Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5553/19.7T8LSB-L.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
DISTRIBUIÇÃO
JUIZ NATURAL
MANDADO DE DETENÇÃO
COMPETÊNCIA
PRISÃO PREVENTIVA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA, segundo requerimento subscrito por Advogado, que se transcreve[1]:

«vem peticionar HABEAS CORPUS – art. 222-2-a) e c) do CPP, com os seguintes fundamentos:

artº 222-2-a) do CPP:

1 - em 22-7-2019 o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) proferiu Despacho de não pronuncia pelo crime de associação criminosa e emitiu Mandado de libertação; o arguido, que estava preso desde 4-4-2019, foi libertado nesse dia e sujeito a apresentações semanais na PSP de ………; o DCIAP recorreu da decisão;

2 - em 11-12-2019 o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso do DCIAP, pronunciou o arguido pelo crime de associação criminosa e ordenou ao TCIC que “aprecie da existência dos necessários indícios fortes e suficientes…após trânsito, passe os competentes mandados” (sic)

3 - ordenada a baixa do Acórdão do TRL de 11-12-2019 para que o TCIC “ aprecie da existência dos necessários indícios fortes e suficientes” e que “após trânsito, passe os competentes mandados” só e apenas o TCIC podia / devia acatar a decisão do TRL, agindo deste modo:

- cumprir o Principio do Contraditório,

- ouvir o arguido- requerente

- apreciar os indícios

- emitir o Mandado de detenção

4 - o TCIC recebeu os autos vindos do TRL mas não viu nem ouviu o Req. Não apreciou os indícios e não emitiu Mandados; o req. foi preso por Mandado emitido pelo Juiz 9 declarado incompetente pelo TRL, entidade diferente do Juiz do TCIC, o que não é conforme com o artigo 222º- 2- a) do CPP e o “devido processo legal penal”;

5 - o DEVER de ACATAMENTO do Acórdão do T.R.L. não foi cumprido pelo TCIC: não interrogou o Req. nem apreciou os autos nem emitiu os Mandados! a prisão ordenada por Juiz incompetente, diverso do TCIC, é ilegal- artº 222-2-a) CPP; artº 222-2-c) do CPP;

6 - o req. não foi notificado pessoalmente do acórdão da Relação de Lisboa que o pronunciou; foi preso a 1-6-2020; não foi ouvido no prazo de 48 horas nem até hoje!

7 - a ausência de notificação do Acórdão do T.R.L. ao Req. traduz violação do artº 6º-1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que é direito positivo português à luz do artº 8º da nossa Lei Fundamental: affaire MEGGI CALA contra Portugal, requette 24086/11 de 2-2-2016 publicado em: http://gddc.ministeriopublico.pt/faq/acordaos-relativos-portugal;

8 - assim o impõe o quadro jurídico da União Europeia no artº 6º da Directiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu do Conselho de 22-5-2012: “o direito de ser informado da acusação”

“ Os Estados-Membros asseguram que os suspeitos ou arguidos receba informações sobre o ato criminoso de que sejam suspeitos ou arguidos de ter cometido. Estas informações são prestadas prontamente e com os detalhes necessários, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício efectivo dos direitos de defesa”- neste sentido os processos penais contra IANOS TRANCA, TANJA REITER e IONEL OPRIA (proc. C-124/16, 213/26 e 188/16) sob Acórdão do Tribunal de Justiça (5ª Secção) de 22-3-2017 publicado em http::/curia.europa.eu/juris/document/document_print.jsf?doclang=PT


9 - o Req. estava contactável pelas autoridades policiais e judiciárias: apresentou-se na PSP de …….. entre Julho 2019 e Maio 2020; apresentou-se no EPPJ …….. em 1-6-2020; todavia, nem o TRL nem o TCIC o notificou pessoalmente ou ouviu até hoje !...

10 - a omissão de notificação pessoal da Acusação sob os ventos do TRL / TCIC e de interrogatório traduz nulidade do processado, da defesa e do processo “equitativo” à luz dos artºs 5º-1-c) e 3 e 6º -1 da CEDH “ de acordo com o procedimento legal...se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente...qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela..qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa...”

11 - o Req. tem direito a ter direitos !!! Portugal deve cumprir os direitos fundamentais da União Europeia da qual é membro, de forma concreta pois não são direitos ilusórios mas sim reais e efectivos, face à Jurisprudência assente da COUR EUROPEENNE e do Tribunal de Justiça da União Europeia, sempre “de acordo com o procedimento legal

12 - a não audição do Req. nas 48 Horas após a Pronuncia, pelo crime de associação de criminosa, a não notificação pessoal do Acórdão de 11-12-2019 e o não cumprimento do decidido pelo TRL no TCIC violam o “devido processo legal penal” e são fundamento para Habeas Corpus sob os artsº. 5º-1-c) e 3, 6º- 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 27º-4, 32º-1 da Constituição da Republica Portuguesa e 222- 2- c) do CPP. artº 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem:

13 - estão proibidos os tratos desumanos ou degradantes: artsº 3º da CEDH e 25º-2 da CRP; face às condições prisionais impostas pelo Estado Português corre termos a Requete nº. 53931/19 AA contra Portugal, no Tribunal Europeu, de conhecimento oficioso;

14 - os arts. 1º.-3, 5º e 6º -1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho devem ser interpretados no sentido de que perante elementos objectivos, fiáveis, precisos e devidamente actualizados que confirmam a existência de deficiências sistémicas ou generalizadas que grassam no estabelecimento prisional e que a pessoa presa corre um risco real de trato desumano ou degradante na fórmula do artº. 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01) Portugal não a pode manter em cativeiro; na verdade,

15 - Portugal foi condenado pelos Senhores Juízes de Estrasburgo no affaire PETRESCU - application nº 23190/19 de 3-12-2019 pelas más condições prisionais, de conhecimento oficioso e publicado em http://gddc.ministeriopublico.pt/faq/acordaos-relativos-portugal

16 - nos processos contra PÃL ARANYOSI e ROBERT CALDARARU C-404/15 e C-659/15 PPU o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que uma pessoa não pode ser entregue a outro Estado membro quando resulte risco real de trato desumano ou degradante (§ 88 e ss- Acórdão Torreggiani contra Itália, do TEDH de 8-1-2013, § 65.)

