Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2263/15.8JAPRT. P1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: NUNO GOMES DA SILVA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DESISTÊNCIA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE
MEDIDA DA PENA
DANO BIOLÓGICO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 04/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA.
DIREITO PENAL – FACTO / FORMAS DO CRIMES – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
Doutrina:
-Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição. AAFDL, p. 110;
-Cristina Augusta Teixeira Cardoso, A violência doméstica e as penas acessórias, UC, Porto, p. 16, in http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf;
-Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, p. 984, 986 a 990, 993 e 1002 ; Direito Penal, Parte Geral, 2.ª Edição, p. 51 e 81;
-Helena Moniz, Violação e coacção sexual?, RPCC, 2005, p. 325 e 327;
-Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, n.º 12, p. 9 e ss., 14 e 23;
-Pedro Maia Garcia Marques, Ora, trabalha sofre e cala … ou não, Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva, p. 332 a 334 e 337;
-Plácido Conde Fernandes, Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8 (especial), p. 304, 305 e 313;
-Teresa Magalhães, Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira, O Relatório Pericial de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil, coordenação de Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero, Biblioteca Seguros, 2008, p. 170.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 379.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 24.º, N.º 2, 131.º, N.º1, 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS B), H) E J), 143.º, N.º 1, 144.º, ALÍNEAS B) E C), 145.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 152.º, N.º 1, ALÍNEA B) E N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-03-2013, PROCESSO N.º 565/10.9TBPVL.S1;
- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 5572/05.0TVLSB.S1;
- DE 19-02-2015, PROCESSO N.º 99/12.7TCGMR.G1.S1;
- DE 07-04-2016, PROCESSO N.º 237/13.2TCGMR.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-10-2016, PROCESSO N.º 1043/12.7TBPTL.G1.S1;
- DE 03-11-2016, PROCESSO N.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1;
- DE 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1;
- DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 118/13.0TBSTR.E1.S1.
Sumário :

I - Na decisão da 1ª instância julgou-se o arguido autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, dos arts. 131.º, n.º 1, 132.º, n.º1 e n.º 2, als. b) e j), 22.º e 23.º, do CP, não sendo este punível em face do disposto no art. 24.º, n.º 2, ou seja, por ter sido considerado provado que a consumação foi impedida por aquele se ter esforçado seriamente para evitar. II - Mas foi condenado pela prática, como autor material, em concurso efectivo, de (i) um crime de violência doméstica, do artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do CP e de (ii) um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, das disposições conjugadas dos arts. 143.º, nº 1, 144.º, als. b) e c), 145.º, n.º 1, al. c), 132.º, n.º 2, als. b), h) e j), todos do CP. III - O arguido defendeu no recurso a existência de concurso aparente entre os crimes atrás mencionados apoiando a sua pretensão nos seguintes factos provados: - No dia 16 de Maio de 2015, M… tomou a decisão de colocar termo à relação, tendo disso informado o arguido. - O arguido não se conformou com tal decisão, e no dia 18 de Maio de 2015, iniciou a prática de actos de perseguição, ameaça à vida e integridade física de M…, que culminaram, em 10 de Agosto, com a tentativa de por termo à vida daquela, através do disparo de vários tiros com arma de fogo. IV - Para aferir da existência, ou não, de concurso aparente o que há a ponderar são as condutas que o recorrente levou a cabo e perante elas é inequívoco que o seu objectivo nos factos ocorridos em 10 de Agosto era o de matar a vítima. V - Que essa actuação tenha redundado depois numa tentativa não punível mercê do comportamento subsequente do recorrente não obnubila as concretas circunstâncias do caso de ponderação decisiva na avaliação da qualificação jurídica que este propõe. VI - Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada. VII - A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto. - Mas pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido. XIX - Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar. X - Se a violência doméstica pressupõe aquela durabilidade relacional familiar e aquela outra situação de domínio e de constrangimento da livre determinação da vítima, de disposição da sua vida, num sentido mais geral, ou, dito de modo mais expressivo, «a eliminação do núcleo fundamental de autonomia da vontade e de disposição livre da mesma pela vítima» naturalmente que a intenção de matar pressupõe um “ir mais além”; pressupõe a intenção de atacar a vida da vítima, pondo-lhe fim e de, por essa via, terminar todo o envolvimento relacional que “possibilitava” uma certa conduta do agente. Atentar contra a vida humana é um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade. XI - Nas concretas circunstâncias e no tocante existência de concurso aparente a que se pretenderia reconduzida a conduta do recorrente não há uma «unidade de realização típica» na específica perspectiva de que os vários actos singulares – os que ocorreram a partir de 16 de Maio e aquele outro que se desenrolou em 10 de Agosto – não estarem unificados numa «vontade criminosa unitária». XII - Como se ensina o tipo de ilícito – o verdadeiro portador da ilicitude material – é formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito e o tipo objectivo tem sempre, como seus elementos constitutivos, o autor, a conduta e o bem jurídico e só pela conjugação destes elementos, ligados naturalmente ao tipo subjectivo, se alcança o sentido jurídicosocial da ilicitude material dos factos que o tipo abrange implicando uma consideração global desse sentido no concreto comportamento do agente. XIII - Essa situação de concurso legal ou aparente de crimes exige, contudo, a verificação de certas circunstâncias que terão de ser aferidas mediante a percepção dos «sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global». É «a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente, submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade de factos puníveis e nesta acepção de crimes». XIV - Os actos tidos como integradores do crime de homicídio tentado – não punido – têm uma matriz autónoma e um sentido social diferenciado dos outros que os precederam e que foram qualificados como de violência doméstica – configurando ameaças, coacção, ofensas corporais e injúrias – pois possuem um diferente desvalor de acção e de resultado, em suma, um desvalor autónomo o que conduz à desconsideração, no caso, do princípio ne bis in idem não apenas na sua faceta de proibição de dupla valoração mas também naquela outra em que se exige que a aplicação de um tipo legal a uma certa conduta deve esgotar todo o desvalor de acção e de resultado inerente a essa conduta. XV - Por conseguinte, condutas diferenciadas, atacando diferentes bens jurídicos com uma inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude e, logo, pluralidade de infracções diferenciadamente valoradas para efeito da sua punição e não um único sentido autónomo de ilicitude correspondendo-lhe uma «predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados» caso em que se estaria, então sim, perante uma situação de concurso aparente. - Se, como também é ensinado, a pena pode e deve ser concebida como forma de o Estado «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica», a este propósito se falando de prevenção geral positiva ou de integração, no sentido de meio de «resolução do conflito social suscitado pelo crime», é, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens pessoais que essa expectativa da comunidade na validade dessas normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão. E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos». É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena». XVII - Convirá resenhar de modo sucinto a conduta do arguido no dia 10 de Agosto sublinhando: - A atitude de se emboscar aguardando a chegada da vítima já munido da arma de fogo pronta a disparar; - A surpresa inerente aos primeiros dois disparos, um dos quais logo atingiu a vítima; - A perseguição que desencadeou aquando da tentativa de fuga da vítima com repetição de disparos e a confrontação que manteve com aquela, apesar de estar já ferida, visando concretizar o seu propósito; - A circunstância de ter efectuado mais três disparos dois deles atingindo a vítima em zona não vital, por acção defensiva desta, e o projéctil do terceiro ter ficando encravado no fecho das calças de ganga, por feliz acaso. Tudo isto releva uma elevada ilicitude e um dolo directo intensíssimo que não é possível escamotear. XVIII - Ponderando ainda a circunstância de o arguido ter já uma condenação por crime de detenção de arma proibida e tudo o que ficou provado no tocante ao seu modo de vida caracterizado pelo desfasamento em relação a um modo de vida activo e particularmente ainda a respeito da racionalização justificativa da sua conduta que mais não traduz afinal do que uma forma sublimada de desacreditação da vítima crê-se serem consistentemente fortes as razões de prevenção especial. XIX - Que este tipo de comportamentos lesivo de bens jurídicos de tanto relevo projecta necessariamente fortes efeitos de prevenção geral negativa ou de intimidação, justificando a necessidade de uma «jurisprudência terapêutica», revela-o a realidade. XX - Bastará notar, por exemplo que segundo o destaque estatístico de Novembro de 2016, da Direcção Geral da Política da Justiça, as condenações por homicídio conjugal nos tribunais de 1ª instância entre 2007 e 2015, incluindo aquelas em que a vítima é cônjuge ou companheiro(a) e abrangendo os crimes de homicídio simples, qualificado e privilegiado, nas formas tentada e consumada, ascende ao impressivo número total de 324 verificando-se uma forte prevalência dos casos em que a pessoa condenada é do sexo masculino numa variação anual entre os 83,3% e os 95%. E chegando a atingir o valor percentual de 13,8% do total de homicídios em território nacional, no ano de 2009. XXI - Por isso, numa moldura penal com um mínimo de 3 anos e um máximo de 12 anos de prisão, a pena de 7 anos que foi imposta pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, é equilibrada não merecendo censura. XXII - É jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que «a afectação da integridade físico-psíquica usualmente denominada “dano biológico” (…) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade de exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais». XXIII - No vasto campo de avaliação do dano corporal com tradução médico-legal tem hoje relevo o chamado dano-evento ou “dano biológico” como dano autonomizável em relação ao dano não patrimonial, a se, um dano psico-físico a ser indemnizado como tal, resultante da valoração do direito à integridade física e psíquica com intervenção da equidade, naturalmente, mas não funcionando esta como «único ingrediente da receita» antes procurando arrimo na avaliação médico-legal. Independentemente da existência, ou não, de rebate profissional e da perda de rendimento do trabalho. XXIV - Como já foi afirmado «havendo uma incapacidade permanente, dela sempre resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica de mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cabo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo». XXV - Para equacionar a possível indemnização neste apontado campo, o do dano biológico, necessário se tornaria que os factos provados contivessem o essencial a tal respeito com apoio nos imprescindíveis relatórios periciais. XXVI - Se o relatório pericial mais recente termina com a conclusão relevante de que: «Dado que a situação ainda não se encontra estabilizada, deverá a examinanda ser submetida a novo exame após a data da alta das Consultas Externas de Cirurgia Geral e Ortopedia …», e, em conformidade dos factos provados consta que «Em face da situação clínica da ofendida M… não se encontrar ainda estabilizada, não se encontra ainda concretizada, de momento, qualquer incapacidade de que esta possa padecer.» pode-se concluir outrossim com segurança que uma precisa avaliação do dano corporal em direito civil nos termos exigíveis de indagação completa da responsabilidade civil não estava ainda efectuada pois como já foi salientado «os juízes decidem dependendo da informação que possuem» e esta era, patentemente, até à data da prolação da decisão, inclusiva. XXVII - Portanto, quando a decisão recorrida considerou como danos patrimoniais merecedores de tutela e reparação somente «as despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita, cuja quantificação dos respectivos montantes fica relegada para incidente de liquidação; com o limite peticionado» omitiu pronúncia quanto à reparação do “dano biológico” na sua vertente de dano patrimonial sendo a decisão nula nessa parte, de acordo com o art. 379º, nº 1, al. c) CPP, e em conformidade procedente o recurso.
Decisão Texto Integral:

