Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1174/12.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFEITOS
CONSUMIDOR
DIREITOS DO CONSUMIDOR
FACTO CONCLUDENTE
DIREITO A REPARAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
CADUCIDADE
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: PUBLICADO IN REVISTA DE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA - ANO 145º - Nº 3997, PAGS. 232 A 248
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - VENDA DE BENS DE CONSUMO / GARANTIAS DO CONSUMIDOR.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Venda de bens de consumo, 2010, p. 81.
- Evaristo Mendes / Fernando Sá, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 489.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 217.º, N.º1.
D.L. N.º 67/2003, DE 08-04, ALTERADO PELO D.L. N.º 84/2008, DE 21-05: - ARTIGOS 4.º, 5.º, 5.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 5 DE MAIO DE 2015, PROC. N.º 1725/12.3TBRG.G1.S1, WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Aquilo que no regime legal que regula a venda de bens de consumo (DL n.º 67/2003, de 08-04, alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21-05) se designa como falta de conformidade com o contrato corresponde à noção tradicional de defeitos do bem.

II - A colocação de um veículo na oficina ou oficinas autorizadas da rede da marca do automóvel constitui um facto concludente que permite deduzir a vontade de exigir a reparação dos defeitos “sem encargos”, faculdade que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato.

III - Tendo a autora optado pelo direito à reparação do veículo automóvel, não goza mais do direito a invocar tais defeitos ou a falta de conformidade do bem como fundamento para exigir a substituição do automóvel, qualquer que seja o momento que se considere.

IV - Efectuadas sucessivas reparações no veículo e tendo o respectivo custo sido suportado pela ré representante da marca, os direitos da autora encontram-se extintos não por caducidade mas pelo cumprimento.

V - Pretendendo a autora preservar a faculdade de exigir a substituição do veículo por outro equivalente, não podia tê-lo entregue em oficina autorizada da rede da marca do automóvel; ou, tendo-o feito, cabia-lhe ter feito prova de que a reparação fora feita contra sua vontade e de que, aquando da recepção do automóvel, informara as rés de que não prescindia da faculdade de, em alternativa, à reparação do bem, optar por um dos três direitos que o art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, prevê.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA intentou acção contra BB, Metalo Mecânica de Reparação e Construção Automóvel, Ldª (actual CC - Comércio e Reparação de Automóveis, Ldª), e DD - Comércio de Automóveis, S.A, pedindo a substituição do veículo com a matrícula ...-JF-..., de marca Mercedes-Benz, modelo C250 CDI, Station Bluefficiency, por um veículo de características iguais, em estado novo, e indemnização por danos patrimoniais em valor não inferior a €5.000.

A R. BB contestou, invocando a excepção de caducidade dos direitos da A. pelo decurso do prazo de denúncia da falta de conformidade do bem com o contrato, e, em qualquer caso, por exercício abusivo do direito de exigir a substituição do veículo. A R. DD contestou, invocando também a excepção de caducidade dos direitos da A. pelo decurso do prazo de denúncia.

Por sentença de fls. 324, a acção foi julgada improcedente e as RR. absolvidas dos pedidos.

A A. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. Pelo acórdão de fls. 460, a apelação foi julgada parcialmente procedente, considerando-se improcedente a excepção de caducidade, e condenando-se as RR. a entregar à A., em substituição do veículo ...-JF-..., de marca Mercedes-Benz, modelo C250 CDI, Station Bluefficiency, um veículo de características iguais, em estado novo.


2. As RR. recorrem para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações de recurso, a R. CC - Comércio e Reparação de Automóveis, Ldª, formula as seguintes conclusões:

“1. O douto acórdão de que se recorre, procedeu a uma errada apreciação da matéria de facto e de direito, e constitui uma profunda e clamorosa injustiça, violadora dos mais elementares princípios de boa fé e de justiça.

2. Na apreciação jurídica da suscitada questão de caducidade, o douto acórdão recorrido parte do errado pressuposto de que "subsiste a apreciação das anomalias que a sentença reconheceu terem-se verificado no arco temporal de sessenta dias".

3. Dizemos erradamente porque estas anomalias são inexistentes já que foram reparadas, e bem reparadas, tal como foi comprovado e resulta do relatório pericial feito pelos Srs. Peritos mais de um ano após essas intervenções.

4. Começa, e aqui bem, por referir o douto Acórdão recorrido que "a carta de 22.05.2012, dirigida pela A. às RR., foi enviada decorridos que eram mais de 60 dias sobre o conhecimento dos problemas elencados (...) pelo que não resultando ter a A. dado a conhecer às RR ou a qualquer delas os assinalados vícios, terá como implicação que a caducidade operou".

5. Conclui o douto acórdão recorrido que tendo a denúncia da maioria dos defeitos ocorrido após o decurso do prazo de sessenta dias previstos no artigo 5º-A do Decreto-Lei 67/2003, então consequência legal será a da verificação de caducidade.

6. Inexplicavelmente, e como factor impeditivo da caducidade, argumentando que "subsiste ainda a apreciação das anomalias que a sentença reconheceu terem-se verificado no arco temporal de sessenta dias, quer as, anomalias encaradas no seu conjunto", conclui afinal que a questão da caducidade não pode, neste caso, ser equacionada em função dos defeitos isoladamente considerados.

7. A proceder esta argumentação estar-se-ia a adulterar por completo o instituto da caducidade e a compactuar com uma interpretação da lei do consumidor claramente distorcida e distinta daquela que foi a intenção do legislador.

8. Dispõe o artigo 4º do Decreto-Lei 67/2003, cuja aplicação aos presentes autos é indiscutível, que "em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato."

