a que atrás fizemos referência e cuja pertinência ao caso sub judice é patente:

“Sabido, como é, que as suas características de generalidade e abstracção distanciam cada vez mais a lei dos casos da vida, e considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz toma atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos dá sobre a interpretação da lei , bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada.

Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo‑se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o "iter" decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.

A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.

Por isso as legislações estrangeiras e as posições doutrinárias vêm exigindo uma culpa grave para permitir a formulação do necessário juízo de crítica sobre o decidido. E, designadamente, a Lei italiana n° 117/88 qualifica como culpa grave a grave violação da lei e a afirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluído ou assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se deva a negligência indesculpável do juiz ‑ cfr. Álvaro de Sousa Reis Figueira, Estatuto do Juiz /Garantias do Cidadão, Col. Jur. 1991‑11‑56.

Com interesse para acentuar esta vertente do problema é de referir que já em 1979 - Nótula sobre o artigo 208° da Constituição - Independência dos Juízes, in Estudos sobre a Constituição, 3° Volume, pg. 657 ‑ Castro Mendes escrevia: “Merecem, além disso, neste momento uma referência particular dois elementos especialmente nocivos e em Portugal a epidemia é grave e geral ao processo decisório: a sobrecarga de trabalho e a pressa. Estamos aqui de novo, perante factores impeditivos de uma decisão boa (ou largamente impeditivos, transformando a decisão justa em produto muitas vezes da sorte), embora não constitutivos de uma decisão má.

E é notório o agravamento dramático que desde então se tem sentido neste campo”.

…..

Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado.

Impõe‑se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis”.

A isto permitimo-nos acrescentar ainda o seguinte:

Os juízes não podem abster-se de julgar, invocando a falta ou a obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio. Mais: o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de que é injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (art.º 8º do CC). Pode suceder, deste modo, que o juiz se veja na contingência de aplicar um preceito legal a determinados factos em consequência duma interpretação da lei que não é, na sua perspectiva pessoal, a mais adequada, ou cujo sentido não lhe surge como unívoco. Em tais casos, que decerto não serão tão poucos quanto isso, com que propriedade poderá falar-se em erros de direito imputáveis ao juiz? Como discernir claramente, nessas e noutras hipóteses, onde começa e onde acaba a valoração dos factos e a interpretação das leis que constitui o cerne da função de julgar, constitucionalmente protegida de qualquer interferência? 

Tudo quanto se disse até ao momento demonstra a dificuldade a que nos referimos de início – a dificuldade, no fundo, de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos jurídicos mais avançados [4].

Talvez por isso, encontramos uma assinalável convergência de pontos de vista [5] quando o facto ilícito em causa é aquele que nos interessa no caso sub judice – erro de direito praticado num acto jurisdicional.

Podemos resumi-la nas seguintes proposições essenciais:

a) - Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis;

b) - Por tal motivo, o erro de direito - que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) - é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis (art.ºs 676º a 761º do CPC);

c) - O erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

Na sua monumental obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7ª edição, pág. 509) o Prof. Gomes Canotilho resumiu o estado da questão no nosso país, escrevendo o seguinte:

“Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados (de tribunais singulares ou colectivos) quando a sua actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. Por outro lado, é duvidoso que, fora dos casos de responsabilidade penal e disciplinar do juiz, se possa admitir a responsabilidade civil do juiz com a consequente possibilidade de direito de regresso por parte do Estado.

No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de negligência grosseira; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade for a dos casos previstos na lei; (5) denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais”  (o sublinhado é nosso).

Na situação ajuizada, e perante o elenco dos factos provados, afigura-se indesmentível a existência de erro grosseiro cometido pelo colectivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa na sen­tença de 1/3/04 e bem assim de todos pressupostos da responsabilidade civil extra­contratual do Estado, justificativos da sua condenação. Demonstram-no cabalmente a decisão da 1ª instância proferida neste processo, bem como o acórdão de 28/9/04 da Relação de Lisboa que declarou a inexistência da sentença criminal de 1/3/04. Articuladas com as precedentes reflexões, constituem por si só refutação suficiente e completa das conclusões do ora recorrente Estado Português.

