Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4157/20.6T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO NOME
DIREITOS DE PERSONALIDADE
FACTO ILÍCITO
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I. São internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da violação de direitos de personalidade através de difusão global e não autorizada do nome, imagem e características pessoais e profissionais do autor em videojogos e jogos para computador, os Tribunais do país onde teve lugar essa difusão e o lesado se encontrava domiciliado e/ou tinha o seu centro de interesses pessoais e profissionais, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.

II. Os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil, para o julgamento de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos alegando o autor que a violação do seu direito aconteceu em Portugal, por ali terem sido, como em todo o mundo, distribuídos e estarem disponíveis aos consumidores interessados os jogos produzidos pela ré em que era abusivamente utilizado o seu nome e imagem.

III. Nessas circunstâncias, apesar de parte dos factos ofensivos do alegado direito do autor terem sido praticados no estrangeiro, surpreende-se entre a causa baseada na acção violadora do direito alheio promovida pela ré e o Estado Português um elemento de conexão suficientemente forte e que permite que, no eventual confronto com outros ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais, sejam os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da alegada violação do direito de personalidade dos autor.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, em nome do POVO PORTUGUÊS, os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

I – Introdução

1. AA, residente na Avenida ..., ..., ... em ..., demandou no Juízo Central Cível de ...:

Electronic Arts, Inc., com sede em ..., ..., ..., no ... – Estados Unidos da América.

O autor pede a condenação da ré nos seguintes termos:

- a pagar, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 90.000,00 (noventa mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 27.794,63 (vinte e sete mil, setecentos e noventa e quatro euros e sessenta e três cêntimos), tudo no total de € 117.794,63 (cento e dezassete mil, setecentos e noventa e quatro reais e sessenta e três cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

- a pagar ao autor montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.317,81 (dois mil, trezentos e dezassete euros e oitenta e um cêntimos), tudo no total de € 7.317,81 (sete mil, trezentos e dezassete euros e oitenta e um cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Alega o autor, em apertada síntese, o seguinte:

A ré, empresa norte americana líder na concepção e fabrico de videojogos e jogos para computador, produziu e comercializou entre 2009 e 2020 jogos com a designação ..., ..., ... – ... e ..., seguida de referência identificadora do ano de edição, em que utilizou, como elemento do jogo, o nome e a imagem do autor e as suas características pessoais e profissionais enquanto jogador profissional de futebol.

Os referidos videojogos e jogos para computador foram distribuídos e comercializados em todo o mundo pela ré, sendo-o na Europa através de uma empresa sua “subsidiária”, a EA Swiss, Sàrl.

A utilização do seu nome, imagem e características pessoais e profissionais enquanto jogador de futebol não foi, por qualquer forma, autorizada pelo autor, sendo certo que tal utilização abusiva ocorreu em milhões de cópias dos jogos com a mencionada designação ... distribuídos e comercializados pela ré.

Da utilização não autorizada da sua imagem nos jogos produzidos e comercializados pela ré resultaram para ele danos de natureza patrimonial e não patrimonial.


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2. A ré, tendo sido regularmente citada, deduziu contestação em que, além do mais e para o que agora releva, invocou a excepção de incompetência internacional dos Tribunais portugueses por não ocorrer o fundamento de nenhum dos três critérios de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, segundo a legislação processual civil portuguesa.

Alegou a ré que, de acordo com a petição inicial, o autor vive desde 2018 na ..., onde exerce a sua actividade profissional de jogador de futebol e que ela não distribui nem comercializa directamente os jogos ... que produz em Portugal ou no espaço europeu, sendo essa comercialização efectuada por uma empresa Suíça. Mais alega que o autor não concretiza qualquer dano que tenha ocorrido em Portugal e lhe seja imputável.


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3. O autor respondeu à matéria das excepções invocadas e, no que se refere à incompetência internacional dos tribunais portugueses, pronunciou-se no sentido de os Tribunais portugueses serem internacionalmente competentes para apreciação do pedido que formula na presente acção com base nos critérios de atribuição de competência do artigo 71.º e 62.º do Código de Processo Civil.

