Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1204/12.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS
CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA D SENTENÇA – RECURSOS / APELAÇÃO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 220 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 421.º, N.º 1, 608.º, N.º 2, 609.º, 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 665.º, N.º 1, 672.º, N.º 3 E 679.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-05-2005, PROCESSO N.º 05B691, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Na medida em que a decisão da Relação sobre o (não) reconhecimento à autora do direito à pretendida indemnização assentou na factualidade resultante da transposição dos factos tidos por provados em duas anteriores acções, não pode ter-se por prejudicado o conhecimento explícito da questão, suscitada pela apelante, da violação dos princípios que regulam a prova, concretizada nessa transposição, porque, sem que tenha havido, em qualquer das instâncias, julgamento sobre a matéria de facto, não poderia uma putativa decisão implícita ser encarada como tendo sido fundamentada na eficácia extraprocessual das provas produzidas nos anteriores processos, ao abrigo do princípio consagrado no art. 421.º, n.º 1, do CPC.
II - E também não é concebível uma decisão, também meramente implícita, fundamentada na autoridade do caso julgado, porque a mesma dependeria da, necessariamente explícita, análise crítica sobre cada um de tais fundamentos da decisão, de que emergisse a justificação da transposição dos que fossem reputados de antecedentes lógicos, indispensáveis à emissão da parte dispositiva dos anteriores julgados.
Decisão Texto Integral:

                                                                                             


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           



1) AA Lda intentou a presente acção contra BB - Distribuição de Energia, SA e CC (chamado como interveniente principal), pedindo que que a R BB seja condenada a pagar-lhe o montante de € 300.000 (actualizado à data da decisão final, de acordo com o índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação), como indemnização pela afectação exclusiva de 2 lugares de estacionamento do parque que construiu ao abrigo do direito de superfície na ..., e pelo exercício da servidão da passagem para serviço e acesso à Subestação Eléctrica da concessão da R. Subsidiariamente, pediu a condenação do Município a pagar-lhe, na parte proporcional, a indemnização formulada contra a R BB pela redução do rendimento desse parque, resultante da diminuição da área que ficou impedida de explorar e demais prejuízos, caso se provasse que foi o chamado que promoveu e decidiu, em exclusivo ou em comparticipação, constituir servidão de acesso à subestação eléctrica da R BB, através do edifício da A, com ocupação permanente de uma parte deste.
Para tanto, a A alegou, em síntese:
- É dona de um parque subterrâneo que explora e por si construído horizontalmente em terreno do Município mediante acordo celebrado com este, tendo em vista 499 lugares de estacionamento;
- Tal construção contornou horizontalmente uma subestação eléctrica (SE) da R BB, lá instalada e afecta ao serviço público de distribuição de energia eléctrica, que foi salvaguardada pelo projecto de obra aprovado pela CC;
- No contrato de constituição do direito de superfície não constava que a obra da A ficasse onerada por qualquer servidão de passagem ou de estacionamento de veículos ou pessoas em benefício dessa SE e no projecto aprovado pela CC mantinha-se o acesso à mesma por vãos existentes na laje de cobertura, tipo alçapão;
- Na fase final da obra da A, a R BB submeteu a aprovação um projecto de alteração para abertura de acesso à SE através da cave -2, criando um novo acesso lateral, ao nível e através do piso -2, dotado de uma antecâmara, que implicava a anulação de um lugar de estacionamento;
- A A manifestou a sua concordância a essa alteração, condicionando-a ao ressarcimento pela ocupação do lugar de estacionamento, não tendo a R BB negado a legitimidade dessa sua pretensão;
- Para acesso e passagem para a SE a R BB acabou por afectar ao seu uso exclusivo dois lugares de estacionamento, por imposição das entidades que aprovaram a alteração;
- A R BB nunca comunicou a sua rejeição ou reserva à pretensão indemnizatória da A e, iniciada por esta a exploração do parque em 1-10-2001, a A interpelou a R para proceder ao pagamento da compensação monetária constante da proposta de protoloco de acordo, cujo pagamento a R recusou;
- Na sequência, a A propôs no Tribunal de ... a acção judicial nº 637/03.6TBBRG, reclamando da R o pagamento da referida compensação, a qual foi definitivamente julgada improcedente por não se ter provado que a R se tivesse obrigado a pagá-la, apesar de conhecer a intenção da A de que houvesse lugar a tal retribuição;
- A A intentou, então, acção de reivindicação (nº 1922/04.5TVLSB) contra a R BB, pedindo que esta fosse condenada a reconhecer o seu direito de propriedade dos 2 lugares de estacionamento por ela ocupados, com a consequente condenação a restituir-lhe os 2 lugares de estacionamento e a pagar-lhe a indemnização pelo dano resultante da ocupação, bem como a reconhecer que a sua edificação não se encontrava onerada por qualquer servidão de passagem em favor da subestação da R.

