Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
239/20.2PCSNT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA FÉRIA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
PENA PARCELAR
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 05/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:


Acordam em Conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,


I

Por Acórdão proferido nestes Autos foi julgada parcialmente procedente por provada a Acusação pública que imputava ao Arguido AA a autoria material de um crime de violência doméstica agravado, do artigo 152º nº1 al. b) nº 2 al. c) e nos 3, 4 e 5 do Código Penal e de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, dos artigos 22.º, 23.º, 73.º 131º nº 1,132º nº 2 als. b) e h) todos do Código Penal.

Consequentemente, o Arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, dos artigos 22º, 23º, 73º 131º nº 1,132º nº 2 als. b) e h) todos do Código Penal, na pena de 13 anos de prisão.

E, pela prática de um crime de violência doméstica agravado, do artigo 152º nº 1 al. b) nº 2 al. a) e nos 4 e 5 do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB por um período de 5 anos.

Em cúmulo jurídico, o Arguido foi condenado na pena única de 15 anos de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB por um período de 5 anos.

Foi decidido, ainda, julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospitalar Universitário ………”, e condenar o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 203,24, acrescida de juros moratórios à taxa anual de 4% desde a notificação daquele pedido.

Bem como julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospitalar e Universitário ………, E.P.E.” e condenar o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 58.732,50, acrescida de juros moratórios à taxa anual de 4% desde a notificação daquele pedido.

Nos termos do disposto no artigo 82º-A nº1 do CPP, foi decidido também condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 60.000 a título de reparação oficiosa dos danos não patrimoniais sofridos por esta.

II

Inconformado com esta decisão, o Arguido veio interpor recurso. Da respetiva Motivação retirou as seguintes Conclusões:

a) O presente recurso tem por objecto a determinação da medida da pena no que concerne ao crime de homicídio na forma tentada pelo qual o arguido foi condenado em 13 anos de prisão.

b) Foi dado como provado que o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.

c) Tal como foi dado como provado que o arguido mantinha o consumo abusivo de bebidas alcoólicas ainda que não reconheça e desvalorize o impacto deste comportamento na organização do seu quotidiano.

d) Não teria o álcool influência no discernimento do arguido?

e) Teria o mesmo a consciência da gravidade dos seus actos?

f) Se não estivesse alcoolizado o arguido teria praticado os factos constantes da acusação e pelos quais foi condenado?

g) A própria ofendida referiu, mais do que uma vez, que o arguido quando não bebia era amoroso e não a tratava mal.

h) Que só quando bebia é que se tornava agressivo.

i) Ora o álcool principalmente pelas suas propriedades psicofarmacológicas não levaria ao crime?

j) Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido o não fez a melhor interpretação dos art.ºs 40.º, 70.º 71.º do Código Penal, tendo-os por tal razão violado.

k) Ponderando tudo o ora descrito o tribunal deve reduzir a pena aplicada ao arguido nos seus mínimos legais.

Pelo que Vossas Excelências – não tanto pelo ora alegado como pelo que doutamente hão-de suprir – revogando o douto acórdão recorrido nos termos peticionados, deve ser dado provimento ao presente recurso, reduzindo-se a medida da pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio na forma tentada.

Decidindo como foi peticionado V.Exas. exercerão a melhor e mais costumada JUSTIÇA!

III

Na sua resposta, a Digna Magistrada do Ministério Público articulou as seguintes Conclusões:

1. O arguido AA foi condenado, por acórdão proferido nestes autos, pela prática, em autoria material e concurso real, de:

- um crime de homicídio qualificado na forma tentada, pp. pelo n.º 1 e pela alínea a) do n.º 2 artigo 22.º, pelo artigo 23.º, pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 73.º, pelo artigo 131.º, pelo n.º 1 e pela alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do Código Penal, na pena de 13 (treze) anos de prisão;

- um crime de violência doméstica agravado, pp. pela alínea b) do n.º 1, pela alínea a) do n.º 2 e pelos n.os 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB por um período de 5 (cinco) anos;

➡ e, em cúmulo jurídico das penas referidas nos precedentes parágrafos, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com BB por um período de 5 (cinco) anos.

2. Provavelmente por deficiência nossa, não conseguimos perceber se o Recorrente, naquele sector 2.1. da sua motivação, pretende impugnar os factos dados como provados sob os pontos 22. e 44. do acórdão, uma vez que se refere aos mesmos como “Factos indevidamente dados como provados”, fazendo ainda referência às declarações prestadas pela ofendida BB em sede de audiência de discussão e julgamento.

3. Porém, quanto a esta questão, dir-se-á que, se assim for, o recorrente não deu cumprimento às exigências previstas no artigo 412.º nºs 3 e 4 do CPP, pelo que o tribunal ad quem não pode sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância.

4. Na determinação da concreta medida da pena de prisão a aplicar ao Recorrente, há que atender:

• o facto de o arguido manter uma relação afectiva com a ofendida há cerca de 5 anos, o facto de ter cometido o crime no domicilio comum (local que se prefiguraria como protector), a extensão das lesões infligidas à ofendida, a intensidade das dores por ela sofridas, a insensibilidade patenteada pelo arguido relativamente ao seu sofrimento (revelada no facto de ter sido assistida por terceiros) e a índole permanente das sequelas, o grau de ilicitude da conduta subsumida ao crime de homicídio qualificado na forma tentada é reputado como sendo extremamente elevado;

• que o arguido agiu sempre com dolo directo (n.º 1 do artigo 14.º do Código Penal), logo bastante intenso;

• que da história de vida do arguido respiga-se a existência de hábitos de trabalho (pese embora a instabilidade laboral) e o apoio familiar de que beneficia por parte da cônjuge e filho; contudo, há a salientar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas (que terão dado azo a episódios agressividade física e verbal dele sobre a cônjuge), sendo que o arguido ainda não reconhece o impacto deste comportamento na organização do seu quotidiano;

• o arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional ……. em ………. de 2020, não sendo conhecidos processos pendentes.

