Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4825/20.2T8CBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
CULPA GRAVE
PRESUNÇÃO DE CULPA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Se o acórdão da Relação transcreve partes da sentença da 1.ª instância, do pronunciamento do MP sobre o parecer do administrador da insolvência e do teor de um outro acórdão da Relação, dando a sua adesão ao entendimento (corrente jurisprudencial e doutrinária) vertido nessas peças, a decisão está fundamentada, e daqui que não padece de qualquer nulidade por falta de fundamentação.
II - Se o que contesta a parte recorrente é, na realidade, o entendimento jurídico sufragado no acórdão recorrido, então a questão nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão (error in procedendo) mas sim com o erro de decisão (error in iudicando).
III - A al. a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE consagra, e ademais face à redação que a tal número foi dada pela Lei n.º 9/2022, uma mera presunção (relativa) de culpa grave, e não uma presunção (relativa) de insolvência culposa.
IV - Nada tendo sido alegado, provado ou adquirido oficiosamente que mostre que a omissão de requerer a declaração da insolvência dentro do prazo legal foi causal da situação de insolvência ou do seu agravamento, não pode a insolvência ser qualificada como culposa, mas sim como fortuita.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 4825/20.2T8CBR-A.C1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Coimbra

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Tendo sido declarada (sentença de 18.12.2020, proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra) a insolvência da sociedade C..., Ldª., apresentou-se o Administrador da insolvência a emitir parecer nos termos do n.º 2 do art. 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) , concluindo pela natureza fortuita da insolvência.

O Ministério Público pronunciou-se, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com a afetação dos sócios e gerentes AA e BB.

Alegou para o efeito, em síntese, que a Insolvente se encontrava inativa há mais de 8 anos, e que, desde 2013 até 2020, incumpriu o pagamento de obrigações tributárias (IUC, IVA e IRC, para além de coimas e custas). Tal facto permite concluir que a apresentação à insolvência (em 17 de novembro de 2020) se revelou tardia, face ao disposto nos art.s 18.º, n.ºs 1 e 3, e 20.º, n.º 1, alínea g), do CIRE, estando assim preenchida a presunção prevista no artigo 186.º, n.º 3, alínea a), do CIRE, que abrangeria tanto a culpa grave na criação ou agravamento da situação de insolvência como o respetivo nexo causal.

A sociedade Insolvente deduziu oposição, concluindo pelo caráter fortuito da insolvência.

Disse, em síntese, que esteve em atividade apenas entre os anos de 2010 a 2012; que os gerentes, à data muito jovens, eram meros gerentes de direito, não tendo nunca exercido qualquer poder sobre o curso dos negócios; que os verdadeiros gerentes da empresa foram os seus pais; que aqueles gerentes de direito apenas tomaram conhecimento dos débitos da empresa em julho de 2020, tendo, logo a seguir, requerido a insolvência da mesma; que a presunção contida no artigo 186.º, n.º 3, alínea a), do CIRE apenas se refere à culpa grave dos administradores da empresa e já não ao nexo causal entre o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência e criação ou agravamento da situação insolvencial na decorrência desse incumprimento; que nada foi alegado ou provado que mostre tal nexo causal, o que implica o afastamento da possibilidade de qualificação da insolvência como culposa.

Seguindo o procedimento seus termos, veio depois a ser proferida sentença onde se decidiu:

a) Qualificar como culposa a insolvência;

b) Julgar afetados pela qualificação os respetivos gerentes, AA e BB;

c) Declarar os gerentes inibidos para o exercício do comércio pelo período de 3 (três) anos, e inibidos, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos requeridos, e condená-los na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

e) Condenar os requeridos a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos respetivos créditos que não forem satisfeitos, na proporção em que as suas condutas culposas contribuíram para a insolvência, em montante que se vier a fixar em liquidação de sentença.

Inconformada com o assim decidido apelou a sociedade Insolvente.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Coimbra confirmou a sentença.

Mantendo-se inconformada, pede a Insolvente revista.

Introduziu o recurso como revista excecional.

Neste Supremo, a competente formação admitiu o recurso assim interposto.

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São as seguintes as conclusões que a Recorrente extrai da sua alegação:

1ª. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão que não concedeu provimento ao recurso interposto pela recorrente, mantendo a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra que qualificou a insolvência da recorrente como culposa.