9. E conforme dispõe o artigo 5º-A, para exercer estes direitos e, sob pena de caducidade, "o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses a contar da data em que a tenha detectado".

10. Esse prazo de dois meses conta-se a partir da data em que o consumidor detecta a falta de conformidade.

10. Todas as intervenções referidas e dadas como, foram efectuadas sem qualquer intervenção da Recorrente CC.

11. Essas intervenções, e os motivos que as determinaram, não foram denunciadas perante a recorrida vendedora.

12. A única denúncia efectuada perante a recorrente CC, foi feia por intermédio da supra referida carta de datada de 22 de Maio de 2012.

13. Nessa data, quaisquer situações ocorridas anteriormente a 22 Março de 2012, haviam caducado, não procedendo o entendimento perfilhado no douto acórdão recorrido.

14. A ser assim, o que não se concede, os prazos de caducidade perpetuar-se-iam por tempo indeterminado, contrariando assim o espírito e a intenção do legislador que ao estabelecer determinado prazo de caducidade visa conferir certeza às situações jurídicas e solucionar com brevidade os conflitos.

15. A não ser assim, a caducidade dos direitos do consumidor nunca se verificaria porquanto o potencial aparecimento de novos defeitos, viabilizariam, a todo o momento, a propositura da acção que, assim, estaria sempre em tempo, desaparecendo pois a "ratio" do instituto da caducidade.

16. As denúncias efectuadas pelo consumidor perante o vendedor, são autónomas entre si, sendo que cada uma delas deve ser denunciada, sob pena de caducidade, no prazo de sessenta dias a contar do seu conhecimento.

17. Não existe na letra e espírito da lei nenhuma sustentação para a tese do douto acórdão recorrido de que apenas o conjunto das anomalias é susceptível de ser valorizado para efeitos de aferição da falta de conformidade.

18. Aliás, a ser assim, o legislador teria consignado a possibilidade de denúncia a todo o tempo, independentemente da data do seu conhecimento, o que não foi evidentemente o que sucedeu.

19. Todas as situações referidas nos autos, incluindo aquelas que já haviam caducado à data da denúncia perante a vendedora, foram devidamente reparadas ao abrigo da garantia a pedido da recorrida que, nessa medida, exerceu os direitos que a lei lhe confere.

20. A reparação, é na sua essência uma operação material sobre o bem, operação que visa a correcção desse bem por forma a que o mesmo passe a estar conforme com o contrato.

21. Durante o período de garantia do bem, e perante a existência de defeito, sobre o vendedor impende a obrigação de reparar a coisa ou de proceder à sua substituição.

22. Se nos prazos definidos pela lei, o bem for reparado, e sem qualquer encargo para o consumidor, terá forçosamente que se considerar definitivamente cumprida a obrigação de reparação que recai sobre o vendedor.

23. Cumprida a obrigação de reparação, e sendo a mesma bem sucedida, o bem fica, obviamente, conforme com o contrato extinguindo-se, pelo cumprimento, a obrigação do vendedor de reparar/substituir o bem.

24. A proceder o entendimento do douto Acórdão recorrido, teríamos aberto a via para que os consumidores, antes de expirar o prazo de garantia, e independentemente do número de vezes que tenham denunciado faltas de conformidades e solicitado a sua reparação, exigissem pedidos de substituição do bem (ou até de resolução dos contratos) porquanto, atentas as diversas anomalias ocorridas durante aquele período temporal, tinham "extravasado a sua margem de tolerância" e não porque o bem padecesse de qualquer falta de conformidade.

25. Com a reparação das anomalias que surgiram no veículo, foi reposta a conformidade do bem, pelo que não assiste à recorrida a possibilidade de exercer os demais direitos elencados no artigo 4º do Decreto-Lei 67/2003.

26. Não procede pois o entendimento perfilhado pelo douto acórdão recorrido de que as anomalias, analisadas numa perspectiva global, constituem factor impeditivo da caducidade.

27. Não procede porque a recorrida/consumidora não cumpriu os prazos que a lei, de modo cristalino, prevê, e também porque tendo a obrigação de reparação sido cumprido o bem ficou conforme ao contrato, sendo que apenas a falta de conformidade permite ao consumidor o exercício dos seus direitos.

28. O que resulta dos autos, em termos factuais, é que o veículo foi reparado ao abrigo da garantia (e portanto a recorrida exerceu o direito que enquanto consumidora lhe assistia), de que se encontra em conformidade com o contrato o que, consequentemente, implica que, quanto aquelas denúncias foram cumpridos e extintas as obrigações que sobre a recorrente (enquanto vendedora) recaíam.

29. Ao decidir como o fez, compactua o douto acórdão recorrido com uma situação de verdadeiro abuso de direito.

30. A A. perante uma panóplia de direitos que a lei lhe confere, optou inequivocamente pela reparação do bem.

31. Ao optar pela reparação do bem, não pode, depois de reparado o bem, optar pela substituição do bem por outro novo sob pena de abuso de direito.

32. Com efeito, pese embora a lei não estabeleça nenhuma hierarquização dos direitos do consumidor, certo é que o seu exercício está sempre balizado abuso de direito.

33. Finalmente uma breve nota para referir que, contrariamente ao que se defende no douto acórdão recorrido, a substituição do veículo por um novo veículo configura uma situação de enriquecimento sem causa.

34. É que a recorrida adquiriu o seu veículo em 13 de Julho de 2010, a única denúncia que fez perante a vendedora foi em Maio de 2012, e durante esse período (e até após esse período) utilizou e utiliza o seu veículo sem quaisquer limitações.

35. A recorrida beneficiou do uso do veículo pelo que a substituição do veículo usado (e bem utilizado porquanto o mesmo está conforme e apto ao fim a que se destina) por um veículo novo, configura uma situação de enriquecimento sem causa, violador da boa fé contratual sendo, no caso concreto, uma solução absolutamente desproporcionada.

