Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
679/10.5TJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: ACÇÃO INIBITÓRIA
DEFESA DO CONSUMIDOR
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE DE CLÁUSULA
FORO CONVENCIONAL
BOA FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 09/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - CONTRATOS DE ADESÃO / CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS / CLÁUSULAS ABUSIVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PARTES / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNA (EM RAZÃO DA MATÉRIA).
Doutrina:
- Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, Coimbra, 1999, pp. 21, 27, 31, 34, 35, 40.
- Carlos Andrés Laguado Giraldo, “Condiciones Generales, Clausulas Abusivas y el Principio de Buena Fé en el contrato de seguro”, Universitas, n.º 105, 2003, p.236
- Marta Carballo Fidalgo, La protección del Consumidor frente a las Cláusulas no Negociadas Individualmente, Editorial Bosch, 2013, p. 96.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, tomo I, Almedina, 1999, n.º 137, V.
- Oliveira Ascensão, Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas Abusivas e Boa-fé, 580, 581, 585, 587, 595.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 71.º, N.º1.
DECRETO-LEI 446/85, DE 25 DE OUTUBRO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELOS DECRETOS-LEI 220/95, DE 1 DE JANEIRO E 249/99, DE 7 DE JULHO - ARTIGOS 1.º, N.º 1, 25.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, DE 18-10-2007.
Sumário :
I - No âmbito de uma acção inibitória, proposta pelo Ministério Público, em defesa geral e abstracta dos consumidores, a interpretação a fazer da cláusula contratual geral, indicada como abusiva, há-de pautar-se e orientar-se por critérios objectivos e distanciados.

II - Importará analisar se, em abstracto e de forma genérica, aquela concreta disposição, entendida e subposta à consideração geral dos princípios rectores da boa fé objectiva, do justo equilíbrio e da confiança – que devem orientar e reger um pacto negocial –, infringe, de forma significativa, os interesses gerais da comunidade jurídica.

III - A inserção de uma cláusula, num contrato pré-elaborado, com a vinculação específica, a uma determinada comarca – sem determinação dos casos concretos –, de um foro para resolução dos conflitos que eclodam entre a entidade predisponente e o sujeito aderente, revela-se, na sua dimensão abstracta e genérica, contrária ao sentido normativo estipulado (cf. art. 71.º, n.º 1, do NCPC (2013)) e significa uma penalização que não deve ser admitida numa relação contratual que se paute pelo justo equilíbrio e pela boa fé.
Decisão Texto Integral:

I. – Relatório.

O Ministério Público propôs contra “AA – ..., S.A.” a acção declarativa, sob a forma de processo comum, sumário, ao abrigo do disposto nos artigos 25.º, 26.º, n.º 1, alínea c), e 27,º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, pedindo que sejam: “1. Declaradas nulas as cláusulas 33.1 dos três contratos [comercializados pela Ré, a saber: «AA PPR PATRIMÓNIO»; «AA PPR»; e «AA PLANO PPR»], condenando-se a Ré a abster-se de se prevalecer delas e de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar e especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (artigo 30.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro); 2. Condenada a Ré a dar publicidade a tal proibição, e a comprovar nos autos essa publicidade, em prazo a determinar na sentença, sugerindo que a mesma seja efectuada em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos (artigo 30.°, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), de tamanho não inferior a 1Á de página; 3. Remetido ao Gabinete de Direito Europeu certidão da sentença, para os efeitos previstos na Portaria n.º 1093, de 6 de Setembro (artigo 34.º, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro).

Na substanciação do peticionado, alegou, que:
- as cláusulas 33.1 das condições gerais dos três mencionados contratos dispõem que: «Para a resolução de qualquer litígio ou diferendo relacionado com o presente contrato, é competente, no caso de acção proposta pelo Segurador o foro do domicílio do Tomador do Seguro e no caso de acção proposta pelo Tomador do Seguro, o foro da sede do Segurador (comarca de Lisboa)».
- Tais cláusulas são proibidas em contratos deste tipo, porque violam "valores fundamentais do direito" defendidos pelo princípio da boa-fé (art. 15.º e 16.º do DL 446/85), em concreto, por lei imperativa, como é o caso do art. 74.º, n.º 1 CPC (na redacção da Lei 14/06 de 26/4), visto imporem por via convencional que a Ré, pessoa colectiva, apenas seja demandada na sua sede em Lisboa, quando o art. 74.º, n.º 1, segunda parte do CPC, concede ao credor o direito de optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida (o que, por aplicação da norma supletiva do art, 774.º do C. Civil, faz com que a acção respectiva possa ser instaurada na comarca do domicílio do credor, por ser este o lugar do cumprimento da obrigação pecuniária em causa);

- Acresce que, tal estipulação também viola o art. 19.º, al. g) do DL 446/85 de 25/10, porquanto a atribuição da competência exclusiva à comarca de Lisboa é susceptível de envolver graves inconvenientes para os credores que residam noutras comarcas, sobretudo nas mais longínquas, nos casos em que estes pretendam agir contra a seguradora.