  1. – No âmbito do processo nº 2263/15.8JAPRT da Instância Central de ..., ... Secção Criminal, ... da Comarca de ..., o arguido AA foi acusado da prática em autoria material de:

- Um crime de violência doméstica do artigo 152º, nº 1, alínea b) e nºs 2, 4 e 5 do Código Penal;

- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos artigos 131º, nº 1, 132º, nº 1 e nº 2, alíneas b), e), h) e j), 22º e 23º e 73º do Código Penal;

- Um crime de detenção ilegal de arma proibida, do artigo 86º, nº 1, alínea c), com referência ao artigo 3º, nº 2, alínea l) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;

- Dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, dos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a), com referência ao artigo 132º, nº 2, alíneas c), e) e g), do Código Penal e

- Um crime de violação de domicílio, do artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal.

O Centro Hospitalar.... deduziu, contra o arguido, pedido de indemnização civil/reembolso, para que fosse condenado no pagamento da quantia de € 1.574,84, correspondente às despesas em que importaram os serviços prestados à ofendida em virtude das lesões apresentadas na sequência da actuação daquele, acrescida de juros, à taxa legal em vigor, calculados desde a notificação para contestar, até efectivo e integral pagamento.

A assistente BB deduziu contra o arguido pedido de indemnização civil para que fosse  condenado no pagamento da quantia global de € 375.072,00, acrescida de juros, à taxa legal, a partir da notificação até efectivo e integral pagamento, bem como no pagamento de “quantia a liquidar em sede de execução de sentença pelos danos morais e patrimoniais originados pela estabilização e consolidação do quadro sequelar da demandante, o que ainda não sucedeu, impedindo a sua total quantificação”.

A assistente CC, menor, representada por sua mãe BB, deduziu também pedido de indemnização civil contra o arguido, para que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 5.000,00, a título de ressarcimento por danos não patrimoniais que invoca, acrescida de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

Feito o julgamento foi decidido:


«I – Julgar-se parcialmente procedente a acusação e, em consequência:
1 – Julgar o arguido AA autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, dos arts. 131º, nº 1, 132º, nº1 e nº 2, als. b) e j), 22º e 23º, s do C. Penal, não sendo este punível em face do disposto no art. 24º, nº 2 do referido diploma. 
2 – Declarar extinto o procedimento criminal movido contra o arguido AA na parte correspondente à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, do art. 143º, nº 1 do C. Penal, relativamente ao qual figura como ofendida a menor CC.
3 – Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, em concurso efectivo, de:
a) - um crime de violência doméstica, do artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão;

b) - um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, das disposições conjugadas dos arts. 143º, nº 1, 144º, als. b) e c), 145º, nº 1, al. c), 132º, nº 2, als. b), h) e j), todos do C. Penal na pena de 7 anos de prisão;

c) - um crime de detenção ilegal de arma proibida, do artigo 86º, nº 1, alínea c), com referência ao artigo 3º, nº 2, alínea l) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

d) - um crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143º, nº 1 do C. Penal na pena de 6 meses de prisão;
e) - um crime de violação de domicílio, do artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal na pena de 1 ano de prisão, do mais se absolvendo o arguido.
f) - Operando o cúmulo jurídico de harmonia com o disposto no art. 77º do Código Penal e considerando, em conjunto, os factos supra descritos e a personalidade do arguido nestes revelada, condená-lo na pena única de 9 anos de prisão.
II – Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante ..., E.P.E. - Unidade de ... procedente e, em consequência, decide-se condenar o arguido/demandado civil AA a pagar-lhe a quantia de € 1.574,84, acrescida de juros vincendos calculados à taxa legal e contabilizados desde a notificação para, querendo, contestar até integral pagamento.

III – Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil BB parcialmente procedente e, em consequência, condenar o arguido/demandado civil AA a pagar-lhe:

- A quantia de € 30.000,00 pelos danos não patrimoniais neste momento considerados (dores, incómodos, limitações, sofrimentos, medos, angústias) por si sofridos, relegando-se para incidente de liquidação a fixação da compensação pelos danos não patrimoniais futuros, com o limite peticionado;

- As despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita, cuja quantificação dos respectivos montantes fica relegada para incidente de liquidação; com o limite peticionado;

- Os montantes salariais que esta deixou e deixará de auferir em virtude da baixa médica e de situação de desemprego, deduzindo-se o que se vier a apurar ter sido pago à mesma pela Segurança Social pelo período de baixa, assim como os montantes pagos a título de subsídio de desemprego, cuja quantificação se relega, igualmente, para incidente de liquidação, com o limite do peticionado.

A tais quantias acrescem juros legais devidos desde a  notificação para contestar o pedido de indemnização civil.

IV – Julgar extinta a instância cível correspondente ao PIC deduzido pela demandante menor CC, representada pela progenitora BB, por impossibilidade superveniente da lide.»

O arguido interpôs recurso que dirigiu ao Tribunal da Relação do Porto nele formulando as seguintes conclusões (transcrição):

I. O Arguido não pode conformar-se com o enquadramento jurídico penal vertido no douto acórdão do Tribunal a quo, no que ao Crime de Violência Doméstica e ao Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada diz respeito, uma vez que as conclusões aí chegadas não reflectem, de todo, a solução que a boa interpretação das normas legais a aplicar impunha.

II.      Dispõe a alínea a) do n° 3 do artigo 152° do Código Penal que "Se dos factos previstos no n° 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos".

III.     O Tribunal deu como provado, logo no número 5 da Matéria de Facto Provada, que "O arguido não se conformou com tal decisão, e no dia 18 de Maio de 2015, iniciou a prática de actos de perseguição, ameaça à vida e integridade física de BB, que culminaram com a tentativa de por termo à vida daquela, através do disparo de vários tiros com arma de fogo."

IV.     Atenta esta factualidade dada como provada, o Tribunal considera que todo o comportamento do Arguido, direccionado para com a Ofendida BB, corresponde a uma actuação integradora da tipificação legal do crime de Violência Doméstica, incluindo o episódio do dia 10 de agosto, relatado nos números 26 e ss. da Matéria de Facto Provada.

V. Não deveria, assim, ter sido autonomizado um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, relativamente aos actos praticados no dia 10 de agosto, porquanto o Código Penal prevê, precisamente no supra citado artigo, uma punição específica quando do comportamento do arguido resulta "Ofensa à integridade física grave" (alínea a) do n.° 3), ou mesmo a morte (alínea b) do n.° 3).

VI.     O crime de Violência Doméstica, verificando-se, absorve toda a restante factualidade que, individualmente considerada, pudesse integrar a tipificação legal prevista para outro crime.

VII.    Prevendo o Código Penal português, para o crime de Violência Doméstica, que em resultado da sua prática possam ocorrer ofensas à integridade física graves ou mesmo a morte, o agente terá de ser punido apenas como autor material do crime de Violência Doméstica, e não deste crime acrescido de um crime ofensa à integridade física grave qualificada ou mesmo de um crime de homicídio.

VIII.   Neste sentido já se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos: Ac. TRL de 8-11-2011, CJ, 2011, T.V, pág.319; Ac. TRG de 15-10-2012; Ac. TRE de 8-01-2013; Ac. TRG de 1-07-2013, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

IX.     Todo o comportamento manifestado pelo Arguido para com a ofendida é integrador deste conceito de especial desconsideração para com esta, tendo sido praticado no contexto de uma relação amorosa.

X. Não pode ser o Arguido condenado pela prática de "Um Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada", do qual deverá ser absolvido.

XI.     O Arguido deverá, isso sim, ser condenado pela prática como autor material de um crime de Violência Doméstica previsto e punido pelo artigo 152°, n° 1, alínea b) e n° 3, alínea a) do Código Penal.

XII.    O Arguido encontra-se condenado, entre outros, pela prática de "Um Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada, previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 143°, n°. 1, 144°, als. b) e c), 145°, n°. 1, al. c), 132°, n°. 2, ais. b), h) e j), todos do Código Penal na pena de 7 (sete) anos de prisão;"

XIII.   O "Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada" está em concurso meramente aparente com o "Crime de Violência Doméstica", pelo que deverá, por seu turno, a pena a aplicar pelo crime de Violência Doméstica ser modificada por forma a reflectir os actos de ofensa à integridade física graves que a integram, resultantes da actuação do Arguido no dia 10 de Agosto de 2016, nos termos do disposto na alínea a) do n° 3 do artigo 152° do Código Penal.

XIV.   Se assim se não entender, e a considerar que o arguido praticou em concurso efectivo com o Crime de Violência Doméstica um Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada, a pena concretamente determinada de 7 anos é por demais exagerada.

XV.    A título comparativo e para efeitos de visão global do nosso ordenamento jurídico, o Artigo 131° do Código Penal prevê que a pena mínima para "Quem matar outra pessoa" é de prisão de 8 anos, sendo que o comportamento em referência nos presentes autos e que se pretende punir não é o de "matar outra pessoa".

XVI.   A moldura penal a que chegou o Tribunal a quo, por conta única e exclusivamente deste Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada, baliza-se entre um mínimo de 3 anos e o máximo de 12 anos prisão.

XVII. Não se vislumbram exigências de repressão e reprovação social deste crime que imponham uma pena tão afastada do mínimo legal previsto.

XVIII. Tampouco se alcançam as necessidades de prevenção geral e especial que levaram a que se considerasse como inteiramente justa e adequada a condenação do arguido na pena de 7 anos de prisão, só pelo Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada.

XIX.   Admitindo-se, por mera hipótese, que o Arguido também deverá ser condenado, autonomamente, por um "Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada", a pena concreta aplicada é excessiva, tendo o Tribunal a quo violado o artigo 71° do Código Penal, devendo, por isso, ser a mesma reduzida para o valor correspondente ao limite mínimo legal, ou, se assim não se entender, para um valor muito próximo do limite mínimo legal.

XX.    Mais deverá ser recalculado o cúmulo jurídico daí resultante, condenando-se o Arguido a cumprir uma pena necessariamente inferior a 9 (nove) anos de prisão.

A este recurso responderam a magistrada do Ministério Público e a assistente BB pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Também a assistente/demandante BB interpôs recurso formulando na motivação respectiva as seguintes conclusões (transcrição):

a) A Assistente, com o seu pedido de indemnização civil, concluiu o mesmo impetrando da seguinte forma:

(…)

Mais deverá o Demandado ser condenado a pagar a quantia a liquidar em sede de execução de sentença pelos danos morais e patrimoniais originados pela estabilização e consolidação do quadro sequelar da Demandante, o que ainda não sucedeu, impedindo a sua total quantificação.

b) Com o consequente requerimento de prova requereu a realização de exame médico-legal à pessoa da Assistente, subordinado aos quesitos que apresentou por requerimento de 31 de Março corrente.

c) Visava tal perícia apurar, entre outros danos, qual a incapacidade geral (no âmbito do direito civil) de que era portadora.

d) O mesmo, embora devidamente ordenado, não ficou concluído, atendendo a que a situação clínica da Assistente ainda não se achava estabilizada, conforme relatório pericial de fls. .

e) Tal facto ficou, aliás, provado no douto Acórdão, mormente no seu ponto 62, que reza o seguinte: Em face da situação clínica da ofendida BB não se encontrar ainda estabilizada, não se encontra ainda concretizada, de momento, qualquer incapacidade de que esta possa padecer.

f) Contudo, do dispositivo condenatório (quanto ao pedido de indemnização civil) não se abrangeu, como pensamos que deveria, o valor a apurar em sede de execução de sentença quanto ao dano biológico, ou seja, quanto ao dano patrimonial futuro.

g) Por as sequelas não se acharem ainda consolidadas (a situação clínica da ofendida não se encontrava estabilizada), era de todo impossível naquele momento liquidar o quantum indemnizatório.

h) Sendo certo que do douto Acórdão existe matéria de facto dada como provada da qual se poderá, com bastante segurança, afirmar que existe dano biológico, conforme pontos 64° a 70° dos Factos Provados.

i) O dispositivo apenas o fez quanto a alguns danos patrimoniais (despesas médicas e medicamentosas e perdas salariais), não o fazendo porém quanto ao dano biológico.

j) O STJ tem vindo a entender, de forma dominante, que o dano biológico deve ser valorado como dano patrimonial futuro e, consequentemente, objecto de indemnização (independentemente da possível repercussão em sede de danos não patrimoniais).

k) Tais danos (ou dano biológico), por ainda não se encontrarem estabilizados, não podiam ser, neste momento, liquidados.

1) E, como impetrado, devia o Demandado ser condenado em quantia a apurar em sede de execução de sentença quanto ao dano biológico ou dano patrimonial futuro.

m) O que não sucedeu.

n) O Acórdão proferido violou, entre o mais, o disposto no art. 615°, n° 1, al. d), do CPC, ex vi art. 4° do CPP.

Não houve resposta a este recurso.

No Tribunal da Relação do Porto, foi proferida decisão sumária declinando a competência para apreciação do recurso do arguido por este visar unicamente matéria de direito a respeito da pena parcelar de 7 anos de prisão e da pena única de 9 anos de prisão.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Sr. Procurador-Geral  Adjunto deu parecer no sentido de que se não justifica a autonomia da pena de 2 anos e 8 meses respeitante  a uma parte dos factos (de 2015.08.10) devendo estes ser punidos, nos termos do art. 152º, nº 1, parte final, e 3 C. Penal, com a pena que cabe ao crime de ofensa à integridade física grave qualificada.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP tendo o arguido apresentado resposta ao parecer em que defendeu que a subsidiariedade existe mas implica o afastamento da condenação pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada.

                                             *

2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados foi o seguinte (transcrição):


1 - O arguido AA e BB, nascida a ..., tiveram um relacionamento amoroso, como se de marido e mulher se tratassem, entre data não concretamente apurada do ano de 2010, até ao dia 16 de Maio de 2015.
2 - No referido período temporal, o arguido e BB residiram na mesma casa, partilhando leito e refeições.
3 - Na habitação sita na Rua ..., viviam também os dois filhos menores da BB e os dois filhos do arguido, todos fruto de relações anteriores.
4 - No dia 16 de Maio de 2015, BB tomou a decisão de colocar termo à relação, tendo disso informado o arguido.
5 - O arguido não se conformou com tal decisão, e no dia 18 de Maio de 2015, iniciou a prática de actos de perseguição, ameaça à vida e integridade física de BB, que culminaram com a tentativa de por termo à vida daquela, através do disparo de vários tiros com arma de fogo.
6 - Assim, no dia 18 de Maio de 2015, pelas 20h30m, quando BB se encontrava no interior do seu veículo automóvel a realizar o percurso do local de trabalho para a sua residência, sita, à data, na Rua..., o arguido, que conduzia o veículo automóvel de sua propriedade de matrícula ...-NE, dirigiu-lhe as seguintes palavras “tens sorte em estar gente à janela, se não limpava-te o sebo”, referindo-se à circunstância de se encontrar uma pessoa à janela de um dos edifícios circundantes, a presenciar tais factos.
7 - No dia 19 de Maio de 2015, pelas 16h00m, quando BB efectuava o mesmo trajecto, nas mesmas circunstâncias, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras “Quero falar contigo, abre o vidro. Se não abres a bem abres a mal. É hoje que te vou matar”, tendo de seguida se dirigido à mala do automóvel supra identificado, momento em que BB se pôs em fuga.
8 - No dia 21 de Maio de 2015, cerca das 15h00m, quando BB se deslocava no seu veículo automóvel para o seu local de trabalho, ao chegar junto dos semáforos existentes no ..., o arguido, conduzindo o veículo ciclomotor de matricula ..., atravessou esse veículo em frente ao veículo automóvel de BB, abalroando-o por duas vezes, e obrigando-a a imobilizar o veículo automóvel em que seguia.
9 - BB logrou reiniciar a marcha do seu veículo, tendo o arguido seguido em sua perseguição, ultrapassou o veículo automóvel conduzido pela BB e, novamente, atravessou o ciclomotor que conduzia em frente ao veículo da ofendida e proferido as seguintes expressões: “Quero falar contigo”, ao que a ofendida respondeu “Se quiseres fala, que eu não abro o vidro”.
10 - De imediato, o arguido desferiu pancadas na janela do veículo automóvel da ofendida, tendo em seguida se dirigido ao ciclomotor e retirado do interior do banco do mesmo um objecto embrulhado num saco preto, o qual exibiu a BB, dizendo-lhe que a ia matar, tendo a BB se posto em fuga.
11 - No período compreendido entre 31 de Julho de 2015 e 2 de Agosto de 2015, o arguido enviou várias SMS para o telemóvel da BB e para a filha desta, de nome DD, ameaçando-as que as iria matar.
12 - No dia 3 de Agosto de 2015, pelas 19h30m, no exterior da residência de BB sita na ..., o arguido abordou a ofendida, quando esta se preparava para estacionar o seu veículo automóvel na garagem e agarrou-a pelos cabelos, tendo esta caído ao chão.
13 - Com a ofendida caída no solo o arguido desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pontapés nas pernas e socos na cabeça.
14 - Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido desferiu bofetadas na cara e pancadas nas costas a CC, nascida a ..., filha da ofendida BB, e pancadas no ombro e ouvido direitos a EE, nascida a ..., sobrinha da ofendida BB, que nesse momento ocorreram ao local com o intuito de porem termo às agressões.
15 - Acto contínuo, o arguido dirigiu-se ao veículo automóvel, regressando com um saco preto, de onde retirou um objecto, cujas características não foi possível apurar, mas que se assemelhavam a uma pistola, de cor preta, deixando cair ao solo algumas munições.
16 - No momento em que o arguido apanhava as referidas munições do chão, a BB, a sua filha e a sua sobrinha aproveitaram para se refugiarem no interior da residência.
17 - Após, o arguido, utilizando uma sachola, desferiu com ela pancadas no vidro da janela da cozinha da casa da ofendida, partindo-o.
18 - Nesse momento, uma vizinha começou a gritar por auxílio, tendo o arguido, de imediato, proferido as seguintes palavras “Agora vou embora mas isto não fica assim”, ausentando-se do local.
19 - Como consequência directa e necessária de tais agressões, BB sofreu no crânio: tumefacção do couro cabeludo, dolorosa à palpação e pressão, localizada na região occipital esquerda, medindo cerca 5cm de eixo por 3cm de eixo menor; no abdómen: equimose acastanhada, no terço superior da região do flanco direito, medindo cerca 1 cm de diâmetro; escoriação avermelhada, linear, localizada no terço médio da região do flanco direito, com 4 cm de comprimento; no membro superior direito: duas equimoses castanho-violáceas, localizadas no terço distal da face posterior do braço, a maior e mais inferior com 3.5cm de eixo maior por 1.5cm de eixo menor, a menor e superior com 1cm de diâmetro; escoriação coberta por crostra cicatricial, localizada no cotovelo, medindo 1.5cm de eixo maior por 1cm de eixo menor; no membro superior esquerdo: equimose acastanhada, no terço distal da face posterior do braço, medindo 1.5cm de eixo maior por 1cm de eixo menor; equimose castanho-amarelada, localizada no terço distal da face anterior do antebraço, com 4.5cm de eixo maior por 4cm de eixo menor; equimose acastanhada, localizada no terço distal da face posterior do antebraço, com 4.5cm de eixo maior por 2cm de eixo menor; no membro inferior esquerdo: várias equimoses acastanhadas na face anterior e posterior da perna, a maior localizada no terço médio da face posterior da perna, medindo cerca 3cm de eixo maior por 1.5cm de eixo menor, a menor no terço distal da face anterior, com 1cm de diâmetro, que lhe causaram doença por 7 (sete) dias, com afectação da capacidade de trabalho geral por 7 (sete) dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 3 (três) dias.
20 - Em consequência da agressão de AA, EE sofreu contusão do ombro direito e dor no pavilhão auricular ipsilateral que lhe causaram doença por 3 dias, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
21 - Em consequência da conduta do arguido, CC sofreu dores, não necessitando, porém, de assistência médica.
22 - No dia 4 de Agosto de 2015, pelas 09h30m o arguido, no veículo automóvel de matrícula ..., deslocou-se à Rua ..., local onde BB se havia deslocado a fim de prestar trabalho como empregada doméstica numa habitação sita nesse local.
23 - Nesse mesmo dia, mais tarde, a hora não concretamente apurada, quando a ofendida saia dessa residência, o arguido agarrou-a e dirigiu-lhe as seguintes palavras “Ah, sua filha da puta, é hoje que te vou limpar o sebo. Vou-te estoirar os miolos”, dizendo a FF, que acompanhava a ofendida, que ainda ia sobrar para ela.
24 - Entre os dias 7 e 9 de Agosto de 2015, o arguido procurou encontrar BB com o intuito de a matar, o que não conseguiu.
25 - Enviou-lhe, então, mensagens escritas do seu telemóvel com o IMEI ... e com o nº. ... para o número ..., utilizado pela ofendida BB com o seguinte teor:
-“ Olha vais viver pior voute fazer a vida num inferno agora é que vai começar”;
-“Não vais ser nimguem”;
-“Ja ando a tua procura
-“Vai para ... que estas mais ou menos mas nao estas segura nem o carro”.
-“Ja deves andar a dar umas fodas”;
-“O vaca eu sei tudo tem cuidado”;
-“Tas boa para ir lamber pissas para a morgue”;
-“Amanha procurote eu eu sei onde estas mar numa hora chego ai vao ser outros anos estragados para pior eu amanha vou ai a festa no terreno da junta”.
-“Foi bom dormir com o teu amante dai de ... eu logo vou ai a festa”;
-“Quantas destes”;
-“Querias me enganar”;
-“Não vales nada mentirosa eu vou a caminho dai também vou a festa agora e que vai ser no te afligas esta semana vais cocaralho”;
-“ Tas farta de fuder mas eu estou a chegar para confirmar as tuas aldrabices es uma puta”;
- “Vigia o carro sua vaca que vai”:
- “Tu vais para lomge dar a cona mas eu voute por de rastos”;
- “Ja tas a foder”;
- “Ja deves tar em casa”;
- “Entao o jipe não sai da garagem”;
- “Arramjaste ai outra ja deste alguma foda hoje ou quantas vais dar mas aproveita que vais ter uma semana negra”;
- “Vais ter que dizer para onde mudaste”;
- “Agora e que morres”;
- “Vais dizer a forca”;
- “Mais vale fugires”;
- “Onde vos encmtrar ides todas”;
- “Eu ando a procurar tudo”;
- “Porque para a semana”;
- “Nem imaginas os nervos que ando”;
- “Não falar comigo pois não”;
- “Tou cheio de procurar e nan tejo nada”;
- “Olha que vou comseguir e vai ser pior”;
- “Senao me disseres eu vou saber a direcao certa”;
- “Tou me a passar filha da puta”;
- “Eu já sei o que amdas a a tramar mas vai ser pior para ti
- “E a ultima mrg não queres vir pois não a gente amanha encomtra se nem que seja na lua”;
- “Se estiveres de ferias encomtramonos na mesma”;
- “Puta da merda vai pagar o que deues as pessoas quer fugir sem pagar”;
- “Voute fuder toda nem que seja demtro do tribunal”;
- “Amdaste a levar ar coisas as 6 da manha es uma mulher morta se nan me dissers onde estas”;
-“ Voute matar”.
26 - No dia 10 de Agosto de 2015, pelas 08h50m, o arguido dirigiu-se à casa de habitação, sita na Rua ... residência de GG, onde a ofendida trabalhava como empregada doméstica.
27 - Ali chegado, o arguido escondeu-se atrás de uma carrinha defronte da referida habitação e esperou a chegada de BB.
28 - Quando esta se preparava para entrar na referida residência, o arguido saiu detrás da dita carrinha, empunhando uma arma de fogo, de marca “Tanfoglio”, de modelo Gt 28, apresentando a sua superfície metálica cromada e as falsas inscrições “Star Cal 35”, de calibre 6,35 “Browning”, resultado da sua transformação a partir da arma original que era uma arma de alarme, a qual previamente municiara com seis munições.
29 - Acto contínuo, o arguido aproximou-se do portão da residência, apontou a arma na direcção de BB, que já se encontrava próximo da soleira da porta, efectuou dois disparos na direcção do corpo de BB, tendo um deles, atingido BB na anca esquerda.
30 - BB introduziu-se no interior da habitação e fechou a porta com o trinco, tendo, contudo, deixado a chave na fechadura, do lado exterior da porta.
31 - A ofendida e GG, que se encontrava grávida de cinco meses de gestação, bem como a filha desta de três anos de idade, procuraram refúgio no jardim situado nas traseiras da residência, de onde GG e a filha conseguiram fugir para o jardim dos vizinhos HH e II, saltando um muro.
32 - A ofendida BBpor já se encontrar ferida na anca, devido ao disparo efectuado pelo arguido, não conseguiu transpor o muro.
33 - Nesse momento, surgiu o arguido no telhado dos anexos da habitação, tendo efectuado mais um disparo na direcção do corpo da ofendida que se encontrava agachada junto da porta da cozinha, não lhe tendo acertado.
34 - De imediato, BB procurou refúgio no interior da habitação, sempre com o arguido no seu encalço.
35 - BB dirigiu-se ao piso superior da referida habitação, onde se escondeu num dos quartos de dormir, o qual não tinha chave na porta.
36 - Colocou, então, o seu corpo contra a porta, exercendo força contra a mesma para impedir a entrada do arguido.
37 - O arguido, contudo, conseguiu abrir a porta do quarto, tendo introduzido inicialmente o braço com a arma, apontando-a na direcção do tronco da ofendida, altura em que esta, vendo a arma, largou a porta, tendo o arguido entrado no quarto, caindo sobre a cama aí existente, assim como a ofendida.
38 - De imediato, após ambos se levantarem, o arguido tentou apontar a arma na direcção do peito da ofendida, porém, a Maria Conceição reagiu e envolveu-se em luta com o arguido, ao mesmo tempo que esta lhe suplicava que não a matasse.
39 - Nessa sequência, apontando a arma de fogo em direcção da BB, o arguido efectuou três disparos com a referida arma, no momento em que a BB exerceu força, descendente, nos braços do arguido, tendo sido atingida na anca por dois deles, e não na zona vital, como era intenção do arguido, e tendo o terceiro projéctil ficado encravado no fecho das calças de ganga da ofendida.
40 - Enquanto lutavam a BB suplicava-lhe pela sua vida, prometendo-lhe que o ia visitar à prisão, bem como que iriam retomar a vida em comum quando este saísse da prisão, tudo a pedido do arguido e com o fito de o convencer a desistir de a matar.
41 - O arguido saiu, então, da habitação e escondeu a arma de fogo na mata existente em frente à residência, onde veio a ser apreendida, sem munições no interior do carregador.
42 - De seguida, o arguido regressou para junto da ofendida, levou-a para a casa de banho, tirou-lhe as calças, limpou-lhe o sangue e chamou o INEM, efectuando três chamadas para o 112 do seu telemóvel, tendo permanecido na habitação até à chegada da GNR ao local.  
43 - Na sequência dos disparos efectuados pelo arguido, a ofendida foi transportada ao Hospital de ..., onde deu entrada pelas 9h57m.
44 - Em consequência da agressão do arguido AA, BB foi assistida no Centro Hospitalar de ...e foi observada a presença de três projécteis de arma de fogo, com calibre longitudinais de 12 mm, um alojado a esquerda, lateralmente ao plano da transição sacrococcígea a nível do plano acetabular da articulação, coxofemoral esquerda e outra gordura e a fáscia aponeurótico. Os outros dos projécteis situam-se: o segundo à direita uma face posterior da coxa intra gordura e a fáscia aponeurótico a nível do plano pequeno trocânter e o terceiro à direita da gordura do sulco nadegueiro da face póstero-medial da coxa.
45 - Dada a profundidade dos projécteis os mesmos não foram removidos em cirurgia de imediato.
46 - BB esteve em internamento no Hospital de ... até ao dia 17 de Agosto de 2015.
47 - Realizado exame médico-legal, apresentava esta as seguintes lesões: no abdómen: cicatrizes, uma linear não recente, de coloração acastanhada, ténue, não dolorosa à palpação e não aderente aos planos subjacentes, localizada na região suprapúbica esquerda com 1,5cm de comprimento; outras duas circulares, com as mesmas características, localizadas na região inguinal a direita com 1cm de maior diâmetro de cada uma; no membro inferior direito: cicatrizes horizontais, lineares, de coloração acastanhada, ténues, não dolorosas à palpação e não aderentes aos planos subjacentes, localizada na face posterior da nádega com 2cm de comprimento; no membro inferior esquerdo: duas cicatrizes circulares de coloração acastanhada, não dolorosas à palpação e não aderentes aos planos subjacentes, localizadas – uma ao nível da crista ilíaca esquerda com 1cm de maior diâmetro e outra na face lateral do terço superior da coxa com 1cm de maior diâmetro.
48 - Em 16.06.2016 BB foi submetida a cirurgia para remoção dos projécteis no Serviço de Cirurgia Geral do CHEDV HSS, tendo sido removidos apenas 2 dos projécteis.
 49 - A situação clínica de BB não está, na presente data, estabilizada, continuando em observação pelos serviços de Cirurgia Geral do Hospital Central de ...
50 - O arguido sabia que com a sua descrita conduta lesava a sua ex-companheira no corpo e saúde, como efectivamente lesou, e que, fazendo-a recear pela sua vida, a afectava na capacidade de livremente se decidir, utilizando a violência com o intuito de reatar o relacionamento amoroso com a mesma, e ainda que a humilhava e atacava a sua dignidade e consideração pessoais, perturbando o seu-bem estar no lar, como efectivamente veio a suceder, não se coibindo de adoptar tais comportamentos na presença de menores de idade.
51 - Agiu, ainda, o arguido com o propósito, concretizado, de atingir a integridade física de CC e de EE, as quais sabia serem menores.
52 - Quis, o arguido, adquirir e deter, como detinha, tal arma e munições, com perfeito conhecimento das suas características, bem sabendo que não possuía a respectiva autorização das entidades competentes.
53 - O arguido AA ao apontar o cano da arma de fogo supra descrita em direcção do corpo da BB e ao efectuar os disparos, agiu com propósito, embora não concretizado, de tirar a vida a BB, o que quis, como forma de retaliar contra o fim do relacionamento amoroso, que não aceitou, persistindo na sua intenção de matar pelo menos durante mais de 24 horas, bem conhecendo o arguido as concretas características letais da arma e que a respectiva utilização constituía meio adequado a provocar a morte, apenas não tendo conseguido concretizar os seus intentos devido a circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente a forte resistência que a ofendida exerceu, apesar de já estar ferida, querendo, como resultado prévio à morte, atingir o corpo da BB, admitindo que, com a sua conduta, poderia afectar-lhe, de maneira grave, a sua capacidade de trabalho, a possibilidade de utilizar o seu corpo e provocar-lhe doença particularmente dolorosa, afectando-lhe a mobilidade e locomoção.
54 - O arguido sabia, ainda, que não lhe era permitido entrar e permanecer na residência de GG, porquanto tal era contra a vontade da legítima proprietária, porém, querendo ali permanecer, como permaneceu, não se absteve de praticar tais actos.
55 - Ao transportar a BB para a casa de banho, ao despir-lhe as calças e ao limpar-lhe o sangue e ao providenciar por socorro, chamando o INEM, o arguido pretendeu, de forma voluntária, impedir a que a morte da mesma viesse a ter lugar. 
56 - O arguido AA agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
57 - Na sequência dos factos supra descritos, ocorridos no dia 10.08.2015, a ofendida BB foi transportada para o Centro Hospitalar ..., E.P.E., concretamente para o Hospital de ..., nesta cidade, tendo-lhe sido aí prestados serviços clínicos na sequência das lesões por esta padecidas, em virtude da actuação do arguido.
58 - Os serviços clínicos supra referidos importaram na despesa de € 1.574,84, reportada às facturas nº. 15007400, emitida em 04.08.2015, no valor de € 113,41; nº. 15011118, emitida em 20.10.2015, no valor de € 1.407,33 e nº. 16001139, emitida em 11.02.2016, no valor de € 54,10.
59 - Em virtude dos factos supra descritos a ofendida BB esteve em observação psiquiátrica no Centro Hospitalar ..., tendo tido alta com sugestão de manter Psicoterapia e acompanhamento nos Cuidados Primários e encontra-se a ser acompanhada em consultas externas de Cirurgia Geral, Ortopedia e Posologia.
60 - A ofendida BB é, igualmente, acompanhada pelo médico de família no Centro de Saúde de ..., bem como por Psicóloga, Drª. ..., na ..., em reuniões semanais.
61 - BBencontra-se medicada com anti-depressivos.
62 - Em face da situação clínica da ofendida BB não se encontrar ainda estabilizada, não se encontra ainda concretizada, de momento, qualquer incapacidade de que esta possa padecer.
63 - Aquando do dia 10.08.2015, BB era ..., exercendo funções na habitação da Drª. GG auferindo um vencimento de € 505,00, auferido pelo correspondente a 14 meses/ano.
64 - BB era pessoa robusta, trabalhadora e dinâmica, com espírito jovial e alegre.
65 - Em função dos factos descritos, a demandante BB não mais conseguiu trabalhar junto daquela que era a sua entidade patronal.
66 - Após a alta médica em 06.11.2015 (passando para o regime ambulatório), a demandante tentou regressar ao seu local de trabalho; porém, reviveu todos os acontecimentos do dia 10.08.2015, sentiu mal-estar, tremia, vivenciando sentimentos de insegurança e de pânico, agravados sempre que se cruzava com viaturas semelhantes ao do arguido.
67 - A demandante viu-se obrigada a terminar o seu vínculo laboral, atento o sobressalto que tal lhe provocava, o que foi realizado de forma cordial com a sua entidade patronal, dados os argumentos que lhe foram apresentados, pelo que rescindiram por mútuo acordo, em 09 de Novembro de 2015, o referido contrato de trabalho.
68 - BB sente dores álgicas, mormente na anca esquerda e na nádega direita, acentuadas com os movimentos activos e passivos.
69 - Como consequência das lesões a demandante BB passou a desempenhar as suas funções profissionais com dificuldades, sentindo menor destreza e força nos membros inferiores, passou a não conseguir executar algumas tarefas, tais como deslocar móveis, proceder à arrumação e limpeza em alturas, nem consegue permanecer largos períodos de tempo a efectuar trabalhos domésticos sem que seja assolada por dores nos membros inferiores, obrigando-a a paragens.
70 - A personalidade da BB transformou-se, por via dos factos supra descritos, sendo agora uma pessoa mais amarga e de relacionamento difícil, verificando-se um agravamento negativo da sua auto-estima e da sua alegria e entusiasmo de viver, vivenciando tristeza e insegurança pessoal, apresenta comportamentos de irritabilidade fácil e intranquilidade, choro, bloqueio de comunicação com progressiva introversão, bem como sente insónias e tem noites mal passadas.
71 - A demandante, antes do episódio de 10.08.2015, sofreu por intermédio de perseguições, de insultos e agressões, sentindo-se atemorizada pelo facto de recear que o arguido alcançasse as ameaças.
72 - A demandante mudou de residência, com medo das agressões e ameaças do arguido.
73 - O arguido chegou a enviar à demandante BB uma mensagem com a imagem de um caixão com um ramo de flores nele depositado.
74 - A BB tinha medo de sair à rua e sempre que saía ia em constante vigilância.
75 - No dia 09.08.2015, o arguido mandou uma mensagem à filha da demandante, CC, dizendo que a mãe era uma mulher morta e face a tal comportamento, a demandante pediu ao amigo ... que a acompanhasse ao local de trabalho no dia seguinte, o qual nesse mesmo dia à noite numa chamada telefónica com arguido, tentou que este alterasse o seu comportamento.
76 - No dia seguinte, a BB foi para o seu local de trabalho, com o dito ...e a sua filha CC e, aí chegados, a demandante analisou se podia sair da sua viatura em segurança e como não viu arguido, entendeu que se encontrava em condições de sair e abandonou a viatura, tendo o Márcio regressado a casa.
77 - No dia 10.08.2015 a BB temeu pela sua vida, tendo lutado com o arguido para evitar esse desfecho, sendo perseguida pelo arguido, que consigo insistia para saber onde esta estava na ocasião a morar.
78 - Depois dos tiros a BB começou a desfalecer, do que se apercebeu o arguido.
79 - O arguido contactou pelo telefone a Maria ............ do Estabelecimento Prisional, pelo menos, uma vez.
80 - A BB continua a sentir medo do arguido, tando mais que este lhe disse, no dia 10.08, que se contasse o que tinha acontecido faria o mesmo às suas filhas.
81 - BB encontra-se medicada com Victan, Triticum e Estacitalopran.
82 - BB pretende sair de ...e recomeçar um novo ciclo de vida.
83 - A demandante BB necessitará de acompanhamento psiquiátrico futuro.
84 - Em consequência da actuação do arguido ocorrida no dia 03.08.2015, CC sentiu dores, sentiu-se triste, psicologicamente mais abalada, abatida, medrosa.
85 - Em consequência da actuação do arguido a CC teve pesadelos, o seu rendimento escolar diminuiu e passou esta a ser acompanhada por Psicólogo da Escola que frequenta, a EB 2/3 de .... 
86 - Do percurso vivencial do arguido:
AA integra um conjunto de oito irmãos, tendo o seu processo educativo decorrido em contexto familiar de condição socioeconómica e cultural humilde e num meio sociocomunitário de características rurais. A mãe e o “padrasto”, já falecidos, foram operários na indústria corticeira.
O pai do arguido emigrou para a Africa do Sul nos seus primeiros anos de vida, sendo que após o regresso não restabeleceu a coabitação com a sua mãe, nem assumiu o exercício das suas obrigações e funções parentais.
Entretanto, a progenitora de AA, tinha este cerca de 3 anos de idade, estabeleceu nova relação marital, assumindo o “padrasto” uma atitude proactiva no acompanhamento educativo da fratria, embora o arguido avalie um tratamento diferenciado entre os enteados e os seus descendentes.
A dinâmica intrafamiliar é referenciada como tendo sido negativamente condicionada pela postura do “padrasto” na supervisão educativa dos menores, com recurso frequente à punição física severa enquanto meio de imposição das normas, regras e valores socialmente convencionados, e empobrecida no plano comunicacional e afectivo. Esta atitude seria também observada na interacção conjugal, com o padrasto a assumir comportamentos violentos, numa dinâmica de submissão do papel da mulher na relação e na gestão do quotidiano familiar.
Esta disfuncionalidade na relação conjugal, segundo o arguido, terá estado na origem de alguns períodos de abandono do núcleo familiar por parte da sua mãe, alturas em que os descendentes ficavam a cargo do seu “padrasto”.
AA concluiu apenas a então 4ª classe, num trajecto caracterizado pelo desinvestimento escolar, registando várias retenções e problemas de assiduidade, a que não será alheia, à desvalorização no seio da família do papel da escola na formação dos indivíduos em detrimento do exercício de uma actividade laboral.
Assim, com apenas 14 anos de idade iniciou-se no mercado laboral, trajecto desenvolvido principalmente no sector da restauração, para terceiros e também por conta própria, sendo que durante o matrimónio explorou com o falecido cônjuge dois Cafés. Registou ainda experiências de trabalho como operário na indústria do calçado, motorista, e numa empresa de recolha, gestão e tratamento de resíduos urbanos.
Contraiu matrimónio aos 19 anos de idade, o qual perdurou até ao falecimento do cônjuge há cerca de 6 anos, e do qual tem 3 filhos. A imagem veiculada pelo arguido relativamente à dinâmica vivenciada nessa relação conjugal é no sentido da estabilidade, proximidade afectiva e funcionalidade. Esta versão é todavia contrariada por outras fontes de informação familiares e comunitárias, que atribuem ao arguido, já na constância dessa relação, uma atitude de ciúme e controlo sobre o quotidiano do falecido cônjuge.
AA, em 2010, cerca de um ano após ter enviuvado, estabeleceu relacionamento afectivo com BB.
À data, o casal permaneceu a residir na morada de família do arguido, apartamento em aquisição com recurso a crédito bancário contraído aproximadamente há 16 anos.
Integravam o agregado, para além do casal, os três filhos do casamento do arguido com 34, 28 e 13 anos de idade, e os dois descendentes menores da ofendida. Posteriormente o mais velho autonomizou-se.
Desde início da coabitação, as dinâmicas conjugal e familiar revelaram-se instáveis e disfuncionais, em consequência de características pessoais do arguido que envolviam o ciúme extremo na relação de pares, a dependência afectiva relativamente à ofendida e a atitude de controlo do quotidiano da mesma. Estas dificuldades de interacção funcional na conjugalidade eram exacerbadas pelo facto de principalmente a sua filha, com 28 anos de idade, manter um relacionamento conflituoso com a ofendida, em relação à qual assume que não nutria sentimentos amigáveis desde o início. Os conflitos que se estabeleciam por vezes entre elas despoletavam, num segundo momento, situações disruptivas entre o casal.
A disfuncionalidade na relação marital terá também advindo da situação de inactividade laboral por parte do arguido, desempregado desde há cerca de 6/7 anos, exceptuando pontuais biscates, com consequências na situação de relativa dificuldade económica em que vivia o agregado. O seu quotidiano caracterizava-se então pelo ócio, acomodado a permanecer na habitação a maior parte do dia, ausentando-se à noite até horas tardias sem justificação do seu comportamento no contexto familiar.
No meio de residência, os factos pelos quais está acusado foram conhecidos com surpresa, já que na interacção social não era avaliado como um indivíduo conflituoso. Contudo, é referenciado como ciumento e controlador nas relações afectivas, forma de estar que já lhe atribuíam durante o casamento.
À data dos factos constantes na acusação, a relação afectiva com a vítima nos autos tinha conhecido a ruptura por iniciativa daquela em meados de Maio do ano transacto. Desde então, até à aplicação da prisão preventiva em 11.08.2015, o arguido manteve-se na morada habitual, residindo com os filhos de 28 e 13 anos de idade.
Mantinha-se em situação de inactividade laboral, pelo que o agregado subsistia da sua pensão de viuvez no valor de € 290 mensais, igual tipo de prestação do filho menor, no montante de € 90, e da comparticipação da filha, em montante não quantificado, para as despesas familiares, a qual trabalha como operária fabril, auferindo um salário de € 530. Face ao rendimento disponível e nível de despesas do agregado, a situação económica apresentava-se deficitária, sendo que, inclusivamente, a morada de família já havia sido objecto de penhora por dívida à instituição bancária. Neste contexto, a filha mostra-se apreensiva pelo facto de a qualquer momento terem que abandonar a casa, encontrando-se a diligenciar uma alternativa habitacional.
O arguido era acompanhado desde que enviuvou pelo médico de família, devido a uma depressão, com suporte medicamentoso e consulta trimestral, sendo que nem sempre tomava a medicação de forma rigorosa.
Os projectos de vida do arguido estão condicionados pela definição da sua situação jurídico-penal, contudo exprime a intenção de retomar a convivência com os filhos, e particularmente o acompanhamento educativo do seu descendente ainda menor. No plano laboral não verbaliza uma alternativa concreta, identificando o facto de já possuir 51 anos de idade e se encontrar há vários anos afastado do mercado de trabalho regular como constrangimentos à sua reinserção profissional.
Os filhos que com ele residiam à data da reclusão constituem nesta fase o principal apoio afectivo e material ao seu processo de reinserção social. Visitam-no com regularidade e verbalizam a preservação dos laços afectivos relevantes que os unem, uma vez que consideram que o arguido foi sempre um pai envolvido no seu acompanhamento educativo.
AA encontra-se no Estabelecimento Prisional do ... desde 11.08.2015 à ordem dos presentes autos. O arguido tem adoptado uma conduta em conformidade com as regras vigentes na instituição, estabelece uma relação cordata com os diversos interlocutores intervenientes no sistema prisional, e recentemente iniciou o desempenho de actividade laboral no sector da cozinha, podendo estes factos constituir-se como indicadores de que num ambiente de contenção consegue regular a emergência de eventuais comportamentos disruptivos, e adoptar comportamentos ajustados na interacção social.
Reconhece, todavia, dificuldades de controlo do seu comportamento, admitindo que com facilidade reage de forma impulsiva, sem todavia ser capaz de executar uma análise quanto os factores despoletadores dessas reacções, nem de expressar a forma como poderá neutraliza-los. Imputa, ainda, à circunstância de desde há anos padecer de depressão, conjugada com a incapacidade para gerir a ruptura da relação afectiva com a vítima, por quem diz ainda nutrir sentimentos de afecto, a eventual eclosão de comportamentos agressivos e normativamente desajustados.
Neste contexto, percebe que seria vantajoso, e diz-se receptivo, dar continuidade ao acompanhamento clínico especializado que vem prosseguindo em meio prisional, com consultas regulares de psiquiatria, psicologia e manutenção de suporte medicamentoso, independentemente do corolário do presente processo judicial.
Relativamente à natureza dos factos pelos quais está acusado, identifica a sua gravidade, censurabilidade e as consequências jurídico-penais. Verbaliza um discurso em consonância com o convencionado ao afirmar que a violência, quer em sentido amplo, quer no contexto da relação conjugal, não é uma forma legítima de resolução dos conflitos ou de afirmação de poder entre pares. Contudo, recorre a racionalizações que considera poderem explicar condutas como as que constam da acusação, nomeadamente em situações de ruptura conjugal em que um dos elementos ainda mantém vinculação afectiva ao outro, ou o defraudar de expectativas de conjugalidade.
Do ponto de vista familiar não se observam alterações substantivas, considerando que os filhos mantêm o apoio afectivo e material ao arguido, e que os frágeis recursos disponíveis para a gestão do quotidiano familiar apresentam-se inalterados, pelo que da reclusão não se afigura ter resultado um agravamento dessas condições, considerando a sua situação de inactividade desde há anos.
A ex-companheira BB exprime acentuado receio quanto à neutralização de comportamentos agressivos e persecutórios por parte do arguido quando em liberdade, fundamentando-se na gravidade das ofensas de que diz ter sido vítima. Saliente-se que neste momento é apoiada pela APAV, tendo beneficiado de um sistema de Teleassistência e de apoio psicossocial. Paralelamente, o médico de família do arguido, emite uma opinião clínica no sentido de reconhecer, naquele, sentimentos exacerbados de possessividade relativamente à vítima.
O processo de desenvolvimento de AA é referenciado como tendo decorrido num ambiente familiar de modestos meios económicos e socioculturais, com recurso a uma prática educativa com uma dimensão punitiva severa, afectivamente empobrecida, e onde era observada uma dinâmica assente num papel de subalternidade da mulher na relação conjugal e na gestão do quotidiano familiar, com a ocorrência de episódios de violência dirigida ao par.
Face à situação de relativa carência económica, cedo se desvinculou da escola, adquirindo escassas competências escolares e sociais por via desta instituição, investindo na prossecução de um trajecto laboral que assegurasse as necessidades de subsistência e autonomia, o qual se veio a revelar regular até ao falecimento do cônjuge, altura em que ficou desempregado.
O arguido revela características pessoais associadas a dificuldades na gestão da raiva e impulsividade, e um quadro de valores e crenças disfuncionais relativamente à conjugalidade e relações de poder entre pares, que se indiciam interiorizadas no decurso do seu processo de socialização.
Pese embora verbalize nesta fase um discurso de censurabilidade face ao uso da violência enquanto forma de resolução dos problemas, particularmente na conjugalidade, correspondendo deste modo à desejabilidade social e legal, esta postura carece ainda de maturação e interiorização, apresentando dissonâncias entre o reconhecimento em sentido abstracto da ilicitude e gravidade dos crimes em presença, e a sua admissibilidade em determinadas circunstâncias geradoras de frustração e instabilidade psicoemocional.
87 - O arguido foi anteriormente condenado:
- no âmbito do processo Comum Singular nº 511/14.0 GCOVR da Instância Local Criminal de ..., da Comarca de ..., pela prática, em 17.10.2014, de Um Crime de Detenção de Arma Proibida, p. e p. pelo art. 86º da Lei nº 5/06 de 23.02, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por sentença datada de 13.11.2015, transitada em julgado em 14.12.2015.

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3. – No recurso que o arguido interpôs a pretensão primeiramente formulada é a de que se considere que os factos provados integram somente o crime de violência doméstica com previsão e punição no art. 152º, nº 3, al. a) do Código Penal (diploma a que pertencem as normas adiante referidas sem menção de origem).
Por conseguinte, sem que sejam autonomizados e considerados em concurso real o crime de violência doméstica do citado art. 152º, nºs 1, al. b) e 2 por um lado, e o crime de ofensa à integridade física grave qualificada dos arts. 143º, nº 1, 144º, als. b) e c), 145º, nº 1, al. c), 132º, nº 2, als. b), h) e j) por outro, como veio a acontecer na decisão recorrida.
Ou como dito na conclusão XII da motivação:

«O "Crime de Ofensa à Integridade Física Grave Qualificada" está em concurso meramente aparente com o "Crime de Violência Doméstica", pelo que deverá, por seu turno, a pena a aplicar pelo crime de Violência Doméstica ser modificada por forma a reflectir os actos de ofensa à integridade física graves que a integram, resultantes da actuação do Arguido no dia 10 de Agosto de 2016, nos termos do disposto na alínea a) do n° 3 do artigo 152° do Código Penal»
O apoio factual para sustentar esta pretensão encontra-o o recorrente nos factos 4 e 5 dos provados que se reproduzem de novo:
4 - No dia 16 de Maio de 2015, BB tomou a decisão de colocar termo à relação, tendo disso informado o arguido.
5 - O arguido não se conformou com tal decisão, e no dia 18 de Maio de 2015, iniciou a prática de actos de perseguição, ameaça à vida e integridade física de BB, que culminaram com a tentativa de por termo à vida daquela, através do disparo de vários tiros com arma de fogo.
Esta pretensão teve oposição expressa da magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido que salientou a existência de uma factualidade típica de inflicção de maus tratos físicos e psíquicos à vítima, integrando o crime de violência doméstica, e de uma outra com o propósito de lhe tirar a vida com resposta típica no crime de homicídio em concurso real com aquele outro. Sendo no mesmo sentido a posição manifestada pela assistente.
Já o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal considerou no seu “parecer” que a violência doméstica foi materializada no conjunto dos factos provados incluindo os disparos com a arma de fogo – o culminar da tirania doméstica, como refere  – e, por isso, a conduta do arguido deve ser punida, nos termos do art. 152º, nº 1 com a pena que caberia ao crime de ofensa à integridade física grave qualificada.
Uma constatação há desde logo a fazer.
No acórdão recorrido a opção tomada foi a de, após longo excurso, se  considerar o concurso real dos crimes de violência doméstica e de ofensas corporais graves qualificadas – depois de se concluir que teria havido tentativa de homicídio qualificado não punível por existir desistência juridicamente relevante – mas sem que houvesse justificação a propósito dessa dita opção a respeito do concurso real.
E num breve à parte impõe-se salientar o seguinte com importância determinante no raciocínio que se vai expor: para aferir da existência ou não de concurso aparente o que há a ponderar são as condutas que o recorrente levou a cabo e perante elas é inequívoco que o seu objectivo perante os factos ocorridos em 10 de Agosto era o de matar a vítima como está expresso no ponto 53 dos factos provados nestes termos:
«O arguido AA ao apontar o cano da arma de fogo supra descrita em direcção do corpo da BB e ao efectuar os disparos, agiu com propósito, embora não concretizado, de tirar a vida a BB, o que quis, como forma de retaliar contra o fim do relacionamento amoroso, que não aceitou, persistindo na sua intenção de matar pelo menos durante mais de 24 horas, bem conhecendo o arguido as concretas características letais da arma e que a respectiva utilização constituía meio adequado a provocar a morte, apenas não tendo conseguido concretizar os seus intentos devido a circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente a forte resistência que a ofendida exerceu, apesar de já estar ferida querendo, como resultado prévio à morte, atingir o corpo da BB, admitindo que, com a sua conduta, poderia afectar-lhe, de maneira grave, a sua capacidade de trabalho, a possibilidade de utilizar o seu corpo e provocar-lhe doença particularmente dolorosa, afectando-lhe a mobilidade e locomoção ».
 Que essa actuação tenha redundado depois numa tentativa não punível mercê do comportamento subsequente do recorrente não obnubila as concretas circunstâncias do caso de ponderação decisiva na avaliação da qualificação jurídica que este propõe.
É aquela a base material em função da qual se há-de levar a cabo essa tarefa.
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4. – Tem sido notada na doutrina[1] alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica.
Generalizadamente, porém, se aponta como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa[2]-[3] entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, como também já foi salientado, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada[4].
A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.
Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.
Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura»[5] que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.
Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.
Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar[6].
Se, contudo, a violência doméstica pressupõe aquela durabilidade relacional familiar e aquela outra situação de domínio e de constrangimento da livre determinação da vítima, de disposição da sua vida, num sentido mais geral, ou, dito de modo mais expressivo, «a eliminação do núcleo fundamental de autonomia da vontade e de disposição livre da mesma pela vítima»[7] naturalmente que a intenção de matar pressupõe um “ir mais além”; pressupõe a intenção de atacar a vida da vítima, pondo-lhe fim – passe a tautologia – e de por essa via terminar todo o envolvimento relacional que “possibilitava” uma certa conduta do agente. Atentar contra a vida humana é certamente um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade.
Dir-se-ia, pois, que nas concretas circunstâncias e no tocante à pretendida existência de concurso aparente a que putativamente estaria reconduzida a conduta do recorrente não há uma «unidade de realização típica»[8] na específica perspectiva de que os vários actos singulares – os que ocorreram a partir de 16 de Maio e aquele outro que se desenrolou em 10 de Agosto – não estarem unificados numa «vontade criminosa unitária».
Como é ensinado[9] o tipo de ilícito – o verdadeiro portador da ilicitude material – é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito e o tipo objectivo tem sempre, como seus elementos constitutivos o autor, a conduta e o bem jurídico e só pela conjugação destes elementos, ligados naturalmente ao tipo subjectivo, se alcança o sentido jurídico-social da ilicitude material dos factos que o tipo abrange implicando uma consideração global desse sentido no concreto comportamento do agente.
Sem prejuízo, claro está, de se ter como assente que em certas circunstâncias vários tipos legais podem estar numa relação em que a aplicação de uns afaste a aplicação de outros; a aplicação de normas que contêm certos tipos exclui a aplicação de outras.
Esta situação de concurso legal ou aparente de crimes exige, contudo, repete-se, a verificação de certas circunstâncias que terão de ser aferidas mediante a percepção dos «sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global». É «a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente, submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade de factos puníveis e nesta acepção de crimes».
Ora, salvo o devido respeito, em rigor, os actos que vieram a ser tidos como integradores do crime de homicídio tentado – não punido – têm uma matriz autónoma e um sentido social diferenciado dos outros que os precederam e que foram qualificados como de violência doméstica – configurando ameaças, coacção, ofensas corporais e injúrias – pois possuem um diferente desvalor de acção e de resultado, em suma, um desvalor autónomo o que conduz, crê-se, de modo claro, à desconsideração, no caso, do princípio ne bis in idem não apenas na sua faceta de proibição de dupla valoração mas também naquela outra em que se exige que a aplicação de um tipo legal a uma certa conduta deve esgotar todo o desvalor de acção e de resultado inerente a essa conduta[10].
Por conseguinte, condutas diferenciadas, atacando diferentes bens jurídicos com uma inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude e, logo,  pluralidade de infracções diferenciadamente valoradas para efeito da sua punição e não um único sentido autónomo de ilicitude correspondendo-lhe uma «predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados» caso em que se estaria, então sim, perante uma situação de concurso aparente.
Consequentemente também se não poderá configurar, no comportamento global em apreço, uma intercepção ou cruzamento de conteúdos de ilícito de maneira a que se possa falar de violação da proibição de dupla valoração[11].
Discorda-se deste modo, com o devido respeito, da posição expressa pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto quando afirma que «os disparos gravemente lesivos da integridade física da ofendida estão solidificados nos restantes [actos] anteriores sendo o culminar destes». Pode aceitar-se que a conduta do dia 10 de Agosto seja a culminância de um processo de violência mas, se é permitida a imagem em benefício da clarificação da ideia, com um marcado salto qualificativo que lhe confere um sentido de ilicitude típica que se crê claramente distinto.
Dito isto sempre se dirá ainda, num à parte final, que pouca importância se afigura que houvesse de conceder-se à intenção de classificar a concorrência de normas como de consumpção, especialidade ou subsidiariedade (expressa) pois tal classificação «não possui relevo prático-normativo» na medida em que fosse qual fosse a conclusão a tal respeito seria sempre e só aplicada a norma prevalecente e não a norma excluída[12]. Sem embargo de se notar que a doutrina parece assinalar, maioritariamente, mas de modo crítico, a subsidiariedade da incriminação do nº 1 do art. 152 (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”)[13].
Improcede, pois, a primeira questão posta no recurso.

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 5. – A questão que subsequentemente o arguido coloca no seu recurso prende-se com a sua discordância relativamente à medida concreta da pena imposta pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada pelo qual veio a ser condenado – depois de se ter considerado o homicídio qualificado tentado não punível – na pena de 7 anos de prisão.

Se, como é ensinado, a pena pode e deve ser concebida como forma de o Estado «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[14], a este propósito se falando de prevenção geral positiva ou de integração, no sentido de meio de «resolução do conflito social suscitado pelo crime», é, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens pessoais que essa expectativa da comunidade na validade dessas normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão.

E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos»[15].

É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena[16]».

Convirá resenhar de modo sucinto a conduta do arguido no dia 10 de Agosto sublinhando:

        - A atitude de se emboscar aguardando a chegada da vítima já munido da arma de fogo pronta a disparar (factos 27 e 28);

        - A surpresa inerente aos primeiros dois disparos, um dos quais logo atingiu a vítima (facto 29);

         - A perseguição que desencadeou aquando da tentativa de fuga da vítima com repetição de disparos e a confrontação que manteve com aquela, apesar de estar já ferida, visando concretizar o seu propósito (factos  32 a 38);

      - A circunstância de ter efectuado mais três disparos dois deles atingindo a vítima em zona não vital, por acção defensiva desta, e o projéctil do terceiro ter ficando encravado no fecho das calças de ganga, por feliz acaso.

        Tudo isto releva uma elevada ilicitude e um dolo directo intensíssimo que não é possível escamotear.

        Ponderando ainda a circunstância de o arguido ter já uma condenação por crime de detenção de arma proibida e tudo o que ficou provado no tocante ao seu modo de vida caracterizado pelo desfasamento em relação a um modo de vida activo e particularmente ainda a respeito da racionalização justificativa da sua conduta que mais não traduz afinal do que uma forma sublimada de desacreditação da vítima crê-se serem consistentemente fortes as razões de prevenção especial.

        Quanto à afirmação do recorrente de que se não vislumbram exigências de prevenção geral é ela desprovida de sentido, salvo o devido respeito.

         Que este tipo de comportamentos lesivo de bens jurídicos de tanto relevo projecta necessariamente fortes efeitos de prevenção geral negativa ou de intimidação, justificando a necessidade de uma «jurisprudência terapêutica», revela-o a realidade.

Bastará notar, por exemplo, a este respeito que segundo o destaque estatístico de Novembro de 2016, da Direcção Geral da Política da Justiça, as condenações por homicídio conjugal nos tribunais de 1ª instância entre 2007 e 2015, incluindo aquelas em que a vítima é cônjuge ou companheiro(a) e abrangendo os crimes de homicídio simples, qualificado e privilegiado, nas formas tentada e consumada, ascende ao impressivo número total de 324 verificando-se uma forte prevalência dos casos em que a pessoa condenada é do sexo masculino numa variação anual entre os 83,3% e os 95%. E chegando a atingir o valor percentual de 13,8% do total de homicídios em território nacional, no ano de 2009[17].

Por isso, numa moldura penal com um mínimo de 3 anos e um máximo de 12 anos de prisão, a pena de 7 anos que foi imposta é, crê-se, equilibrada não merecendo censura.

Refira-se, por último, que o pedido de redução da pena única tem somente por base o afirmado excesso da pena parcelar imposta pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, matéria intocada como se acabou de referir, o que retira sentido a esta pretensão.

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6. – A demandante e assistente BB, também recorrente, deduziu pedido civil pedindo o pagamento, além do mais, de «quantia a liquidar em sede de execução de sentença pelos danos morais e patrimoniais originados pela estabilização e consolidação do quadro sequelar da demandante, o que ainda não sucedeu, impedindo a sua total quantificação».

Na decisão proferida, em 2016.07.12, foi o arguido/demandando condenado a pagar o seguinte:

- A quantia de € 30.000,00 pelos danos não patrimoniais neste momento considerados (dores, incómodos, limitações, sofrimentos, medos, angústias) por si sofridos, relegando-se para incidente de liquidação a fixação da compensação pelos danos não patrimoniais futuros, com o limite peticionado;

- As despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita, cuja quantificação dos respectivos montantes fica relegada para incidente de liquidação; com o limite peticionado;

- Os montantes salariais que esta deixou e deixará de auferir em virtude da baixa médica e de situação de desemprego, deduzindo-se o que se vier a apurar ter sido pago à mesma pela Segurança Social pelo período de baixa, assim como os montantes pagos a título de subsídio de desemprego, cuja quantificação se relega, igualmente, para incidente de liquidação, com o limite do peticionado.

A tais quantias acrescem juros legais devidos desde a  notificação para contestar o pedido de indemnização civil.

Considera a demandante que a decisão recorrida é omissa a respeito do pedido de condenação em danos patrimoniais futuros decorrentes da existência do comprovado dano biológico, ainda não possíveis de quantificar.

É jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que «a afectação da integridade físico-psíquica usualmente denominada “dano biológico” (…) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade de exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais»[18]

Efectivamente, no vasto campo de avaliação do dano corporal com tradução médico-legal tem hoje relevo o chamado dano-evento ou “dano biológico” como dano autonomizável em relação ao dano não patrimonial, a se, um dano psico-físico a ser indemnizado como tal resultante da valoração do direito à integridade física e psíquica com intervenção da equidade, naturalmente, mas não funcionando esta como «único ingrediente da receita»[19] antes procurando arrimo na avaliação médico-legal. Independentemente da existência, ou não, de rebate profissional e da perda de rendimento do trabalho.

Como já foi afirmado «havendo uma incapacidade permanente, dela sempre resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica de mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cabo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo»[20]

Mas para equacionar a possível indemnização neste apontado campo, o do dano biológico, necessário se tornaria que os factos provados contivessem o essencial a tal respeito com apoio nos imprescindíveis relatórios periciais.

Ora, o relatório pericial de fls 1002-1005/v, datado de 2016.06.15,  termina com a seguinte conclusão relevante: «Dado que a situação ainda não se encontra estabilizada, deverá a examinanda ser submetida a novo exame após a data da alta das Consultas Externas de Cirurgia Geral e Ortopedia …».

E, em conformidade, o ponto 62 dos factos provados é do seguinte teor:
«Em face da situação clínica da ofendida BB não se encontrar ainda estabilizada, não se encontra ainda concretizada, de momento, qualquer incapacidade de que esta possa padecer.»
Pode-se assim adiantar com segurança que uma precisa avaliação do dano corporal em direito civil nos termos exigíveis de indagação completa da responsabilidade civil não estava ainda efectuada pois como já foi salientado «os juízes decidem dependendo da informação que possuem»[21] e esta era, patentemente, até à data da prolação da decisão, inclusiva.
Portanto, quando a decisão recorrida considerou como danos patrimoniais merecedores de tutela e reparação somente «as despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita, cuja quantificação dos respectivos montantes fica relegada para incidente de liquidação; com o limite peticionado» omitiu pronúncia quanto à reparação do “dano biológico” na sua vertente de dano patrimonial sendo a decisão nula nessa parte, de acordo com o art. 379º, nº 1, al. c) CPP, e em conformidade procedente o recurso.

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7. – Em face do exposto decide-se:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.
b) Condená-lo em 5 UC de taxa de justiça.
c) Conceder provimento ao recurso da demandante BB e nessa medida revogar parcialmente o ponto III do dispositivo da decisão recorrida condenando o demandado AA a pagar-lhe as despesas por esta suportadas com consultas de psiquiátrica/psicologia, bem como com medicação nestas prescrita,; e ainda o montante dos danos patrimoniais  “originados pela estabilização e consolidação do quadro sequelar da demandante” tudo a quantificar oportunamente em incidente de liquidação, mantendo no mais a decisão recorrida.
Sem custas o recurso da demandante.



Feito e revisto pelo 1º signatário.

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[1] Cfr Nuno Brandão, «A tutela penal especial reforçada da violência doméstica» in “Julgar”, nº 12, pags 9 e ss
[2] Cfr, v.g. Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in “Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, que refere a este propósito a existência de um «entendimento sedimentado».
No mesmo sentido Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.
[3] Sem embargo de haver oposição a que seja erigida a específico bem jurídico protegido a dignidade humana. Cfr a este respeito Nuno Brandão, ob cit, pag 14.
[4] Cfr para uma resenha das posições doutrinais, Cristina Augusta Teixeira Cardoso, «A violência doméstica e as penas acessórias» UC, Porto, pag. 16 consultável em
 http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20A%20Viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%20e%20as%20penas%20acess%C3%B3rias.pdf
[5] Cfr. Pedro Maia Garcia Marques, «Ora, trabalha sofre e cala … ou não» in “Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva”, pags 332-333.
[6] Parece ser este o entendimento do autor citado na nota anterior. Cfr ob cit. pags 334 e 337.
[7] Aut, ob e loc cit
[8] Cfr Figueiredo Dias, «Direito Penal, Parte Geral, Tomo I», 2ª ed. pag 984.
[9] Aut e ob cit, pag 986-988.
[10]  Cfr Helena Moniz. «Violação e coacção sexual?» in RPCC. 2005, pag 325 e 327.
[11] Cfr Figueiredo Dias, ob cit, pag 989-990.
[12]  Aut e ob cit pag 993 e 1002.
[13] Cfr Nuno Brandão, ob cit pag 23, Plácido Conde Fernandes, ob cit pag. 313 e Cristina Augusta Teixeira Cardoso, ob cit., ponto 2.4
[14] Cfr Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed. pag. 51.
[15] Cfr Figueiredo Dias, ob cit. pag 81.
[16] Aut, ob e loc cit.

[17]http://www.siej.dgpj.mj.pt/webeis/index.jsp?username=Publico&pgmWindowName=pgmWindow_636244091765312500

[18] Cfr Acórdão de 2016.04.07, proc 237/13.2TCGMR.G1.S1 em www.dgsi.pt
[19] Cfr Por mais recentes, vg. Acs de 2013.03.12, proc 565/10.9TBPVL.S1; de 2014.11.20, proc 5572/05.0TVLSB.S1; de 2015.02.19, proc 99/12.7TCGMR.G1.S1
[20] Cfr Acórdão de 2017.01.26, proc 1862/13.7TBGDM.P1.S1. No mesmo sentido, entre muitos outros, por mais recentes, ainda os Acórdãos de 2016.10.06. proc 1043/12.7TBPTL.G1.S1; de 2016.11.03, proc 1971/12.0TBLLE.E1.S1; de 2017.02.15, proc 118/13.0TBSTR.E1.S1
[21] Cfr Teresa Magalhães, Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira, «O Relatório Pericial de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil» in «Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil» coordenação de Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero, Biblioteca Seguros, 2008, pag 170.