36. Nestes termos deve dar-se provimento ao recurso interposto pela recorrente, revogando-se na integra, o douto acórdão recorrido.”


Nas alegações de recurso, a R. DD - Comércio de Automóveis, S.A, apresenta as seguintes conclusões:

“A. O veículo dos autos foi alvo de intervenções de natureza e causas distintas, entre as quais, com relevância, as relacionadas com a bomba de água, entre Julho e Novembro de 2011 e a de substituição da embraiagem e volante do motor, em Maio de 2012.

B. A A. não comunicou à BB ou à DD, as ocorrências de 2011, nos dois meses subsequentes a qualquer uma delas, i.e. até Janeiro de 2012.

C. Apenas através da carta datada de 22 de maio de 2012, que a DD recebeu em 24 de Maio de 2012, a A. informou a DD das avarias, reclamando a substituição do veículo.

D. No período de dois meses que antecedeu a recepção da carta data de 22 de Maio de 2012, apenas ocorreu uma intervenção oficinal, a que consistiu na substituição do volante do motor e embraiagem.

E. Tal intervenção correspondeu à reparação de uma avaria (ou desconformidade, na acepção da legislação aplicável) tendo, com tal reparação, sido cumprido o dever das Rés.

F. A denúncia prevista no número 2 do artigo 5.° - A do DL 67/2003, de 8 de Abril (adiante apensa DL 67/2003), é condição indispensável ao exercício dos direitos do consumidor.

G. Para o exercício dos direitos do consumidor, é forçoso identificar em que consiste a desconformidade ou o defeito em que se sustenta a reclamação do consumidor, não bastando a mera invocação, por parte do consumidor, de que o bem "não é conforme" ou "tem defeito", sob pena de o vendedor e o produtor não poderem cumprir os deveres de reparação, mas, também, sob pena de o vendedor e o produtor não poderem defender-se, nomeadamente demonstrando que a desconformidade não existia à data da colocação do bem no mercado.

H. É possível que um bem, durante o período de vigência da garantia de bom funcionamento, justifique duas reparações e que, com estas reparações, sejam plenamente cumpridos os deveres do vendedor e, portanto, inteiramente satisfeitos os direitos do consumidor.

I. Não pode colher a teoria de que pode relevar uma espécie de "desconformidade geral" ou "defeito em sentido amplo", ou, como no acórdão recorrido, "conjunto de anomalias" de uma "perspectiva global".

J. A lei nada diz acerca de complexos factológicos e não é, certamente, um subjectivo juízo que o consumidor pode - ou não - fazer acerca do relevo das anomalias, que determina a correcta aplicação do DL 67/2003 e quando caducam os direitos.

K. A caducidade opera automaticamente quendo se verifica o facto que a determina e operada a caducidade, não renasce o direito.

L. Se as avarias relacionadas com a bomba de água corresponderam a uma falta de conformidade susceptível de originar responsabilidade, competia à A., por referência a essas avarias, denunciar a referida falta no prazo de 60 dias após o conhecimento, o que não fez.

M. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação interpretou e aplicou, incorrectamente, o disposto nos números 1 e 2 do artigo 5.º A do DL 67/2003, que, correctamente interpretados e aplicados, determinariam, necessariamente, a procedência da excepção da caducidade.

N. A lei não permite ao consumidor, depois de reparado um determinado bem, invocar desconformidades corrigidas e reclamar outras acções, e, designadamente, a substituição do bem, cuia conformidade foi reposta.

O. Consta do acórdão recorrido: É verdade que - como se nota, e bem, na sentença recorrida - só após as reparações do veículo é que A. veio peticionar a substituição do mesmo."

P. O Tribunal recorrido entende, pois, que assiste ao consumidor, depois da reparação, o direito à substituição do bem, com o que tal solução implica de prejuízo desnecessário para o devedor (vendedor ou produtor).

Q. Esta conclusão corresponde a um gritante erro de interpretação e aplicação do regime constante do DL 67/2003.

R. Não obstante a especial, necessária e justa protecção ao consumidor, a lei procura e consagra um certo equilíbrio, que evite um exercício abusivo de direitos e que obrigue a uma razoável diligência por parte do consumidor.

S. O vendedor e o produtor têm direito à certeza e segurança jurídicas e o direito a não ser extorquidos sem razão, designadamente pagando duas vezes - a reparação e, depois, a substituição do bem.

T. Na verdade, ainda que se considere que os direitos consagrados no número 1do artigo 4.° do DL 67/2003 não se encontram hierarquizados, é entendimento unânime, como não poderia deixar de ser, que tais direitos não podem cumular-se, no sentido de o consumidor ter direito a exigir a reparação e ao mesmo tempo (ou sucessivamente) a redução do preço e/ ou a substituição do bem

U. A decisão recorrida permite que um consumidor que perante situações de desconformidade, nada faça, à espera que ocorra uma avaria no futuro, diferente, mesmo das anteriores - como sucedeu no caso dos autos -beneficie, depois, dos direitos conferidos pela mesma lei que o obriga à denúncia no prazo de dois meses.

V. O entendimento do Tribunal da Relação, atenta contra o DL 67/2003, porque o aplica desconsiderando a norma que obriga à diligência e cuidado do consumidor relativamente a cada desconformidade verificada na lei.

W. O entendimento do Tribunal da Relação atenta contra o DL 67/2003, porque o aplica de modo a absolutizar os direitos do consumidor, ao alcance de quem estará dispor, sem medida, dos meios que lhe são atribuídos com regras e limites

X. Permitir que a A. exija a substituição do veículo quando não denunciou desconformidades (as avarias que deram origem às substituições das bombas de água) e aceitou as reparações efectuadas, é dar cobertura a um manifesto abuso de direito.