- A A invocou, ainda, na sua PI o acórdão deste STJ de 4-05-2010 [proferido no âmbito do referido processo 1922/04 (com cópia a fls. 86-101)], mediante o qual foi decidido julgar improcedentes os pedidos de restituição, de indemnização e de reconhecimento da inexistência de servidão de passagem, que a A aí formulara contra a R BB, ao abrigo do seu direito de superfície.

2) As RR contestaram, alegando que o novo acesso se tornou necessário naqueles moldes e foi construído antes do parque terminado e de iniciada a sua exploração, pelo que os 2 lugares nunca chegaram a existir.

3) Depois de algumas tergiversações, a Sra. Juíza veio a proferir no saneador decisão sobre o mérito da causa, julgando esta acção improcedente e absolvendo as RR dos pedidos nela formulados pela A.

4) A A interpôs apelação dessa sentença, que foi confirmada pela Relação de Lisboa por acórdão de que a A veio interpor recurso de revista, com fundamento em ofensa do caso julgado [art. 629º nº 2 a) do CPC ([1])] e contradição com acórdão do STJ já transitado (art. 672º nº 1 c)].

5) O Sr. Desembargador Relator, considerando verificada a dupla conformidade entre as decisões de ambas as instâncias, admitiu a revista excepcional. Porém, a Formação deste Supremo Tribunal prevista no nº 3 do art. 672º entendeu não ser relevante a questão da dupla conforme para o sistema especial de filtragem previsto no citado art. 629º nº 2 a), a hipótese dos autos, e que este prevalece sobre o sistema geral contido naquele art. 672º, pelo que decidiu não admitir a revista excepcional e determinar que os autos fossem distribuídos como recurso de revista normal.

6) Este Tribunal, mediante acórdão de 27-04-2017 (fls. 848-864), depois de considerar que a Relação confirmara, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão de 1ª instância, decidiu não tomar conhecimento do recurso de revista por não estar demonstrado o primeiro dos fundamentos em que a recorrente assentava a sua pretendida admissibilidade, a ofensa do caso julgado [art. 629º nº 2 a)], quanto à violação, quer da autoridade do caso julgado formado na revista nº 1922/04.5TVLSB, quer do alegado caso julgado formal advindo dos despachos de 8-05-2014 – complementado com o de 14/5 subsequente – e de 12-11-2014.

7) Na sequência, a recorrente veio requerer (fls. 871-880) a apreciação preliminar sumária da verificação do segundo pressuposto invocado (art. 672º) para o conhecimento do objecto do recurso, como revista excepcional. Deferida tal apreciação à Formação prevista no nº 3 do art. 672º, esta acolheu a pretensão formulada e decidiu admitir o recurso de revista excepcional, ao abrigo do art. 672º nº 2 c), por entender haver contradição entre o acórdão da Relação recorrido e o acórdão do STJ, já transitado, de 5-05-2005 (p. 05B691).  