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4. Em sede de audiência prévia realizada no dia 14 de setembro de 2021, foi proferido despacho saneador sentença que, conhecendo da invocada excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, adoptou a seguinte decisão:

“Pelo exposto, decide-se declarar a incompetência absoluta deste tribunal por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses, assim determinando a absolvição da ré da instância.”


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5. Inconformado o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.

Em resumo, invoca o autor que:

A ré produziu e comercializou milhões de jogos de vídeo contendo o nome, a imagem e demais características pessoais e profissionais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.

O autor concretizou na petição inicial a ocorrência de danos ao seu nome e imagem imputáveis à ré, os quais se verificaram em Portugal, como no resto do mundo, porquanto os mencionados jogos são comercializados, distribuídos e jogados pelos consumidores, com ilícita utilização da imagem e nome do autor.

A obrigação de reparação resulta do uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano concreto, a qual se traduz na própria utilização não autorizada e indevida do seu nome e imagem.

Foi praticado em território português o facto, ou pelo menos alguns dos factos, que servem de causa de pedir na ação pelo que ocorre o factor de conexão por força do disposto no artigo 71.º n.º 2 do Código de Processo Civil e na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
O autor é cidadão nacional e tem o seu domicílio e centro de interesses em Portugal, pelo que, tendo a ofensa ao direito de personalidade de que é titular aqui também ocorrido, os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
A necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
Os Tribunais portugueses, sendo os do lugar onde o autor tem o centro dos seus interesses de vida, podem apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo e de computador (em suporte físico ou online) sobre os seus direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.


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6. A ré apresentou contra-alegações nas quais pugna pela improcedência da apelação.

Em síntese, defendeu que não assiste razão ao autor, por não existir, à luz das regras atributivas de competência internacional aos tribunais portugueses (artigo 62.º alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil) e dos factos invocados pelo autor, qualquer elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa, conforme decidido em primeira instância.


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7. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 24 de fevereiro de 2022, foi julgada improcedente a apelação interposta pelo autor e confirmada a decisão proferida em primeira instância que considerou internacionalmente incompetentes os Tribunais portugueses para o julgamento da acção.

O sumário do mencionado acórdão é do seguinte teor:

“1 - A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se a partir dos termos em que o autor configurou a relação jurídica controvertida, pressupondo que o pleito revela um ou mais elementos de conexão com um, ou com vários ordenamentos jurídicos diferentes do ordenamento do foro.

2 - Consubstanciando-se na perspectiva do Autor, revelada na petição inicial, o facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual por parte da Ré na utilização indevida do nome e imagem do Autor por via da produção por aquela de jogos electrónicos, de vídeo e aplicações contendo o nome, características pessoais e profissionais e a imagem daquele sem a sua autorização, ou consentimento, (sujeitos a posterior divulgação e venda), nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão é de concluir serem os Tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para apreciar e decidir a causa, uma vez que a competência internacional dos mesmos dependeria da alegação pelo Autor da prática em território Português do facto ou de algum dos factos que integram a causa de pedir complexa, a saber, o facto ilícito, o nexo de causalidade e o dano, o que não sucede no caso concreto revelando-se, outrossim, irrelevante para o efeito os diversos locais da posterior divulgação, visualização ou aquisição pelo consumidor final dos ditos jogos.”


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II – A Revista

1. O autor interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por admissível, independentemente da concordância das decisões da primeira e segunda instância, foi oportuna e regularmente admitido.

São do seguinte teor as Conclusões das alegações apresentadas:

“a) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos que julgou o recurso interposto, pelo Autor, improcedente e, em consequência, manteve a decisão recorrida, que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da acção e, em consequência, absolve a ré da instância.

b) Assim, salvo diferente entendimento, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, objecto do presente recurso, incorre em manifesta violação das regras de competência internacional, mais concretamente, na violação das disposições firmadas nas alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

c) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.

d) Entende o ora recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.

e) No que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

f) É que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

g) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.
h) E imagine-se que, alguém escrevia um livro em sua casa denegrindo ou simplesmente fazendo uso não autorizado da imagem da personalidade “A” ou até que esse alguém pintava um quadro com uma imagem menos abonatória dessa mesma personalidade “A”.
i) Apenas não poderia ser invocado qualquer dano pela personalidade “A” pela utilização ilícita da sua imagem, se tal livro e tal quadro não saíssem nunca da casa do seu autor.