Y. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da relação interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 4.° do DL 67/2003 que, correctamente aplicado, levaria a considerar que, com a reparação do veículo, a A. não tem direito à sua substituição.

2. Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Lisboa não considerou a previsão do artigo 334.° do Código Civil que, considerada, correctamente interpretada e aplicada ao caso dos autos teria impedido a decisão proferida, por corresponder, tal decisão, à protecção de uma situação clara de abuso de direito

AA. A substituição do veículo só deveria ser determinada se se justificasse, face à natureza da desconformidade, o que não é, evidentemente o caso dos autos e, em particular, da situação que determinou a substituição da embraiagem e volante do motor.

BB. Com a substituição da embraiagem e do volante do motor, foi, de forma inequívoca, reposta a conformidade, nos termos e para os efeitos do disposto no número 1 do artigo 4.° do DL 67/2003

CC. Não tem cabimento, em sede de fundamentação da condenação da DD, do DL 383/89 diploma que jamais determinaria qualquer responsabilidade da DD, desde logo por força do conceito relevante de "produtor" para efeitos de aplicação do referido diploma e, em concreto, pelo facto de o produtor do veículo dos autos ser identificado e ter sede na União Europeia;

DD. O conceito de defeito para efeitos de aplicação do DL 383/89, é diferente e implica uma prova - a da insegurança do veículo - que, nos autos, não se fez.

EE. Não estão em causa, nestes autos, quaisquer danos da natureza dos que o referido diploma determina ressarcíveis, pelo que, também por isto, o referido diploma não seria aplicável.

FF. Ao fundamentar, em parte, a decisão, no regime do DL 383/78 revela uma incorrecta interpretação e aplicação diploma, em particular das normas constantes dos respectivos artigos 2.°, 4.° e 8.°, que, correctamente interpretadas, teriam revelado a inaplicabilidade de tal diploma ao caso dos autos.

GG. Enfim, por tudo o exposto e, a este respeito, considerando, também, os fundamentos da sentença de 1ª instância, deve concluir-se que a decisão de primeira instância, quanto à caducidade, deve manter-se, porque aquele primeiro tribunal fez uma correcta interpretação e aplicação do regime constante do DL 67/2003.

Termos em que deve o presente recurso ser procedente e, concedendo-se a revista, repor-se a decisão da 1ª instância que julgou procedente a excepção da caducidade”


A A. contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

“1 - Os fundamentos apresentados pela ora Recorrida foram devidamente acolhidos pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Lisboa, o qual veio a revogar a sentença proferida pelo Tribunal a quo, alterando a sentença recorrida considerando improcedente a suscitada excepção de caducidade, e condenar solidariamente as Recorrentes a entregarem à Recorrida em substituição do veículo da marca Mercedes-Benz, modelo C 250 CDI, Station Bluefficiency, um outro veículo de iguais características e em novo. Carecendo de total fundamento, quer de facto, quer de direito, o Recurso interposto pelas Recorrentes.

2 - Ao contrário do alegado pelas Recorrentes o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura ou reparo, fez uma boa e correcta aplicação do direito, pelo que deverá ser mantido na íntegra.

3 - Como refere e bem o Acórdão da Relação de Lisboa: " Para aferir se ocorreu ou não a caducidade dos direitos reclamados pela A., cumpriria verificar, não apenas a sucessiva e isolada ocorrência de anomalias, mas também - como defende a A. - o conjunto das anomalias como um todo em si mesmo, passível de justificar uma valorização autónoma para efeitos de aferição da falta de conformidade do veículo face às características expectáveis, nomeadamente, face à marca (Mercedes) e o preço (mais de € 50.000)."

4 - Mas mais, as anomalias não podem nem devem ser avaliadas isoladamente, devendo o bem ser analisado no seu todo, e pelos diversos defeitos que apresenta.

5 - Como bem refere o Acórdão da Relação, "Na verdade, para que o consumidor possa aferir do relevo das anomalias e possa tomar uma posição sobre se pretende exercer o tipo de direitos aqui reclamados, terá de aceder previamente à avaliação do comportamento do automóvel, não apenas numa perspectiva atomística de verificação isolada das anomalias que o mesmo vai sucessivamente apresentando, mas na consideração do conjunto dessas mesmas anomalias, visto que só esta perspectiva global é passível de permitir ao consumidor uma ponderação adequada, suficientemente esclarecida e motivadora da vontade no sentido de formular um juízo relativo ao pedido de substituição da mesma viatura."

6 - Sendo que o último defeito ocorreu no dia 10 de Maio de 2012, tendo a Recorrida denunciado os defeitos em 22 de Maio de 2012.

7 - Foi nessa data a autora tomou conhecimento da falta de conformidade do bem com o contrato, e na qual perdeu a confiança total no bem.

8 - Mas mais, a falta de conformidade do bem com o contrato tem de ser visto com o veículo no seu todo, e não apenas peça a peça.

9 - Os defeitos foram recorrentes desde 12 de Outubro de 2010 até 10 de Maio de 2012, conforme factos provados, sendo os mesmos de diversa espécie, tendo culminado em 10 de Maio de 2012 com a mudança do volante do motor e embraiagem.

10 - Nesta data é que a Recorrida verificou que o bem estava desconforme com o contrato de compra e venda.

11 - A Autora denunciou os defeitos às Rés no dia 22 de Maio de 2012 através de carta registada com aviso de recepção, conforme factos dados como provados.

12 - Tudo isto no prazo de dois meses a contar da data de 10 de Maio de 2012.