8) A recorrente delimitou o objecto do recurso de revista com conclusões em que, para além da questão da violação do caso julgado, já definitivamente defrontada no antecedente acórdão de 27-04-2017, suscita as questões de saber se o acórdão recorrido sofre de nulidades por:

- Omissão de pronúncia sobre a questão de os factos julgados provados nas ações 637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB terem sido tidos por assentes nesta acção, com violação dos princípios que regulam a prova e sem julgamento ou qualquer análise crítica justificativa;

- Conhecimento de questão de que nele não se podia tomar conhecimento (considerando, em aditamento aos fundamentos da sentença, que a A, por transação, renunciara a ser indemnizada pelo Município).


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Cumpre decidir.
Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nas instâncias, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação (art. 635º). Portanto, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação da recorrente que se determinam as concretas questões controversas que importa resolver ([2]).
Nos termos do art. 615º, nº 1, d), a decisão é nula quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento», ou seja, quando tenha incorrido, respectivamente, em omissão ou em excesso de pronúncia ([3]), sendo estes os vícios que a recorrente imputa ao acórdão da Relação.
As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas nesse artigo 615º, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada.
Em suma, a previsão da citada al. d) prende-se com o incumprimento do dever (prescrito no art. 608º, nº 2) de resolver todas e apenas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ([4]).

1. A omissão de pronúncia.

Alega a recorrente que o acórdão recorrido sofre de nulidade por omissão de pronúncia porque, apesar de já em requerimento de 7-06-2014 ter prevenido que seria ilegal assentar o julgamento de direito desta ação nos factos julgados nas acções anteriores e de na apelação ter, por isso mesmo, impugnado a sentença (conclusões 13ª, 21ª e 22ª), o acórdão ora impugnado não conheceu dessa questão, manteve os factos julgados provados nas acções 637/03.6TBBRG e 1922104.5TVLSB e, baseando-se neles, reputou-os de fundamento para qualificar como “mera mudança de servidão” a abertura do novo acesso à SE da R BB no seu parque de estacionamento, quando, na ação 1922/04.5TVLSB, esses mesmos factos tinham levado o STJ a admitir (“em tese”) a abertura do novo acesso, o exercício do acesso à SE através do parque da A e a ocupação de 2 lugares de estacionamento como sendo a constituição de uma servidão administrativa, que passou a onerar a propriedade da edificação já então da A.

Uma vez que se considere não coberta pelo caso julgado essa ponderação sobre a qualificação da abertura do dito acesso como constituição de servidão administrativa – e, efectivamente, assim se decidiu no acórdão proferido nestes autos em 27-04-2017 –, pretende a recorrente que os autos prossigam para instrução e julgamento da matéria de facto alegada nos articulados nos artigos 5º a 8º, 10º a 26º e 79º a 87º da PI, 14º, 15º, 19º, 21º, 26º e 29º da contestação do Município e 45º a 49º da réplica à contestação da R, que importam ao reconhecimento de que a serventia realizada pela R corresponde à constituição de uma servidão administrativa, por expropriação de facto.

Com tais parâmetros, com que se apresentou nos autos a pretensão recursiva ora concretizada, constata-se que o acórdão da Relação, realmente, omitiu a pronúncia sobre a questão – logo suscitada na oposição deduzida pela recorrente (requerimento de 7-14-2014) – da selecção dos factos tidos por assentes nas precedentes acções (637/03.6TBBRG e 1922104.5TVLSB): no acórdão recorrido foi mantida a matéria de facto que se considerara provada em 1ª instância e com ela se concluiu que «a mudança da servidão, por imposição da construção do parque de estacionamento subterrâneo e das obras de requalificação da Praça da Figueira», não confere à A o direito à pretendida indemnização.

Essa questão fora ressuscitada na apelação (conclusões 11ª, 13ª, 21ª e 22ª), invocando a apelante, em relação a parte de tais factos, inexactidão e contradições com alguns dos alegados nesta acção ([5]) e rejeitando a autoridade do caso julgado sobre os factos. E, se no acórdão recorrido nada consta, explicitamente, sobre essa questão, também não é possível concluir que a mesma tenha sido implicitamente ponderada e decidida.