j) O mesmo já não se pode afirmar se tal livro e/ou tal quadro fossem promovidos, divulgados e comercializados por todo o mundo, inclusive, no local de residência daquela personalidade “A”, nomeadamente, em estabelecimentos de toda a espécie.

k) É assim, manifesto que os danos ocorreriam em todos os locais onde essa comercialização e divulgação tivesse lugar.
l) Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.
m) Por isso, a tese sufragada no acórdão recorrido, apenas faria sentido, salvo o devido respeito, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.
n) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

o) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

p) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de argumentação, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2005.

q) É este o contexto que nos encontramos, mas que o Tribunal a quo desconsidera totalmente, desvalorizando, de igual modo a protecção que a pessoa humana e a sua imagem merecem no ciberespaço.
r) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.
s) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas - ao contrário do referido no acórdão recorrido - a sua divulgação e exploração comercial não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.
t) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.
u) O centro de interesses do Autor é em Portugal, pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.

v) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil e sendo arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
w) Mais se diga ainda que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem pôr em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
x) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto nas alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil: poder a acção ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, ter sido praticado em território português o facto que serve de  causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir) e constituir, também, para o Autor uma séria e apreciável dificuldade a propositura da presente acção nos Estados Unidos da América, uma vez que não  se verificam  quaisquer afinidades culturais,  linguísticas,  nem qualquer ligação do Autor àquele país.

y) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constante das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

z) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.
aa) Face ao que antecede, o acórdão em crise violou o disposto nos artigos 62.º, alíneas a), b) e c), e 71.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º, 72.º e 79.º do Código Civil.”


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2. A ré apresentou resposta às alegações do autor, as quais remata pela forma seguinte:

“a) O presente recurso de revista, interposto pelo autor, visa a revogação do acórdão de 24.02.2022, pelo qual se declarou procedente a exceção de incompetência internacional, porque esta ação não reúne os necessários elementos de conexão com a ordem jurídica Portuguesa.

b) O recurso interposto pelo autor deverá ser rejeitado, improcedendo o único fundamento invocado: erro na aplicação da lei, por alegada violação das regras de competência internacional.

c) In casu, a exceção de incompetência internacional submetida à apreciação deve ser dirimida, exclusivamente, à luz do regime interno, por inexistir qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável, incluindo de fonte europeia.

 d) A ré tem sede nos Estados Unidos da América, não lhe sendo aplicáveis os normativos europeus relativos à competência, já que não tem sede num Estado-Membro da UE.

e) De igual modo, são inaplicáveis aos presentes autos as considerações e princípios desenvolvidos pela jurisprudência europeia, destinados a interpretar os conceitos dos regulamentos europeus em matéria de competência dos tribunais:

– “A Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2020, Proc. 1608/19.6T8GMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

f) Por outro lado, a aplicação analógica de jurisprudência europeia redundaria na efetiva aplicação de direito europeu, em contravenção das disposições nacionais e europeias.

g) Acresce que não se identifica qualquer lacuna na regulamentação nacional que careça de “aplicação analógica” de jurisprudência europeia.

h) Para apreciação os fatores de conexão consagrados nas alíneas do art.º 62.º do CPC, importa considerar apenas a factualidade invocada na petição inicial.

i) Tendo-se estabelecido, na decisão revidenda, mutatis mutandis, a seguinte factualidade relevante:
Quanto ao autor:
(i) O autor refere ser jogador de futebol (artigo n.º 3 da petição inicial);
(ii) O autor refere ter atividade profissional na ... (artigo n.º 3 da petição inicial);
Quanto à ré:
(iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no ..., nos Estados Unidos da América;
(iv) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo 1.º e 2.º da petição inicial);
(v) O autor refere que "a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sàrl" (artigo 2.s da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;
Quanto ao facto ilícito imputado à ré:
(vi) Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos ... e ..., chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros (artigos n.º 27.º e 38.º da petição inicial).
(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.

