Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P1389
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
Nº do Documento: SJ200405270013895
Data do Acordão: 05/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 81/02
Data: 01/14/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Sumário : I - O recurso à figura jurídica do «homicídio qualificado atípico» há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, "é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados ... sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação (...) parlamentar em última instância, que tem o legislador penal", e a legitimação para a sua aplicação assentará in extremis, na consideração de que "a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado" e, que, "com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico".
II - «Especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido.
III - O reflexo penal da violação dos deveres conjugais previstos especialmente no artigo 1672º do Código Civil não necessita de passar obrigatoriamente pela qualificação do crime de homicídio para relevar a nível da medida da pena. Basta atentar no disposto no artigo 71º, nº. 2, a), do Código Penal, nomeadamente quando manda atender ao «grau de violação dos deveres impostos ao agente».
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo contra FJV, identificado nos autos, imputando-lhe a prática de factos integradores, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, p. e p., pelos artigos 131º e 132º/1 e 2, al. d), ambos do Código Penal, de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo art. 152º/1 e 2 do Código Penal, na versão dada pela Lei 7/2000, de 27 de Maio e de um crime de detenção de substâncias perigosas p. e p. pelo art. 275º/1, 3 e 4 do Código Penal "ex vi" art. 3º, al. c) do DL. nº. 207-A/75, de 17 de Abril.
Foi deduzido pedido de indemnização civil pelos menores RTV, MTV e GTV, representados pelo seu tutor, LTS, pedindo a condenação do arguido no pagamento aos demandantes da quantia global de € 176.500, acrescido de juros de mora, à taxa de 7%, contados desde a notificação do arguido até efectivo e integral pagamento e alegando, sumariamente, para o efeito que todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos menores em consequência da morte da sua mãe provocada pelo arguido.
Efectuado o julgamento foi a acusação pública julgada procedente, por provada, e em consequência, foi o arguido condenado, pela prática em autoria material de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º e 132º/1 e 2, al. a) do Código Penal, na pena de dezoito (18) anos de prisão; pela prática em autoria material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º/1 e 2 do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão; e pela prática em autoria material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo art. 6º do DL. nº. 22/97, de 27 de Junho, na pena de um (1) ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido de harmonia com o disposto no art. 77º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de vinte (20) anos de prisão.
Foram declarados perdidos, em favor do Estado, os objectos apreendidos, nos termos do artigo 109º/1 e 3 do Código Penal;
Foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por RTV, MTV e GTV e, em consequência, foi o demandado condenado no pagamento das quantias de:
- Vinte e dois mil e quinhentos euros (€22.500), a repartir em partes iguais pelos demandantes RTV, MTV e GTV pelos danos morais por estes sofridos com a morte de RMMT;
- Dez mil euros (€10.000) a repartir em partes iguais pelos demandantes RTV, MTV e GTV pelos danos morais sofridos por RMMT;
- Trinta mil euros (€30.000) a repartir em partes iguais pelos demandantes RTV, MTV e GTV pela perda do direito à vida de RMMT;
- Sessenta e sete mil quinhentos euros (€67.500) a repartir em partes iguais pelos demandantes RTV, MTV e GTV pelo lucro cessante do facto de deixarem de receber dinheiro para a sua vida de RMMT;
quantias estas acrescidas de juros de mora, à taxa diária de 7% contados desde 10.01.2003 até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido para a Relação do Porto, que, porém, negando-lhe provimento, confirmou inteiramente a decisão recorrida da 1ª instância.

Ainda irresignado, recorre agora o arguido ao Supremo Tribunal de Justiça, delimitando desde modo o objecto da sua impugnação:
1ª O arguido e recorrente praticou o crime de forma repentina, abrupta, sob forte e compreensível emoção, torturado, desorientado e traumatizado pela ideia de infidelidade da RMMT sua esposa que o desprezou e o humilhou, pelo que ao condenar o arguido por crime de homicídio qualificado fez-se incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 131º e 132º e não se aplicou o artigo 133º todos do Código Penal, mas aplicando aqueles não se fez correcta interpretação e aplicação dos arts. 72º, 73º e 74º todos do Código Penal.
2ª Ao não considerar que a carabina é de caça aos pássaros e não constitui qualquer perigo, seja onde for e como for, e ao considerar como sendo crime a detenção de uma arma adaptada para 6,35 mm o douto acórdão fez incorrecta interpretação e aplicação do artigo 275º do Código Penal e nº. 1, al. f), do art. 3º do DL 207-A/75, de 17/4, pois que são armas permitidas.
3ª Sem prova isenta e credível, no nosso modesto entendimento, o arguido foi condenado por crime de maus tratos a cônjuge, cfr. Lei 7/2000, de 27/5, pelo que o douto acórdão viola tal normativo.

Respondeu o MP junto do tribunal recorrido em primeira linha no sentido de o recurso dever ser rejeitado em virtude de o recorrente se limitar à reedição dos argumentos já aduzidos em recurso do acórdão de 1ª instância.