A Ré contestou, apenas por impugnação, impugnando parcialmente a factualidade vertida na petição inicial e pedindo, a final, que a acção fosse julgada totalmente improcedente e, em consequência, a Ré absolvida dos pedidos,

Findos os articulados, foi proferido Despacho Saneador, com valor de Sentença, que conheceu imediatamente do mérito da acção (nos termos do artigo 510,º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil de 1961 (aplicável ao processo sumário de declaração ex vi do artigo 787.º, n.º 1, do mesmo diploma legal), tendo julgado a acção improcedente e, em consequência, absolvido a Ré dos pedidos formulados peio Autor.

Do decidido impulsou recurso a entidade autora, tendo, na apelação, o tribunal da Relação de Lisboa, decidido julgar a apelação totalmente procedente, e, consequentemente, deliberado: “1. Declarar nulas as cláusulas 33.1 dos três contratos comercializados pela Ré (a saber: «AA PPR PATRIMÓNIO»; «AA PPR»; e «AA PLANO PPR»), no segmento em que estipulam que "Para a resolução de qualquer litígio ou diferendo relacionado com o presente contrato, é competente, no caso de acção proposta pelo Segurador, o foro do domicílio do Tomador do Seguro e no caso de acção proposta pelo Tomador de Seguro, o foro da sede do Segurador (comarca de Lisboa)", condenando-se a Ré a abster-se de se prevalecer delas e de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar, proibição esta que se reporta a todos os contratos de seguro do ramo "Vida" (artigo 30.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro): 2. Condenar a Ré a dar publicidade a tal proibição - em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos (artigo 30.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), de tamanho não inferior a ¼ de página - e a comprovar nos autos essa publicidade, no prazo de trinta dias; 3. Mandar remeter ao Gabinete de Direito Europeu certidão do presente Acórdão, para os efeitos previstos na Portaria n.º 1093, de 6 de Setembro (artigo 34.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro).”

Do julgado proferido pelo tribunal recorrido, impulsionou recurso de revista, a demandada, para o que concitou o elenco conclusivo que queda transcrito, na parte interessante. 

I.A.- QUADRO CONCLUSIVO.

F) “O ora Recorrido veio invocar a proibição/nulidade das referidas cláusulas com fundamento na violação de "valores fundamentais" do direito, defendidos pelo princípio da boa-fé (artigos 15.º e 16.º do RCCG), e, em concreto, por lei imperativa, como é o caso do artigo 74.º, n.º 1 do CPC na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, correspondente ao actual artigo 71.º do CPC, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.

 G) O Tribunal da Relação de Lisboa acolheu o entendimento perfilhado pelo ora Recorrido, considerando que as cláusulas objecto dos presentes autos são nulas, atento (ainda que não exclusivamente) o disposto no artigo 15.º do RCCG.

H) Todavia, uma vez que a norma do artigo 74.º do CPC, resultante da alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, se aplica "às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso" - cfr. o disposto no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2007, de 18 de Outubro de 2007, do Supremo Tribunal de Justiça - resulta que a maior parte das acções judiciais é abrangida por este normativo.

I) Noutros termos, a introdução em 2006 da regra imperativa de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações veio regular de forma imperativa a competência territorial para a esmagadora maioria das acções que, no caso concreto, podem ser instauradas por decorrência da celebração/execução de contratos de seguro.

J) Isto mesmo foi reconhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos e resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2010, no qual se reconheceu que "(…) a referida cláusula tem actualmente um âmbito muito reduzido considerada a nova redacção dada ao artigo 74.º/1 e à alínea g) do artigo 110.º ambos do CPC e atenta ainda a prolação do acórdão de uniformização de jurisprudência de 18-10-2007 - tal cláusula será aplicável a situações em que a resolução se fundamenta na alteração das circunstâncias ou nas acções de anulação ou de declaração de nulidade que a ré possa intentar.,,

K) Contudo, o Tribunal da Relação de Lisboa não retirou as devidas ilações do reconhecimento supracitado.

L) Como bem considerou o Tribunal de 1.ª instância, " (...) perante o quadro negocial padronizado, a referida cláusula tem um âmbito reduzido, sendo residualmente aplicável a situações em que a resolução se fundamenta, na alteração das circunstâncias, ou nas acções de anulação ou de declaração de nulidade (...). O reduzido leque de acções a que a cláusula tem, actualmente, aplicabilidade (...) faz com que seja igualmente diminuto o número de pessoas por ela abrangidas, sendo que a esse número há, ainda, que subtrair o daqueles que residem na área metropolitana de Lisboa, para quem, manifestamente, não constitui inconveniente a atribuição de competência aos tribunais da capital."

M) Do exposto resulta que as cláusulas sindicadas não têm o impacto que, de forma falaciosa, se possa crer, e, inclusive, têm um âmbito de aplicação indubitavelmente diminuto, na medida em que, hoje, para a indiscutível maioria das acções propostas em Tribunal, no que concerne o cumprimento das obrigações emergentes de contrato de seguro, como é o caso daqueles dos presentes autos, vigora, de forma imperativa, o preceituado no disposto no artigo 74.º do CPC (actual artigo 71.º do CPC), estando, nessa medida, as cláusulas constantes dos contratos da Recorrente em perfeita harmonia com a solução legalmente prevista.