17 - o Req. vegeta numa cela sem ventilação com outro recluso, em espaço inferior a 3m2 de área útil, passa fome graças ao orçamento do Governo de Portugal de um euro e vinte e nove cêntimos (1,29 €) por dia por recluso para três refeições, não existe higiene, os banhos ocorrem num balneário colectivo sem privacidade, não existe distanciamento entre reclusos que não usam máscaras, são frequentes as agressões de um grupo de Guardas prisionais a reclusos, ocorrem vários suicídios no EPL, é manifesta a sobrelotação prisional, com reclusos amontoados nos corredores e celas; não existe acesso a Internet para consultar os “sites” do Governo e dos Tribunais nem apoio psíquico; a cela minúscula é fria e húmida nos meses de inverno e sufocante no verão, esvoaçam pombos pela janela que, perante a ausência de máscaras, fazem proliferar doenças entre os reclusos; o risco de contrair COVID-19 e perder a Vida é real;

18 - a sobrelotação prisional qua tale a alimentação insuficiente e sem qualidade, o risco de vida e a idade do Req. de 65 anos constituem tratamento degradante sob as luzes dos artºs 3º da CEDH e 4º da Carta dos Direitos Fundamentais que este Alto Tribunal deve apreciar e julgar face à Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e da COUR. (affaires PETRESCU contra Portugal e MURSIC contra Croácia) e se sobrepõem aos arts. 220 e 222 do CPP; pelo que:

Vossas Excelências, ao abrigo dos artigos 27º-4, 32º- 1 da CRP, 5º-1-c), 3, 6º- 1 da CEDH. 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 222º- 2- a) e c) do CPP, deferindo o Habeas Corpus e o Req. libertado, farão a Lídima Justiça!»


2. Foi exarada a seguinte informação, nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, doravante CPP:

«O arguido AA, vem interpor a presente providência excepcional de habeas corpus.

Assim, em obediência ao que se dispõe no artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, informa-se o Colendo Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que:

No âmbito do processo n.º 93/13……. determinou-se, em 16.10.2018, a separação de processos quanto aos arguidos AA e BB (fls. 27848 a 27849-E), uma vez que o arguido não tinha sido notificado da acusação nem da pronúncia.

Em cumprimento do referido despacho judicial, instaurou-se os presentes autos com o n.º 5553/19.7T8LSB, sendo arguidos AA e BB, distribuído no Juízo Central Criminal de Lisboa ao Juiz 8.

Em 04.04.2019, na sequência da execução de um Mandado de Detenção Europeu (MDE) pendente contra o arguido AA, este viria a ser detido pelas autoridades espanholas (fls. 27852 e 27863 a 27870), constituído arguido (fls. 27871), notificado para, querendo, requerer a abertura de instrução (fls. 27874) e submetido a interrogatório judicial (fls. 27875 a 27990), tendo sido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva (fls. 27991,27992 e 27995).

Em 25.04.2019, o arguido interpôs recurso do despacho que o sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva (fls. 28033 a 28050 e 28071), o qual foi admitido pelo despacho de fls. 28072 e autuado em separado (despacho de fls. 28094).

Por decisão sumária, de 09.07.2019, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa o recurso foi julgado improcedente (fls. 28225 a 28232).

Por requerimento entrado em juízo a 21.5.2019, o arguido requereu a abertura de instrução (fls. 28076 a 28093).

Por acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Julho de 2019 foi julgado improcedente, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, que o requerente AA apresentou nestes autos.

Por despacho de fls. 28101, de 29.05.2019, determinou-se a remessa dos autos ao TCIC (fls. 28102 e 28103) e foi admitida a abertura de instrução por despacho de 05.05.2010 (fls. 28105 a 28111).

Foi designada data para a realização do debate instrutório, e após a sua realização (fls. 28171 a 28183), foi proferida decisão instrutória (fls. 28248 a 28386), pela qual o arguido: não foi pronunciado pela prática de um crime associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.°, n.º 1 e 24.°, al. c) do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Foi ainda revogada a medida de coacção de prisão preventiva, e o arguido AA foi sujeito às medidas de coacção de apresentações periódicas, às segundas-feiras, no OPC da sua área de residência, proibição de se ausentar do distrito da sua residência, bem como para o estrangeiro sem autorização do Tribunal e proibição de contactos com os demais arguidos do processo.

O Ministério Público em 03.10.2019 interpôs recurso (fls. 28473 a 28507) para o Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão instrutória, pedindo a alteração da qualificação jurídica e correspondente pronúncia do arguido pelo crime de promoção e liderança de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva.

Em 11.12.2019 o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu e passamos a transcrever:

«1 – Revogamos o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido e ao abrigo e nos termos dos arts. 303º, nº 1 e 358º, nºs 1 e 3 do C. P. Penal, com o cumprimento do contraditório, determinamos que o tribunal recorrido proceda à alteração da qualificação jurídica do crime de Adesão a Associação Criminosa, p. e p. pelo artº 28º, nº. 2 do Decreto-lei nº 15/93, de 22.01, pelo qual foi o arguido AA acusado e despronunciado, para o crime de Promoção e Liderança de Associação Criminosa, p. e p. pelos n.ºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento.