• o arguido apresenta um discurso do qual sobressai um indivíduo que demonstra pouca consciência crítica relativamente à natureza dos factos parecendo apresentar diminuta ressonância afectiva face à vítima. Retrospectivamente, não reconhece aspectos passíveis de modificação comportamental da sua parte, não identificando dinâmicas relacionais disfuncionais;

• os seus antecedentes criminais, tendo já sofrido diversas condenações – tendo, inclusive, cometido os factos no decurso da suspensão da execução de pena de prisão –, respeitando uma delas (em pena de prisão) a crimes contra bens jurídicos eminentemente pessoais;

• que não confessou a prática do crime;

• que se ausentou do local sem lhe prestar qualquer tipo de assistência;

• o grau de desvalor da acção final, ou seja, da ilicitude é muito significativo, considerando, desde logo, o meio utilizado;

• que o arguido revela uma personalidade mal conformada aos deveres ético – jurídico - existenciais e é essa evidente e grave distanciação que, também, interfere na medida da pena, pela via da culpa e da prevenção.

5. No que respeita às necessidades de prevenção geral, cumpre ponderar que o respeito pela vida humana é um valor primordial do nosso ordenamento jurídico e, porventura, o mais valioso de todos e aquele que mais importa preservar e acautelar. Nessa medida, aquelas necessidades reputam-se como sendo especialmente intensas, traduzindo, ao fim e ao cabo, o vigoroso sentimento de repúdio que o crime de homicídio gera na comunidade.

6. Ponderando todos estes factores, entendeu o tribunal por adequada, aplicar ao arguido a pena de 13 (treze) anos de prisão a cumprir pelo arguido por este crime.

7. Penas esta que se mostra justa e adequada ao caso em apreço.

8. Pelo que nada há a censurar à pena parcelar aplicada.

9. Não tendo sido violados os arts.º 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal no que à determinação da medida da pena diz respeito.

10. De notar que, o Código Penal actual “não se refere à embriaguez enquanto circunstância atenuativa, agravativa ou dirimente da responsabilidade penal, embora se refira àquele estado, sempre provocado por substância inebriante, por vezes tradutor de perturbações de consciência, das faculdades cognitivas, de percepção, do afecto, do comportamento ou de outras respostas psicofisiológicas, na definição de Manzini, in Tratado de Direito Penal , pág. 103, tomando-o, no art.º 86.º n.º 1, como fundamento de pena relativamente indeterminada e no art.º 291 .º, como elemento da factualidade típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário” (neste sentido vd, entre outros, acórdão do STJ de 17.10.2007, disponível em dgsi.pt).

11. Pelo que, ao contrário do alegado pelo recorrente, o tribunal a quo não valorou o crime e desvalorizou o álcool, pois o consumo em excesso de álcool não pode ser tida, neste caso, como circunstância atenuativa ou dirimente da responsabilidade penal.

12.  Consequentemente, deve o Acórdão recorrido ser confirmado.

Porém, Vossas Excelências ao decidir, farão a costumada JUSTIÇA

IV

Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.

V

Realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:

O Acórdão recorrido é do seguinte teor:

Fundamentação de facto

Da instrução e julgamento da causa, com relevo para a decisão a proferir, resultaram os seguintes: 

A) Factos provados colhidos na acusação:

1. O arguido e BB mantiveram um relacionamento amoroso entre si durante cerca de 5 anos, tendo pernoitado juntos em residências situados no concelho……….. .

2. Quando se encontrava sob o se encontrava sob o efeito do álcool, o arguido, a partir de Julho de 2019, iniciava discussões no decurso das quais dirigia insultos a BB.

3. Em data não concretamente apurada, situada em finais do ano de 2019, num dos locais onde o arguido e BB então pernoitavam, aquele fechou-a à chave numa divisão e ligou um maçarico, dizendo-lhe que lhe iria pegar fogo.

4. No dia … de Dezembro de 2019, cerca das 23h30m, no estabelecimento comercial “Clube ……..”, sito na Rua ………, em …….., o arguido, na sequência de discussão, desferiu bofetadas na face de BB, o que levou a que esta ficasse com escoriações na face.

5. BB recusou ser transportada de ambulância para receber assistência para receber assistência médica no Hospital.

6. Em data não concretamente apurada, situada em finais de Dezembro de 2019, na sequência de uma discussão, o arguido - que se encontrava sob o efeito do álcool - atingiu BB com um pedaço de madeira nas costas e braços e, empunhando um machado, disse que a matava.

7. A … de Janeiro de 2020, no interior de uma residência, sita na Travessa ………., em …………, na sequência de outra discussão, o arguido desferiu uma chapada na face esquerda de BB.

8. Nessa ocasião, BB, em virtude dos factos referidos em 7., ficou com um hematoma na face esquerda.

9. Depois, o arguido empunhou um pedaço de madeira e com o mesmo desferiu vários golpes na região lombar e nos membros superiores de BB.

10. De seguida, quando se apercebeu da chegada dos militares da patrulha da Guarda Nacional Republicana, o arguido fugiu para parte incerta.

11. Em … de Fevereiro de 2020, o arguido e BB pernoitavam num barracão sito numa horta, localizada na Rua …………, em ………, ……. .

12. No interior do referido barracão, quando BB se encontrava deitada, o arguido aproximou-se e verteu sobre o corpo daquela gasolina do interior de um bidão e, de seguida, ateou fogo à mesma.

13. Ao sentir o corpo e o vestuário em chamas, BB acordou e conseguiu fugir e pedir auxílio aos vizinhos, já sem parte da roupa que antes tinha vestida e que deixou para trás, depois a despir por se encontrar se encontrar queimada e a arder.