N) Uma vez que o âmbito de aplicação das referidas cláusulas é tão diminuto, não está em causa qualquer contrariedade à boa-fé ou violação de valores fundamentais do direito, e, por isso mesmo, não estão em causa quaisquer cláusulas abusivas/proibidas.

O) À luz dos critérios orientadores elencados no artigo 16.º do RCCG, não está em causa violação de "valores fundamentais do direito", quer em face da situação considerada - cfr. corpo do artigo -, quer à luz do tipo de contrato utilizado - cfr. alínea b) do mesmo artigo.

P) Os critérios orientadores previstos no artigo 16.º do RCCG remetem-nos para uma quebra de confiança grave e extraordinária, por referência ao critério da figura do "homem médio", para que se possa desencadear a intervenção "correctiva" do princípio geral da boa-fé.

Q) Na verdade, no presente caso, nenhuma confiança/objectivo contratual é quebrado nos tomadores de seguro desde que celebraram os contratos juntos aos autos com a aqui Recorrente.

R) É que os tomadores de seguro, acaso se vejam confrontados com a necessidade de demandar judicialmente a aqui Recorrente, sempre teriam de propor a acção judicial em Lisboa, por ser a aqui Recorrida [aí Ré] uma pessoa colectiva e ter sede em Lisboa (conforme ponto A' da matéria tida por provada nos presentes autos) ou por ser este o Tribunal do lugar do cumprimento da obrigação [ao abrigo do disposto nos artigos 74.º, n.º 1 (actual artigo 71.º, n.º 1) e 86.º, n.º 2 (actual artigo 81.º, n.º 2) do CPC, respectivamente].

S) Importa, pois, concluir que as cláusulas sub judicio, apostas nas Condições Gerais dos Contratos de Seguro celebrados pela Recorrida, não são contrárias à boa-fé, não excedem qualquer limite de conduta imposta por esta e não violam os valores fundamentais do direito, antes coincidem com as soluções legais previstas para todos os casos em que os Tomadores de Seguro, destinatários de tais cláusulas contratuais gerais, pretendam accionar judicialmente a aqui Recorrida.

T) O Tribunal da Relação de Lisboa veio ainda por em crise a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, com fundamento na nulidade das cláusulas sub judicio, por alegada violação do disposto na alínea g) do artigo 19.º do RCCG.

U) Ora, importa referir que também não estão em causa cláusulas de eleição de foro que envolvam "graves inconvenientes" para uma das partes.

V) Com efeito, como bem julgou o Tribunal de primeira instância, aduzindo em seu suporte jurisprudência a cujo conteúdo e argumentos a Recorrente expressamente adere e aqui dá por integralmente reproduzidos, há que, em primeiro lugar, preencher o conceito de "graves inconvenientes" por referência ao quadro negocial padronizado (ainda que podendo atender, de forma mais ou menos enfática, às particularidades do caso concreto).

W) Em segundo lugar, importa reter que a expressão "graves inconvenientes" não poderá reportar-se a qualquer incómodo ou desvantagem mas antes a algo de excepcionalmente penoso ou transtornante para uma das partes.

X) Todavia, nos presentes autos, conclui-se, mesmo em abstrato, que no caso das eventuais acções propostas pelos tomadores de seguro contra a aqui Recorrente, não resulta que o estabelecimento do foro competente como sendo o de Lisboa envolva graves inconvenientes para aqueles ou que consubstancie um desequilíbrio contratual injustificado.

Y) Como acima se demonstrou, estamos perante uma cláusula cujo teor coincide em absoluto com a actual solução propugnada quer pelo n.º 1 do artigo 74.º do CPC, quer pelo n.º 2 do artigo 86.º do RCCG, consoante o tipo e fundamento da acção em causa, pelo que a eventual obrigação que possa surgir para os tomadores de seguro de pleitear longe do seu domicílio sempre decorreria, em caso de inexistência de tais cláusulas, do actual regime legal imperativo que expressamente regula esta matéria, não consistindo a estipulação das mesmas qualquer "solução original ou inovadora”.

Z) Importa ainda alertar para o facto de a redacção das cláusulas em análise ser substancialmente diversa daquelas que, tipicamente, são subsumidas à alínea g) do artigo 19.º do RCCG: cláusulas que elegem exclusivamente um foro para a instauração de qualquer acção judicial, independentemente de quem nela for Autor ou Réu, com expressa renúncia a qualquer outro foro.

AA) Importa referir, contrariamente ao entendimento propugnado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e não obstante a proibição de cláusulas de escolha de foro se encontrar formulada no artigo 19.º do RCCG de forma genérica, que não se vislumbra como «(..) podem ser avaliados os "graves inconvenientes para uma das partes ", bem como a "justificação" constituída pelos "interesses da outra" em abstracto.» - Cfr. Ana Prata, in Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais: anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina 2010, pág.454.