j) Contra este quadro factual e com vista ao preenchimento do fator de conexão previsto na alínea a) do art.º 62.º do CPC – critério da coincidência – o autor sustenta que o facto ilícito ocorre também em Portugal, porque os jogos ... são vendidos em Portugal por terceiros que não a ré.

k) Sucede que o facto ilícito imputado à ré não consiste na venda de jogos em Portugal, mas sim na produção dos mesmos que, reconhecidamente, ocorre no estrangeiro.

l) É o próprio autor quem declara, no já identificado art.º 2.º da petição inicial, que (i) a ré não tem atividade em Portugal e (ii) quanto à comercialização dos jogos, a ré apenas se dedica aos mercados dos EUA, Canadá e Japão.

m) O que significa que a ré não pratica qualquer ato lícito ou ilícito em Portugal e, nessa medida, mesmo em abstrato, o lugar do alegado facto ilícito não ocorre em Portugal.

n) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC – critério da causalidade –, impunha-se ao autor identificar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

o) No entanto, nem os factos alegados na petição inicial, nem os documentos juntos são, em tese, aptos a tal.

p) Quanto ao facto ilícito atribuível à ré, o mesmo ocorre – centrados na tese do autor – nos Estados Unidos da América, não bastando, neste contexto, sustentar que foram alegados factos praticados em território nacional, indicando, como único exemplo, a afirmação que os jogos ... são vendidos em todo o mundo, incluindo Portugal, ainda que por terceiros.

q) De igual modo, não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional.

r) O autor, órfão de factos para sustentar a conexão com Portugal, procura compensar esse vazio, retratando, como um único facto, realidades autónomas e com diferentes esferas de imputação, a saber:
(i) alegação de vendas, por terceiros, em Portugal; e
(ii)alegação de atos praticados pela ré no estrangeiro.

s) Partindo dessa conjugação artificial, num único facto, o autor imputa à ré a produção de danos, de forma conclusiva e sem os localizar territorialmente.

t) Sucede que tais factos têm de ser apreciados como realidades individuais e não forjando uma síntese entre ambos. Ou seja, tais factos não se podem confundir porque os atos praticados pela ré ocorrem no estrangeiro e os atos de comercialização em Portugal não são atribuíveis à ré.

u) Nenhum destes factos permitindo, autonomamente, assacar à ré a prática de qualquer ato em Portugal gerador de responsabilidade civil.

v) Mesmo adotando-se a tese do autor, se o dano equivale ao facto ilícito, então este dano apenas poderia ocorrer no local da produção dos jogos.

w) Trata-se de factos ou conclusões sem conexão com o território nacional e muito menos em termos relevantes, para permitir que os nossos tribunais avoquem a competência internacional para este pleito.

x) A comercialização plurilocalizada dos jogos e, na Europa, por entidades que não a ré, não pode ser tida como um fator distintivo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.

y) Acresce que para que se estabeleça a competência internacional dos tribunais portugueses é necessário que os factos materiais localizados em Portugal apresentem uma conexão relevante com o ordenamento nacional.

z) O que manifestamente não se verifica neste pleito, já que a comercialização dos jogos ..., a nível mundial, revela ligação identicamente ténue com todos esses territórios e, nessa medida, não assume particular conexão que justifique a atribuição de competência internacional a Portugal.

aa) Na verdade, a consideração da venda, por terceiros, como fator de conexão geraria uma situação de conflito positivo de competência internacional, já que qualquer tribunal do mundo, considerar-se-ia competente para esta lide, hipótese que as normas de competência internacional visam evitar.