2 - Revogamos o despacho recorrido, no que concerne à revogação da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido e substituição pelas medidas de coacção de apresentações periódicas à segunda-feira, proibição de se ausentar do distrito da sua residência e para o estrangeiro sem autorização do Tribunal e proibição de contactos com os demais arguidos do processo, e, em consequência, determinamos que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, para além do TIR já prestado.»

Mais determinou que após trânsito sejam passados os competentes mandados (fls. 29738 a 29785).

Na sequência de arguição de nulidades, pedidos de suspensão dos mandados de detenção, dedução de pedidos de recusa dos Senhores Juízes Desembargadores, recurso interposto para o Tribunal Constitucional, foi proferido, em 29.4.2020, no Tribunal da Relação de Lisboa novo Acórdão no apenso de recurso 5553119.7T8LSB-E, do qual consta:

"O histórico do processo revela que o arguido tem vindo a protelar de forma manifestamente ostensiva o trânsito da decisão que determinou a alteração da medida de coacção impondo a de prisão preventiva. Por outras palavras, é manifesto que os requerimentos e recursos interpostos pelo arguido AA, até ao presente, manifestamente infundados, apresentam-se como meios dilatórios de obstar à baixa do processo à 1ª instância, e cumprimento do julgado.”

Mais determinou a imediata extracção do translado, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida.

Esta decisão transitou em julgado condicionalmente em 29.04.2020.

Em 16.12.2019 os autos (principais) foram remetidos ao Juízo Central Criminal de Lisboa para julgamento (fls. 28668).

Por despacho de 19.12.2019, o Juiz 8 declarou-se impedido de intervir na fase de julgamento por ter determinado a prisão preventiva do arguido AA e, com base na ordem de serviço n.º 3/2017 da Sra. Juíza Presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa determinou a remessa dos autos "à (re)distribuição" (despacho de fls. 29670).

Os autos foram distribuídos à signatária (Juiz 12), que por despacho de 20.12.2019 (fls. 29672), se declarou incompetente para prosseguir os trâmites dos presentes autos, entendendo ser competente o Juiz que de acordo com as regras do regime de substituição deveria substituir o Juiz 8, ou seja, o Juiz 9.

Por despacho de 10.02.2020 (fls. 29692), a signatária determinou a remessa do processo ao Juiz 9, que a partir de então passou a tramitar os autos.

O arguido AA veio a interpor recurso do despacho de fls. 29679 a 29684 (proferido pelo Juiz 12) para o Tribunal da Relação de Lisboa que por acórdão de 26.05.2020, decidiu o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento, declarando o Juiz 12 o competente para tal.

Em 15.06.2020, o Juiz 9, proferiu despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido onde este arguiu a nulidade de todos os actos praticados por aquele desde que "recebeu" os autos, que seja declarado nulo o "mandado de detenção" e se proceda à recolha do mesmo; e ordene a remessa dos autos ao Juiz 12, face ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.5.2020.

Por despacho de 23.06.2020 (fls. 29894), a signatária solicitou a remessa dos autos ao Juiz 9, após o conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que declarou a competência deste Juiz 12.

Por despacho de 26.06.2020 (fls. 29899) o Juiz 9 determinou a remessa dos autos ao Juiz 12.

Por despacho de 30.06.2020 (fls. 29908), o Juiz 12, atento o ordenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 11.12.2019, que julgou parcialmente provido o recurso interposto pelo Ministério Público, onde se decidiu, para além do mais:

“1- Revogamos o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido e nos termos dos arts. 303.º, n.º 1 e 358º, n.ºs 1 e 3, do C.P.Penal, com o cumprimento do contraditório, determinamos que o Tribunal recorrido proceda à alteração da qualificação jurídica do crime de adesão a associação criminosa, p. e p. pelo artº 28º, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22.01, pelo qual foi o arguido AA acusado e despronunciado, para o crime de promoção de liderança de associação criminosa, p. e p. pelos nºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento.” (e ainda a prisão preventiva do arguido AA).

E que por acórdão de 29.04.2020, o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, ordenou: “(…) ao abrigo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 670.º, do CPP, aplicável ex vi do disposto no art.º 4.º, do Código de Processo Penal, em determinar a imediata extracção de traslado, nos termos supra referidos, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida”, decidiu este Juiz 12 que a circunstância de ainda não se ter iniciado o julgamento do arguido AA pelos factos relativamente aos quais este arguido já se encontrava pronunciado e ser de toda a

conveniência que todos os factos imputados a este arguido sejam apreciados conjuntamente, que os autos fossem remetidos ao TCIC como havia sido ordenado pelo Tribunal da Relação.

Em 23.07.2020, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão instrutória e manteve a prisão preventiva a que o arguido AA já se encontrava sujeito (fls. 29996 a 30051).

Em 03.08.2020, o arguido veio arguir a nulidade da decisão instrutória (fls. 30059) e simultaneamente interpor recurso da mesma (fls. 30060 a 30064).

Em 13.08.2020, por despacho de fls. 30067 a 30081, foram indeferidas as nulidades arguidas e não foi admitido o recurso interposto pelo arguido.

Da não admissão do recurso foi apresentada reclamação junto do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu pelo indeferimento da reclamação (fls. 30236 a 30239).