BB) Atente-se, de igual forma, no decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Setembro de 2006, nuns autos de acção inibitória movidos pelo Ministério Público: "Pensamos tal como entendeu a douta sentença de 1.ª instância, que a referida cláusula podendo em concreto vir a revelar-se violadora da disposição legal da al. g) - por análise dos dados dos factos apurados (...). Com efeito, a mencionada alínea prevê a proibição da cláusula se esta envolver graves inconvenientes para uma das partes sem que os interesses da outra o justifiquem. Daqui que só se sabe se a fixação do foro constante da mesma cláusula envolve graves inconvenientes para uma parte quando se estiver em conta com um concreto contrato firmado e só então se poderá avaliar da existência de concretos interesses da outra parte que possam justificar ou não a fixação daquele foro. Por outras palavras diremos que se num contrato for fixado aquele foro e as partes tiverem as duas residências ou sede e centro de actividade na área da grande Lisboa, é pouco previsível o preenchimento da previsão legal da citada al. g), por aquela fixação muito dificilmente poder provocar graves inconvenientes numa parte." - Apud Ana Prata, ibidem, pp. 455-456.

CC) Concordando-se com o aresto supra citado deve-se, contudo, na senda de Ana Prata, associar a abordagem em sede de fiscalização concreta, como exige a alínea g) do artigo 19.º do RGCC com a fiscalização abstracta, que constitui o cerne de uns autos de acção inibitória.

DD) Deve-se, por isso, " (...) formular um juízo de probabilidade, de forma a poder pronunciar-se sobre a validade da cláusula. Dizendo por outras palavras: na generalidade das situações (ou dos contratos) a que esta cláusula se destina, encontrar-se-ão, com grande probabilidade, compreendidas algumas, em que a atribuição de (...) competência a tribunal da comarca de Lisboa, com as consequentes dificuldades e dispêndios, nunca podem ser justificados pelas vantagens do predisponente?" - Apud Ana Prata, ibidem, pág. 456.

EE) As cláusulas em causa não visam prejudicar os Tomadores de Seguro que a elas aderiram.

FF) Pretendeu-se, apenas, reunir, no caso das eventuais acções judiciais propostas pelos Tomadores de Seguro contra a aqui Recorrida, o conjunto do contencioso relativo à sua actividade comercial no tribunal do foro da sua sede, facilitando, consequentemente, a organização da sua comparência em Tribunal, tornando-a menos dispersa e dispendiosa.

GG) A estipulação das cláusulas cuja validade o ora Recorrido sindicou no âmbito do presente processo não é injustificada, nem visa, contrariamente ao invocado, prejudicar os tomadores de seguro.

HH) Daqui resulta, assim, que existem motivos atendíveis e justificados que tenham levado a aqui Recorrente a estipular o teor de tais cláusulas e que é falso que as mesmas tenham sido adoptadas com um animus nocendi para com os tomadores de seguro.

II) E tanto assim é que, inclusivamente, a Recorrida não estipulou um foro exclusivo, com expressa renúncia a qualquer outro e independentemente da qualidade por si assumida no processo.

JJ) Na verdade, atendendo aos legítimos interesses dos Tomadores de Seguro, quando confrontados com uma acção judicial movida pela aqui Recorrida, esta estabeleceu como foro competente o foro do domicílio daqueles, em seu potencial prejuízo.

KK) E também aqui, como bem ajuizou o Tribunal de primeira instância, atendendo ao quadro negocial padronizado e mediante a ponderação do impacto das cláusulas de eleição de foro (atentas as particularidades do caso concreto mas sem esquecer as exigências de uma fiscalização abstracta), não ocorrem inconvenientes para os tomadores de seguro cuja gravidade justifique a sua proibição/nulidade.

LL) É que, além do diminuto âmbito de aplicação das cláusulas sub judicio e da coincidência com a redacção actual da lei processual civil no que à competência territorial diz respeito, sempre há que considerar o seguinte:

· O diminuto âmbito de aplicação das cláusulas em causa reduz necessária e substancialmente o número de Tomadores de Seguro por elas abrangidos;

· Ao diminuto âmbito de aplicação importa, ainda, subtrair o conjunto de Tomadores de Seguro que residem em Lisboa (cuja percentagem não é, certamente, despicienda) para quem não deriva qualquer inconveniente da estipulação das referidas cláusulas;

· Não se pode inferir que os Tomadores de Seguro que pretendam accionar a aqui Recorrida escolham, inevitavelmente, um advogado que exerça a sua actividade profissional em Lisboa (apenas porque a acção a instaurar correrá os seus termos em Lisboa) e que, por isso mesmo, incorram em custos acrescidos com honorários e despesas;

· Eventuais custos adicionais em que os Tomadores de Seguro poderão incorrer prendem-se com despesas de deslocação (suas e, eventualmente, do seu advogado) a Lisboa ­minorados, pese embora, pela possibilidade de recurso a novas tecnologias (prestação de depoimentos por videoconferência, entre outros) - e reduzidos, ainda, às fases processuais da audiência preliminar (a existir) e da audiência de discussão e julgamento;

· A tramitação dos restantes actos processuais em contencioso cível é passível de ser levada a cabo exclusivamente por meios electrónicos (v.g. através da aplicação informática Citius) ­cfr. artigos 138.º- A e 150.º do CPC -, por via postal ou por telecópia (fax), independentemente da localização geográfica e domicílio das partes e dos seus advogados;

- Adicionalmente, como bem considerou a douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, "(...) o desenvolvimento das vias de comunicação e a diversidade de meios de transporte ao dispor das populações têm tradução no tempo e custos necessários a qualquer deslocação (…).”