14. O arguido abandonou o local e escondeu-se num terreno baldio.

15. Após, BB foi conduzida de ambulância, para o Hospital …, e seguiu, depois, de helicóptero, para a Unidade de Queimados …, onde foi submetida a uma cirurgia e permaneceu em coma durante dias.

16. Como resultado directo da conduta do arguido, BB esteve em perigo de vida.

17. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu fortes dores e múltiplas lesões cicatriciais de cariz permanente e dispersas pelas mãos, face, tórax e região cervical e face anterior das coxas.

18. BB virá ainda a ser submetida a outras intervenções cirúrgicas e a ser seguida consultas de Cirurgia Plástica no Hospital ……, em …… .

19. O arguido, com a sua conduta, quis molestar BB, infligindo-lhe maus-tratos físicos – recorrendo, para tanto, ao uso de objectos de natureza contundente que sabia serem especialmente aptos a causar lesões na sua integridade física e até a provocar a morte – e psíquicos.

20. O arguido conhecia bem as características inflamáveis da substância combustível que utilizou para atear fogo em BB, sabendo que, ao fazê-lo, lhe ia causar a morte, tendo agido com o propósito de tirar a vida uma pessoa com quem mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, bem sabendo que o meio por si utilizado era especialmente apto a causar particular sofrimento a BB.

21. O arguido só não logrou tirar a vida a BB pelo facto de a mesma ter conseguido fugir e receber assistência.

22. O arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

B) Factos colhidos nos pedidos de indemnização civil: 

23. A assistência mencionada em 15., na parte em que foi prestada pelo “Centro Hospitalar Universitário ………”, importou em € 203,24.

24. A assistência mencionada em 15., na parte em que foi prestada pelo “Centro Hospitalar e Universitário de ………, E.P.E.”, importou em € 58.732,50.

C) Outros Factos relevantes:

25. BB nasceu a … de Novembro de 2000.

26. No período referido nos pontos n.º 1 a 11 do elenco factual, BB acreditava que o arguido gostava de si.

27. Em virtude dos factos referidos nos pontos 11. a 14., BB ainda sente dores nos dedos das mãos e garganta e sente-se psicologicamente afectada.

D) Condições de vida do arguido e antecedentes criminais

28. O arguido integrou o agregado familiar de origem, composto pelo progenitores e seis filhos do casal (sendo o arguido o mais velho da fratria) embora tenha mais irmãos, de outros relacionamentos afectivos paralelos do progenitor, com os quais manteve relativa proximidade.

29. O rendimento auferido pelos progenitores no âmbito da sua actividade laboral - o pai como pedreiro e a mãe como cozinheira - era insuficiente para o sustento do agregado. Desse modo, a família dedicava-se a actividades agrícolas, criação de gado e pesca, como forma de contribuir para a economia doméstica.

30. Desde muito novo, o arguido começou a ajudar os pais e os irmãos nestas actividades. Abandonou a escola aos 17 anos de idade, completando apenas o 6º ano de escolaridade.

31. O arguido cumpriu o Serviço Militar Obrigatório, com a duração de 18 meses, onde obteve a carta de condução de pesados, começando posteriormente a trabalhar no carregamento de areia e em pequenas oficinas mecânicas, ocupações que exercia com carácter informal, sem qualquer regularidade ou vínculo contratual.

32. Iniciou, entretanto, um relacionamento afectivo com uma rapariga com quem, mais tarde, viria a contrair matrimónio.

33. Por influência de uma tia, a cônjuge veio para Portugal em 2008 e o arguido veio para o nosso país em finais de 2010, onde passou a viver definitivamente.

34. O casal instalou-se no concelho……. tendo desta união nascido, entretanto, uma criança, actualmente com 10 anos de idade.

35. No período inicial da sua permanência em Portugal, o arguido manteve apenas ocupação indiferenciada em tarefas agrícolas e pequenas obras de manutenção numa quinta em …, propriedade da senhoria do apartamento que a família habitava. Em Abril de 2011, passou a trabalhar mediante contrato, na “I…. – Facility Services”, prestando serviços de …. num … .

36. .

37. O arguido regista consumo de bebidas alcoólicas em excesso que se intensificaram, segundo o próprio, desde que ingressou em território português. Ocorriam episódios de agressividade física e verbal dele sobre o cônjuge, comportamento que determinou a formulação de queixa policial por crime de violência doméstica, ainda que depois sem grandes repercussões em termos da continuidade da relação.

38. O percurso profissional do arguido foi condicionado pelo cumprimento de pena de prisão e pelo facto de, em 2015, ter sido notificado do cancelamento da autorização de residência temporária.

39. O arguido realizava apenas trabalhos temporários, pelo que auferia rendimentos variáveis de acordo com os serviços efectivamente prestados. Faz referência ao desempenho de funções como motorista numa sucata embora integrasse maioritariamente ocupações ligadas à construção civil.

40. À data dos factos, o arguido trabalhava na construção civil em … .

41. O arguido mantinha como morada a constante nos presentes autos, na qual residem o cônjuge e o filho de ambos, apesar de este permanecer algumas temporadas fora de casa, alegando motivos de distância geográfica entre esta habitação e o seu local de trabalho.

42. O arguido mantinha o consumo abusivo de bebidas alcoólicas ainda que não reconheça e desvalorize o impacto deste comportamento na organização do seu quotidiano.

43. Em período prévio à reclusão, o arguido encontrava-se em acompanhamento por parte dos serviços da DGRSP, no âmbito do processo n.º 149/17…, não tendo comparecido a algumas sessões agendadas, alegadamente por motivos laborais, embora tivesse manifestado concordância com o plano de reinserção social delineado, que contemplava intervenção ao nível da problemática do consumo de álcool bem como da segurança rodoviária/condução responsável.