13 - As Recorrentes sempre tiveram conhecimento dos defeitos desde Outubro de 2010 e todas as intervenções seguintes, conforme factos dados como provados.

14 - O legislador fala em falta de conformidade, não distinguindo entre o primeiro e último defeito. Esses defeitos podem surgir no 1º dia de garantia como no último, sendo que nos presentes autos todos eles foram denunciados.

15 - Desta forma, a Recorrida como consumidora denunciou todos os defeitos, tendo no último defeito de 10 de Maio de 2012 verificado a falta de conformidade do bem com o contrato, e assim denunciado o mesmo às Recorrentes e interposto a consequente acção judicial atenta a resposta das mesmas.

16 - Ora a anomalia registada em 10.05.2012, e uma vez que a carta onde é requerida a substituição do veículo aludida no facto n.° 34, verifica-se que a denúncia foi realizada no período de dois meses que a lei impõe para a mesma.

17 - Assim, a caducidade não se verificou pois a Recorrida assinalou as anomalias no prazo de dois meses sobre a manifestação da última anomalia isoladamente considerada.

18 - Entendeu (e bem) o Tribunal da Relação de Lisboa, tal como aliás defendeu o ora recorrido, que não existe qualquer situação de abuso de direito.

19 - Efectivamente, a Recorrida denunciou a falta de conformidade do veículo com o contrato no prazo legal.

20 - O veículo foi sujeito ali intervenções no período de 12.10.2010 e 10.05.2012.

21 - As diversas anomalias, que culminou na intervenção de 10.05.2012, sugerem que os problemas do veículo são graves e, que não são solucionáveis com uma intervenção correctiva.

22 - Verificamos pela análise do artigo 4º do Decreto-lei n.° 67/2003, de 8.4 que perante a existência de uma desconformidade da coisa comprada, o consumidor tem direito a que ela seja eliminada através de quatro remédios jurídicos, que a lei lhe atribui.

23 - O n.°5 do artigo 4-° refere que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito.

24 - O Decreto-lei n.° 67/2003, de 8.4 com a aposição da conjunção disjuntiva "ou" indicia uma alternatividade pura.

25 - A Recorrida não aceitou a reparação do bem, foi-lhe apresentado como dado adquirido com a reparação de 10 de Maio de 2014.

26 - Após essa data é que a Recorrida denunciou a falta de conformidade e requereu a substituição do bem.

27 - Neste sentido a Recorrida não estaria limitada no exercício do seu direito enquanto consumidora.

28 - No contrato de compra e venda de bens de consumo, abrangidos pelo âmbito do Decreto-lei n.° 67/2003, de 8.4, os direitos do comprador por desconformidades da coisa vendida são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas condicionada pelos limites impostos pelo n.° 5, do referido art.° 4º - impossibilidade manifesta do seu exercício ou abuso de direito.

29 - Assim, o comprador, perante a desconformidade do bem vendido, pode, em princípio, desde que respeite os princípios da boa-fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido, optar pelo exercício de qualquer um daqueles direitos, entre os quais se insere o da substituição do bem, que não está reservado apenas para as hipóteses de incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento dos deveres de reparação ou resolução do contrato, justificando-se a sua utilização desde que a desconformidade que o bem apresenta não seja insignificante.

30 - É certo que o respeito por aqueles princípios conduzirá muitas vezes à observância das regras de articulação dos diferentes direitos do comprador impostos no Código Civil, até porque algumas delas também constavam do texto da Directiva transposta pelo Decreto-lei n.° 67/2003, de 8.4, constituindo esse texto um importante elemento interpretativo deste diploma.

31 - Princípios, como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da prioridade da restauração natural, poderão muitas vezes impor soluções coincidentes com o cumprimento daquelas regras, mas no âmbito de compras e vendas de consumo não existe uma obrigatoriedade cega do seu respeito.

32 - Serão as particularidades do caso concreto que definirão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do comprador, de modo a serem respeitados os princípios que presidiram à sua atribuição.

33 - No caso em análise o pedido de substituição do veículo em causa deduzido pela ora Recorrida não revela um abuso de direito, uma vez que o bem manifestamente não está conforme o contratualmente estabelecido e as expectativas do homem médio perante a compra de um veículo Mercedes ou de outra marca.

34 - Daí que não fosse exigível, segundo os ditames da boa-fé, à Recorrida qualquer outro pedido.

35 - Seria apenas ilegítimo o exercício de um direito quando respectivo titular exceda manifestamente os limites imposto pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito, não se enquadrando nesta previsão a opção de um consumidor em requerer a substituição de um bem que apresenta diversos problemas desde o inicio e que não foram solucionados, provocando neste perda de confiança no bem, tendo inclusivamente receio em o conduzir.

36 - Pelo que, a Recorrida poderia a todo o tempo, respeitando os limites impostos pela boa-fé, optar pela substituição do veículo.

37 - Assim, tem a Recorrida direito à pretendida substituição do veículo nos termos do disposto no artigo 4º do Decreto-lei n.° 67/2003, de 8.4.

Nestes termos e nos melhores de direito, não deve o presente recurso obter acolhimento, mantendo-se.”


Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1. A Autora é proprietária da viatura com a matrícula ...-JF-..., marca Mercedes-Benz, modelo C 250 CDI, Station Blueefficiency, com o n.° de motor …, e n.° de chassis WD…;

2. A Ré DD, S.A. é uma empresa cujo objecto social é "a) Importação e/ou comercialização de veículos automóveis, respectivos motores, peças, acessórios e produtos com os mesmos relacionados; b) Indústria de reparação de veículos automóveis e serviços conexos e comercialização de produtos relacionados com essa indústria e serviços; c) Qualquer actividade relacionada com ou de apoio ao comércio de veículos automóveis" (cf. certidão permanente da sociedade no site www.portaldaempresa.pt, inserindo o seguinte código de acesso: 77…-…-…);

3. Sendo a representante em Portugal da marca Mercedes-Benz, que é uma marca da Daimler AG, Estugarda, República Federal da Alemanha;

4. A 2ª Ré não presta assistência técnica aos veículos, sendo tal actividade desenvolvida pela rede de oficinas autorizadas Mercedes-Benz (62°);

5. A Ré BB, Lda. é uma empresa cujo objecto social é " Indústria e reparação de veículos automóveis e bem assim o de fabrico de peças ou seus componentes destinados aqueles veículos" (cf. certidão permanente da sociedade no site www.portaldaempresa.pt, inserindo o seguinte código de acesso: 32…-…-…);

6. Assistindo-lhe, também, a possibilidade de venda de veículos automóveis;

7. Sendo um concessionário autorizado da DD, SA.;

8. A viatura referida em 1 foi adquirida à Ré BB, Lda., no dia 13 de Julho de 2010;

9. A Autora pagou à Ré BB, Lda. o preço de € 50.250,00 (Cinquenta mil duzentos e cinquenta Euros);

10. No certificado de entrega do veículo n.° 11…, foi aposta erradamente a data de entrega de veículo como 1 de Junho de 2010, devendo constar a data de 13 de Julho de 2010;

11. No dia 12 de Outubro de 2010, no veículo ...-JF-..., à data com 4322 Km, foram substituídos os Kit injectores;

12. No dia 18 de Outubro de 2010, no veículo ...-JF-..., à data com 4777 Km, foi substituído o vedante;

13. Em dia não apurado de Janeiro de 2011, o veículo automóvel voltou à oficina pois patinava em 1ª tanto em quente como em frio;

14. No dia 06/07/2011, a bomba de água estava a perder líquido de refrigeração, sem qualquer aviso no painel de controlo do veículo;

15. Tendo apenas sido verificado por inspecção visual;

16. Este facto levou à mudança da bomba de água;

17. As deficiências na bomba de água, e a consequente má refrigeração do motor, levam a que o motor gripe caso o condutor negligencie a informação de alerta do painéis de instrumentos a indicar que o líquido de refrigeração está abaixo do nível;

18. No dia 6 de Julho de 2011, no veículo ...-JF-..., à data com 12798 Km, foi substituída a bomba de água, devido a uma fuga de água;

19. Em 25/08/2011, o painel de controlo do veículo indicou líquido de refrigeração baixo, tendo sido substituído o corpo da bomba de água na oficina EE;

20. No dia 25 de Agosto de 2011, no veículo ...-JF-..., à data com 14472 Km, foi substituído o Corpo da bomba de água;

21. No dia 14 de Novembro de 2011, no veículo ...-JF-..., à data com 17933 Km, foi colocado um novo jogo de cabos;

22. As intervenções atinentes aos kit injectores, jogo de cabos e vedante foram efectuadas no âmbito de acções de serviço;

23. As quais são determinadas pelo fabricante para substituir determinados componentes a fim de garantir e/ou melhorar a qualidade dos produtos em causa, independentemente de os mesmos padecerem de qualquer avaria;

24. Tais acções não resultam de qualquer avaria já concretizada (65°);

25. No dia 25 de Novembro de 2011, no veículo ...-JF-..., à data com 17935Km, foi substituído o Corpo da bomba de água;

26. A Autora, em data não apurada de 2011, via telefone, falou com o vendedor FF da R. BB, Lda., que lhe havia vendido o veículo objecto dos presentes autos, a quem transmitiu o seu desagrado pelas avarias no veículo;

27. No dia 10 de Maio de 2012, no veículo ...-JF-..., à data com 22521 Km, foi substituído o volante do motor e a embraiagem em virtude da embraiagem patinar em 5ª e 6ª velocidade;

28. Não é normal, nem tão pouco expectável que um veículo com as características referidas em 1 esteja, aos 22521 km, com o número de avarias e substituição de peças já realizadas;

29. O número de avarias e reparações (sendo estas todas efectuadas noutro concessionário Mercedes que não a 1ª ré), não é compatível com a marca do mesmo (Mercedes), com o referido em 37, bem como com o investimento realizado pela Autora para a sua aquisição;

30. A mudança do Kit de injectores, efectuada no dia 12/10/2010, foi realizada porque a Autora, através da imprensa escrita, em Outubro de 2010, foi alertada para os defeitos existentes nos veículos série C fabricados entre 2008 e 2010;

31. No dia 25.11.2011, foi substituído pela segunda vez, no espaço de três meses, o corpo da bomba de água;

32. A substituição da bomba de água, volante do motor e embraiagem demonstram que o veículo referido em 1 não reúne as condições que um bem adquirido em 1ª mão deveria apresentar;

33. Sobretudo num veículo com a quilometragem e utilização que este apresenta;

34. Em Maio de 2012, o veículo tinha já 22.521 km percorridos.

35. Com data de 22.5.2012, a Autora enviou às Rés a carta de fls. 10/11, cujo teor se dá por reproduzido, e estas receberam-na, requerendo a entrega de um veículo novo pelas razões aí enunciadas;

36. Face à reclamação apresentada referida em 36, as Rés não assumiram posição por escrito no sentido de aceitar ou indeferir a pretensão da autora até à apresentação da contestação neste processo;

37. No ato da compra e venda, um veículo automóvel da marca Mercedes, deverá ter uma durabilidade e fiabilidade que o presente veículo automóvel não apresenta;

38. A 2ª Ré publicita os seus veículos como "The best or nothing";

39. Todas as assistências (com excepção de substituição de lâmpadas), estando no prazo de garantia, foram suportadas pela Ré Mercedes;