- "(…) E não podemos esquecer que a cláusula em apreço está inserida num contrato de seguro poupança-reforma, de subscrição facultativa, que implica por parte dos tomadores de seguro valores mínimos de subscrição e de reforços periódicos. Ou seja, não estamos certamente perante aderentes com dificuldades económicas. Antes se tratará de pessoas que pretendem acautelar o futuro através de uma aplicação rentável das suas poupanças (…)."

MM) Resulta, assim, inequívoco que, atendendo ao quadro negocial padronizado, quer em abstrato, quer em concreto, no caso de demandas judiciais propostas pelos tomadores de seguro, a eleição do foro de Lisboa não envolve graves inconvenientes para estes, na qualidade de aderentes, nem traduz um desequilíbrio contratual iníquo ou injustificado.

NN) Mal andou, por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa, ao considerar que as cláusulas sob sindicância no âmbito dos presentes autos também são violadoras da disposição legal da citada alínea g) do artigo 19.º do RCCG.

OO) A decisão recorrida não respeitou o disposto nos artigos 15.º, 16.º, 19.º e 25.º da alínea g) do RCCG.”

Na contra-alegação que produziu, o Ministério Público pugna pela manutenção do julgado.

I.B.- QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO.

Em vista ao acervo fundante da pretensão recursiva, têm-se por pertinentes, para a apreciação do recurso, as sequentes questões:

a) – Natureza abusiva de uma cláusula inerida num contrato de adesão (seguro de vida) que impõe a competência de uma jurisdição territorial (a da sede comercial da seguradora) para a dirimição de litígios intentados pelo contraente aderente contra a seguradora. Acepção de “valores fundamentais de direito” e de “grave inconveniente”.      

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

O Tribunal da Relação, estimou que “[não] tendo sido impugnada a decisão sobre matéria de facto, nem havendo fundamento para a alterar oficiosamente, consideram-se definitivamente assentes os seguintes factos”:

“A) A Ré é uma sociedade anónima, com o NIPC n.º ... e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, conforme documentos juntos a fls. 7 a 25 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

B) A Ré tem por objecto a actividade de «exercício da actividade de seguro directo e de resseguro, do ramo "Vida", podendo ainda exercer as actividades conexas ou complementares da de seguro ou resseguro autorizadas por lei», conforme documentos juntos a fls. 7 a 25 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

C) No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração do contrato «AA PPR PATRIMÓNIO», conforme documentos juntos a fls. 26 a 34 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

 D) No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração do contrato «AA PPR», conforme documentos juntos a fls. 35 a 43 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

E) No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração do contrato «AA PLANO PPR», conforme documentos juntos a fls. 44 a 52 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

F) Os contratos mencionados em C), D) E) regem-se pelas condições gerais, constantes dos documentos juntos aos autos, respectivamente, a fls. 7 a 25, fls. 26 a 34 e fls. 35 a 43, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:

G) Estas cláusulas respeitam a «...contrato de seguro (Apólice) individual, do Ramo "Vida" (Seguro de Pessoas) e de natureza não obrigatória...», foram pela Ré previamente elaboradas e contém as respectivas «...Condições Gerais e Condições Especiais...», conforme Ponto I, dos documentos juntos aos autos, a fls. 7 a 25, fls. 26 a 34 e fls. 35 a 43, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

H) Às cláusulas 33.1, sob a epígrafe "Foro. Legislação Aplicável. Arbitragem", das "Condições Gerais", dos contratos mencionados em C), D) E), estipulam o seguinte: «Para a resolução de qualquer litígio ou diferendo relacionado com o presente contrato, é competente, no caso de acção proposta pelo Segurador, o foro do domicílio do Tomador do Seguro, e no caso de acção proposta pelo Tomador do Seguro, o foro da sede do Segurador (comarca de Lisboa).».

I) As cláusulas 33.3, sob a epígrafe "Foro. Legislação Aplicável. Arbitragem", das "Condições Gerais", dos contratos mencionados em C), D) E), estipulam o seguinte:

«As partes podem acordar o recurso à arbitragem para a resolução de litígios.»

II. – DE DIREITO.

II.A. – Natureza abusiva de uma cláusula inerida num contrato de adesão (seguro de vida) que impõe a competência de uma jurisdição territorial (a da sede comercial da seguradora) para a dirimição de litígios intentados pelo contraente aderente contra a seguradora. Acepção de “valores fundamentais de direito” e de “grave inconveniente” – Violação do Principio da boa-fé contratual, da confiança e do justo equilíbrio contratual.

Estriba a recorrente sua dissensão com o aresto impugnado em três pontos axiais (sic): “i) não retirou os devidos efeitos da alteração legislativa entretanto ocorrida, que impede a procedência dos pedidos formulados pelo ora Recorrido, reduzindo drasticamente o âmbito de aplicação das cláusulas ora em crise, como ii) não está em causa qualquer alegada violação de «valores fundamentais de direito», defendidos pelo principio da boa-fé (nos termos dos artigos 15.º e 16.º do RCCG) ou «graves inconvenientes» para uma das partes, provenientes do estabelecimento do foro competente, sem que os interesses da outra o justifiquem [segundo o disposto na alínea a do artigo 19.º do RCCG], além de que iii) se junta o facto de «o “quadro negocial padronizado”, ou seja, os usos comerciais apontarem no sentido de que a parte proponente de certo contrato inclua, na sua proposta, a adopção do foro que mais lhe convém.”  