44. A cônjuge do arguido descreve-o como trabalhador e boa pessoa, mostra-se disponível para retomar uma vida conjunta, por assumir ser essa a sua obrigação como esposa, embora continue a mostrar-se apreensiva com a problemática de abuso de álcool que, em seu entender, será a principal causa dos seus comportamentos desajustados a par da sua permeabilidade à influência negativa de terceiros.

45. O arguido pretende retomar o relacionamento com BB, se for também essa a vontade dela, e eventualmente, regressar a ... .

46. O arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional ……. Em 20 de Fevereiro de 2020, não sendo conhecidos processos pendentes.

47. O arguido apresenta um discurso do qual sobressai um indivíduo que demonstra comprometida de forma significativa a consciência crítica relativamente à natureza dos factos parecendo apresentar diminuta ressonância afectiva face à vítima. Retrospectivamente, não reconhece aspectos passíveis de modificação comportamental da sua parte, não identificando dinâmicas relacionais disfuncionais.

48. A cônjuge e filho visitam-no quando possível no estabelecimento prisional.

49. O arguido tem mantido uma postura adequada e colaborante, quer com os outros reclusos, quer com os serviços de vigilância e técnicos, e um comportamento adaptado não tendo sido alvo até à data de sanções disciplinares. Encontra-se a desempenhar funções no sector das limpezas desde 14 de Agosto de 2020 e tem revelado boa capacidade de adaptação.

50. O arguido sofreu já as seguintes condenações:

a. Por sentença proferida no processo n.º 232/12…… do Juízo de Pequena Instância Criminal ……. (Juiz …) a 20 de Junho de 2012 e transitada em julgado em 3 de Setembro de 2012, foi condenado pela prática, em 20 de Junho de 2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 60 dias de multa à razão de € 6 e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 meses.

b. Por acórdão proferido no processo n.º 991/12…. do Juízo de Grande Instância Criminal …… (Juiz …) a … de Maio de 2013 e transitado em julgado em 28 de Novembro de 2013, foi condenado pela prática, em … de Julho de 2012, de um crime de rapto, de um crime de roubo e de um crime de violação na forma tentada na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

c. Por sentença proferida no processo n.º 280/15………. do Juízo de Pequena Instância Criminal ………. (Juiz …) a 1 de Dezembro de 2015 e transitada em julgado em 30 de Junho de 2015, foi condenado pela prática, em 15 de Novembro de 2015, de um crime de violação de proibições na pena de 4 meses de prisão.

d. Por sentença proferida no processo n.º 1465/17………. do Juízo de Pequena Instância Criminal ………. (Juiz …) a 7 de Novembro de 2017 e transitada em julgado em 7 de Dezembro de 2017, foi condenado pela prática, em … de Outubro de 2017, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 3 meses de prisão – cuja execução foi suspensa pelo período de 1 ano – e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 7 meses.

e. Por sentença proferida no processo n.º 149/17………. do Juízo de Local Criminal ………. (Juiz …) a 20 de Dezembro de 2018 e transitada em julgado em 2 de Fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em … de Novembro de 2017, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 1 ano de prisão – cuja execução foi suspensa pelo período de 2 anos – e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 12 meses.

Factos não Provados:

· Na ocasião referida em 4., o arguido empunhou uma faca de cozinha e desferiu vários cortes nas mãos de BB.

· Da conduta descrita atrás descrita, resultaram para BB escoriações nas mãos e a mesma ficou com vestígios de sangue no vestuário;

· BB actuou da forma descrita em 5. por temer represálias por parte do arguido.

· Na ocasião referida em 6., o arguido disse a BB que lhe cortaria a cabeça a cabeça com o machado.

· Na ocasião referida em 7., o arguido disse, aos gritos, a BB que lhe ia pegar fogo e a ia matar, enquanto segurava num isqueiro.

· BB esteve em estado considerado muito grave e com prognóstico grave e muito reservado.

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes e o demais alegado tem cariz conclusivo e/ou reporta-se à apreciação de elementos de prova ou é manifestamente irrelevante para a decisão a proferir.

Motivação Da Decisão De Facto

Os factos descritos no ponto n.º 1 do elenco factual foram tidos como demonstrados com base na valoração conjugada das declarações do arguido – que, em suma, assumiu que manteve uma relação amorosa com a ofendida – e dos depoimentos prestados por BB (tanto em declarações para memória futura como, complementarmente, em audiência de julgamento) e do testemunho prestado por CC (mãe da ofendida).

Estoutros meios de prova foram valorados à luz da experiência corrente e de critérios de normalidade e de razoabilidade/plausibilidade. Tais depoimentos testemunhais foram prestados com assertividade, coerência, espontaneidade, sinceridade e de uma forma distanciada, revelando as depoentes a vivacidade que é própria de quem detêm um conhecimento presencial dos factos. Daí que o tribunal tenha reputado tais testemunhos como credíveis, fiáveis e persuasivos.

Em suma, a ofendida deu nota de que namorava com o arguido desde os 15 anos de idade e que saiu de casa de sua mãe para ir viver com ele, pernoitando com o mesmo no ……. e, depois, a partir de 2019, em ………. Dormiam em casas de amigos e em obras onde trabalhavam. Mais referiu que, inicialmente, o arguido ia à sua casa ao fim-de-semana mas que, depois, deixou de o fazer.

Também CC deu conta de que, na sequência de uma discussão, a ofendida fugira de casa e que, quando voltou para casa (o que ocorreu duas semanas depois), estava com o arguido e dizendo que com ele iria ficar. Mais revelou que soube que a mesma estava a trabalhar com aquele.

No que se refere aos factos vertidos no ponto n.º 2 do elenco factual, a convicção exposta filiou-se na valoração conjugada das declarações do arguido – confirmou que ingeria bebidas alcoólicas e, já em últimas declarações, afiançou que era uma pessoa diferente quando bebia – e dos depoimentos de BB – afiançou que, quando o arguido estava “com os copos, atrofiava por coisas mínimas” e que se insultavam reciprocamente.