Foi apresentado pedido de incidente de recusa de Juiz (do TCIC) – fls. 30089/30090, pelo arguido AA. O Mm.º Juiz pronunciou-se, cfr. fls. 30096 a 30098, e por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi indeferido o pedido de recusa (fls. 30188 a 30201)

Em 21.08.2020, os autos foram remetidos a este Tribunal (Juízo Central Criminal de Lisboa), tendo o processo sido recebido por este Juiz 12, e designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento (cujo início está agendado para o próximo dia 12.11.2020) e manteve-se a prisão preventiva – cfr. fls. 30127 e 30128.

Ora, os mandados de detenção para sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva foram emitidos na sequência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de

11.12.2019 e de 29.04.2020, que determinaram que os autos (apenso de recurso) fossem imediatamente remetidos à 1.ª instância a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida, ou seja, a decisão que determinou a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva.

O que aliás, veio a ser reiterado pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 25.06.2020, em incidente de Habeas Corpus apresentado pelo arguido AA, decidindo que: «Os mandados de detenção foram emitidos em cumprimento de uma decisão de um Tribunal superior (acórdão com trânsito em julgado, ainda que condicional, em 29.04.2020). Ora, ao abrigo do disposto no artigo 4°, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) uma decisão proferida, em via de recurso, por um tribunal superior, transitada em julgado (ainda que condicional) e que determinou que os autos (apenso de recurso) fossem "imediatamente remetidos" à 1.ª instância "a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida", tem de ser cumprida pela 1.ª Instância.», no caso, pelo então, Juiz 9.

Igualmente, o mesmo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2019 e de 29.04.2020 determinou que o arguido fosse pronunciado para o crime de promoção de liderança de associação criminosa, previsto e punido pelos nºs 1 e 3 da mesma disposição legal e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes do crime a fim de submeter o arguido a julgamento, tendo o TCIC acatado tal decisão superior, proferindo o despacho de pronúncia de fls. 29996 a 30051.

Pelo exposto, é nosso entendimento que não existem nos autos factos que permitam concluir pela existência de prisão ilegal, o que V. Ex.ª melhor decidirão.»


3. Convocada a secção criminal e notificados os Ministério Público e o Defensor do requerente, teve lugar a audiência, nos termos dos artigos 223.º, n.os 2 e 3, e 435.º do CPP, cumprindo tornar pública a respectiva deliberação.


II - FUNDAMENTAÇÃO

A. Os factos

Constam dos autos os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida:

- No âmbito do processo n.º 93/13……… determinou-se, em 16.10.2018, a separação de processos quanto aos arguidos AA e BB (fls. 27848 a 27849-E), uma vez que o arguido não tinha sido notificado da acusação nem da pronúncia.

- Em cumprimento do referido despacho judicial, instaurou-se os presentes autos com o n.º 5553/19.7T8LSB, sendo arguidos AA e BB, distribuído no Juízo Central Criminal de Lisboa ao Juiz 8.

- Em 04.04.2019, na sequência da execução de um Mandado de Detenção Europeu (MDE) pendente contra o arguido AA, este viria a ser detido pelas autoridades espanholas (fls. 27852 e 27863 a 27870), constituído arguido (fls. 27871), notificado para, querendo, requerer a abertura de instrução (fls. 27874) e submetido a interrogatório judicial (fls. 27875 a 27990), tendo sido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva (fls. 27991,27992 e 27995).

- Em 25.04.2019, o arguido interpôs recurso do despacho que o sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva (fls. 28033 a 28050 e 28071), o qual foi admitido pelo despacho de fls. 28072 e autuado em separado (despacho de fls. 28094).

- Por decisão sumária, de 09.07.2019, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa o recurso foi julgado improcedente (fls. 28225 a 28232).

- Por requerimento entrado em juízo a 21.5.2019, o arguido requereu a abertura de instrução (fls. 28076 a 28093).

- Por acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Julho de 2019 foi julgado improcedente, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, que o requerente AA apresentou nestes autos.

- Por despacho de fls. 28101, de 29.05.2019, determinou-se a remessa dos autos ao TCIC (fls. 28102 e 28103) e foi admitida a abertura de instrução por despacho de 05.05.2010 (fls. 28105 a 28111).

- Foi designada data para a realização do debate instrutório, e após a sua realização (fls. 28171 a 28183), foi proferida decisão instrutória (fls. 28248 a 28386), pela qual o arguido: não foi pronunciado pela prática de um crime associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.º 2, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.°, n.º 1 e 24.°, al. c) do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Foi ainda revogada a medida de coacção de prisão preventiva, e o arguido AA foi sujeito às medidas de coacção de apresentações periódicas, às segundas-feiras, no OPC da sua área de residência, proibição de se ausentar do distrito da sua residência, bem como para o estrangeiro sem autorização do Tribunal e proibição de contactos com os demais arguidos do processo.

- O Ministério Público em 03.10.2019 interpôs recurso (fls. 28473 a 28507) para o Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão instrutória, pedindo a alteração da qualificação jurídica e correspondente pronúncia do arguido pelo crime de promoção e liderança de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva.

- Pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 11-12-2019, foi decidido:

1) Revogar o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido e determinar, com o cumprimento do contraditório “que o tribunal recorrido proceda à alteração da qualificação jurídica do crime de Adesão a Associação Criminosa (…) pelo qual foi o arguido AA acusado e despronunciado, para o crime de Promoção e Liderança de Associação Criminosa (…) e, bem assim, apreciar da existência dos necessários indícios fortes e suficientes o crime a fim de submeter o arguido a julgamento;

2) Revogar o despacho recorrido “no que concerne à revogação da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido e substituição pelas medidas de coacção (…) e, em consequência” determinar “que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva”.

Mais se determinou que “após trânsito” sejam passados “os competentes mandados”.

- Na sequência de arguição de nulidades, pedidos de suspensão dos mandados de detenção, dedução de pedidos de recusa dos Srs. Desembargadores, recurso interposto para o Tribunal Constitucional, foi proferido, em 29.4.2020, no Tribunal da Relação de Lisboa novo acórdão no apenso de recurso 5553/19.7T8LSB-E, do qual consta, a nível de fundamentação:

“O histórico do processo revela que o arguido tem vindo a protelar de forma manifestamente ostensiva o trânsito da decisão que determinou a alteração da medida de coacção impondo a de prisão preventiva.

Por outras palavras, é manifesto que os requerimentos e recursos interpostos pelo arguido AA, até ao presente, manifestamente infundados, apresentam-se como meios dilatórios de obstar à baixa do processo à 1ª instância, e cumprimento do julgado.”;

Mais determinou a imediata extracção do translado, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida (referida na alínea anterior – l).

Esta decisão transitou em julgado condicionalmente em 29.04.2020.

- Entretanto, em 16.12.2019 os autos (principais) foram remetidos aos Juízos Central Criminal de Lisboa para julgamento (fls. 28668).

- A Sra. Juíza (J 8) declarou-se impedida de intervir na fase de julgamento por ter determinado a prisão preventiva do arguido AA e, com base na ordem de serviço n.º 3/2017 da Sra. Juíza Presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa determinou a remessa dos autos “à (re)distribuição” (despacho de fls. 29670).

- Os autos foram distribuídos à Sra. Juíza (J 12), que por despacho de 20.12.2019 (fls. 29672), se declarou incompetente para “prosseguir os trâmites dos presentes autos”, entendendo ser «competente o Juiz que de acordo com as regras do regime de substituição deverá substituir o Juiz 8, a saber o Juiz 9».

- Entretanto, por despacho de 10.02.2020 (fls. 29692), a Sra. Juíza (J 12) determinou a remessa “de imediato do processo ao Juiz 9 junto deste Tribunal”, que a partir de então passou a tramitar os autos.

- Não se conformando com o teor desse despacho, o arguido AA interpôs recurso do mesmo para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 26.05.2020, decidiu o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento, declarando o J12 da Instância Central Criminal Comarca de Lisboa o competente para tal.

- Em 15.06.2020, o Juiz (9) proferiu despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido onde este arguiu a nulidade de todos os actos praticados por aquele desde que “recebeu” os autos; que seja declarado nulo o “mandado de detenção” e se proceda à recolha do mesmo; e ordene a remessa dos autos ao Juiz 12, face ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.5.2020.

- Por despacho de 23.06.2020 (fls. 29894), o Juiz 12 solicitou a remessa dos autos ao Juiz 9, após o conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que declarou a competência deste Juiz 12.

- Por despacho de 26.06.2020 (fls. 29899) o Juiz 9 determinou a remessa dos autos ao Juiz 12.

- Por despacho de 30.06.2020 (fls. 29908), o Juiz 12, atento o ordenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 11.12.2019, e o determinado no acórdão de 29.04.2020, o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu que a circunstância de ainda não se ter iniciado o julgamento do arguido AA pelos factos relativamente aos quais este arguido já se encontrava pronunciado e ser de toda a conveniência que todos os factos imputados a este arguido sejam apreciados conjuntamente, que os autos fossem remetidos ao TCIC como havia sido ordenado pelo Tribunal da Relação.

- Em 23.07.2020, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão instrutória e manteve a prisão preventiva a que o arguido AA já se encontrava sujeito (fls. 29996 a 30051).

- Em 03.08.2020, o arguido veio arguir a nulidade da decisão instrutória (fls. 30059) e simultaneamente interpor recurso da mesma (fls. 30060 a 30064).

- Em 13.08.2020, por despacho de fls. 30067 a 30081, foram indeferidas as nulidades arguidas e não foi admitido o recurso interposto pelo arguido.

- Da não admissão do recurso foi apresentada reclamação junto do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu pelo indeferimento da reclamação (fls. 30236 a 30239).

- Foi apresentado pedido de incidente de recusa de Juiz (do TCIC) – fls. 30089/30090, pelo arguido AA. O Mm.º Juiz pronunciou-se, cfr. fls. 30096 a 30098, e por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi indeferido o pedido de recusa (fls. 30188 a 30201).

- Em 21.08.2020, os autos foram remetidos ao Juízo Central Criminal de Lisboa, tendo o processo sido recebido pelo Juiz 12, e designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento (cujo início está agendado para o próximo dia 12.11.2020) e manteve-se a prisão preventiva – cfr. fls. 30127 e 30128.

- Em 17-06-2020 o requerente interpôs 2.ª providência de habeas corpus, indeferida, por falta de fundamento bastante, por acórdão deste Supremo Tribunal de 25-06-2020.


B. O direito

1. Estabelece o artigo 31.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, que o próprio ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ou detenção ilegal.

O instituto do habeas corpus «consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. (…). «Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade», podendo ser requerido «contra decisões irrecorríveis, (…) mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal»[2].

Visando reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, o habeas corpus constitui, para GERMANO MARQUES DA SILVA, «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade»[3].

Como o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, esta providência constitui «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário…»[4].

Daí que, a providência de habeas corpus tenha os seus fundamentos previstos, de forma taxativa, nos artigos 220.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de uma situação de detenção ilegal ou de uma situação de prisão ilegal, respectivamente.

Tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, situação que se destaca por ser aquela que o requerentes invoca, esta há-de provir, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de:

a) Ter sido efectuada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto que a lei não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Como este Supremo Tribunal vem sistematicamente decidindo, a providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Assim, como se considera no seu acórdão de 15-01-2014, proferido no proc.º n.º 1216/05.9GCBRG-A.S1 - 3.ª Secção, «está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da decisão, já que, se o fizesse, estaria a criar um novo grau de jurisdição».

Conforme se salienta no acórdão do STJ de 01-02-2007, proferido no processo n.º 07P353, exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente [[5]].

Mas, sublinha-se, a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes», conforme artigo 223.º, n.º 2, do CPP – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do mais Alto Tribunal.

Como este Supremo Tribunal vem sistematicamente decidindo, a providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.

Esta jurisprudência tem sido sucessivamente reafirmada.

Discorrendo sobre âmbito da providência de habeas corpus, o acórdão de 16-03-2015, proferido no processo n.º 122/13.TELSB-l.Sl – 3.ª Secção, condensa importantes elementos teóricos que importa captar.

Lê-se em tal aresto:

«A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional. 

Nos termos do artigo 222.º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis. Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade"[[6]].

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida».

Está adquirido, pois, que a providência de habeas corpus não constitui o meio próprio de impugnação das decisões processuais ou para arguição de nulidades ou irregularidades eventualmente cometidas no processo.

O meio adequado de impugnação é o recurso ordinário ou a exercitação dos adequados instrumentos processuais.


2. A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe ainda uma actualidade da ilegalidade da prisão reportada ao momento em que é apreciado o pedido. Trata-se de asserção que consubstancia jurisprudência sedimentada no Supremo Tribunal de Justiça, como se dá nota no acórdão de 21-11-2012 (Proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1 – 3.ª Secção), onde se indicam outros arestos no mesmo sentido, bem como no acórdão de 09-02-2011 (Proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1 – 3.ª Secção), no acórdão de 11-02-2015 (Proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1 – 3.ª Secção), e no acórdão de 17-03-2016, relatado pelo ora relator, proferido no processo n.º 289/16.3JABRG-A.S1 – 3.ª Secção.

Assim, à luz do princípio da actualidade, assim enunciado, o que está em causa no caso sub judice é unicamente a apreciação da legalidade da actual situação de privação de liberdade dos requerentes.


C. Apreciação


1. Entende o peticionante:

- que se encontra preso ilegalmente alegando que, na sequência do decidido no acórdão de 11-12-2019 do Tribunal da Relação de Lisboa, «só e apenas o TCIC podia / devia acatar a decisão do TRL»;

- Que, «o TCIC recebeu os autos vindos do TRL mas não viu nem ouviu o Req. Não apreciou os indícios e não emitiu Mandados; o req. foi preso por Mandado emitido pelo Juiz 9 declarado incompetente pelo TRL, entidade diferente do Juiz do TCIC»;

- Que «não foi notificado pessoalmente do acórdão da Relação de Lisboa que o pronunciou; foi preso a 1-6-2020; não foi ouvido no prazo de 48 horas nem até hoje!»

- Invoca ainda as condições em que se encontra no estabelecimento prisional - «a sobrelotação prisional qua tale a alimentação insuficiente e sem qualidade, o risco de vida e a idade do Req. de 65 anos» que, segundo o mesmo, «constituem tratamento degradante».

2. As questões de competência, da invocada falta de notificação do acórdão da Relação que o pronunciou e da sua alegada não audição no prazo de 48 horas após a detenção foram já suscitadas pelo peticionante na providência de habeas corpus que interpôs em 17-06-2020, o indeferida, por falta de fundamento bastante, por acórdão deste Supremo Tribunal de 25-06-2020.

3. Na verdade, quanto às questões de competência, alegou o peticionante naquela providência que tendo a distribuição do processo sido feita à revelia das regras de distribuição, com subversão do princípio do juiz natural, e depois de o Tribunal da Relação de Lisboa ter determinado a competência do J12, resulta, deste modo, que os mandados de detenção foram emitidos por entidade incompetente, a saber o Juiz (9), pelo que se encontraria ilegalmente preso.

Conforme o Supremo Tribunal de Justiça, na apreciação de tal fundamento exarou no mencionado acórdão de 25-06-2020:

«Diga-se, desde já, que carece de razão.

Os mandados de detenção foram emitidos em cumprimento de uma decisão de um Tribunal superior (acórdão com trânsito em julgado, ainda que condicional, em 29.04.2020). Ora, ao abrigo do disposto no artigo 4º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) uma decisão proferida, em via de recurso, por um tribunal superior, transitada em julgado (ainda que condicional) e que determinou que os autos (apenso de recurso) fossem “imediatamente remetidos” à 1ª instância “a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida”, tem de ser cumprida pela 1.ª Instância.

Ou seja, o acórdão de 29.04.2020 proferido pelo TRL- 3.ª secção criminal tinha de ser cumprido por Juiz da 1.º Instância a fim de se dar cumprimento àquela decisão e proceder à “alteração da medida de coacção, impondo a de prisão preventiva.”.


Entende o peticionante que este Juiz de 1.ª instância não deve ser o Juiz (9) pois a distribuição não seguiu as regras normais, pelo que o mesmo é incompetente para tramitar os autos e ter passado os mandados de detenção.


Mas, também aqui carece de razão.

Para além, do que atrás se disse, de o Juiz se ter limitado a cumprir o Acórdão do tribunal superior, no qual se determinava a alteração da medida de coacção impondo a prisão preventiva, basta que esta tenha sido ordenada por juiz que, nomeadamente, pertença à jurisdição criminal. O que é o caso.

Aliás, como defende Paulo Pinto Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª edição, pág. 635), e cita-se: “Prisão por entidade incompetente; isto é, prisão ordenada por outra autoridade que não um juiz (prisão a non judice); este fundamento não inclui a prisão determinada por juiz incompetente, pois o juiz incompetente também pode ordenar a prisão preventiva (artigo 33.º, n. º 3)”.