Assim, no referido acórdão (facto nº 3 - certidão de fls 61 e sgs) pode ler-se o seguinte:

“...

Contudo, o recorrente, na qualidade de testemunha neste processo não pode ser condenado a pagar ao Estado o equivalente em euros a 38.548.681$00 tendo por fundamento legal o artº 111º, nºs 2 a 4, do Código Penal. Na verdade, o processo criminal é justo e equitativo, assegura todas as garantias de defesa, tem estrutura  acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar sujeitos ao princípio do contraditório - artº 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. E o conteúdo essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência nem nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar.

....

E contra o recorrente que neste processo teve a intervenção de testemunha não foi, como é óbvio, deduzida acusação ou formulado pedido de indemnização cível, nomeadamente pelo Estado, de modo que ao ser condenado a pagar ao Estado o equivalente, em euros, a 38.548.681$00 foram postergados as mais elementares garantias de defesa, exigência de processo justo e equitativo tal como está previsto no artº 32º da Constituição.

Mais à frente, depois de afirmar que o vício da inexistência se “caracteriza pela falta de requisitos mínimos próprios do acto processual”; que “o acto é inexistente quando não tem os requisitos essenciais imprescindíveis ao seu conhecimento jurídico; não tem existência face ao direito vigente”;  e que “a categoria da inexistência afasta-se do princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua sanação. A função da categoria da inexistência é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável”, conclui do seguinte modo: “No caso vertente, não há processo contra a testemunha recorrente AA, não sendo sujeito processual nos presentes autos e, daí, a inexistência do acórdão recorrido na parte em que o condenou a pagar ao Estado o equivalente, em euros, a 33.548.681$00”.