Quanto aos factos inscritos no ponto n.º 3 do elenco factual, a convicção exposta firmou-se com base na valoração dos depoimentos prestados por BB. Em suma, relatou que, numa obra em que ambos trabalharam, ela e o arguido montaram, para lá dormirem, uma barraca de dois andares com acesso pelo escadote, sendo que, na sequência de uma discussão, o arguido a trancou à chave na parte de baixo da mesma, apesar de dali querer sair. Sem que o visse, o arguido disse-lhe então que lhe iria pegar fogo com um maçarico, tendo dito a uma pessoa de nome DD – que com eles trabalhava e que não foi possível localizar – para ir buscar um isqueiro.

O arguido negou estes e, no essencial, quase todos os factos vertidos na acusação. No entanto, a sua versão não foi secundada por quaisquer meios de prova e, sobretudo, mostra-se infirmada por outros meios de prova a que é de reconhecer superior valia probatória, sendo, outrossim, incongruente com o falado problema de adição alcoólica.

Os factos vertidos no ponto n.º 4 e 5 do elenco factual foram tidos como demonstrados com base na valoração conjugada das declarações do arguido - que admitiu os factos em causa, dando conta que “estava na brincadeira” – e do depoimento da ofendida – confirmou que o arguido lhe desferiu estalos na cara e que aí ficou com escoriações, sendo que os factos ocorreram após o arguido estar chateado com questões acerca do facto de ter engravidado outra rapariga –, de EE (guarda da GNR que se deslocou ao local) que, em resumo, deu nota de que viu a ofendida com a cara inchada –, da ficha de atendimento do INEM de fls. 186 – em que se dá conta de que, ademais, a ofendida apresentava escoriações na face –  e do auto de notícia cuja cópia consta de fls. 26 (em que aquele militar dá nota de que a ofendida não quis ser transportada para o hospital).

O testemunho de EE foi valorado à luz dos mencionados critérios. Por ter sido prestado com firmeza, lucidez, espontaneidade, descomprometimento e conhecimento presencial dos factos, o tribunal considerou-o como credível, fiável e convincente.

No que tange aos factos vertidos no ponto n.º 6, a convicção exposta filiou-se na valoração dos depoimentos da ofendida de CC. Em suma, em declarações para memória futura deu nota de que, no ano passado, pelo Natal, o arguido lhe bateu com paus e que, numa ocasião, chegou a levantar um machado. Precisou depois que o arguido a atingia com o que agarrava, tendo, nessa ocasião, lhe acertado nas costas e nos braços e que lhe disse que a matava. Referiu também que todas estas situações sucediam quando o arguido estava embriagado. Concordantemente, CC deu nota de que, por fotografia, viu nódoas negras nas costas e ombros, sendo que a ofendida lhe relatou que era agredida com paus.

No que se refere aos factos inscritos nos pontos n.º 7 a 10 a convicção exposta filiou-se na valoração conjugada dos depoimentos da ofendida – referiu que, por duas vezes, o arguido a agrediu com mãos e paus, atingindo-a nos braços e costas – de EE – afirmou que se deslocou ao local na sequência de ter sido chamado por gritos na residência onde viviam e trabalhavam e que, nessa ocasião, observou um vulto a saltar o muro, tendo antes ouvido uma voz de homem e constatado que a ofendida tinha a cara inchada e estava chorosa – e ainda o auto de notícia cuja cópia consta de fls. 30 – por intermédio do qual se apurou a data em que os factos sucederam. A consideração de que a face da ofendida se apresentava inchada permitiu, em conjugação com o estado emocional daquela e com o facto de o arguido ter fugido do local permitiu firmar a ilação de que o mesmo a agredira nessa zona da cara.

No que se refere aos factos inscritos no ponto n.º 11 do elenco factual, a convicção exposta fundou-se na valoração conjugada das declarações do arguido e do depoimento – ambos coincidiram na asserção de que pernoitavam no aludido barracão –, do teor do auto de notícia de fls. 4 - em que se dá conta da data e local em que os factos ocorreram – e ainda do relatório fotográfico de fls. 278 – em que é visível o dito barracão.

Quanto aos factos inscritos nos pontos n.º 12 a 14 do elenco factual, a convicção do tribunal teve conjugadamente em conta os seguintes meios de prova.

Primeiramente, o tribunal considerou os relatos da ofendida. Em suma, BB relatou que o arguido usava diluente para acender o fogo, sendo ele quem preparava as refeições. Recordou que, nesse dia, haviam discutido por causa de a ofendida se ter demorado e de ter mentido ao arguido, sendo certo que o mesmo sabia que iria a tribunal no dia seguinte (o que foi confirmado por CC). Mais se recordou que, nesse dia, bebera 4 ou 5 cervejas, que o arguido lhe desferira uma chapada e que apenas se recordava de ir para o quarto.

Em segundo lugar, foram tidos em consideração os depoimentos de FF (que mora perto do local e que socorreu a ofendida) e de GG (agente da PSP que se deslocou ao local).

Em suma, a primeira referiu que a ofendida estava muito aflita e em pânico e que lhe pediu ajuda, dizendo que o seu namorado a queimara, na casa sita na mata. O segundo deu nota de que a ofendida dizia que fora o “HH” (alcunha pelo qual o arguido é conhecido) que a queimara.

Estoutros meios de prova foram valorados à luz dos mencionados critérios. Tais depoimentos testemunhais foram prestados com assertividade, coerência, espontaneidade e de uma forma distanciada dos interesses em presença, revelando conhecimento presencial dos factos. Daí que o tribunal tenha reputado tais testemunhos como credíveis, fiáveis e persuasivos.

Em terceiro lugar, foram conjugadamente tidos em conta os testemunhos de II e de JJ (agente da PSP que também se deslocou ao local).