bb) A alegação do autor, posterior à petição inicial, acerca da ocorrência de danos globalmente e, por isso, também no seu domicílio, apelando aos conceitos de centro de interesses, boa administração da justiça e previsibilidade das normas de competência, não permite colmatar a falta de invocação de quaisquer danos em Portugal, por vários motivos:
(i) antes de mais, são conceitos incorretamente importados da jurisprudência europeia densificadora das normas europeias e que, como se viu, não têm aplicabilidade no caso dos autos;
(ii) a tese do autor que faz equivaler o dano ao facto ilícito levará à conclusão de que o dano ocorreu no local da produção dos jogos, no estrangeiro e não no local do seu centro de interesses;
(iii) os conceitos desenvolvidos pela jurisprudência europeia para efeitos da aferição do tribunal competente para a lide são claros em afirmar a irrelevância do dano subsequente ocorrido no domicílio do autor;
(iv) os conceitos de centro de interesses, boa administração da justiça e previsibilidade das normas de competência não encontram um mínimo de correspondência com a letra ou com o espírito dos critérios de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC;
(v) apenas a factualidade constante da petição inicial é relevante para a averiguação da competência;
(vi) não são alegados danos concretos, tampouco verificados em Portugal; e
(vii) a alegação de que o dano ocorre em todo o mundo e também na residência do autor não traduz, como vimos, uma conexão suficiente ou relevante com a jurisdição portuguesa.

cc) Mostrando-se, nessa medida, não verificado o critério consagrado no art.º 62.º, alínea b) do CPC.

dd) Quanto à alínea c) do art.º 62.º do CPC – critério da necessidade – o autor não invocou quaisquer razões objetivas que evidenciem uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

ee) Pelo contrário, sabendo-se que a matéria dos direitos de imagem é amplamente reconhecida nas várias jurisdições, o autor informou os autos ter conhecimento de casos em que direitos dessa natureza foram exercidos, na jurisdição da sua sede.

ff) A circunstância de se tratar de direitos com assento constitucional também não releva para efeitos da determinação do tribunal internacionalmente competente, inexistindo qualquer norma que ressalve a competência dos tribunais portugueses quando em causa estejam direitos protegidos pela Constituição.

gg) O conceito de centro de interesses ou o princípio da boa administração da justiça, que o autor pretende sustentar para interpretar o critério da necessidade, não são aptos a abrigar o conceito de “necessidade” de tutela por razões de conveniências logísticas relacionadas com a proximidade da vida familiar do autor.

hh) Daí que se conclua que não se verifica nenhum dos fatores de conexão previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 62.º do CPC, já que inexiste alegação factual sobre a prática de ilícito em Portugal, sobre a causa de pedir ou qualquer facto que a integre, praticado em Portugal ou sobre a necessidade de demandar a ré em território nacional.

ii) Em suma, o recurso de revista interposto deve improceder in totum, nos termos já apontados pelo Tribunal a quibus, na medida em que os factos alegados pelo autor não revelam a verificação de quaisquer fatores de conexão relevantes que atribuam competência internacional à ordem jurídica Portuguesa.

jj) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso do autor.”


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3. Admitido o recurso de revista e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no seu julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista apresentadas pelo autor, a questão a resolver é unicamente a da (in)competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar a presente acção, a qual – recorde-se – foi declarada, de modo essencialmente concordante, em primeira e segunda instância.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

1. Os factos relevantes para a decisão sobre a questão são os que emergem do antecedente relatório.

De forma mais concreta e pormenorizada se dirá que se extraem da petição inicial os seguintes factos com interesse para a apreciação da questão a que cumpre dar resposta:

O autor é jogador profissional de futebol, tendo representado, na posição de ..., diversas equipas de futebol portuguesas e estrangeiras e integrado seleções nacionais de futebol, pelo que, no exercício dessa actividade adquiriu notoriedade a nível nacional e internacional.

Desde a época de 2008/2009 até à época de 2014/2015 o autor exerceu a sua actividade profissional em Portugal e ao serviço de equipas portuguesas, mantendo em Portugal o seu domicílio e o centro dos seus interesses pessoais e económicos.

Entre 2015 e o final da época de 2017/2018 o autor exerceu a sua actividade profissional ao serviço do Clube ... (República ...) e nas épocas de 2018/2019 e 2019/2020 representou o C..., da ....

A ré (Electronic Arts, Inc.), com sede no ... – Estados Unidos da América, é produtora e proprietária de jogos para computador, videojogos e aplicativos com a designação ..., ..., ... (...) e ... os quais comercializa e distribui por todo o mundo, em suporte físico e online, fazendo-o directamente nos mercados dos Estados Unidos da América, Canadá e Japão e através da sua “subsidiária” EA Swiss, Sàrl, para todos os restantes países, incluindo os países membros da União Europeia.