Em todo o caso, sempre o recurso deve ser improvido, não apenas porque nenhuma prova existe de que o arguido quando pôs termo à vida da esposa estivesse desorientado ou dominado por uma emoção de tal modo violenta que o levasse naquele momento à prática do crime.
Pelo contrário os factos mostram que agiu em circunstâncias de especial censurabilidade.
O arguido tinha em seu poder uma pistola adaptada de calibre 8 mm para o de 6,35 m, com carregador e cano de 6 cm, a qual se enquadra no art. 1º, nº. 1, a), da Lei 22/77, assim cometendo o crime do artigo 6º daquela Lei.
E estão provados factos que integram a prática do crime de maus tratos do artigo 152º, nºs. 1 e 2, do CP.
No mesmo sentido respondeu o tutor dos menores e em sua representação, pedindo o improvimento do recurso.

Subidos os autos, manifestou-se o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no sentido da rejeição por irrecorribilidade do decidido quanto ao crime de maus tratos e detenção ilegal de arma - art. 400º, nº. 1, e) e f), do CPP, ao que não obsta o despacho que os admitiu.
E quanto ao homicídio não poderá ser conhecida a vertente factual porque dela já curou a Relação, e o Supremo só conhece de direito.
Observado o disposto no artigo 417º, nº. 2, do CPP, nenhuma resposta foi apresentada.

As questões a decidir são essencialmente estas:
1. A questão prévia da irrecorribilidade da decisão - de facto e de direito - nos termos defendidos pelo Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.
2. Na eventual procedência daquela, a (sobrante) questão da alegada violação dos arts. 72º, 73º e 74º do Código Penal.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência cumpre decidir.
Vejamos antes de mais os factos provados:
1. No dia 12 de Maio de 2002, cerca das 21 horas, na Quinta dos Caetanos, Porto da Nave, Alvite, Comarca de Moimenta da Beira, o arguido FJV e a falecida RMMT, encontravam-se num dos quarto da casa onde ambos moravam, sita no lugar acima mencionado.
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido FJV, no decurso de uma discussão com a ofendida RMMT decidiu pôr termo à vida daquela.
3. Com efeito, naquele momento e com vista a concretizar a sua intenção, o arguido FJV pegou na sua arma de caça, calibre 12, de dois canos sobrepostos, marca rota, modelo 83, produzida em Itália, com o nº. 131377, registada e manifestada e com a referida arma e a falecida RM confinada ao espaço do quarto de dormir de ambos, o arguido apontou-a na direcção da mesma e efectuou dois disparos, atingindo a RM nos pulmões, coração, região hepática e na perna esquerda.
4. A arma encontrava-se no quarto do casal e foi carregada com dois cartuchos, pelo arguido, antes de efectuar os disparos.
5. Os disparos foram efectuados a uma distância de cerca de um metro e meio.
6. Um dos disparos atingiu a vitima na coxa esquerda, acima do joelho, na parte anterior e posterior da mesma.
7. O outro disparo teve uma trajectória da esquerda para a direita e atingiu a vitima junto da omoplata esquerda.
8. Este disparo causou pequenos orifícios na zona mamária direita, encontrando-se bagos de chumbo solto entre o soutien e a pele e mesmo sob a derme.
9. Os disparos foram feitos com cartuchos zagalote.
10. No momento em que foram efectuados os disparos os filhos de arguido e vitima encontravam-se em casa.
11. Os filhos R e M encontravam-se na cozinha e G que tinha seguido os seus pais encontrava-se à porta do quarto do casal, tendo assistido à prática dos factos.
12. Ao ouvir os disparos, R dirigiu-se ao quarto dos pais viu que a mãe se encontrava caída no chão e, a correr, foi chamar os avós, gritando que o pai tinha morto a mãe.
13. Com a sua conduta o arguido provocou na ofendida as lesões descritas no relatório de autópsia, dado por integralmente reproduzido, nomeadamente, infiltrações sanguíneas na parte direita e fracturas das quinta, sexta e oitava costelas direitas dos arcos anteriores e lacerações do lado esquerdo superior do pulmão esquerdo, com o pericárdio aberto com laceração da aurícula esquerda que praticamente desapareceu e laceração da parte direita do pulmão extensa e várias perfurações do fígado.
14. As lesões descritas e provocadas no corpo da ofendida RM, foram a causa adequada e necessária e determinaram dessa forma a sua morte.
15. A morte de RMMT foi fulminante e teve como causa hemorragia aguda interna devida aos esfacelos cardio-pulmão-hepático produzido por tiro de arma de caça.
16. O arguido com a conduta a cima descrita atingiu a ofendida em órgãos vitais, sabendo e querendo atingi-la da forma como atingiu, provocando-lhe a morte, o que quis e consegui.