Em suma, o primeiro afiançou que se deslocou ao dito barracão e encontrou um casaco queimado e molhado com odor a combustível e um recipiente (o “jerrycan” que se acha fotografado a fls. 279 e que não estava queimado) no chão, junto ao local onde dormiam o arguido e a ofendida. Por seu turno, o segundo deu conta de que, naquele local, a fogueira usada para cozinhar refeições estava apagada e não estava quente e que, na cama desfeita, existia um odor nos lençóis. O casaco cheirava a carburante, tendo percepcionado que a ofendida teria retirado a roupa repentinamente. Coincidentemente, com este aspecto, FF deu nota de que a ofendida se lhe apresentou com uma t-shirt de cavas em pleno mês de Fevereiro.

O testemunho de JJ foi valorado à luz dos mencionados critérios. Por ter sido prestado com coerência, clareza, sinceridade, isenção e por ter revelado conhecimento presencial dos factos, o tribunal considerou-o como credível, fiável e convincente.

Em quarto lugar, foram valorados conjugadamente o auto de apreensão de fls. 12, fotograma de fls. 22 (que documenta o bidão apreendido), o relatório de inspecção ao local de fls. 273, a reportagem fotográfica de fls. 277 e o exame de fls. 320 e ss.

Da concatenação destes elementos, resulta a presença de gasolina no interior do bidão apreendido (refira-se que o conteúdo do bidão foi dele retirado para uma garrafa, como se documenta a fls. 277), sendo que tal substância impregnava os sapatos, uma camisola e um blusão que foram encontrados no local, o que corrobora a noção com que ficou JJ.

Em quinto lugar, foi tido em consideração que, como relatou JJ, o arguido foi localizado numa zona de floresta, imóvel, deitado de barriga para baixo e com um casaco com capuz. Considerando este aspecto à luz dos dados da experiência corrente, facilmente se intui que o arguido pretendia passar despercebido à actuação dos agentes policiais.

Por fim, foi tido em conta que a versão do arguido – segundo a qual a ofendida estava ao pé da fogueira e se queimara acidentalmente e que ainda tentara apagar o fogo com água, após o que foi chamar a sua patroa – não foi secundada por outros meios de prova (repare-se que JJ não notou a existência de qualquer poça de água e que a ofendida afirmou que não lidava com o fogo), sendo, ademais, certo que, nas últimas declarações, o arguido afirmou pretender pedir desculpa, sem especificar ao que se referia, o que denota algum grau de consciencialização relativamente ao sucedido.

À míngua de uma prova directa atendível – não se logrou localizar o indivíduo de nome “DD” que, no local, foi interceptado pelos agentes da PSP e que, segundo a ofendida, terá estado presente no local –, a valoração concatenada de todos estes elementos permitiu concluir pela verosimilhança da versão vertida na acusação.

Na verdade, essa versão é a única que se revela consonante com o que, na ocasião, foi referido pela ofendida a quem a assistiu, com a postura de pânico que a mesma então apresentava (como descreveu FF), com o facto de o arguido ter procurado não despertar a atenção dos agentes da PSP que foram chamados ao local, com o facto de o mesmo não ter prestado qualquer auxílio à ofendida, com a postura assumida nas últimas declarações (em que, expressivamente – e não tanto por palavras – pareceu assumir a autoria dos factos) e, bem assim, com o facto de, no local, as roupas da cama em que aquela dormia exalarem um distinto odor a combustível.

No que se refere aos factos inscritos no ponto n.º 15 foram concatenadamente tidos em consideração a ficha da urgência do “Centro Hospitalar…” de fls. 385 (respeitante à assistência prestada no “Hospital……”, a informação clínica do “Centro Hospitalar e Universitário…, E.P.E.” de fls. 106 (respeitante à assistência ali prestada) e o depoimento da ofendida – referiu que esteve em coma e foi sujeita a operações.

No que respeita aos factos inscritos no ponto n.º 16 do elenco factual, a convicção do tribunal filiou-se no exame pericial preliminar de fls. 255 e ss., do qual se extraiu a ocorrência de perigo para a vida da ofendida como consequência dos factos.

Quanto às sequelas do evento (pontos n.º 17, 18 e 27 do elenco supra), o tribunal teve em consideração o teor do citado exame pericial preliminar, o teor do exame preliminar de fls. 444 (de que decorre que a ofendida ainda terá que ser sujeita a consultas e tratamentos de cirurgia plástica no estabelecimento hospitalar aí referido) e, bem assim, os testemunhos prestados pela ofendida e pela sua mãe, nos segmentos, em que respectivamente, deram conta das sequelas dolorosas (tendo a primeira descrito que, na ocasião, “estava cheia de dores” e viu a mão “preta”) na ocasião e na actualidade e do estado psicológico daquela na actualidade (que, nas suas palavras, nem acreditava no que sucedera), tendo também ambas dado de que aguardam a marcação de consultas no Hospital ……… e intervenção cirúrgica.

A atitude interior do arguido (pontos n.º 18 a n.º 22 do elenco factual) foi tida como demonstrada com base numa inferência assente na demonstração dos demais factos provados e sempre sem esquecer o necessário apelo aos dados da experiência corrente e da lógica para a sua compreensão.

Em particular, observou-se que o arguido, por duas vezes, pretendeu escapar à actuação de forças policiais (o que denota consciência da ilicitude das respectivas condutas) e, sobretudo, que é do senso comum que atear fogo a uma pessoa com recurso a gasolina é apto a causar-lhe a morte, sendo patentemente implausível que o arguido desconhecesse esse provável resultado ou que jamais o tivesse representado como consequência da sua conduta (aliás, se assim não fosse, não se teria escondido). Por outro lado, não se revela crível que o mesmo não pretendesse esse resultado, atenta a sequência de factos precedentes.

Os factos inscritos nos pontos n.º 23 e 24 foram tidos como demonstrados com base na valoração conjugada das sobreditas informações clínicas e nas facturas emitidas pelos demandantes que, respectivamente, constam de fls. 386 e de fls. 394.

Quanto à história de vida do arguido e quanto aos traços mais relevantes da personalidade daquele, foram tidos em conta os elementos mais relevantes extraídos do relatório social junto aos autos a fls. 447. e ss., o qual foi elaborado com base em entrevistas com o arguido e na consulta de documentos.

Os antecedentes criminais do arguido foram colhidos no respectivo certificado do registo criminal do arguido de fls. 422 e ss.

A data de nascimento da ofendida foi apurada mediante a valoração da cópia do auto de notícia cuja cópia consta de fls. 26, em que consta a mesma foi identificada por recurso ao respectivo cartão de cidadão.

Os factos vertidos no ponto n.º 26 do elenco factual foram apurados mediante a valoração do depoimento da ofendida, que explicou que nunca foi ao hospital nem apresentou queixas por nutrir sentimentos de afecto (chegando mesmo a fugir da instituição em que estava acolhida) pelo arguido que pensava serem recíprocos.

No que se refere aos factos não provados, a convicção expressa filiou-se na absoluta falta de demonstração dos mesmos.

Com efeito, a ofendida não relatou os demais factos ocorridos em ……, o arguido não os assumiu e EE não os presenciou, sendo certo que a apreciação dos elementos de prova documental então colhidos não permitiu a sua demonstração.

Adicionalmente, constatou-se que a prova documental de índole que foi possível recolher não permitia caracterizar o estado da ofendida como muito grave e/ou de prognóstico muito grave.


***


Os recursos ordinários perante o Supremo Tribunal de Justiça visam exclusivamente o reexame da matéria de Direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios elencados no artigo 410º nº 2 do CPP, os quais, porém, não podem constituir fundamento do recurso.

Da análise de todo o teor da decisão recorrida constata-se que, considerada por si só ou com as regras da experiência comum, aquela não contém qualquer dos vícios do artigo 410º nº 2, ou nulidade que não deva considerar-se sanada - nº 3 do mesmo dispositivo.

Como é sabido, o âmbito de um recurso é delimitado pelo teor das Conclusões apresentadas pelo/a recorrente.

Nas Conclusões apresentadas nestes Autos, o recorrente impugna a medida concreta da pena de prisão que lhe foi aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada – 13 anos de prisão – alegando que ao assim decidir o Acórdão recorrido “não fez a melhor interpretação dos art.ºs 40.º, 70.º 71.º do Código Penal, tendo-os por tal razão violado.”

Fundamenta tal asserção na circunstância de, em seu entender, a decisão recorrida não ter relevado adequadamente o seu “consumo abusivo de álcool.”

Pugnando, em consequência, por uma redução da pena aos seus “mínimos legais”.

É sabido que, de acordo com o estipulado no artigo 71º do Código Penal, a medida concreta da pena a aplicar a um/a Arguid/a deve ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra si.

Na definição do conteúdo de cada um destes três parâmetros legais – culpa do agente, exigências de prevenção e ponderação das circunstâncias gerias atenuantes ou agravantes - é curial ter em atenção, que, no tocante à culpa é imperioso observar o disposto no artigo 40º nº2 do Código Penal, que impõe ser necessário que a sua medida não exceda a da pena.

A culpa constitui, como ensina Figueiredo Dias ([1]), “um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível.”

Já no tocante às exigências de prevenção o mesmo Mestre indica que ([2]): “Através do requisito que sejam levadas em conta as exigências de prevenção dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”

Discorrendo sobre este conceito, ensina que ([3]) “«Prevenção» tem no contexto quer aqui releva – só pode ter – o preciso sentido quando se discute o sentido e as finalidades de aplicação de uma pena, quando se discute, numa palavra, a questão das finalidades das penas. Dito por outras palavras «prevenção» significa, por um lado prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição.”

Finalidades da punição essas que, de acordo com o disposto no artigo 40º nº 1 do Código Penal, são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Finalmente, e em função do disposto no nº 2 do já referido artigo 71º do Código Penal, há que ter em atenção todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime depõem a favor ou contra o agente.

De entre estas relevam o grau da ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, o grau de intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais e situação económica do agente, as suas condutas anteriores e posteriores aos factos em apreço, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

Aplicando estas posições doutrinais a Jurisprudência tem vindo a entender que: “o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

Para avaliar da medida da pena há que indagar, no caso concreto, factores que se prendam com o facto praticado e com a personalidade do agente que o cometeu.

Como factores atinentes ao facto e por forma a efectuar-se uma graduação da ilicitude do facto, podem referir-se o modo de execução deste, o grau de ilicitude e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o grau de perigo criado e o seu modo de execução.

Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins ou motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos.

No que tange ao agente, o legislador manda atender às condições pessoais do mesmo, à sua condição económica, à gravidade da falta de preparação para manter uma conduta ilícita e a consideração do comportamento anterior ao crime.” ([4]).

Retomando o Acórdão recorrido constata-se que, no tocante ao crime de homicídio tentado, se deu como provado que, em 19.02.20, o Arguido derramou gasolina sobre o corpo da ofendida, sua companheira amorosa, e de seguida ateou o fogo. Esta que encontrava adormecida, conseguiu fugir e pedir auxílio a vizinhos.

Na sequência dos seus atos o Arguido abandonou o local e escondeu-se num baldio.

Socorrida, a ofendida foi objeto de cuidados médicos e hospitalares tendo sido submetida a cirurgia e ficado em coma durante vários dias, em situação de perigo de vida.

Como consequência direta das queimaduras a ofendida sofreu fortes dores e múltiplas lesões cicatriciais de cariz permanente e dispersas pelas mãos, face, tórax e região cervical e face anterior das coxas. Acresce que terá ainda a ser submetida a outras intervenções cirúrgicas e a ser seguida consultas de Cirurgia Plástica.

Da matéria fáctica provada resulta ainda que o Arguido conhecia bem as características inflamáveis da gasolina que utilizou para atear fogo à ofendida, sabendo que, ao fazê-lo, lhe ia causar a morte, tendo agido com o propósito de tirar a vida à pessoa com quem mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, bem sabendo que o meio por si utilizado era especialmente apto a causar-lhe particular sofrimento.

E ainda que só não logrou tirar-lhe a vida por a ofendida ter conseguido fugir e receber assistência.

Bem como que o Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

O Acórdão recorrido dá por assente, ainda, que “O arguido mantinha o consumo abusivo de bebidas alcoólicas ainda que não reconheça e desvalorize o impacto deste comportamento na organização do seu quotidiano.”

Na determinação da medida concreta da pena relativa ao crime de Homicídio tentado, e reputando co o “especialmente intensas” as necessidade de prevenção geral, o Acórdão recorrido indica ter tido em especial atenção as seguintes circunstâncias: “Tendo em consideração o facto de o arguido manter uma relação afectiva com a ofendida há cerca de 5 anos, o facto de ter cometido o crime no domicilio comum (local que se prefiguraria como protector), a extensão das lesões infligidas à ofendida, a intensidade das dores por ela sofridas, a insensibilidade patenteada pelo arguido relativamente ao seu sofrimento (revelada no facto de ter sido assistida por terceiros) e a índole permanente das sequelas, o grau de ilicitude da conduta subsumida ao crime de homicídio qualificado na forma tentada é reputado como sendo extremamente elevado;

Demonstrou-se que o arguido agiu sempre com dolo directo (n.º 1 do artigo 14.º do Código Penal), logo bastante intenso;

Da história de vida do arguido respiga-se a existência de hábitos de trabalho (pese embora a instabilidade laboral) e o apoio familiar de que beneficia por parte da cônjuge e filho; contudo, há a salientar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas (que terão dado azo a episódios agressividade física e verbal dele sobre a cônjuge), sendo que que o arguido ainda não reconhece o impacto deste comportamento na organização do seu quotidiano;

O arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional …. em … de 2020, não sendo conhecidos processos pendentes.

O arguido apresenta um discurso do qual sobressai um indivíduo que demonstra pouca consciência crítica relativamente à natureza dos factos parecendo apresentar diminuta ressonância afectiva face à vítima. Retrospectivamente, não reconhece aspectos passíveis de modificação comportamental da sua parte, não identificando dinâmicas relacionais disfuncionais;

Sofreu já diversas condenações – tendo, inclusive, cometido os factos no decurso da suspensão da execução de pena de prisão –, respeitando uma delas (em pena de prisão) a crimes contra bens jurídicos eminentemente pessoais.”

Da análise e ponderação de todo o acima exposto e tendo em atenção os parâmetros legais mencionados, bem com a moldura penal em questão - 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses - , considera-se que a decisão recorrida procedeu a um exame muito cuidadoso e ponderado, tendo especialmente em conta o extremamente elevado grau da ilicitude e o grau de intensidade do dolo, que foi direto, traduzidas estas circunstâncias não apenas no conjunto dos factos praticados mas também no seu “modus operandi”.

A pena imposta pela decisão recorrida acautela, ainda, as necessidades de prevenção especial que, “in casu” se mostram particularmente relevantes, bem como as necessidades de prevenção geral, que não podem deixar de exigir uma reação penal enérgica face ao bem jurídico protegido.

Assim, e contrariamente ao alegado pelo recorrente inexistem quaisquer factos que possam fundar um juízo atenuativo da sua responsabilidade penal. Na verdade, e como muito bem alega o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal “a quo”: “ (.) o Código Penal actual “não se refere à embriaguez enquanto circunstância atenuativa, agravativa ou dirimente da responsabilidade penal, embora se refira àquele estado, sempre provocado por substância inebriante, por vezes tradutor de perturbações de consciência, das faculdades cognitivas, de percepção, do afecto, do comportamento ou de outras respostas psicofisiológicas, na definição de Manzini, in Tratado de Direito Penal, pág. 103, tomando-o, no art.º 86.º n.º 1, como fundamento de pena relativamente indeterminada e no art.º 291 .º, como elemento da factualidade típica do crime de condução perigosa de veículo rodoviário” (neste sentido vd, entre outros, acórdão do STJ de 17.10.2007, disponível em dgsi.pt).

Pelo que, ao contrário do alegado pelo recorrente, o tribunal a quo não valorou o crime e desvalorizou o álcool, pois o consumo em excesso de álcool não pode ser tida, neste caso, como circunstância atenuativa ou dirimente da responsabilidade penal.

Nesta conformidade, se julga que a pena fixada ao ora recorrente pelo crime de homicídio na forma tentada– 13 anos de prisão – tomou em devida consideração todas as circunstâncias atinentes aos factos e à personalidade do recorrente, neles vertida e assim se mostra fixada de modo justo, correto e adequado às finalidades da punição legalmente consignadas.

Pelo que se conclui pela improcedência do alegado.


VI

Termos em que se acorda em, negando provimento ao recurso, confirmar integralmente o Acórdão recorrido.

   

Custas pelo recorrente, fixando-se nos mínimos legais a taxa de justiça.

Feito em Lisboa, aos 5 de maio de 2021


Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Dec-Lei nº20/2020 de 1 de maio, consigno que o presente Acórdão tem voto de conformidade do Ex.mo Adjunto, Juiz Conselheiro Sénio dos Reis Alves.

Maria Teresa Féria de Almeida (Relatora)

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[1] “As Consequências Jurídicas do Crime” – Coimbra, 2005 - pag.229
[2] Ibidem, pag.215
[3] Ibidem pag.216
[4] Ac. STJ 30.11.2016 – Proc. nº444/15.3JAPRT.G1S1 – Rel. Pires da Graça