Ao contrário de outras legislações, a lei portuguesa adrede – Decreto-lei 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei 220/95, de 1 de Janeiro e 249/99, de 7 de Julho – não confere um ou estabelece um conceito jurídico definidor de cláusula geral, limitando-se a postular que as cláusulas contratuais gerais que não tenham sofrido um elaboração contratualizada – sem prévia    

Ao invés, o artigo 1.º, n.º 1 da Lei espanhola define cláusula contratual geral como sendo aquelas “cláusulas predispostas cuja incorporação no contrato seja imposta por uma das partes, com independência da autoria material das mesmas, da sua aparência externa, da sua extensão e de qualquer outra circunstância, tendo sido redigidas com a finalidade de ser incorporadas numa pluralidade de contratos. O facto de que certos elementos de uma cláusula ou que uma ou várias cláusulas isoladas tenham sido negociadas individualmente não excluirá a aplicação desta lei ao resto do contrato se a apreciação global conduzir à conclusão de que se trata de contrato de adesão.”

Surpreendem-se neste conceito traços definidores essenciais do que devem estar contidos num conceito de cláusula contratual geral, a saber: a uniformidade, que faz referência à sua utilização em todos os contratos do mesmo tipo; predisposição, relativamente à sua redacção prévia; rigidez, dado que o consumidor não as pode modificar nem evitar; e o carácter empresarial do predisponente. [[1]]            

Num outro sentido, ou acepção doutrinária são abusivas as cláusulas que: “a) vinculem o contrato à vontade do empresário; b) limitem os direitos do consumidor e usuários; c) determinem a falta de reciprocidade no contrato: d) impunham ao consumidor e ao usuário garantias desproporcionadas ou lhe imponham indevidamente o ónus da prova; e) resultem desproporcionadas em relação com a perfectividade e a execução do contrato; f) contravenham com as regras sobre competências e direito aplicável.” [[2]

A lei submete as condições gerais a um controlo vertido em três patamares ou níveis. “Em primeiro lugar, ao nível da inclusão das cláusulas no contrato singular; depois ao nível da interpretação; finalmente, ao nível do próprio conteúdo das condições gerais.” [[3]]  

O controlo das cláusulas contratuais gerais no plano ou nível da interpretação do seu conteúdo e alcance finalístico e de sentido colhe estatuição no artigo 25.º do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro. [[4]]

Tratando-se de uma acção inibitória proposta pelo Ministério Público, em defesa – geral e abstracta dos consumidores –, a interpretação a fazer da cláusula em apreço há-de pautar-se e orientar-se por critérios objectivos e distanciados, o invés do que deveria acontecer se o controlo da cláusula decorresse de um contrato individualizado a que se tivessem aposto cláusulas predispostas. [[5]]

Seguindo de perto o ensinamento de Almenos Sá, no que respeita ao controlo de conteúdo – aquele que aqui nos ocupa, dada a já apontada natureza da acção (inibitória) – “o eixo fulcral do sistema é constituído pelo principio da boa fé – são proibidas as condições gerais contrárias à boa fé –, surgindo as listas das cláusulas proibidas como simples concretização, de valor meramente exemplificativo, da intencionalidade valorativa nesse principio pressuposta.” [[6]]  

O que está em causa quando se procede à interpretação de conteúdo é a boa fé objectiva, [[7]] “A boa fé objectiva é uma boa fé normativa. Traduz-se em normas de conduta, quer permitindo formulá-las para além de previsões legais ou cláusulas contratuais, quer condenando tipos de exercício, com comportamentos contraditórios, que violem uma noção objectiva de boa fé.” [[8]]   

Almeno Sá, no estudo que vimos citando, estima que, no escopo que se intenta alcançar com a institucionalização de um mecanismo de sindicância do conteúdo de condições gerais, “haverá que desempenhar aqui um papel fundamental a ideia de um adequado equilíbrio contratual de interesses, equilíbrio que é posto em causa se o utilizador procura realizar a todo o custo, na conformação do contrato, os seus próprios objectivos, sem atender, de forma minimamente razoável, aos legítimos interesses do cliente. A significar que está aqui em causa uma básica ponderação de interesses.” [[9]]       

O que acaba de dizer-se vale para a apreciação/valoração da validade das cláusulas gerais quando ineridas em contrato individual, vale por dizer quando uma das partes introduz cláusulas de índole geral num contrato que possui determinados pontos específicos e particulares. Vale dizer que existe um contrato, concreto em que uma das partes – o aderente – adere ao conteúdo do pacto contratual que lhe é apresentado e proposto pelo predisponente.

A tese da recorrente valeria e poderia ter acolhimento se o contrato houvesse sido celebrado entre dois sujeitos concretos, o aderente e predisponente. Neste caso haveriam que se ponderar-se o justo equilíbrio dos factores prevalentes e vinculantes do acordo negocial e o concomitante desvalor significativo que a eventual inserção da cláusula poderia constituir no cotejo das prestações a que cada um se obrigaria.