E, ainda, Maia Costa em Código de Processo Penal Comentado da 3ª secção, 2014, págs. 908 e 909:” O n.º 2 (do artigo 222.º do CPP) elenca as situações que podem fundamentar a concessão do habeas corpus. Este elenco é taxativo, dado o carácter excepcional da providência.

A primeira situação é a incompetência da entidade que efectuou ou ordenou a prisão. A incompetência compreende apenas a de carácter material, a falta de jurisdição; ou seja, haverá incompetência apenas se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, isto é, se não tem o estatuto de juiz.

A incompetência funcional ou territorial do juiz não constitui incompetência para os efeitos deste artigo (cfr. art. 33.º, n. º3).”

Refere este preceito - art.º 33.º, n. º3- que as medidas de coacção ordenadas por tribunal declarado incompetente, conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência, embora devam em breve prazo ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente, ou seja, na pendência da declaração de incompetência, o tribunal (que não for competente) pratica os actos processuais urgentes- cfr. Henriques Gaspar em Código de Processo Penal Comentado da 3ª secção, 2016, pág. 103.

Não se verifica, deste modo, a incompetência material do juiz, para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP.»

Aderindo inteiramente a esta fundamentação, que secundamos, entendemos nós também que improcede a invocada incompetência material/funcional da autoridade judicial que emitiu os mandados de detenção do arguido, agora requerente.

Como se considerou no acórdão deste Supremo Tribunal de 06-02-2019, proferido no processo n.º 127/06.5IDBRG-G.S1 - 5.ª Secção, «[a] norma da al. a) do n.º 1 do art. 222.º do CPP não tem em vista a incompetência funcional, apenas havendo incompetência se a entidade que efectuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, ou seja, não tem o estatuto de juiz, sublinhamos, com competência em matéria criminal» (do sumário)[7].

4. A ausência de notificação pessoal do acórdão da Relação de Lisboa de 11-12-2019 «que o pronunciou» e a alegada não apresentação ao juiz competente nas 48 horas a seguir à detenção foram questões também suscitadas, como já se disse, naquela providência de habeas corpus.

E sobre elas, pronunciou-se este Supremo Tribunal no mencionado acórdão de 25-06-2020 nos termos que, com a devida vénia, reproduzimos e relativamente aos quais expressamos a nossa total concordância:

«Vejamos:

Em 1.º lugar diga-se, desde já, que ausência de notificação do Acórdão (do TRL de 11.12.2019) não se enquadra nos pressupostos da providência de habeas corpus.


Em 2.º lugar, os mandados de detenção para sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva foram emitidos na sequência dos acórdãos do TRL de 11.12.2019 e de 29.04.2020, que determinaram que os autos (apenso de recurso) fossem imediatamente remetidos à 1ª instância a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida, ou seja, a decisão que determinou a sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva.

                                       

O ora peticionante já tinha pleno conhecimento dos motivos da detenção, designadamente do teor do Acórdão do TRL, transitado (condicionalmente) em julgado, e que determinou a sua sujeição à medida de coacção de prisão preventiva, não se afigurando que lhe fosse conhecido qualquer direito (para além dos que proficuamente utilizou- cfr. alínea m), do ponto 12 deste acórdão) de impugnar os motivos dessa detenção/prisão face ao trânsito em julgado do mesmo Acórdão.

Mais: o peticionante já tinha apresentado a sua defesa, esta já tinha sido plenamente exercida em sede de recurso através do exercício do contraditório, apresentou diversos recursos e outros incidentes e até o pedido de suspensão da execução dos mandados de detenção, o que veio a culminar com a prolação do Acórdão de 29.04.2020, transitado (condicionalmente) em julgado, na mesma data.

Ora, verificado este circunstancialismo, os pressupostos impostos pelo artigo 254º, do CPP, não se verificam.


Diga-se ainda, que: o excesso do prazo de 48 horas de apresentação ao juiz de arguido detido, que o peticionante alega, não se enquadra na al. c), do n.º 2, do artigo 222º, do CPP. A inobservância desse prazo é fundamento de habeas corpus, mas a ser alegado perante o juiz de instrução, a quem cabe decidir, nos termos do disposto nos artigos 220º, nº 1, al. a), e 221º, ambos do CPP.

Recorde-se, por último, o que a este respeito se diz na informação prestada pelo Sr. Juiz de 1.ª Instância:

1) o Acórdão do TRL de 11.12.2019 revogouo despacho recorrido “no que concerne à revogação da medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido e substituição pelas medidas de coacção (…) e, em consequência” determinar “que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva”.

Mais determinou que “após trânsito” sejam passados “os competentes mandados”.

Posteriormente, a 29.4.2020, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa proferiu novo Acórdão (referência 15652834, de 29.4.2020) no apenso de recurso 5553/19.7T8LSB-E,” que determinou: “a extracção de translado desde a decisão instrutória (incluso) até ao presente acórdão, que ficará nesta Relação, para decisão da arguição da nulidade/inexistência do acórdão proferido em 15.01.2020 e actos posteriores, com observância do disposto no nº 4 do artigo 670º do CPC.

Após, determina-se a imediata remessa destes autos ao tribunal de 1ª instância de onde provieram, para execução do decidido nesta 2ª instância, nos termos do aludido artº 670º do CPC, aplicável por força do artº 4º do Código de Processo Penal.”

No mesmo Acórdão, em termos decisórios, determinou-se:

“Acordam os juízes da 3ª Secção deste Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 670º do CPP, aplicável ex vi do disposto no art.º 4º do Código de Processo Penal, em determinar a imediata extracção de traslado, nos termos supra-referidos, prosseguindo estes autos os seus termos no tribunal recorrido, para onde serão imediatamente remetidos, a fim de ser executado o julgado, considerando-se para todos os efeitos o trânsito condicional da decisão proferida.

O arguido/recorrente será notificado desta decisão, no traslado.

Após cumprimento da extracção do translado, com a respectiva notificação do arguido/recorrente, deverá ser aberta conclusão para prolação de decisão atinente ao requerimento deduzido pelo arguido datado de 20.01.2020.”

O aludido apenso de recurso desceu à 1ª instância (referência 91393, de 7.5.2020 do mesmo apenso) e, na sequência do decidido e ordenado pelo Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, pelo despacho proferido a 21.5.2020 (referência 3396230124, de 19.5.2020 – mesmo apenso de recurso) determinou-se:

3) A certificação do trânsito (condicional) do Acórdão do Tribunal da Relação na parte que concerne à sujeição do arguido à medida de coacção de prisão preventiva;

4) A emissão de mandados de detenção/condução ao Estabelecimento Prisional para sujeição do arguido AA à medida de coacção de prisão preventiva;

Ainda no apenso de recurso, a 28.5.2020, certificou-se o trânsito em julgado (condicional) do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e, em cumprimento do determinado, foram emitidos os mandados de detenção do arguido para sujeição à medida de coacção de prisão preventiva (referência 396475668, de 28.5., do apenso de recurso mencionado), os quais foram juntos aos autos principais (fls. 29822).

Refira-se ainda que o arguido, pela informação entrada em juízo a 31.5.2020 e que consta de fls. 29830 v., comunicou ao Tribunal que se “apresentará voluntariamente no E.P.P.J. amanhã, segunda-feira, 1 Junho 2020, pelas 16 horas”, o que, efectivamente, viria a ocorrer, como certamente o próprio não o negará.

Acrescente-se que foram emitidos, a 1.6.2020, novos mandados de detenção a cumprir pela Polícia Judiciária (v. fls. 29842), porque o E.P. onde o arguido se apresentou para se sujeitar à ordenada medida de coacção de prisão preventiva recusou a admissão e entrada voluntária do arguido.

Tanto que assim é que do próprio mandado (fls. 29842) consta “que o arguido se encontra à porta do estabelecimento prisional anexo à Polícia Judiciária”.

Ou seja, não fora aquela recusa, o arguido teria entrado voluntariamente no E.P. para se sujeitar à medida de coacção de prisão preventiva, sem que fosse necessário emitir novo mandado de detenção para o efeito.

Os mandados viriam a ser cumpridos pela Polícia Judiciária, tendo o arguido dado entrada no E.P. de Lisboa no dia 1.6.2020, pelas 17:55 H (fls. 29847 a 29850 e 29854, frente e verso).


Razões que nos levam a concluir que também esta alegação do peticionante não preenche os pressupostos da alínea c), do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, ou seja, que a prisão do peticionante se mantém para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Relativamente a pretensas violações da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cumpre dizer que, acompanhando novamente o mesmo acórdão:

«Como assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos prevêem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[8].

A CRP, no artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a CRP, no citado artigo 27º, n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal sofra restrições. Sobressaindo, desde logo, a privação da liberdade decretada em sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão. No caso da prisão as restrições à liberdade “só podem decorrer de sanção penal[9]

5. Finalmente, as condições em que o peticionante alegadamente se encontra não constituem fundamento para a providência de habeas corpus já que, manifestamente, não se integra em qualquer uma das situações taxativamente previstas no artigo 222.º, n.º 2, do CPP.

6. Como já se disse, e agora se reafirma, a providência de habeas corpus está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do CPP – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». 

Ora, no caso presente, a medida de coacção de privação da liberdade foi aplicada ao arguido, agora peticionante, após a sua pronúncia como autor de crimes relativamente aos quais, de acordo com o disposto no artigo 202.º, n.º 1, do CPP, é admissível a imposição da prisão preventiva (artigo 2012.º, n.º 1, do CPP).

Sendo que, como já se afirmou, esta medida de coacção foi imposta aos requerentes pela autoridade judiciária competente por factos fortemente indiciadores da prática de crimes pelos quais a lei permite a sua aplicação.

Em face do exposto, conclui-se pela não verificação de qualquer situação geradora de ilegalidade da prisão preventiva imposta ao requerente pois a privação da liberdade foi motivada por facto que a lei permite, foi ordenada por autoridade competente e não se mostram ultrapassados os prazos fixados pela lei.

Pelo que, por falta de fundamento bastante, é indeferida a providência de habeas corpus requerida [artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do CPP].


III - DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA por falta de fundamento bastante.

Custas pelo requerente, com 5 UC de taxa de justiça (Tabela III e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

        

(Processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP, que assina digitalmente).

Tem voto de conformidade da Ex.ma Conselheira Adjunta Conceição Gomes.


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 11 de Novembro de 2020

           

Manuel Augusto de Matos (Relator)

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[1] Trechos destacados e sublinhados no original.
[2] Citou-se J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007. Coimbra Editora, pp. 508 e 510.
[3]   Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260.
[4]  Acórdão de 16-12-2003, proferido no Habeas Corpus nº 4393/03, 5ª Secção, e acórdão de 11-12-2014 (Proc. 1049/12.6JAPRT-C.S1 – 5.ª Secção), ambos disponíveis, tal como os demais que se citarem sem outra indicação quanto à fonte, nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[5] CLÁUDIA CRUZ SANTOS, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, fascículo 2.º, p. 309.
[6] Cfr., Cláudia Cruz Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, fascículo 2.º, págs. 309
[7]    Sumários de Acórdãos das Secções Criminais – 2019.
[8] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pág. 223.
[9] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pág. 480.