Com efeito, por um lado, não tendo havido, em qualquer das instâncias, julgamento sobre a matéria de facto, não poderia uma putativa decisão implícita ser encarada como tendo sido fundamentada na eficácia extraprocessual das provas produzidas nos anteriores processos, ao abrigo do princípio consagrado no art. 421º, nº 1, com a interpretação que lhe ofereceu o acórdão deste Tribunal de 5-05-2005 ([6]), em que a Formação prevista no nº 3 do art. 672º se estribou para admitir o recurso de revista excepcional, por entender haver contradição entre o mesmo e o acórdão recorrido. De todo o modo, ainda que se pudesse configurar ter havido uma pronúncia implícita com tal alcance, subsistiria a omissão de pronúncia da Relação sobre a questão da invocada violação dos princípios que regulam a prova, em que teria incorrido a decisão de 1ª instância – e, por consequência, também a da Relação –, dado não ter havido julgamento ou qualquer análise crítica justificativa dessa opção.

Por outro lado, também não é concebível uma decisão, também necessariamente meramente implícita, fundamentada na autoridade do caso julgado, com que se pretendesse evitar a contradição de julgados, perante a existência de anteriores decisões, em concreto, potencialmente incompatíveis, o que pressuporia a decisão (transitada) de determinadas questões que já não poderiam agora voltar a ser discutidas.

É certo que, como já exposto no anterior acórdão de 27-04-2017, entendemos que os considerandos decisórios conducentes ao dispositivo de decisão proferida numa anterior acção poderão estar, ou não, abrangidos pelo caso julgado material, consoante o sentido e o alcance que a interpretação de tal decisão lhes fixe, a qual aferirá da eficácia do caso julgado, dela excluindo os julgamentos sobre questões de facto e de direito por ela não abarcados, ainda que integrem os fundamentos de tal decisão.

Como então se disse, a força de “res judicata” é conferida ao conteúdo da decisão sobre as questões ou pretensões suscitadas e às respectivas premissas, se absolutamente determinantes, o que significa que o tribunal está vinculado na acção subsequente a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior. A força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica ([7]). Assim, os fundamentos da anterior decisão podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado, em prol da economia processual, do prestígio dos tribunais e da estabilidade e certeza das relações jurídicas, sendo entendido sistematicamente pela jurisprudência que, uma vez assente a identidade subjectiva e sendo o objecto do processo anterior parcialmente idêntico ou conexo com o do posterior, a força obrigatória do caso julgado naquele formado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado ([8]).

E por assim ser, à luz dos enunciados considerandos, sempre faltaria ao acórdão recorrido – e, afinal, também ao decidido em 1ª instância – a explícita justificação da transposição para esta acção dos factos julgados provados nas ações anteriormente julgadas, designadamente em detrimento dos aqui alegados, precedida de uma análise crítica sobre cada um de tais fundamentos, sem a qual ficou, pois, sem se saber se os mesmos teriam sido reputados de antecedentes lógicos, indispensáveis à emissão da parte dispositiva dos anteriores julgados.

Por fim, contrariamente ao afirmado na parte final do acórdão recorrido, não pode ter-se por prejudicado o conhecimento explícito da questão, suscitada pela apelante, da violação dos princípios que regulam a prova resultante da transposição dos factos tidos por provados nas anteriores acções porque assentou, justamente, nessa factualidade a pronúncia da Relação com que concluiu que «a mudança da servidão» não conferiria à A o direito à pretendida indemnização.


Porém, apesar de proceder a nulidade arguida pela ora recorrente, designadamente em relação à decisão de 1ª instância, os autos terão de ser devolvidos à Relação porque só esse Tribunal poderá conhecer do objecto da apelação na parte correspondente, em observância ao disposto nos artigos 665º nº 1, e este Tribunal não pode fazê-lo quanto ao acórdão recorrido, perante a ressalva cominada pelo art. 679º.

2. Excesso de pronúncia.

Entende a recorrente que a Relação teria conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, ao considerar, em aditamento aos fundamentos da sentença, que a A, por transação, renunciara a ser indemnizada pelo Município, quando a questão do pagamento da obra “da saída de emergência” não é objecto desta ação.

Neste ponto a recorrente não tem razão.

Não releva para o efeito do vício formal em apreciação se, como se disse, o argumento utilizado pela Relação e ora visado no recurso é fruto do erro de julgamento, que recorrente também lhe assaca. Posto isto, o certo é que, perscrutado o raciocínio lógico da decisão recorrida, imediatamente se constata que o mesmo não importaria uma efectiva vinculação das partes, pois apenas emerge nessa retórica para a completar, em jeito de obiter dictum, não desempenhando um papel verdadeiramente fundamental na formação do julgado, antes acompanhando, acessoriamente, a ratio decidendi, pelo que, neste caso, a supressão de tal excerto – aliás, meramente argumentativo – não prejudicaria o comando da decisão, mantendo-a inabalada, se outras razões não ocorressem.

Nos estritos termos expendidos, procede o recurso.

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Síntese conclusiva.

1. Na medida em que a decisão da Relação sobre o (não) reconhecimento à A do direito à pretendida indemnização assentou na factualidade resultante da transposição dos factos tidos por provados em duas anteriores acções, não pode ter-se por prejudicado o conhecimento explícito da questão, suscitada pela apelante, da violação dos princípios que regulam a prova, concretizada nessa transposição, porque, sem que tenha havido, em qualquer das instâncias, julgamento sobre a matéria de facto, não poderia uma putativa decisão implícita ser encarada como tendo sido fundamentada na eficácia extraprocessual das provas produzidas nos anteriores processos, ao abrigo do princípio consagrado no art. 421º, nº 1, do CPC.

2. E também não é concebível uma decisão, também meramente implícita, fundamentada na autoridade do caso julgado, porque a mesma dependeria da, necessariamente explícita, análise crítica sobre cada um de tais fundamentos da decisão, de que emergisse a justificação da transposição dos que fossem reputados de antecedentes lógicos, indispensáveis à emissão da parte dispositiva dos anteriores julgados.


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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e, por consequência, decide-se anular o acórdão recorrido e determinar a devolução dos autos ao Tribunal da Relação para que, nos termos acima indicados, conheça do objecto da apelação na parte correspondente à arguida omissão de pronúncia quanto à questão de o julgamento de direito assentar nos factos julgados nas acções anteriormente julgadas (637/03.6TBBRG e 1922104.5TVLSB).

Custas deste recurso pela parte vencida a final.

Lisboa, 17/10/2017

Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Sebastião Póvoas (com declaração de voto) *
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[1] Código a que pertencem todas as normas que se citarem sem indicação da respectiva fonte.
[2] Por outro lado, os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso.
[3] Esta nulidade, em directa conexão com o comando ínsito no art. 608º, só se verifica quando o tribunal não se ocupa das questões suscitadas ou se ocupa de questões cuja apreciação não lhe foi colocada. A expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.

[4] Como escreve Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 220 e s), está em causa «o corolário do princípio da disponibilidade objectiva (artº 264º, nº 1 e 664º, 2ª parte) o que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões».

[5] Segundo alega a recorrente, além de se verificar alguma contradição entre os factos de cada uma das ações, a CC não foi parte na ação de 2003 e na presente ação adotou uma posição contraditória com a dos factos mais relevantes para a qualificação da servidão constituída (exemplo dos artºs 14º, 15º e 21º da sua Contestação e Doc. 2 junto à mesma (o novo acesso não foi determinado pela A nem pela CC, antes foi determinado e promovido pela R e a Câmara não se responsabilizou nem assumido resolver com a A eventuais alterações consequentes da oneração do parque com o novo acesso).
[6] P. 05B691 - Araújo Barros.
[7] Realmente, a título de mero exemplo, se uma acção de reivindicação for julgada improcedente por nela se ter provado uma factualidade que permita concluir ter sido cedido o gozo da coisa reivindicada mediante o pagamento de uma renda, não faria sentido que, entre as mesmas partes, numa posterior acção, por hipótese de despejo, se possa ter como controversa tal factualidade.
[8] Entendimento que a própria recorrente parece subscrever nesta revista (cf., nomeadamente, conclusão 24ª).

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Declaração de voto


Os autos foram distribuídos/remetidos ao Colectivo/Formação a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, na sequência do despacho do M.º Desembargador relator na Apelação (fls. 812).

Este Magistrado reafirmou a competência do STJ (… última palavra…” – fls. 816) ao indeferir uma arguição de nulidades.

O Colégio do n.º 3 do artigo 672.º, ao qual compete tão somente, admitir ou não a revista excepcional, se colocado perante uma situação de dupla conformidade – pressuposto da sua competência – se verificar qualquer dos pressupostos elencados no n.º 1 daquele preceito.

Aqui, e em sede do seu julgamento (fls. 836-838) concluiu: “não admitir a revista excepcional; determinar a distribuição dos autos como revista normal”.

Cumprindo tal deliberação os autos foram distribuídos e julgados como revista-regra.

Tendo o respectivo Acórdão (fls. 848-864) julgado a revista esgotaram-se os poderes jurisdicionais deste Colectivo, nos termos, e salvo as excepções, do artigo 613.º do Código de Processo Civil.

Daí que, não tendo sido arguidas nulidades nem pedida a rectificação de erros materiais pu a reforma da deliberação, a revista ficasse definitivamente julgada.

E o aresto final só poderia ser posto em causa naqueles termos, ou pela via dos recursos dos artigos 688.º ss, 696.º ss CPC ou para o Tribunal Constitucional, se verificados os respectivos requisitos.

O que não se pode é fazer voltar o processo ao Colectivo/Formação para determinar a prolação de novo Acórdão, para “redistribuição do recurso como revista excepcional”, nuclearmente porque:

— A intervenção do conclave do n.º 3 do artigo 672.º só é possível no início do processo e a respectiva deliberação equivale a despacho liminar de admissão do recurso, o qual só não seria admissível pelo escolho do n.º 3 do artigo 671.º CPC;

— Se aquele Colectivo já declarou “não admitir a revista excepcional” e determinou “a distribuição dos autos como revista normal”, esgotou o seu poder jurisdicional e fixou-se esse juízo como caso julgado formal, nos termos do n.º 1 do artigo 620.º CPC;

— Mostrando-se julgada a revista-regra não podem vir invocar-se requisitos da revista excepcional, já que esta só releva se aquela não é, desde logo, admissível.

— A assim não ser, estaríamos perante uma “never ending story” com sucessivos Acórdãos voltando os autos à Formação, após a prolação de cada Acórdão a julgar a revista, com o fundamento na não apreciação por aquele órgão de um dos requisitos.

— Ademais, no seu primeiro Acórdão (fls. 836-838) a Formação declinou a sua competência para julgar (“… De qualquer modo, por não se por a questão da revista excepcional, é uma questão que está fora da competência da Formação. Assim, a apreciação da admissibilidade do recurso pertence apenas ao Exm.º Relator.”)

— Ora se entendia não ser competente, como é possível vir depois, nos mesmos autos e com os mesmos elementos assumir o julgamento?!

— Não se olvide – o que parece ter aqui acontecido – a precedência do cumprimento de decisões contraditórias, constante do artigo 625.º CPC.

— Uma vez admitida a revista-regra, não há que referir, ou considerar a revista excepcional, pois o que com esta se pretende é que o STJ julgue o recurso nos termos, e limites, das conclusões da alegação.

Em consequência, fico vencido, devendo subsistir, tal e qual, o Acórdão deste Colectivo.

Sebastião Póvoas

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