A ré, sem qualquer autorização do autor, utilizou o seu nome e imagem bem como características pessoais e profissionais do autor na criação dos mencionados jogos nas edições seguintes:

... – edições de 2009, 2010, 2011, 2014, 2015 e 2020;

... – edições de 2009, 2010, 2011 e 2014;

... (...) – edições de 2010, 2011, 2014 e 2015;

... – edição de 2020.

Estas edições dos jogos para computador e videojogos contendo o nome e imagem não autorizadas do autor foram, e continuam a ser, difundidas pelo menos desde setembro de 2008, em todo o mundo pela ré através da comercialização dos suportes físicos e online, através da Internet.


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Parte II – O Direito

Tal como já foi referido a única questão que importa decidir nesta revista é a da competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar e decidir a presente acção declarativa de condenação instaurado com base no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos ou extracontratual.

1. O artigo 37.º n.º 2 da Lei 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), remete para a lei do processo a definição dos critérios de atribuição de competência internacional dos Tribunais portugueses, isto é, o esclarecimento das circunstâncias em que o Estado Português assume ser da sua competência, no eventual confronto com outras jurisdições nacionais, regular jurisdicionalmente os conflitos e definir o direito aplicável ao caso concreto, quando tal lhe seja requerido.

Tais factores de atribuição de competência internacional encontram-se enunciados no artigo 62.º do Código de Processo Civil [1] e relevam de três diferentes e autónomos critérios de conexão:

- o critério da coincidência, de acordo com o qual os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento da causa desde que, segundo as regras de atribuição da competência em razão do território, a acção pudesse ser proposta em tribunal português (artigo 62.º a) do Código de Processo Civil) – a enunciação deste critério convoca o estatuído a propósito da competência em razão do território nos artigos 70.º e seguintes do Código de Processo Civil, em si mesma indiciadora da existência de uma forte ligação entre a causa e o Estado Português;

- o critério da causalidade, de acordo com o qual os tribunais portugueses são internacionalmente competentes desde que tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram (artigo 62.º b) do Código de Processo Civil) – tendo a parte final desta norma plena aplicação nos casos em que haja uma causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de actos ou factos jurídicos relevantes com ligação a mais do que um ordenamento jurídico ou jurisdição nacional;

- o critério da necessidade, que é, em verdade, um critério de salvaguarda, de natureza excepcional, destinado a permitir o efectivo exercício do direito invocado, nos casos em que a impossibilidade de exercício do direito de acção seja decorrência de um conflito negativo de jurisdição ou quando a instauração da acção no tribunal estrangeiro redunda em clara denegação de justiça (artigo 62.º alínea c) do Código de Processo Civil). Para que tal critério possa ser arvorado em factor de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses é, em qualquer caso, indispensável que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um ponderoso elemento de conexão.

2. É fora de toda a dúvida que para efeitos de avaliação da conexão da causa com a jurisdição (internacional) dos Tribunais portugueses o que releva é o modo como o autor configura a relação jurídica controvertida e expõe os factos que constituem a causa de pedir, sendo indiferente – para esse efeito – que o autor seja efectivamente titular do direito que pretende fazer valer e o posterior, e eventual, ganho de causa que venha obter, nomeadamente por não ter conseguido fazer prova dos factos alegados.

3. O autor intentou a presente acção perante o competente tribunal português, visando a condenação da ré em indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ele alegadamente sofridos em resultado de conduta da ré que, na sua perspectiva, a faz incorrer na obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil por factos ilícitos – a violação dos seus direitos de personalidade decorrente da utilização não autorizada do seu nome e da sua imagem e características pessoais e profissionais nos videojogos produzidos e distribuídos pela ré.  

O autor terá sofrido prejuízos com tal violação e sentiu-se psicologicamente perturbado pela utilização não autorizada da sua imagem nesses videojogos criados pela ré e pela exposição daí resultante através da distribuição dos videojogos por todo o mundo.

O autor alega de modo suficiente na petição inicial, os factos que integram a causa de pedir. Em resumo, que sofreu em resultado da utilização não autorizada do seu nome, imagem e características pessoais e profissionais, nos jogos para computador e videojogos cuja produção e distribuição comercial é da responsabilidade da ré, danos consistentes na sua exposição global sem qualquer contrapartida, com a consequente perturbação psicológica e tristeza.