Valeria aqui a asserção contida no estudo do Professor Oliveira Ascensão no já citado estudo de que para que possa ocorrer uma declaração de invalidade da cláusula contratual geral teria de confirmar-se uma significativa, patente e desajustada desproporção entre a obrigação/sujeição de uma das partes ao arbítrio ou poder negocial do outro (predisponente).      

Nas palavras deste autor “é necessário ter bem presente que a invalidade do contrato, atendendo ao conteúdo, só poderia funcionar em casos em que a desproporção é manifesta. É a fórmula do art. 334.º C.C., a propósito do abuso do direito, que não poderia deixar de se aplicar aqui.” [[10]]  

A questão que nos ocupa, provém de outro campo de análise e apreciação, ou dito de outra forma, projecta-se num universo ou dimensão jurídico-analítica diverso daquele que deverá ser utilizado para os contratos individualizados, sejam eles celebrados por entre uma qualquer sujeito e um consumidor ou tão só entre profissionais e consumidores. Como já se deixou antever supra, na fiscalização abstracta do conteúdo de uma cláusula contratual geral, inerida num conjunto pré-elaborado de disposições ou configurações de sentido contratual, o que sobra para analisar é se, em abstracto e de forma genérica, aquela concreta disposição, entendida e subposta á consideração geral dos princípios rectores da boa fé objectiva, do justo equilíbrio e da confiança que deve orientar e reger um pacto negocial, infringe de forma significativa os interesses gerais da comunidade jurídica.

Em nosso juízo, a inclusão de uma cláusula geral num contrato (indeterminado e de abrangência indistinta) com o conteúdo, alcance e sentido com que está configurado é passível de lesar de forma significativa aqueles que possam vir a ser confrontados com a sua eventual celebração.

Nos contratos referidos na petição inicial - AA PPR PATRIMÓNIO»; «AA PPR»; e «AA PLANO PPR» - encontra-se aposta a cláusula sob o n.º 33.1, sob a epígrafe "Foro. Legislação Aplicável. Arbitragem", das "Condições Gerais", dos mencionados contratos que estipulam o seguinte: «Para a resolução de qualquer litígio ou diferendo relacionado com o presente contrato, é competente, no caso de acção proposta pelo Segurador, o foro do domicílio do Tomador do Seguro, e no caso de acção proposta pelo Tomador do Seguro, o foro da sede do Segurador (comarca de Lisboa).».

Preceituava o artigo 74.º do Código Processo Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que: “ a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicilio do réu, poendo o credor optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicilio do credor na área metropolitana de Lisboa ou Porto, o réu tenha domicilio na mesma área metropolitana.” [[11]

O preceito acabado de transcrever trasladou-se, incólume, para a hodierna legislação processual civil – cfr. art. 71.º, n.º 1 do Código Processo Civil.

A inserção de uma cláusula com a vinculação específica, a uma determinada comarca, e indeterminada, isto é, sem especificação dos casos concretos, de um foro para resolução dos conflitos que eclodam entre a entidade predisponente e o sujeito aderente revela-se, quando tomada na sua dimensão abstracta e generalizante, significativamente penalizadora. Não se cura, com pretende a recorrente, aqui de saber se em determinadas situações o sujeito aderente poderia escolher um mandatário na comarca de Lisboa, se o circuito de documentação e envio de peças processuais se produz através de meios informáticos ou se as notificações entre as partes se efectuam de forma, processualmente, vinculada. O que importa, para apreciação da validade de uma cláusula, em sede de fiscalização abstracta e genérica é que a predisposição, v. g. cláusula contratual geral, aposta num quadro contratual pré-elaborado onera de forma significativa um dos sujeitos do negócio, nomeadamente aquele que sofre de menor poder económico e social, quando confrontado ou cotejado com a estatuição legal que predispõe para uma determinada situação jurídica adoptada pelo ordenamento jurídico. A imposição, contrária ao sentido jurídico-legal e ao que normativamente o legislador pretendeu instituir como sendo uma vantagem para um dos sujeitos do contrato de adesão – que ocupa, de sólito, a posição mais desvantajosa – revela-se contrária aos princípios da boa fé e do justo equilíbrio contratual. Na verdade, partindo do princípio, consensualmente aceite, de que o legislador adoptou as soluções mais equitativas e justas, no quadro de valorações jurídico-institucionais prevalentes, se uma cláusula aposta num contrato contraria a estatuição legalmente consagrada, então terá que se dessumir que o particular, com a sua predisposição potestativa, prevalente e autoritária desrespeitou, de forma significativa, o equilíbrio que o legislador pretendeu implantar ao adoptar a solução legal plasmada num texto legal. A inserção de uma cláusula com este conteúdo é, na sua dimensão abstracta e genérica, contrária ao sentido normativo estipulado e significa uma penalização que não deve ser admitida numa relação contratual que se paute pelo justo equilíbrio e pela boa fé.

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista, mantendo, em consequência o acórdão recorrido, nos seus precisos termos.

- Condenar a recorrente nas custas.

Lisboa, 9 de Setembro de 2014

Gabriel Catarino (Relator)

                                              

Sebastião Póvoas

                                              

Maria Clara Sottomayor

___________________________
[1] Cfr. Carlos Andrés Laguado Giraldo, “Condiciones Generales, Clausulas Abusivas y el Principio de Buena Fé en el contrato de seguro”, Universitas, n.º 105, 2003, p.236 
[2] Cfr. Marta Carballo Fidalgo, “La protección del Consumidor frente a las Cláusulas no Negociadas Individualmente”, Editorial Bosch, 2013, p. 96.
[3] Cfr. Almeno de Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas”, Coimbra, 1999, p. 21. 

[4] cfr. Oliveira Ascensão, “Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas Abusivas e Boa-fé”. “A acção inibitória é prevista no art. 25.°. Permite-se que cláu­sulas contratuais gerais (c.c.g.), predispostas para utilização futura, sejam proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares. Ao lado deste tipo de fiscalização [de controlo incidental] funciona um processo abstracto de controlo, destinado a erradicar do tráfico jurídico condições gerais iníquas, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares. Consagrou-se, com essa finalidade preventiva, o sistema de acção inibitória: visa-se que os utilizadores de condições gerais desrazoáveis ou injustas sejam condenados a abster-se do seu uso ou que as organizações de interesses que recomendem tais condições aos seus membros ou associados sejam condenadas a abandonar essa recomendação.” Almeno Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas abusivas”, Almedina, Coimbra, 1999, p. 40.      

Determina-se pois que, quando se aprecia em abstracto a tole­rabilidade da c.c.g., esta seja interpretada no seu sentido objectivo, e não do modo mais favorável ao consumidor. Doutra maneira, a c.c.g. ambígua escaparia frequentemente à censura, porque entendida do modo mais favorável; e com isto persistiria com a sua ambiguidade, e portanto com a sua potencial idade de trazer prejuí­zos ao consumidor.”, p. 580 e 581.   
[5]A interpretação e sindicação conteudística estão hoje inseridas num articulado quadro normativo, pelo que não é legítimo o seu uso isolado, sob pena de se gerarem contradições valorativas no sistema”, apud Almeno Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas”, Almedina, Coimbra, 1999, p. 27.   
[6] Cfr. Almeno Sá, op. loc. cit., p. 31. Oliveira Ascensão, no estudo supra citado, refere que quando a directiva no seu artigo 3.º, n.º 1 alude para “a despeito da exigência da boa fé” essa remissão “é um recurso retórico, que nada adianta aquele dispositivo. O que está em causa é o desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor; é ele que leva à qualificação da cláusula como abusiva. Quando muito, a referência terá a função de esclarecer que a cláusula só é abusiva se for injustificada. Mas sendo assim, mais valia ter dito que se proscrevia aquele desequilíbrio quando fosse injustificado, directamente, em vez de recorrer a um circunlóquio que nada explica.”, ut. p. 585.        
[7] Cfr. Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil”, tomo I, Almedina, 1999, n.º 137, V.  
[8] Cfr. Oliveira Ascensão, estudo citado, p. 587. Para este autor, porém, “não é nada disto que surge na apreciação da validade das cláusulas contratuais gerais, atendendo ao seu conteúdo. Não se criam regras de conduta, antes se valoram, para as condenar, regras formuladas por uma parte. Não se julga o exercício de um direito, condenando-o por abusivo. Não está aqui em causa o exercício do direito do predisponente, exigindo a prestação do aderente, porque o problema é anterior a este: está em causa a própria validade da cláusula em si, independentemente de qualquer exercício por parte do predisponente.” E mais adiante, remata este Mestre, que “o que estava em causa era determinar quando é que uma cláusula geral não pode ser admitida, por implicar um desequilíbrio intolerável, em detrimento do destinatário.”         
[9] Cfr. Almeno Sá, op. loc. cit., p. 334 e 35.
[10] Cfr. Oliveira Ascensão, loc. cit. 595.
[11] Vide acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 118-10-2007, que fixou jurisprudência no seguinte sentido: “1. O pressuposto processual concernente à competência territorial dos tribunais deve ser fixado à luz da lei processual vigente ao tempo do accionamento, independentemente de outorga anterior de convenção de foro ao abrigo de lei que a permitia em termos diversos. 2. A partir da entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não podem as partes contraentes, em regra, acordar eficazmente o foro territorial para as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo seu não cumprimento ou a declarar a resolução do contrato por falta de cumprimento. 3. A validade da cláusula de competência inserida em contratos de direito substantivo, com natureza e efeitos processuais, é exclusivamente aferida pela lei substantiva e adjectiva vigente ao tempo da sua outorga. 4. A alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, segundo a redacção dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, aplica-se retroactivamente, sem vício de inconstitucionalidade, aos efeitos práticos mediatos dos pactos de preferência celebrados antes da sua entrada em vigor. 5. As normas dos artigos 74º, nº 1 e 110º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, resultantes da alteração decorrente do artigo 1º da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aplicam-se às acções instauradas após a sua entrada em vigor, ainda que reportadas a litígios derivados de contratos celebrados antes desse início de vigência com cláusula de convenção de foro de sentido diverso (uniformização).