Na sentença proferida nestes autos, por seu turno, ponderou-se o seguinte:
“Em 1 de Março de 2004 foi proferido acórdão no processo que corria termos na 8ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção, em que se condenou o autor a pagar ao Estado o equivalente em euros a 33.548.681$00.
Assentou-se tal condenação no entendimento de o crédito da administração fiscal e da segurança social resultou frustrado devido a uma conduta ilícita criminalmente relevante consubstanciada na venda do imóvel da BB, com conhecimento do crédito tutelado pela lei penal.
Pelo facto criminal a BB foi acusada e veio a ser condenada.
Quanto ao autor, entendeu-se que, por via deste facto ilícito típico adquiriu um direito, o direito de propriedade sobre parte do imóvel, o que constitui vantagem patrimonial ilícita na estrita medida em que corresponde ao crédito frustrado.
O art. 111º nº 2 do CP manda que tal vantagem patrimonial ilícita adquirida pelos arguidos ou terceiros de má-fé deve ser declarada perdida a favor do Estado.
O autor, porque foi considerado terceiro de má-fé (pois conhecia o valor da dívida fiscal da BB ao tempo em que comprou o imóvel) foi condenado a pagar ao Estado a quantia supra referida, porque a vantagem patrimonial deste corresponde ao montante do crédito fiscal frustrado.
Foram estas as razões de facto e de direito aduzidas no acórdão para condenar o ora autor, ainda que este tivesse intervindo no processo apenas na qualidade de testemunha.
Na verdade, em sede de inquérito, o ora autor foi constituído arguido e ouvido nessa qualidade. Porém, por despacho de 17 de Janeiro de 2003, a Digna Magistrado do M.P titular do inquérito determinou o arquivamento do mesmo quanto ao arguido AA, por o procedimento criminal se encontrar extinto por prescrição, vindo depois a indicá-lo como testemunha na acusação que deduziu contra CC, DD, EE e BB, Lda.
O Tribunal da Relação de Lisboa chamado a pronunciar-se sobre a condenação do autor nos termos supra indicados, veio em Ac. proferido em 28/09/2004, já transitado, a declarar a inexistência do acórdão recorrido na parte em que condenou o autora, por entender que “foram postergadas as mais elementares garantias de defesa, exigência de um processo justo e equitativo, tal como está previsto no art. 32º da Constituição”.
O nosso ordenamento jurídico consagra como principio fundamental, com dignidade constitucional, o princípio do contraditório, princípio segundo o qual nenhuma prova pode ser aceite, nenhuma decisão deve ser tomada pelo julgador, sem que previamente se tenha dado ampla e efectiva possibilidade de defesa aos sujeitos processuais contra quem é dirigida de se pronunciar, de a discutir e de a valorar.
Como se refere no citado acórdão da Relação de Lisboa, o processo penal é um processo justo e equitativo, assegurando todas as garantias de defesa, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determina subordinados ao princípio do contraditório.
Ainda que se trate de questões que podem ser conhecidas oficiosamente não se deve proferir decisão condenatória sem se ter dado à parte a possibilidade de contraditar, sob pena de se constituir decisão surpresa que o legislador quis afastar por violar o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, na vertente da proibição da indefesa.
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A garantia de que ninguém pode ser condenado sem que a sua culpa fique provada no decurso de um processo público, em que todas as garantias de defesa lhe são asseguradas impõe-se de forma clara e indiscutível no nosso ordenamento jurídico, com particular expressão no processo penal.
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Condenar alguém que não é parte num processo, contra quem não foi deduzida qualquer acusação, sem processo contra si, que não tem a qualidade de sujeito processual mas intervém apenas como testemunha, e ainda sem lhe propiciar a possibilidade de se defender é contrário a tudo o que o nosso ordenamento jurídico exige e representa e configura grave violação da lei e a prática de acto antijurídico.
No caso submetido à apreciação deste tribunal essa é a situação apurada: o autor depôs como testemunha num processo criminal e acabou condenado a indemnizar o Estado na base de uma imputação que não lhe foi previamente comunicada, sem acusação, sem processo, e sem possibilidade de se defender da imputação que era feita.
O autor não foi acusado, não foi considerado agente do crime por quem é detentor da acção penal. O MP não deduziu acusação contra o autor, pelo que naquele processo nunca o mesmo poderia ser considerado como agente do crime para efeitos de ser condenado a entregar o valor sucedâneo do objecto apropriado.
E não podia ser condenado na qualidade de terceiro de má-fé pelo menos, não sem antes se poder defender de tal imputação – embora este tribunal entenda que nem mesmo nessa qualidade podia ser condenado, ou chamado ao processo para esse efeito.
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Consideramos, em face do que se deixa dito, que o julgador ao condenar o autor nos termos e circunstâncias descritas, agiu de forma ilícita, consistindo tal ilicitude em liminarmente se ter ignorado o direito do autor a ser ouvido e a poder defender-se da imputação feita, violação grave dos seus direitos consagrados na Constituição e na lei e que deu causa a uma decisão não conforme à lei vigente e, por isso, ilegal.
E com culpa do órgão jurisdicional?

Neste ponto apenas releva a culpa grave do juiz no cometimento da ilegalidade, que carece de ser “manifesta”, isto é, óbvia e evidente, não podendo escapar a um magistrado medianamente diligente e competente para o exercício das suas funções.

No caso presente entendemos que houve culpa do titular do órgão jurisdicional pois, pela sua capacidade e em face daquelas concretas circunstâncias podia e devia ter agido de forma diversa, e de forma diversa teria agido um juiz exigivelmente preparado e cuidadoso.

O princípio do contraditório e as garantias de defesa dos cidadãos são por demais conhecidas, afirmadas e presentes no nosso ordenamento jurídico para poderem não ser conhecidas e ignoradas”.

Resta dizer o seguinte:

- Quanto ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos ele está amplamente provado, sendo certo, de resto, que na sua vertente naturalística, única que o recorrente põe em questão no recurso, o STJ não pode sindicar a apreciação das instâncias, por se tratar de matéria de facto que escapa ao seu contrôle (artºs 722º, nº 2 e 729º, nº , do CPC). A demonstração do nexo causal resulta de ter sido considerado provado que foi o forte impacto emocional, o choque sofrido pelo autor ao tomar conhecimento da sentença que indevidamente o condenou a única causa dos males de que durante algum tempo ficou a padecer a nível físico e psíquico (factos 4 a 11);