4. É sabido que neste tipo de acções a causa de pedir é naturalmente complexa e envolve a alegação fáctica dos pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal entre o facto e o dano), os quais podem não se reduzir a um simples facto material com precisa e única localização espacial e temporal.

O que está em causa é, portanto, saber se a lei processual permite ao autor que, para ressarcimento dos danos alegadamente sofridos pela sua pessoa nas concretas circunstâncias descritas na petição inicial, o exercício do direito à indemnização seja feito perante os Tribunais portugueses.

5. Numa primeira abordagem, sendo a acção baseada em facto ilícito imputado à ré, o tribunal territorialmente competente seria, de acordo com as regras da definição da competência em razão do território, o correspondente ao lugar onde o facto gerador do dano ocorreu.

Na perspectiva do autor tal tribunal é aquele que tem jurisdição sobre o local onde se encontra domiciliado e onde está sedeado o centro da sua vida pessoal e profissional e onde, em conformidade ele vive e sente o efeito da ofensa ao seu direito pessoal [2].

No caso dos autos, porém, a circunstância de o facto gerador do dano se não limitar à produção dos jogos para computador e videojogos – no ... – mas também à sua distribuição pelos consumidores em geral e de esta ocorrer em todo o mundo, sendo ambos potenciadores da ofensa aos direitos de personalidade alegadamente violados, torna duvidosa a aplicação do critério da conexão da coincidência (artigo 62.º alínea a) do Código de Processo Civil) face á ubiquidade ou plurilocalização do facto gerador da obrigação de indemnizar.

A possibilidade de aplicação de tal critério baseado na localização territorial é, além disso, posta em causa quando se pondere que o autor não teve ao longo do período temporal em que se verificou o facto um único domicílio.

6. No caso dos autos, as circunstâncias em que, segundo o autor, a ofensa ao seu direito de personalidade ao nome e imagem foi praticada pela ré apontam claramente para a sua localização em diversos países, nomeadamente Portugal, ... e ... (para só atender aos locais onde o autor teve o seu domicílio), e duradoura, pois que se prolongou no tempo desde a produção e o lançamento de cada uma das edições dos jogos até à sua disponibilização ao público em geral que se mantêm por tempo indeterminado.

Nestes casos em que a ofensa ao direito de personalidade tem conexão com diversos ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais poderá o lesado socorrer-se do já mencionado “critério da causalidade” expresso no artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil?

A resposta não pode deixar de ser afirmativa, na medida em que possa servir de critério de atribuição de competência não só o lugar do evento causal (no caso a produção e distribuição dos jogos em que se materializou a ofensa) como também, o lugar onde o dano, tal como sentido e percepcionado pelo autor, se vem a manifestar.

 

7. Como claramente se pondera no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça publicado em 24 de maio de 2022, proferido na revista 3853/20.2T8BRG.G1 [3], em que idêntica questão se debatia, “sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas acções de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as acções em que o dano aconteceu em Portugal (…).”

Acrescenta-se ali, como elemento moderador, que “nestas situações deve exigir-se, de modo a evitar que a competência seja determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo de provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal (…)”.

8. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, melhor identificada e analisada no citado acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de maio de 2022 – para onde se remete – tem vindo, de resto, a sedimentar um critério de interpretação segundo o qual o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorram em circunstâncias semelhantes às alegadas na petição, isto é, através de meios de exposição globais que lhe conferem conexão com mais do que um ordenamento jurídico e jurisdição nacional, se verifica predominantemente no Estado onde a vítima alega ter sofrido atentado à sua reputação e tem o seu domicílio e a sede da sua vida pessoal organizada.

Sendo nesse local que melhor podem ser apurados os efeitos da invocada ofensa a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a totalidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objectivo de boa administração da justiça que preside, em última análise, à atribuição de competência a uma determinada jurisdição nacional em detrimento de outra.

Vejamos então, mais em concreto, o que sucede no caso presente.