2ª. No entanto, o Acórdão Recorrido não fez a correta aplicação da lei, já que vem contrariar o entendimento plasmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, sobretudo no que concerne à necessidade de verificação do nexo de causalidade para qualificação de uma insolvência como culposa. A este respeito veja-se o douto Ac. de 29.10.2019 processo n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1. Relatora: Maria Olinda Garcia.

3ª. A aclaração deste tema é manifestamente necessária para uma melhor aplicação do direito e certeza jurídica dos intervenientes face aos entendimentos antagónicos que têm o condão de qualificar ou não a insolvência. Sobretudo perante a situação de pandemia da COVID-19 que requer uma maior diligência na prolação de decisões prejudiciais aos insolventes, preocupação inclusive do Governo e da União Europeia, demonstrada pela transposição da diretiva europeia n.º 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, com a promulgação do Decreto de 25/12/2021.

4ª. O próprio acórdão recorrido demonstra a existência de entendimentos diversos acerca da matéria, revelando uma mudança recente do posicionamento que o TRC anteriormente considerava, assim como boa parte da doutrina e jurisprudência considera: que para que a insolvência seja qualificada como culposa com base no art. 186º, n.º 3, é necessário que a presunção de culpa qualificada não seja ilidida, e ainda, que seja feita a prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186º, n.º1, do CIRE – o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

5ª. É com este entendimento do Tribunal a quo que o arguido não se conforma, uma vez que contraria o entendimento do Supremo!

6ª. Da matéria de facto provada não resulta estabelecido o nexo de causalidade entre as condutas dos administradores da Recorrente e a criação ou agravamento de sua situação de insolvência.

7ª. Tampouco se evidenciou a culpa grave ou dolo que justificam a extensão dos efeitos da sentença de qualificação da insolvência aos seus gerentes, devendo desde já ser afastada a presunção de reconhecimento de insolvência como culposa.

8ª. A empresa estava inativa. Na primeira oportunidade que tiveram conhecimento dos credores, os sócios-gerentes de direito requereram a declaração de insolvência, não havendo que se falar em extemporaneidade do pedido.

9ª. Não se pode ignorar o teor do parecer do administrador da insolvência, enquanto auxiliar do juízo, o que após análise pormenorizada dos factos e documentos apresentados concluiu pela absoluta ausência de prática dos atos descritos no art. 186.º do CIRE.

10ª. Incorre então, também, o acórdão recorrido em erro de julgamento sobre os factos, sobretudo por ter considerado irrelevante o facto de os sócios gerentes de direito só terem tido conhecimento da existência de dívidas em Julho de 2020, bem como incorre também em erro de interpretação e de aplicação do direito.

11ª. Além do facto do Acórdão recorrido se ter limitado a transcrever trechos da sentença proferida em sede de primeira instância e do parecer do Ministério Público, para fundamentar o posicionamento adotado, sendo por isso nulo, com base nos artigos 615º, n.°1 al. D) e 674°, n.°1, al c) do CPC, ex vi do artigo 17 do CIRE, por falta de fundamentação, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não sendo suficiente a citação apenas do dipositivo legal.

12ª. A sentença recorrida violou drasticamente as disposições jurídicas vertidas nos artigos 18ºe 186º, ambos do CIRE, sem descurar da doutrina e jurisprudência assente no nosso ordenamento jurídico.

Termina dizendo que “… deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se o douto acórdão recorrido, uma vez que se faz necessário que, além da presunção de culpa qualificada não ilidida, fazer prova do requisito adicionalmente exigido pelo art. 186º, n.º 1, do CIRE, ou seja, o nexo de causalidade entre o facto omitido e a criação ou o agravamento da situação de insolvência resulta imprescindível para que a insolvência seja declarada culposa nos termos do disposto no art.º 186, n° 3, c) do CIRE e com todas as demais consequências que daí advêm, especialmente a qualificação da insolvência como fortuita…”.

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Não se mostra oferecida qualquer contra-alegação.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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São questões a conhecer:

- Se o acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação;

- Se a insolvência deve ser qualificada como fortuita.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes:

A. A sociedade Correia de Almeida & Pereira, Ld.ª é uma sociedade comercial por quotas que se dedicou a construção civil e obras públicas, comércio de materiais de construção, comércio e aluguer de máquinas e equipamentos para a construção, compra, venda e permuta de bens imóveis e revenda de adquiridos para esse fim, desde a sua constituição, em 2010, até 2012;

B. O seu capital social é de 10.000,00€, e encontra-se dividido em duas quotas iguais, nos valores nominais de 5.000,00€;

C. Uma das quotas pertence a AA e a outra quota pertence a BB;

D. Ambos são os gerentes da sociedade;

E. Em 16.11.2020, a sociedade Correia de Almeida & Pereira, Ld.ª, através dos seus legais representantes, requereu a declaração judicial da sua insolvência;

F. A insolvência da sociedade veio a ser declarada por sentença datada de 18.12.2020, já transitada em julgado;

G. São credores da sociedade insolvente o Instituto da Segurança Social, I.P., titular de um crédito global de 12.239,80€ (as contribuições mais antigas mostram-se vencidas e não pagas desde 2011) e a Autoridade Tributária e Aduaneira, titular de um crédito global de 36.915,77€ (sendo que as dívidas tributárias mais antigas mostram-se vencidas e não pagas desde 2013);

H. A sociedade aprovou e prestou contas referentes apenas aos exercícios dos anos que mediaram entre a sua constituição, em 2010, a 2012, período que efetivamente laborou;

I. A sociedade está inativa há 8 anos, altura em que os gerentes de facto, pais dos gerentes de direito, se ausentaram do País para parte incerta;

J. AA e BB eram meros gerentes de direito, não tendo nunca exercido qualquer poder sobre o curso dos negócios da sociedade.

De direito

Quanto à questão da nulidade do acórdão recorrido

Diz a Recorrente que o acórdão recorrido - que se teria limitado a transcrever trechos da sentença da 1ª instância e do “parecer” (sic) do Ministério Público - é nulo “por falta de fundamentação, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não sendo suficiente a citação apenas do dispositivo legal”. Menciona a propósito o art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPCivil (certamente que melhor caberia à situação a alínea b)).

Mas não se pode subscrever um tal posicionamento.

É verdade que o acórdão recorrido transcreve parte da sentença da 1ª instância e do pronunciamento do Ministério Público sobre o parecer do Administrador da Insolvência (assim como transcreve parte do teor de um acórdão da Relação de Coimbra), mas menos verdade não é que dá a sua adesão expressa ao entendimento (corrente jurisprudencial e doutrinária) vertido nessas peças, e que vai (esse entendimento) no sentido da tese que nele (acórdão) se defende ser a devida.

Logo, a decisão está fundamentada, e daqui que não padece de qualquer nulidade por falta de fundamentação. Vem a propósito observar que, como é princípio frequentemente afirmado[1], apenas gera nulidade a falta absoluta de fundamentação, não a fundamentação que se apresente como deficiente, incompleta ou não convincente. No limite, seria apenas em algum destes últimos desvalores que poderia cair a acusação da Recorrente.

De resto, do mais que escreve a Recorrente vê-se claramente que do que se queixa na realidade é do entendimento jurídico sufragado pelo acórdão recorrido. Portanto, a questão é de discordância acerca do decidido e não de nulidade.

Ocorre que, como tem sido repetidamente salientado na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal).

Deste modo, se a objeção da Recorrente nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão, necessariamente que o desvalor imputado ao acórdão recorrido nunca se poderá traduzir numa nulidade que tal.

Termos em que improcede a arguição da nulidade do acórdão recorrido.

Quanto ao mérito da causa

O acórdão recorrido decidiu que a presunção estabelecida na al. a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE se traduz numa presunção de insolvência culposa, de sorte que a constatação da omissão do dever de requerer a declaração de insolvência implica, salvo prova em contrário, que a situação de insolvência foi criada ou agravada por ação do administrador remisso. Esta ideia está, aliás, bem evidenciada no sumário do acórdão, e que é como segue: “I- O artigo 186.º, n.º 3, do C.I.R.E. consagra presunções relativas de insolvência culposa, pelo que, os factos previstos nas diferentes alíneas dessa norma fazem presumir que o incumprimento das obrigações nelas previstas procede de culpa grave do administrador e que a situação de insolvência foi criada ou agravada por acção do mesmo; II- Quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor não cumpram os deveres mencionados nas alíneas a) e b) têm contra si a presunção ilidível de que a situação de insolvência foi criada ou agravada, por eles, com culpa grave.”

Deste modo, nada tendo sido in casu alegado e provado que mostre que a circunstância de não se ter requerido anteriormente a declaração da insolvência não criou ou agravou a situação de insolvência, teria de ser havida como culposa a insolvência, na certeza de que foi violado esse dever de requerer atempadamente a insolvência.

Contra este entendimento se insurge a Recorrente, argumentando que o que tal norma estabelece é apenas uma presunção de culpa grave, e não também de causalidade, e daqui que a qualificação da insolvência como culposa demandará sempre a alegação e prova do nexo de causalidade entre a omissão a que se refere a al. a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE e a criação ou agravamento da situação de insolvência. E como no caso vertente nada foi alegado e provado nesse sentido, teria a insolvência que ser qualificada como fortuita.

A nosso ver, a razão está com a Recorrente.

Justificando:

Estamos perante temática que, como é sabido e consabido, tem merecido respostas diferentes por parte da jurisprudência e da doutrina. Para uns (corrente que é sem dúvida maioritária) a supra citada norma consagra uma mera presunção (relativa) de culpa grave (como nela está expressamente dito); para outros consagra (rectius, deveria ser interpretada nesse sentido) uma presunção (relativa) de insolvência culposa (a ideia, aliás não exata, é que, de outro modo, a norma não teria inteira utilidade). Tudo isto está suficientemente referenciado no acórdão recorrido, razão pela qual não há vantagem em estar aqui com maiores ou melhores ilustrações acerca da controvérsia, que seriam meramente repetitivas.

Mas sendo isto assim, diga-se desde logo que tal controvérsia dever-se-á ter agora por legalmente esclarecida e superada. Efetivamente, face à nova redação do n.º 3 do art. 186.º do CIRE (aditamento do advérbio “unicamente”), introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, fica-se com a ideia que foi intenção do legislador definir que a presunção ali estabelecida é restrita à questão da culpa e não também à questão do nexo de causalidade. Se esta leitura estiver correta, então é suficiente que se diga que o acórdão ora recorrido não pode subsistir, tanto porque, e como dela consta (art. 10.º, n.º 1), a referida Lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (11 de abril de 2022), como porque (e no limite) sempre teria que ser vista como lei interpretativa do direito anterior, com os efeitos fixados no art. 13.º, n.º 1 do CCivil[2].

Mas, seja como for, cremos que o elemento literal da lei (art. 186.º do CIRE) não abona aquela última corrente doutrinária e jurisprudencial, mas sim a primeira. E como nos ensina Oliveira Ascensão (O Direito. Introdução e Teoria Geral, p. 350), aliás em consonância com o que dispõe o n.º 2 do art. 9.º do CCivil, “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”.

Ora, estabelece o n.º 1 do art. 186.º do CIRE que:

“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”

E estabelece o n.º 2 que:

“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

(…)”.

E estabelece (estabelecia) a al. a) do n.º 3 que:

“Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;”

Literalmente, o que se retira dos n.ºs 1 e 3 deste conjunto normativo, e ao invés do que sucede com o n.º 2, é que o nexo de causalidade entre a omissão do dever de requerer a insolvência e a criação ou agravamento da situação de insolvência têm que estar adquiridos (o que se faz através da alegação e prova dos factos respetivos, sem prejuízo para a atividade oficiosa do tribunal[3]) para que se possa concluir pela insolvência culposa. A presunção constante do n.º 3 está direcionada exclusivamente para a culpa grave, que é apenas um dos pressupostos legais da qualificação da insolvência como culposa, deixando de fora a questão da causalidade. O propósito da lei é aqui simplesmente particularizar dois casos que entendeu deverem ser inseríveis ao conceito abstrato de culpa grave exigido pelo n.º 1, e nada mais que isto. Vem a propósito observar que, diferentemente do que se supõe no acórdão recorrido, nem do Preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março) nem da legislação estrangeira inspiradora do legislador português (referimo-nos à Ley Concursal Espanhola, Lei 22/2003) se retiram subsídios que imponham ou sugiram diferente conclusão.

Por isso, tem-se entendido maioritariamente neste Supremo Tribunal de Justiça que sem a comprovação do referido nexo de causalidade entre o facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência não pode concluir-se pela insolvência culposa. São exemplos desse entendimento, entre outros, os acórdãos de 6 de outubro de 2011 (processo n.º 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, relator Serra Batista)[4], de 29 de outubro de 2019 (processo n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1, relatora Maria Olinda Garcia)[5] e de 5 de abril de 2022 (processo n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, relatora Ana Paula Boularot)[6], todos disponíveis em www.dgsi.pt.[7]

Aqui chegados, e aplicando o que fica dito ao caso vertente:

Percorrendo a matéria de facto que está provada, nenhum facto (que alegado, contraditado ou adquirido oficiosamente não foi) nela se surpreende que mostre que a circunstância da insolvência da ora Recorrente Correia de Almeida & Pereira, Ldª. não ter sido requerida pelos respetivos gerentes (AA e BB) dentro do prazo estabelecido na lei foi causal da criação da situação de insolvência da sociedade ou do agravamento dessa situação.

Não se discute, naturalmente, que os gerentes agiram culposamente (culpa grave, tal como presumida na alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE, presunção não ilidida), mas está por saber se esse comportamento culposo funcionou como causa do estado insolvencial da sociedade ou o agravou.

Deste modo, sendo embora errático ou irrelevante - por não receber qualquer respaldo nos factos provados (e neste conspecto é de notar que não compete a este Supremo decidir diretamente sobre os factos nem verificar se as instâncias os julgaram adequadamente, como se retira dos art.s 674.º, n.º 3 e 682.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil) - o que consta das conclusões 7ª, 8ª e 10ª, já é exato o que consta da conclusão 6ª.

Procede, pois, o recurso.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em  conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido e a sentença da 1ª instância, declaram fortuita a insolvência da Recorrente Correia de Almeida & Pereira, Ldª.

Regime de custas:

Sem custas.

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Lisboa, 7 de junho de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] Assim, Antunes Varela et ali., Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 687.
[2] V. a propósito Antunes varela/Pires de Lima, Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 13.º: “Deve considerar-se lei interpretativa aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado (…). A lei interpretativa considera-se integrada na lei interpretada. Isto quer dizer que retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada”.
[3] V. art. 11.º do CIRE.
[4] De cujo sumário se pode ler que:
“1. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. 2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa. 3. O nº 3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas. 4. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento.”
[5] De cujo sumário se pode ler que:
“I. A insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE. (…) III. Também não se demonstrou a existência de nexo de causalidade entre a falta de cumprimento atempado do dever de requerer a declaração de insolvência e a criação ou agravamento dessa situação, pelo que, no caso concreto, não se preenche a alínea a) do n.3 do art.186º do CIRE.”
[6] De cujo sumário se pode ler que:
“II - A omissão na elaboração das contas anuais e ao seu depósito na respectiva Conservatória, não constitui, a se, uma presunção inilidível de comportamento culposo e causal da situação insolvencial, sendo mister apurar-se o nexo causal entre tais omissões e a criação e/ou o agravamento do estado de insolvência, situação esta que tem de ser devidamente alegada e provada: o n.º 3 do art. 186.º apenas presume a culpa do administrador naquela omissão, mas já não em relação ao nexo causal entre o seu comportamento e o estado de insolvência ocorrido ou o seu maior comprometimento.”
Aduz-se no texto deste acórdão que “…o nº 3 do artigo 186º apenas presume a culpa do administrador naquela omissão, mas já não em relação ao nexo causal entre o seu comportamento e a criação e/ou o agravamento do estado de insolvência, situação esta que tem de ser devidamente alegada e provada…”.
[7] Em sentido contrário cite-se o acórdão deste Supremo de 23 de outubro de 2018 (processo n.º 8074/16.6T8CBR-D.C1.S2, relatora Catarina Serra, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário se pode ler que:
“II. Por força do disposto no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência dá origem a uma presunção (relativa ou juris tantum) de insolvência culposa, que abrange a culpa grave bem como o nexo de causalidade.”