- Quanto à indemnização arbitrada e seu montante, importa recordar, em primeiro lugar, que a lei manda atender à gravidade do dano - única directriz fornecida ao julgador pelo artº 496º, nº1, do CC. Ora, é indiscutível que o erro grosseiro de que o autor foi vítima teve consequências danosas cuja seriedade não pode nem deve ser ignorada, já que estão situadas muito para além dos simples incómodos ou meros contratempos a que se expõe quem vive em sociedade; qualquer pessoa normal, dotada de discernimento e sensibilidade medianos, ficaria chocada, perplexa e desorientada, no mínimo, ao tomar conhecimento de que num processo crime em que interveio como testemunha indicada pela acusação acabou condenada no pagamento duma multa superior a 167 mil euros. Em segundo lugar, a lei - nº 3 do mesmo preceito - determina que a indemnização seja arbitrada mediante recurso à equidade. Isto quer dizer que o julgador deve, por um lado, atender às circunstâncias do caso concreto, e, por outro, ter presente que a indemnização por danos não patrimoniais tem natureza eminentemente compensatória. Impõe-se-lhe, portanto, um esforço no sentido de proporcionar o valor da compensação à gravidade dos danos, medida esta por um padrão tanto quanto possível objectivo, bem como atender às indemnizações que vêm sendo atribuídas pelo STJ em casos paralelos. Deste modo, considerando que as dores físicas e morais infligidas ao autor em consequência da indevida condenação sofrida, espelhadas nos factos 4) a 11), não adquiriram carácter permanente, antes tudo indicando que tiveram uma duração relativamente curta, sem embargo da sua intensidade; ponderando o facto de não ter sofrido qualquer penhora ou diminuição patrimonial em resultado directo da errónea decisão judicial, para além de não transparecer dos autos que o caso tenha tido repercussão pública com reflexos negativos no seu bom nome e reputação; considerando ainda que, por via do recurso logo interposto e atendido em toda a linha, não precisou de esperar mais do que seis meses (quatro, se descontadas as férias judiciais) para ver reposta a legalidade e reconhecido jurisdicionalmente o erro que o lesou; e tendo ainda em conta, finalmente, que este Tribunal tem fixado compensações que raramente ultrapassam os quinze mil euros, mesmo em casos de perdas mais significativas do que as sofridas pelo autor (por exemplo, perda da liberdade por prisão ilegal ou manifestamente infundada [6]), entendemos que a compensação arbitrada pela Relação deve ser reduzida e estabelecida no montante arbitrado na sentença - dez mil euros. 

Nesta parte, consequentemente, procede o recurso do réu. 

III. Decisão

Nos termos expostos dá-se provimento parcial à revista e revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou o Estado Português a pagar ao autor a indemnização de vinte e cinco mil euros, ficando a subsistir a decisão da primeira instância.

Custas por autor e réu, na proporção de vencido.         

Lisboa 28 de Fevereiro de 2012.



Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

                              

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[1] Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3ª edição, pág. 170: segundo estes autores cabe aos tribunais, na falta de lei concretizadora, criar uma “norma de decisão” tendente à reparação de danos resultantes de actos lesivos de direitos, liberdades e garantias ou dos interesses juridicamente protegidos dos cidadãos.
[2] Note-se que, tendo em conta a data em que os factos ocorreram, não se aplica ao caso presente a Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.
[3] Neste exacto sentido, cfr. obra cit. na nota anterior, pág. 795.
[4] Note-se que o Supremo já decidiu (acórdão de 3.12.98, Processo 98A644) que é admissível acção de indemnização contra o Estado por negligência grosseira no exercício da função judicial.
[5] Cfr, a título de exemplo, os seguintes acórdãos do STJ: de 19/2/04 (Revª 4170/03-2ª); de 29/6/05 (Revª 1064/05-6ª); de 20/10/05 (Revª 2490/05-7ª); de 18/7/06 (Revª 1979/06-6ª); de 8/9/09 (Revª 368/09.3YFLSB); e de 23/3/11 (Revª 5715/04.1TVLSB.L1.S1-6ª).
[6] Cfr. os acórdãos de 26/6/07 (Revª 1728/07-6ª); de 27/11/07 (Revª 3359/07 - 6ª); de 3/7/08 (Revª 1848/08-7ª); e de 11/10/11 (Revª 1268/03.6TBPMS.L1.S1).