40. As intervenções ocorridas no período da garantia ficam registadas em relatórios digitais atinentes a cada viatura. Volvido o prazo da garantia, as oficinas autorizadas da 2ª ré (em que se inclui a 1ª Ré) acedem a tais relatórios quando o veículo em causa é sujeito a uma intervenção na oficina;

41. A Autora foi Administradora do Grupo GG, empresa líder em Portugal no sector farmacêutico, tendo sido também membro da Direcção da HH;

42. Neste momento, está reformada por invalidez permanente, por padecer da doença metabólica grave com necessidade de anticoagulação permanente;

43. Em virtude da doença que padece, a Autora necessita do veículo automóvel;

44. Facto pelo qual adquiriu um veículo para seu uso pessoal e familiar, apto para todas as suas deslocações;

45. E com a segurança que necessita, pois qualquer acidente automóvel para uma pessoa que toma anticoagulante poderá ser fatal caso a pessoa sofra uma hemorragia;

46. A Autora desloca-se diariamente entre vários pontos da cidade de Lisboa e arredores;

47. Presta assistência ao seu pai que necessita da sua ajuda diária, tendo de realizar várias viagens a vários pontos da cidade para acudir às várias necessidades médicas e alimentares do seu familiar;

48. Presta também assistência à sua neta;

49. A A. admite que os defeitos por ela detectados e constantes do histórico do veículo constante de fls. 11, "foram alvo de intervenção por parte da oficina de reparações do concessionário da marca Mercedes-Benz, EE, S.A.. ".

50. Do histórico do automóvel consta que:

- No dia 12/10/2010 foram substituídos os kit injectores;

- No dia 18/10/2010 foi substituído o vedante;

- Em dia não apurado de Janeiro de 2011, o veículo voltou à oficina pois patinava em 1ª tanto em quente como em frio;

- No dia 06/07/2011 substituição da bomba de água;

- No dia 25/08/2011 substituição do corpo da bomba de água;

- No dia 14/11/2011 foi colocado jogo de cabos;

- No dia 25/11/2011 substituição do corpo da bomba de água;

- No dia 10/05/2012 substituição do volante do motor e a embraiagem.

51. A R. DD reconhece que: "(…) tem acesso directo às informações relativas a intervenções efectuadas no âmbito de acções de serviço, da garantia concedida pelo fabricante, de intervenções cujo custo tenha sido, total ou parcialmente, assumido pelo fabricante, a título de mera cortesia comercial e serviços de manutenção".


4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa neste recurso as seguintes questões:

- Existência e validade dos actos de denúncia dos defeitos/faltas de conformidade do bem adquirido com o contrato;

- Direitos que assistem à A. em virtude dos defeitos do veículo;

- Existindo direito à substituição do automóvel, possível abuso do direito nesta exigência pela A.;

- Possibilidade de responsabilizar a R. Mercedes Benz Portugal pelo regime do Decreto-Lei nº 383/89, de 6 de Novembro, que consagra a responsabilidade civil objectiva do produtor.


5. A questão da existência e validade dos actos de denúncia por parte da A. implica um esclarecimento prévio de ordem terminológica e conceptual. Com efeito, aquilo que, no regime legal que regula a venda de bens de consumo (Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio), se designa como falta de conformidade com o contrato corresponde à noção tradicional de defeitos do bem. Não existe qualquer categoria de falta de conformidade em relação ao contrato para além das “deficiências” do bem vendido, objecto do mesmo contrato. “Na execução da obrigação de entrega da coisa, o vendedor deve respeitar escrupulosamente o contrato, pela ‘traditio da coisa convencionada e nos termos devidos, isenta de vícios ou defeitos’, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida” (Calvão da Silva, Venda de bens de consumo, 2010, pág. 81). Trata-se, tão só, de uma das concretizações do princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações.

Suscita-se a dúvida de saber se as intervenções oficinais no veículo ...-JF-..., durante os anos 2010 e 2011, corresponderam ou não a actos de denúncia da falta de conformidade do bem para efeitos dos arts. 4º, 5º, e 5º-A, do Decreto-Lei nº 67/2003. Há que excluir deste âmbito as “As intervenções atinentes aos kit injectores, jogo de cabos e vedante [que] foram efectuadas no âmbito de acções de serviço”, “As quais são determinadas pelo fabricante para substituir determinados componentes a fim de garantir e/ou melhorar a qualidade dos produtos em causa, independentemente de os mesmos padecerem de qualquer avaria”.

Quanto às demais intervenções a que o automóvel foi sujeito nos anos de 2010 e 2011 (correspondentes aos factos provados 13. a 16., 18. a 20., e 25.) integram situações em que a A., identificando defeitos do automóvel, pretendeu que os mesmos fossem reparados. Porém, será que denunciou os defeitos? Por um lado, é certo que a denúncia do art. 5º-A, do Decreto-Lei nº 67/2003, não exige forma especial. Mas, por outro lado, ficou provado que a A. não se dirigiu aos representantes legais das RR., optando antes por entregar o automóvel em oficinas autorizadas da Mercedes. Ficou também provado que a R. DD tem acesso, por via informática, à informação completa sobre as reparações efectuadas na rede de oficinas autorizadas. Ficou provado também que todas as reparações do automóvel da A. foram efectuadas a suas expensas.

Segundo o art. 217º, nº 1, do Código Civil, existe declaração tácita “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, previsão que é interpretada da seguinte forma: “Para as declarações tácitas, a lei impõe que os factos concludentes – factos de que se deduz a manifestação de vontade – revelem, com toda a probabilidade a manifestação de uma declaração negocial. Estes factos podem revestir as mais variadas formas, podendo mesmo resultar de palavras, de forma escrita ou estar incluídos em outras declarações negociais expressas, importando apenas a probabilidade plena de revelarem uma declaração.” (Evaristo Mendes / Fernando Sá, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 489).