9. Alega o autor que o seu nome e imagem foram ilegalmente utilizados nos jogos produzidos e comercializados pela ré nas edições de 2009 (... e ...), 2010, 2011 e 2014 (..., ... e ...), 2015 (... e ...) e 2020 (... e ...).

Conforme atrás referido o autor exerceu a sua actividade profissional em Portugal desde a época de 2008/2009 e até ao final da época 2013/2014, tendo indicado estar domiciliado em ..., onde tem centrada a sua vida pessoal.

A presumida localização dos danos alegados pelo autor, materializados na edição e distribuição dos jogos ... nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2014 deve situar-se no local onde o autor então se encontrava a exercer a sua actividade profissional, isto é, em Portugal.

O mesmo se não dirá, contudo, quanto aos danos que lhe foram alegadamente causados com a edição e divulgação dos jogos ... e ... de 2015 e ... e ... de 2020, uma vez que o autor teria então deslocado a sua actividade profissional para outro país, não sendo claro se mantinha o seu centro de interesses em Portugal.

10. Tal não invalida, porém, a conclusão de que, para efeitos de avaliação da conexão da causa com a jurisdição portuguesa, o domicílio e o centro de vida e de interesses pessoais e patrimoniais do autor esteja predominantemente localizado em Portugal no período temporal decorrido desde o momento em que o autor situa o início da violação dos seus direitos de personalidade (2008), sendo em Portugal que, alegadamente, terão ocorrido os danos patrimoniais e não patrimoniais que integram a causa de pedir.

A permanência do autor durante parte desse período na República ... e na ... (de 2015 a 2020), no exercício da sua actividade profissional não significa que tivesse deixado de existir uma conexão entre a causa e a violação do direito de personalidade invocado em que ela se fundamenta e o Estado Português em cujo território o autor mantinha o seu domicílio e onde também se manifestaram os seus efeitos.

Ora sendo a causa de pedir na presente acção complexa e tendo os danos alegados ocorrido predominantemente em Portugal, não há razões para excluir a competência (internacional) dos tribunais portugueses para o julgamento da presente acção.

Antes pelo contrário, a competência internacional dos Tribunais portugueses para o julgamento da presente acção, porque os factos que lhe servem de fundamento ocorreram, também, em Portugal, é-lhe atribuída pelo artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil.

Apesar de parte dos factos ofensivos do alegado direito do autor terem sido praticados no estrangeiro, existe entre a causa baseada na acção violadora do direito alheio promovida pela ré e o Estado Português uma ligação suficientemente forte e que permite que, no eventual confronto com outros ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais, sejam os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da alegada violação do direito de personalidade dos autor.

11. Em conclusão, o recurso interposto merece ser provido, devendo, em conformidade ser revogado o acórdão recorrido e ordenado o prosseguimento dos autos no Juízo Central Cível de ..., reconhecendo-se serem os Tribunais portugueses competentes internacionalmente para o julgamento da presente acção.

As custas ficam a cargo da ré.


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DECISÃO

Termos em que acordam em julgar procedente a revista, revogando em conformidade o acórdão recorrido e, sendo improcedente a excepção da incompetência internacional dos Tribunais portugueses ordenam o prosseguimento dos autos no Juízo Central Cível de ... .

As custas do processo ficam a cargo da ré.

                  

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 7 de junho de 2022

Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Maria Clara Sottomayor

Pedro de Lima Gonçalves

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[1] Não existe instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência internacional dos Tribunais portugueses, sendo certo que, para os casos em que o demandado não tenha residência em território de Estado Membro da União Europeia, o Regulamento Bruxelas I Bis (Regulamento EU 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012), remete para os critérios de atribuição de competência internacional da lei interna de cada um dos Estados Membros, o que tudo releva para efeito do disposto no artigo 59.º do Código de Processo Civil.
[2] Sobre o conceito de domicílio enquanto sede estável da vida da pessoa singular e centro dos seus interesses económicos ver a anotação ao artigo 82.º do Código Civil na obra “Notas ao Código Civil” do Juiz Conselheiro Jacinto Rodrigues Bastos a página 134 do I Volume. Tal conceito assume especial relevância no caso dos autos atenta a natureza pessoal do direito alegadamente violado.
[3] De que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro João Cura Mariano