17. A conduta do arguido foi causa adequada e necessária a produzir a morte da ofendida.
18. O arguido agiu por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da ofendida.
19. O arguido agiu de surpresa e sem que a vitima se pudesse defender.
20. O arguido FJV e a ofendida RMMT eram casados desde o dia 14 de Agosto de 1991.
21. No último ano da vida conjugal o arguido o arguido por diversas vezes e na presença dos filhos, bateu e insultou a mesma, chamando-a por diversas vezes de "puta".
22. No mês de Agosto de 2001, o arguido também na sequência de desentendimentos com a ofendida, pegou numa arma para a atemorizar e aos filhos, tendo a ofendida nesta data e noutras alturas necessitado de se refugiar com os seus filhos, do arguido.
23. O arguido com a sua conduta sabia que ofendia a integridade física, criava instabilidade e insegurança à ofendida e seus filhos, o que os perturbava, a todos, psicologicamente.
24. O arguido FJV tinha em seu poder, na data da prática dos factos, para além, da arma de caça acima descrita registada, manifestada e utilizada na prática dos factos, outras armas que foram que se encontram apreendidas nos autos, nomeadamente, uma carabina de marca COLIBRI, com o número 35072, calibre 32, França com cano de 63 centímetros e uma pistola adaptada de calibre 8 mm para calibre 6,35, da marca STAR, com carregador, sem número, com platinas do punho de cor preta e restante cromada, com 6 centímetros de comprimento de cano transformada para calibre 6,35 e dezanove munições calibre 6,35 mm.
25. A pistola não pode ser legalizada face às características atrás descritas.
26. O arguido não tinha licença de uso e porte de arma para as referidas armas, nem lhe era possível registar e manifestar, obtendo a respectiva licença.
27. O arguido agiu do modo porque o quis fazer, com conhecimento de todos os factos descritos.
28. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
29. Após finais de Março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um contrato de trabalho, a ofendida passou a não querer manter relações sexuais com ele.
30. O arguido desconfiava que a ofendida lhe era infiel.
31. No dia 12.05.2002, antes da prática dos factos, o arguido e a ofendida estiveram em casa dos pais daquele.
32. Foram ao terço no final da tarde.
33. A ofendida R tinha, à data da sua morte, 26 anos de idade.
34. Era uma pessoa bem constituída, saudável, dinâmica e com gosto de viver.
35. Era uma pessoa estimada e conceituada no seu meio familiar e social.
36. Tinha 3 filhos em comum com o arguido, R, M e GTV nascidos, respectivamente, em 08.04.92, 30.01.95 e 14.11.96.
37. A ofendida dedicava a maior parte do seu tempo aos seus filhos, a quem amava, o que lhe dava alegria.
38. Os assistentes, filhos da ofendida, sofreram e ficaram abalados psiquicamente com a morte da mãe.
39. Sofreram enorme choque, tristeza e ficaram desgostosos.
40. Amavam a sua mãe.
41. O modo como esta morreu não mais será esquecido pelos mesmos.
42. Parte dos rendimentos auferidos pela ofendida revertiam em beneficio dos assistentes.
43. Após a morte da sua mãe, os assistentes ficaram sem qualquer fonte de rendimento.
44. A ofendida cuidava dos seus três filhos e do lar;
45. Trabalhava diariamente na agricultura de onde retirava rendimentos que revertiam para o agregado familiar.
46. Tratava diariamente dos animais que possuía.
47. Alimentava e ordenhava duas vezes por dia 12 vacas produtoras de leite e vitelos.
48. Como rendimento da produção de leite, a ofendida recebia a quantia média mensal de € 1.000.
49. Metade deste rendimento correspondia a lucro.
50. Estes rendimentos revertiam a favor do agregado familiar.
51. O arguido não sabe ler nem escrever.
52. Exercia a profissão de agricultor e trabalhava em obras de construção civil.
53. É trabalhador.
54. Auferia o vencimento mensal de € 598,56.
55. O arguido agiu e demonstrou ser insensível ao valor da vida humana e "in casu", a vida sua mulher.
56. Não denotou arrependimento pelos factos por si praticados.
57. Não tem antecedentes criminais.

Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para o conhecimento da causa, nomeadamente que:
1. A discussão entre arguido e ofendida foi motivada por causa de uns preservativos;
2. o arguido decidiu por fim à vida da ofendida quando esta lhe sorriu;
3. a carabina que o arguido possuía não era susceptível de ser registada e manifestada;
4. a carabina e a pistola foram entregues à GNR pelo pai da ofendida;
5. o arguido notou que havia sinais de borracha de botas e sapatos na parede exterior e no ponto de acesso aos quartos de dormir;
6. no dia 12.05.2002, pelas 22h30, no quarto de dormir, o arguido baixou-se e viu umas cuecas da ofendida, cheias de terra, ao lado do guarda fatos;
7. ao tirar as cuecas, viu que ali havia uma caixa de preservativos aberta e quase vazia;
8. o arguido e a ofendida nunca compraram qualquer carteira de preservativos;
9. nunca tiveram relações sexuais com preservativos;
10. a ofendida R confessou ao arguido que lhe era infiel e que até tinha feito um aborto por relações sexuais tidas com um vizinho;
11. não queria viver mais com ele;
12. já não gostava dele e tinha nojo do mesmo;
13. o arguido pegou na arma e disparou em direcção à ofendida R porque se sentiu humilhado, diminuído, violentado, provocado, desesperado e perturbado.

Nesta matéria de facto não vislumbra o Supremo Tribunal de Justiça, nem de resto lhe vem assacado, qualquer vício capaz de afectar a sua validade, mormente os aludidos no artigo 410º, nº. 2, do Código de Processo Penal.
Assim, há que havê-la por definitivamente adquirida.
Tanto mais que, sendo limitados à questão de direito os poderes cognitivos do Supremo Tribunal - art. 434º do Código de Processo Penal - obviamente que soçobra, logo no limiar, o recurso do arguido quando insiste em discutir matéria de facto perante o tribunal de revista.
E nesta perspectiva procede a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal.
É certo que também parece ter alguma razão de ser a posição expressa pelo seu homólogo junto do tribunal recorrido quando se insurge contra a mera reedição das alegações do recorrente perante a decisão da 1ª instância.
Porém, aqui há uma diferença.
Pese embora a repetição dos argumentos, o certo é que, perante a pena concreta encontrada pela Relação ora recorrida - a mesma da 1ª instância - não se pode dizer que a decisão daquele tribunal superior tivesse retirado toda a valia à argumentação do recorrente, tornando-a definitivamente supérflua ou descabida.
E, nessa medida, não é possível a rejeição do recurso naqueles temos, já que, neste quadro, seria exagerada a afirmação de que o arguido não se insurgiu contra a decisão da Relação ou que a tenha deixado transitar.
Já quanto à outra vertente da questão prévia suscitada pelo Ministério Público neste Supremo Tribunal - irrecorribilidade da decisão quanto ao decidido sobre os crimes de posse ilegal de arma e de maus tratos - obviamente que também procede tal questão prévia.
Na verdade, tal como repetidamente vem decidindo este Supremo Tribunal, não é admissível recurso, além do mais, «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções» - art. 400º, nº. 1, f), do Código de Processo Penal.
No caso, como resulta claro do exposto, nenhuma das penas correspondentes a cada um dos dois referidos crimes em que o recorrente foi condenado concordantemente pelas instâncias, tem o seu máximo abstracto fixado além de em 8 anos de prisão.
É certo que a pena abstracta correspondente ao cúmulo jurídico efectuado podia ultrapassar, como ultrapassou, esse limite abstracto - art. 77º, nº. 2, do Código Penal.
Mas a lei é expressa ao excluir as penas únicas aplicáveis ao cúmulo jurídico dos parâmetros de aferição da (ir)recorribilidade.
Com efeito, não estando em causa no recurso a legalidade da operação do cúmulo jurídico, (1) qualquer que seja a pena única conjunta aplicada ou aplicável, são as penas - cada uma delas, singularmente considerada - aplicáveis aos singulares crimes em concurso que hão-de dizer da recorribilidade ou irrecorribilidade da decisão. Se a moldura abstracta de qualquer destes crimes singularmente considerados não ultrapassar os oito anos de prisão, a decisão, verificada a «dupla conforme» é irrecorrível; se alguma ou algumas ultrapassarem esse limite, ou não houver confirmação, tal decisão já será recorrível.
É este o sentido útil a extrair da expressão legal supra transcrita «mesmo em caso de concurso de infracções», de resto, como é entendimento doutrinal do Prof. Germano Marques da Silva (2), segundo o qual a referida expressão «significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes, salvo se o Ministério Público usar da faculdade prevista no art. 16º, nº. 3.».
Ora, no caso, as penas aplicáveis aos dois crimes em causa - maus tratos a cônjuge p. e p. no artigo 152º, nº. 2, do Código Penal e art. 6º da Lei nº. 22/97, de 27/6 - não vão além dos cinco anos, pelo que a irrecorribilidade da decisão no que lhes diz respeito está prevista no citado artigo 400º, nº. 1, e), sendo certo, por outra via, que não vem posta em causa no recurso a operação do cúmulo jurídico.
Daí a irrecorribilidade do decidido concordantemente pelas instâncias quanto às penas aplicadas a tais crimes.

Resta a medida da pena aplicada ao crime de homicídio que não deixará de considerar o acerto ou não da qualificação jurídica dos factos a tal respeito, na medida em que, nesta matéria o Supremo Tribunal conhece do direito oficiosamente e não está dependente das alegações dos sujeitos processuais.
Tanto mais que a eventual alteração da qualificação jurídica está legitimada por postulada pela alegação da defesa que reclama contra a qualificação do homicídio por que o arguido foi condenado.
A propósito deste ponto discorreu o aresto ora sob apreciação:
«Em sede de matéria do direito o objecto do recurso incide sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos provados e a medida da pena.
(...) Vejamos o enquadramento jurídico-penal quanto ao crime de homicídio.
Defende o recorrente que a sua conduta integra a previsão normativa do art. 133º, do CP, ou seja, o crime de homicídio privilegiado, por ter agido sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da infidelidade da RMMT sua esposa.
O art. 133º, do CP consagra que «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos».
(...)
No caso dos autos, defende o recorrente que a sua conduta integra a previsão normativa do citado art. 133º, do CP, porquanto agiu sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da infidelidade da RMMT sua esposa.
Em face da avaliação conjunta e global da situação, ao tirar a vida à sua esposa, terá o arguido agido dominado por forte e compreensível emoção? Constituirá a ideia da infidelidade da vítima, compreensível emoção?
Na esteira do que argumenta o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 50 «Compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas a sua verificação nos termos preditos».
«Ao colocar como circunstância privilegiante do crime o estado emocional do autor, o art. 133º acentua: o grau da emoção ("violenta"), a força que deve exercer sobre o agente ("dominado") e a necessidade de ela se verificar no momento da prática do facto, como causa do crime. Trata-se, pois, de um estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma.» (vide Amadeu Ferreira , in ob. cit., pág. 63).
Exige-se ainda, para que seja possível o enquadramento da conduta no homicídio privilegiado, tal como resulta do texto da norma - matar dominado por - que haja um nexo de causalidade entre qualquer dos estados de afecto, referidos no preceito - a emoção violenta, a compaixão, desespero e qualquer motivo, de relevante valor social ou moral - e a prática do crime (vide, neste sentido, Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 13ª Ed. 1999, pág. 465, Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 50).
«Há compreensível emoção violenta, justificativa do privilegiamento do crime de homicídio (art. 133º do CP) quando o agente, no momento da prática do crime, actua sob forte e explicável perturbação do seu psiquismo, alterando a sua capacidade de reflexão em virtude de uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente» (vide Ac. do STJ de 06-03-2003, in Proc. nº. 4406/02 - 3ª Secção).
«Compreensível emoção violenta é um estado emocional não censurável ao agente e susceptível de afectar o homem médio suposto pela ordem jurídica", exigindo-se "que a emoção, para além de compreensível, seja violenta, devendo portanto atingir elevada gravidade ou grau de intensidade" (Maia Gonçalves, in "Código Penal Português", 14ª ed. pg. 460, e Ac. do STJ de 28-05-2003, in Proc. nº. 1210/03 - 3ª Secção).
Aplicando os conceitos ao caso subjudice, a conduta do arguido FJV, não se pode integrar na previsão normativa do homicídio privilegiado, a que alude o art. 133º, do CP.
E, isto, porque:
Por um lado, o arguido, muito embora desconfiasse da infidelidade da vítima, no entanto, no momento em que efectuou os dois disparos que atingiram a infeliz RMMT, não estava dominado por um forte estado de afecto emocional provocado por essa desconfiança, de tal forma que estivesse afectado nas suas capacidades de determinação ou que a sua capacidade de controle em relação aos seus actos estivesse reduzida ou afectada, nem que tivesse efectuado os disparos, que levaram à morte da vítima, sem conseguir explicar racionalmente ou aceitar, em situação normal.
Ou seja, o arguido não agiu sob forte e explicável perturbação do seu psiquismo, que alterasse a sua capacidade de reflexão, em virtude de uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.
Por outro lado, a desconfiança da fidelidade da esposa também não configura, na avaliação conjunta e global dos factos, a pré-existência de um conflito interior inalterável, e que em regra dura há bastante tempo, que leva ao fenómeno do transbordamento, da descarga afectiva, tal como lhe chama a doutrina.
«É este conflito interior que o agente não consegue resolver e pode dar origem à emoção: através de tentativas infrutíferas de dominar o conflito e que levam o agente a uma perda progressiva de forças, a emoção atinge uma intensidade elevada e conduz ao desenvolvimento de um mundo de fantasia e às acções objectivamente mais insensatas (vide Amadeu Ferreira, in ob. cit., pág. 102-103, e doutrina ali citada).
Da factualidade provada resulta que o arguido desconfiava que a RMMT, sua esposa lhe era infiel, contudo, não resultou provado o arguido ao pegar na arma e disparar em direcção à vítima os dois tiros, se sentia humilhado, diminuído, violentado, provocado, desesperado e perturbado.
Em suma: o arguido no momento em que ao disparar sobre a vítima, tirando-lhe a vida, não agiu dominado por um estado de afecto emocional provocado por uma situação exógena ou endógena, de tal forma que não possa ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível.
Assim sendo, a conduta do arguido integra a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131º e 132º, nº. 2, do CP.».

Daqui parte para a consideração da medida da pena aplicada ao arguido.
Mas, se não repugna aceitar a decisão quanto ao entendimento ali perfilhado, de afastar do caso qualquer hipótese de privilegiamento do homicídio, já terá de observar-se que, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido no desenvolvimento do seu raciocínio «salta» alguns degraus lógicos, pois, como facilmente se intuirá, não basta o afastamento da hipótese privilegiada de homicídio, para logo se concluir que o arguido cometeu o crime qualificado.
Para mais, tendo em conta, tal como resulta do relato feito, que a qualificação operada em 1ª instância apontava para um crime «p. e p., pelos artigos 131º e 132º/1 e 2, al. d), ambos do Código Penal», pelo exposto, em tudo confirmada pela Relação.
Ora a alínea d), daquele nº. 2 reporta-se à circunstância de o arguido «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil».
Ao assim decidir, a Relação deu o seu aval a este entendimento do tribunal de 1ª instância:
«No que se refere ao crime de homicídio, dispõe o art. 131º do Código Penal que "Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos."
(...) Aqui chegados, e preenchido que está o crime de homicídio simples, cumpre agora analisar a agravante que vem imputada ao arguido.
O art. 132º/1 do Código Penal estabelece que "se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos".
O nº. 2, al. d) do mesmo artigo estabelece que "é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente "ser determinado (...) por qualquer motivo torpe ou fútil".
Sobre este preceito cumpre desde já acrescentar algumas palavras do mestre acima identificado o qual, na obra já citada, a págs. 25 a 27, esclarece que estamos perante uma agravação que se relaciona com um especial tipo de culpa - os elementos agravativos situam-se ao nível da culpa do agente, e não da ilicitude dos seus actos - utilizando a técnica dos exemplos-padrão e que se relaciona com uma "imagem global do facto agravada".
Quer isto dizer que este artigo, esta agravação, só se aplica quando o quadro da acção do agente do crime for especialmente grave ao nível da sua culpa, ou seja, da censura da atitude e das resoluções do agente, embora tal atitude se reflicta, naturalmente, na ilicitude da acção. Por outro lado, significa que os exemplos do nº. 2 do artigo 132º são apenas indícios de que a tal especial censurabilidade poderá existir, mas não significa que esta existe sempre que aqueles se verifiquem ou, por outro lado, que a especial censurabilidade só exista quando alguma daquelas previsões se verificar.
Assim sendo, e de diferente em relação ao crime tipo previsto no artigo 131º do Código Penal temos que é ao nível do tipo de culpa que reside a diferença e não ao nível da ilicitude, com a ressalva supra referida.
Isto significa, desde logo, que o dolo exigido ao arguido não tem qualquer alteração em relação ao crime tipo, devendo o julgador partir da situação tal como ela foi representada pelo agente, e a partir daí, avaliar a sua censurabilidade - obra citada, pág. 43.
Tendo em conta a douta acusação proferida nos autos, temos como importante analisar as circunstâncias que levaram a esta acusação, embora o Tribunal não esteja vinculado à qualificação jurídica dada pelos sujeitos processuais.
Relativamente ao artigo 132º/2, al. d) do Código Penal, cumpre dizer que por motivo torpe ou fútil entende aquele autor, pág. 32. como sendo "o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito".
Ao nível da jurisprudência, cumpre agora analisar o acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 1999, em BMJ, nº. 492, págs. 168 a 188, onde, para além de se concordar com a natureza do tipo de crime previsto no artigo 132º do Código Penal - nomeadamente ao nível da natureza dos elementos padrão como não sendo de aplicação automática e do facto de a especial censurabilidade estar ligada à culpa do agente e não à ilicitude da acção - se esclarece, quanto ao motivo fútil, que "não se mostrando suficientemente indagado qual o motivo que determinou o crime, designadamente o teor de uma discussão prévia, a não explicitação da sua causa, não é possível afirmar que o motivo seja fútil".
A nossa jurisprudência tem vindo a entender que motivo fútil é o que não chega a ser motivo, racionalmente analisado, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.
Ora, no caso dos autos, entendemos que a referida circunstância não se verifica.
De facto, resultou provado dos autos que o arguido agiu por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da ofendida.
Assim, entendemos, face à noção dada de motivo fútil, que o motivo que levou o arguido a praticar o facto dos autos não é um motivo fútil.
No entanto, como já referimos, o tribunal não se encontra vinculado à qualificação jurídica feita na acusação e pode, verificando-se que a conduta do agente reveste especial censurabilidade ou perversidade, considerar o crime de homicídio imputado ao arguido qualificado por outra circunstância.
Analisadas todas as circunstâncias que rodearam a prática do crime de homicídio em causa nos autos, nomeadamente, que:
- o arguido era casado com a ofendida;
- dessa união nasceram três filhos, que tinham, à data dos factos, 10, 7 e 6 anos de idade;
- o arguido decidiu pôr termo à via daquela;
- pegou na sua arma de caça e com a falecida RMMT confinada ao espaço do quarto de dormir de ambos, apontou-a na direcção da mesma e efectuou dois disparos, atingindo a RMMT nos pulmões, coração, região hepática e na perna esquerda;
- a arma encontrava-se no quarto do casal e foi carregada com dois cartuchos, pelo arguido, antes de efectuar os disparos;
- os disparos foram efectuados a uma distância de cerca de um metro e meio;
- um dos disparos teve uma trajectória da esquerda para a direita e atingiu a vitima junto da omoplata esquerda (ou seja, foi efectuado quando a ofendida se encontrava de costas para o arguido);
- os disparos foram feitos com cartuchos zagalote;
- no momento em que foram efectuados os disparos os filhos de arguido e vitima encontravam-se em casa;
- os filhos RTV e MTV encontravam-se na cozinha e GTV que tinha seguido os seus pais encontrava-se à porta do quarto do casal, tendo assistido à prática dos factos;
- ao ouvir os disparos, RTV dirigiu-se ao quarto dos pais viu que a mãe se encontrava caída no chão e, a correr, foi chamar os avós, gritando que o pai tinha morto a mãe;
- o arguido agiu por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da ofendida;
- o arguido agiu de surpresa e sem que a vitima se pudesse defender;
conclui-se que tais circunstâncias exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do arguido e são merecedoras de um severo juízo de censura.
De facto, no seguimento do entendimento do Ac. do STJ, de 03.04.1991, BMJ, 406, 314, e tendo em conta a similitude de situações, entendemos que é merecedor de "intensa reprovação o facto de a vitima ser mulher do arguido que, ao mata-la, violou gravemente o dever de respeito e de cooperação que a lei lhe impõe (art. 1672º e 1674º do Código Civil), sendo certo que não se descortina por parte daquela qualquer atitude que, mínima e humanamente, permita compreender a sua brutal atitude."
De facto, tanto na situação analisado no âmbito do citado acórdão, como na situação em análise nos autos deve referir-se que "se o arguido possuísse uma personalidade que fosse estranha ao seu comportamento (como alega a defesa) revelaria arrependimento por ter causado a morte à sua mulher e mãe dos seus filhos" que, atenta a sua idade, muito carenciados se encontram dos cuidados maternos.
Como resulta dos autos, o arguido não denotou qualquer atitude demonstrativa de sincero arrependimento.
Mais, o comportamento do arguido foi de tal modo perverso que não se coibiu de praticar estes factos horrendos com os seus filhos menores em casa e mesmo na presença de um deles com apenas 6 anos de idade.
Está assim verificado, em nossa opinião, o tipo qualificado do crime de homicídio, por as circunstancias em que foi praticado serem de especial censurabiliadade e perversidade contra cônjuge.»

Afastada a agravante-padrão avançada pela acusação - da alínea d) do nº. 2, do artigo 132º do Código Penal - a conclusão do tribunal de 1ª instância, avalizada pelo da Relação, é, assim, pela verificação do chamado homicídio qualificado atípico, isto é, homicídio qualificado sem recurso a nenhuma das agravantes padrão previstas no artigo 132º citado.
Importa, porém, reter como já aqui tem sido advertido em muitos outros casos, que o recurso àquela figura jurídica há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, "é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados ... sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o juiz, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação (...) parlamentar em última instância, que tem o legislador penal" (3-4), e que a legitimação para a sua aplicação assentará in extremis, na consideração de que "a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado" e, que, "com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico" (5).

Não deve perder-se de vista ainda que será pensamento da lei, "o de pretender imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas que em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (6)".
Mas, se assim, desde logo nos deparamos com alguma imprecisão na fundamentação das instâncias já que, ao considerarem a qualificação pelo lado da especial perversidade, ou seja, no dizer do Mestre citado, «no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas», não assentam nos factos provados, mormente através de uma imprescindível valoração ou individualização, essa qualificação especialmente desvaliosa da personalidade do agente.
Afinal, até ao dia da consumação do crime, pode afirmar-se que o arguido não passava de um homem normal, tendo em conta, nomeadamente, que não sabia ler nem escrever, exercia a profissão de agricultor e trabalhava em obras de construção civil, era trabalhador e não possuía antecedentes criminais.
Portanto, não pode sufragar-se, ao menos com a base de facto que se adiantou, a qualificação do homicídio por via da invocada especial perversidade do recorrente.
É certo que se provou que o arguido não mostrou arrependimento, assim como conclusivamente se levou aos factos provados que «o arguido agiu e demonstrou ser insensível ao valor da vida humana e "in casu", a vida sua mulher».
Mas, para além de aquela falta de manifestação de arrependimento não constituir propriamente uma especialidade, já que quem lida com a prática forense sabe que é muito comum isso acontecer, é certo que não se vê também no caso como concluir pela indicada «insensibilidade perante o valor da vida humana», pois tal conclusão para além de não repousar em factos concretos que habilitem à sua formulação, é afinal um pressuposto comum a todo o homicídio, pois, não fora a «insensibilidade perante o valor da vida humana» muito provavelmente o homicida não levaria a sua avante.
Nada de especial, pois, por este prisma, em relação ao acto do arguido, que o possa distinguir negativamente de qualquer outro homicídio.
Até porque, essa circunstância sempre poderá e deverá ser tida em conta a nível de doseamento, tal como emerge do disposto no artigo 72º, nº. 2, c), do Código Penal.

Mas poderá ter-se o caso como de especial censurabilidade, ou seja, terá o acto homicida assumido forma de realização especialmente desvaliosa?
Realização desvaliosa, teve sem dúvida. Tanto mais que o arguido agiu de surpresa, «sem que a vítima se pudesse defender».
Mas estando os dois num quarto, e ele armado, obviamente que não terá sido a surpresa a fazer a diferença, pois, em qualquer caso, nunca seriam grandes as possibilidades de defesa perante o disparo de uma arma de fogo, necessariamente a curta distância, ante a configuração necessariamente exígua para o uso de uma arma desse tipo, do local do crime.
É certo ainda que o arguido tinha especiais deveres derivados do seu casamento com a vítima, de respeito e mesmo de coabitação, cooperação e assistência, tal como emerge, nomeadamente do artigo 1672º do Código Civil.
Mas o reflexo penal da violação desses deveres não necessita de passar pela qualificação do crime para relevar a nível da medida da pena.
Basta atentar no disposto no artigo 71º, nº. 2, a), do Código citado, nomeadamente quando manda atender ao «grau de violação dos deveres impostos ao agente».
Não deixa de ser digno de nota, nesta «conta-corrente» - devedora - do acto do arguido, a circunstância, em abstracto deveras censurável, de parte do facto criminoso ter ocorrido sob o olhar de, pelo menos, um dos filhos menores do casal.
Mas as instâncias, em lado algum da sentença, conseguiram afirmar que o arguido sabia, ou, mesmo, se deu conta dessa circunstância, omissão que, naturalmente, ante as regras de valoração do prova em processo penal, só o pode beneficiar.
Há ainda as circunstâncias do disparo - a curta distância - assim como o uso de zagalotes nos disparos efectuados.
Mas também aqui é possível afirmar que o regime geral de doseamento das penas tem capacidade bastante para valorar devidamente tais circunstâncias em sede concretização da pena.
O que, por direitas contas, nos leva à conclusão de que o homicídio em causa, sendo sem discussão, um acto criminoso e, até, bárbaro do arguido, se não pode ser tido como um caso de homicídio privilegiado, também não integra, não obstante, a previsão do artigo 132º do Código Penal - homicídio qualificado .
Estamos, assim, perante um caso grave de homicídio, mas em todo o caso, de homicídio simples, com previsão apenas no artigo 131º do Código Penal, ou seja, punível com uma pena que vai de 8 a 16 anos de prisão.
No doseamento concreto, haverá de ter em conta nomeadamente as circunstâncias de cariz agravante que se enunciaram, não esquecendo ainda assim as [poucas] atenuantes de que o arguido deve beneficiar, e assim, por um lado, que é analfabeto, e, também, que a vítima, sem que se saiba porquê - ignorância mais uma vez favorável ao arguido em sede de valoração da prova - «após finais de Março de 2002, quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um contrato de trabalho, (...) passou a não querer manter relações sexuais com ele», circunstância, que, pelo menos, permitirá a afirmação de que nem só do lado do arguido terá havido violação dos deveres conjugais, e pode até ajudar a explicar as dúvidas surgidas naquele espírito pouco iluminado sobre a (in)fidelidade dela.
Tudo ponderado, tem o Supremo Tribunal como adequada às circunstâncias enunciadas do caso a pena de 15 anos de prisão pelo crime de homicídio.
Atendendo aos factos e à personalidade do arguido, em cúmulo jurídico com as penas parcelares pelo crime de maus tratos supra referido (2 anos de prisão) e detenção ilegal de arma de fogo (1 ano de prisão), em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nº. 2, do Código Penal, fixar a pena única conjunta em 16 anos de prisão.

3. Termos em que:
A - Por irrecorribilidade, não conhecem das questões de facto, rejeitando essa vertente do recurso.
B - Pelo mesmo motivo, rejeitam o recurso nas vertentes em que se debruça sobre os crimes de maus tratos e detenção ilegal de arma de fogo em que o arguido foi condenado pelas instâncias.
C - No parcial provimento do recurso, e embora por razões não inteiramente coincidentes, revogam em parte o acórdão recorrido, para ficarem a valer, com os fundamentos expostos, as penas parcelares e única ora aplicadas.
O recorrente porque decaiu em parte no recurso pagará custas com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta.

Lisboa, 27 de Maio de 2004
Pereira Madeira
Santos Carvalho
Rodrigues da Costa
Quinta Gomes
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(1) Caso em que teria de admitir-se a admissibilidade do recurso, uma vez que a pena aplicável supera(va) o limite dos oito anos.
(2) Cfr. Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, págs. 325.
(3) Cfr. Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, os homicídios AAFDL, págs. 67.
(4) Com reticências obre as vantagens desta técnica de ampliação do homicídio qualificado, se manifesta o Prof. Figueiredo Dias Direito Penal II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 204-205.
(5) Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, págs. 75.
(6) Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, págs. 29 § 7.