Considera-se que cada colocação do automóvel, ao longo dos anos 2010 e 2011, na oficina ou oficinas autorizadas da rede Mercedes constitui um facto concludente que permite deduzir a vontade da A. de exigir a reparação dos defeitos “sem encargos”, faculdade que lhe é atribuída pelo art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato. As sucessivas pretensões de reparação do automóvel foram aceites pela R. DD, que, repete-se, tem acesso por via informática à informação completa sobre as reparações efectuadas na rede de oficinas autorizadas e que suportou o custo das reparações efectuadas no veículo da A.

Conclui-se que a A. fez uso do regime especial de protecção do diploma legal sobe venda de bens de consumo, optando pelo direito à reparação do bem. No que respeita aos defeitos identificados nos anos 2010 e 2011, os seus direitos não se extinguiram por caducidade, mas sim por cumprimento das sucessivas exigências de reparação do bem, sem encargos, que foram sendo feitas pela A. Depois de cada uma das reparações, efectuadas entre Outubro de 2010 e Novembro de 2011, não goza mais a A. do direito a invocar tais defeitos ou “falta de conformidade do bem” como fundamento para exigir a substituição do automóvel, qualquer que seja o momento que se considere.

Quanto aos defeitos detectados pela A. em 10 de Maio de 2012 integram uma situação nova em que a A. podia, mais uma vez, optar por uma das quatro faculdades (reparação do bem, substituição do bem, redução do preço, ou resolução do contrato), previstas no art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, com o limite do abuso do direito, conforme expressamente previsto no nº 5 do mesmo preceito legal. Seria neste ponto – o da verificação ou não dos pressupostos do exercício abusivo do direito – que teria relevância o entendimento do acórdão recorrido segundo o qual a sucessão de múltiplas avarias num período inferior a dois anos, justificava que o comprador tivesse perdido a confiança na qualidade do concreto bem. De tal forma que, mesmo se, porventura, as deficiências identificadas nessa data (10 de Maio de 2012) não fossem, de per si, muito graves, não constituiria abuso do direito exigir a substituição do veículo (ou até, em alternativa, a resolução do contrato de compra e venda).

Contudo, isto seria assim se, a 10 de Maio de 2012, a A. não tivesse entregue o automóvel em oficina autorizada onde, mais uma vez, foi reparado a expensas da R. DD. Alega a Recorrida que “não aceitou a reparação do bem, foi-lhe apresentado como dado adquirido com a reparação de 10 de Maio de 2014” [rectius: 2012]. Esta alegação não tem qualquer relevância porque, quer a entrega do automóvel, quer o seu levantamento constituem factos concludentes que permitem extrair declarações tácitas de vontade no sentido da opção da A. pelo exercício do direito de reparação do veículo.

Quando, a 10 de Maio de 2012, a A. identificou mais um problema mecânico no automóvel, para preservar a faculdade de exigir a sua substituição por outro equivalente, não podia tê-lo entregue em oficina autorizada da rede Mercedes. Ou, tendo-o feito, cabia-lhe ter feito prova, na presente acção, de que a reparação fora feita contra a sua vontade e de que, aquando da recepção do automóvel, informara as RR., através dos seus representantes legais, de que não prescindia da faculdade de, em alternativa à reparação do bem, optar por um dos três direitos que o art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, prevê. Na medida em que os defeitos do veículo – ou, por outras palavras, a desconformidade com o contrato – detectados em 10 de Maio de 2012 – foram eliminados, o direito da A. a optar pela substituição do veículo não subsistia já à data da carta de 22 de Maio de 2012.

O caso em apreciação difere pois da situação do acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Maio de 2015 (proc. nº 1725/12.3TBRG.G1.S1, www.dgsi.pt) em cujo sumário se pode ler: “Tratando- se de compra e venda de um automóvel novo de gama média/alta que após várias substituições de embraiagem, de software e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o comprador consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução do contrato, sem incorrer em abuso de direito”. Com efeito, neste outro processo, após sucessivas avarias do automóvel, que foram sendo reparadas, surgiu mais uma avaria, cuja reparação o autor já não aceitou, optando pelo direito a exigir a substituição do veículo. Repete-se que, no caso dos autos, a A., perante a nova avaria de 10 de Maio de 2012, optou – ao entregar o veículo na oficina e levantá-lo já reparado – pelo direito à reparação do bem.


5. A hipótese de a R. DD ser responsabilizada pelo regime do Decreto-Lei nº 383/89, de 6 de Novembro, que regula a responsabilidade civil do produtor, é de afastar, uma vez que se trata de um regime de responsabilidade civil extracontratual dos fabricantes de produtos perigosos pelos danos causados a pessoas ou coisas, que não os próprios produtos.


6. Em síntese, considera-se que: (i) a A. denunciou, sucessivamente, ao longo dos anos 2010 e 2011, situações de falta de conformidade do veículo automóvel com o contrato; (ii) que o fez de forma tácita, entregando o automóvel em oficina ou oficinas da rede Mercedes para que fosse reparado; (iii) que todas as reparações foram feitas, e o respectivo custo foi suportado pela R. DD; (iv) que a situação de desconformidade detectada em 10 de Maio de 2012 foi denunciada e reparada da mesma forma. Assim sendo, todos os direitos da A, encontram-se extintos pelo cumprimento da R. DD.


7. Dá-se provimento ao recurso de revista, revogando o acórdão recorrido, e absolvendo as Recorrentes do pedido.

Custas pela Recorrida.


Lisboa, 17 de Dezembro de 2015


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo