Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
041402
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SÁ PEREIRA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OBJECTOR DE CONSCIÊNCIA
SERVIÇO CÍVICO
RECUSA DO SERVIÇO CÍVICO
Nº do Documento: SJ19911107041402
Data do Acordão: 11/07/1991
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR IS DE 08-01-1992, PÁG. 125 A 130 - BMJ Nº 411, PÁG. 39
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O TRIBUNAL PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
O objector de consciência que, no boletim de inscrição no serviço cívico, declara, por escrito, recusar-se a prestá-lo não comete o crime do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 - O Ministério Público interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, a reagir ao Acórdão da Relação do Porto de 2 de Maio de 1990, prolatado no processo n.º 9238 (4.ª Secção). E a aduzir, fundamentalmente, a respeito, oposição em face do Acórdão do mesmo Tribunal de 14 de Março de 1990, tirado no processo n.º 24896/89 (2.ª secção).

O acórdão recorrido decidiu que a declaração de recusa, reportada à prestação de serviço cívico, aposta por objector de consciência, no boletim de inscrição (Portaria n.º 465/89, de 24 de Junho), não constitui o crime tipificado através do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, em conexão com o n.º 3 do artigo 388.º do Código Penal, porquanto, ainda longe da convocação para apresentação no local da prestação, a mesma não passa de simples anúncio, não punível, de intenção de desobedecer. De outra maneira, o acórdão que serve de fundamento à impugnação, a resolver sobre hipótese idêntica, tomara a declaração de recusa como consumada manifestação de vontade de não prestar serviço cívico, significativa, sem mais, da prática da referida infracção.
Segura a legitimidade do recorrente, e com adesão à occasio às razões e ao regime do recurso, ocorreu despacho de admissão (artigos 437.º, 438.º e 440.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Em conferência se verificou a oposição invocada e a instância prosseguiu (artigo 441.º do mesmo diploma).
Cumpriu-se a fase preparatória do artigo 442.º do Código de Processo Penal. Chega, pois, a altura de apreciar, conhecer e decidir.

Assim, e tudo visto.

2 - Giuseppe de Vergotini deteve-se, não há muito, sobre a problemática da objecção de consciência. A clareza e o rigor do seu trabalho (A Objecção de Consciência e o Ordenamento Jurídico Italiano) justificam se comece por uma rápida alusão correlativa. E a mesma vai exprimir-se pelas considerações que seguem.

O ordenamento jurídico do Estado admite, por vezes, o concurso de ordenamentos diversos, a que os cidadãos, não raro, se sujeitam. A propósito, a adesão individual às regras dos últimos desencadeia, entretanto, aqui e ali, situações de conflito, a decorrerem, v. g., de convicta e irretorquível desvinculação, em face de específicas disposições estaduais.
Assim se estabelece confronto sobre o qual o Estado se vê, de algum modo, constrangido a tomar posição: «de compatibilidade, de incompatibilidade ou de indiferença». E não raro, a respeito, aquela adesão cobra do Estado reconhecimento, v. g. com apoio em «motivos de consciência».
De outra parte, a ordem jurídica que situa a «liberdade de pensamento, de consciência e de religião» no plano dos direitos constitucionais do indivíduo não tutela a mesma sem limites. Encara-a, com efeito, à luz da consciência da comunidade, que os legítimos representantes manifestam, e exprime-a como liberdade positiva, distinta da «consciência individual», com o resultado de nem sempre a exposta motivação obter crédito, pleno ou restrito.
Tradicionalmente, dá-se o nome de «objecção de consciência» à recusa do ordenamento estadual pela via da adesão aos comandos de ordenamentos diversos. A propósito se faz apelo a profundas razões pessoais - de credo e de convicção -, com raízes no âmago da «consciência do indivíduo». E a negação do dever de prestar serviço militar obrigatório é no domínio em jogo o caso mais generalizado e o obstáculo a que o Estado mais tem resistido.
Não faltam, de qualquer sorte, a este nível, palpáveis atitudes de reconhecimento. Interessa, pois, em nome de importância que não se discute, referir várias manifestações das mesmas. A saber:
a) A do artigo 4.º, n.º 3, da lei fundamental tedesca de 1949, que não admite se constranja alguém a prestar serviço militar contra a sua consciência, embora sem exclusão automática do respectivo dever;
b) A da Constituição espanhola de 1978, que para a lei ordinária reenvia a disciplina da objecção;
c) A da lei britânica sobre serviço militar de 1948 (artigos 17.º-19.º), que aceita a isenção dos objectores, a partir de prévio procedimento particular;
d) A do texto constitucional italiano, cujo artigo 2.º reconhece os chamados «direitos invioláveis», sobre o qual a doutrina tem erguido um «direito de liberdade de consciência», com alicerces, aliás, na recepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 18.º) e da Convenção Europeia (artigo 9.º); e
e) A da Constituição Portuguesa de 1976, que consagra o «direito à objecção de consciência», com substituição do «serviço militar» por um «serviço militar não armado».
De toda a maneira, a definição precisa da categoria sob apreço sempre há-de ser problemática, porque o indiscriminado recurso à consciência individual pode torná-la ilimitada, através da sua carga jus-naturalística. E há que observar, num plano de positiva redução, outros valores constitucionais, como, v. g., o princípio da igualdade, certos deveres de solidariedade política, o sacro dever de defesa da Pátria e o serviço militar obrigatório.
3 - A notícia de Giuseppe de Vergotini sobre a «Constituição portuguesa de 1976» impõe agora uma mudança de rumo. Na verdade, a nossa lei fundamental, ainda que não se reporte a um «serviço militar não armado» (cf. supra) - como à frente melhor se verá - jamais deixou de proclamar a «garantia do direito à objecção de consciência» (artigo 41.º, n.º 6, oriundo da primeira versão, que as revisões de 1982 e 1989 conservaram). E é preciso, desde já, equacionar o problema na ordem portuguesa.
Vejamos, pois.

A Constituição da República aponta, desde o início, para a legislação ordinária. Esta veio a corresponder, de certo modo tardia, com a Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, cujo nome dá conta de intencional limitação: «O objector de consciência perante o serviço militar.»

Numa tal perspectiva, o direito à objecção de consciência «comporta a isenção do serviço militar, quer em tempo de paz quer em tempo de guerra, e implica para os respectivos titulares o dever de prestar um serviço cívico adequado à sua situação» (artigo 1.º, n.º 2). O serviço cívico, de outro lado, assume-se como «exclusivamente de natureza civil, não vinculado ou subordinado a instituições militares ou militarizadas, que constitua uma participação útil em tarefas necessárias à colectividade, possibilitando uma adequada aplicação das habilitações e interesses vocacionais dos objectores» (artigo 4.º, n.º 1).
O objector de consciência, assim fica enquadrado em estatuto complexo que lhe credita o poder de não prestar serviço militar e o onera pelo dever de cumprir um serviço cívico adequado. Com a segurança de que este é um serviço não militar, ou seja, pois: um serviço diverso do serviço militar e não apenas uma forma mitigada de serviço militar, no terreno onde se separam o serviço militar armado e o serviço militar não armado.
Quem é, todavia, objector de consciência? A resposta cabe ao artigo 11.º, n.º 1, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro) e ao artigo 2.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio:
Consideram-se objectares de consciência os cidadãos convictos de que, por motivos de ordem religiosa, moral ou filosófica, não lhes é legítimo usar meios violentos de qualquer natureza contra o seu semelhante, ainda que para fins de defesa nacional, colectiva ou pessoal.
Cura-se, pois, da liberdade de pensamento, de consciência e de religião em que fala Giuseppe de Vergotini, consagrada, entre nós, nos artigos 37.º, n.os 1 e 2, e 41.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República. E o serviço cívico não se relaciona apenas com motivações religiosas, morais ou filosóficas, porque aparece ainda como instrumento para resolver o conflito entre a objecção de consciência e o direito-dever de defesa da Pátria, determinante da obrigatoriedade do serviço militar (artigo 276.º, n.os 1 e 2, da lei fundamental), e como modo de assegurar o princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, também da lei fundamental).
O direito à objecção de consciência é, em último termo, um poder condicionado. Já que outros valores constitucionais (cf. Giuseppe de Vergotini) impõem reconhecimento com limites, numa área imprescindível de solidariedade social. E a fim de não se estabelecerem discriminações ou privilégios inaceitáveis.
4 - Na sequência da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, a Lei do Serviço Militar (Lei n.º 30/87, de 7 de Julho, alterada pela Lei n.º 89/88, de 5 de Agosto) e o seu Regulamento (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 463/88, de 15 de Dezembro) não deixaram de reportar-se aos objectores. Diz, com efeito, v. g., o artigo 19.º, n.º 3, do primeiro destes dois diplomas que constitui motivo de isenção do serviço militar ser reconhecido como tal, «nos termos da respectiva legislação».
Não há, porém, preclusão de todas as obrigações militares. O recenseamento militar, de facto, vincula todos os cidadãos que se encontrem nas condições previstas através dos artigos 1.º, 10.º e 42.º, da Lei n.º 30/87, de 7 de Julho. A objecção, a propósito, e a coberto de toda a dúvida, apenas funciona no pós-recenseamento (artigo 18.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio).
Qualquer cidadão que, assim, de modo injustificado não compareça ao recenseamento militar é «notado de faltoso» e fica sujeito às sanções dos artigos 13.º e 40.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 30/87, de 7 de Julho. Por outro lado, em consonância, a acção de objector há-de ser proposta até à operação militar de «inspecção para efeitos de classificação e selecção» (artigo 17.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio). E é com a correlata decisão definitiva, de índole favorável, que se cobra a mencionada isenção, a troco de estatuto específico (artigo 9.º do segundo dos diplomas apontados), contraindo-se «as obrigações decorrentes do serviço cívico» (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 451/88, de 13 de Dezembro).
Neste conspecto, a cada passo se diz - com muito pouco interesse, note-se de passagem - que a situação de objector e a situação de militar não são comparáveis por profundamente divergirem. E, embora sob o dano de cristalina desnecessidade de demonstração, a respeito se observa que o estatuto de objector se perfecciona antes da prestação do serviço cívico e que, noutros termos, o estatuto do militar somente pela ou com a incorporação se realiza in toto.
Afirma-se, pois, ser possível a recusa daquela, como entidade de natureza criminal - posta pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio -, no período anterior ao momento incoativo da mesma. E pondera-se, ademais, que a recusa do militar (em sentido lato) apenas ocorre a partir da incorporação.
Veremos à frente que as coisas não acontecem assim. De qualquer maneira, parece legítimo acentuar, desde já, que o estatuto do objector constitui categoria especial ou de excepção aposta em face do serviço militar e em face do serviço cívico. Na falta dele não haveria isenção do primeiro, como inexistiria título para o segundo. E não se diga, a abonar a pretensa diversidade em jogo, para integração da recusa do objector no período apontado, que um vasto catálogo de deveres emerge, ab initio, do artigo 9.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, e do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro (cf. supra). Pois todos os militarmente recenseados (objectares e não objectores) se encontram sujeitos às respectivas obrigações (cívicas ou militares), que se exprimem por elencos de formação sucessiva.
Outro proveito se alcançaria se, perante o texto do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio - onde se tipifica a «recusa à prestação do serviço cívico a que o agente esteja obrigado» -, se reconhecesse, v. g., estar em causa - por não se tratar de «recusa de serviço cívico» - o concreto serviço cívico ao qual aquele já está obrigado. Efectivamente, e de algum modo adiantando noção basilar (cf. infra), a recusa do serviço (diversa da recusa de serviço) só pode acontecer, em face do próprio serviço, depois da colocação. O que, aliás, e de todo o ponto, se ajusta ao disposto no artigo 4.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro:
O serviço cívico efectivo normal compreende a prestação de serviço cívico desde a colocação até a passagem à reserva de disponibilidade imediata.
Ora, o serviço cívico efectivo normal é a situação imediatamente posterior à reserva de recrutamento (n.º 3 do citado artigo 4.º). E o iter, a propósito, assume-se como análogo ao do serviço militar onde a situação de serviço efectivo também se segue à de reserva de recrutamento: artigo 2.º, alíneas a) e b), da Lei n.º 30/87, de 7 de Julho.
Não se compreendem, de todo o jeito, as conclusões que, de harmonia com o exposto, alguns extraem, na encosta da recusa, sobre a base da consumação prévia do estatuto do objector. A qual, como se referiu, funciona, sobretudo, em dois tempos, para libertação do limbo do serviço militar e para integração na área do serviço cívico. Sob a forma de pressuposto necessário à passagem dos militarmente recenseados em reserva de recrutamento militar ao plano dos civicamente inscritos em reserva de recrutamento cívico.
5 - Na província da recusa do serviço cívico se inscrevem, aqui e agora, as preocupações dominantes. É, pois, a respeito a ocasião adequada para que se volte a acompanhar Giuseppe de Vergotini. Na medida em que este autor se detém sobre a lei italiana n.º 772, de 15 de Dezembro de 1972, uma das mais válidas fontes utilizadas pelo legislador português de 1985.
Vejamos, pois, em síntese, o que, com vantagem, se respiga do lugar escolhido. A saber:
a) O reconhecimento da objecção beneficia os contrários, em quaisquer circunstâncias, ao uso pessoal de armas, por imprescindíveis motivos de consciência;
b) Estes devem respeitar a uma concepção geral da vida que se baseie em profundas convicções religiosas, filosófica ou morais, «professadas pelo sujeito»;
c) A objecção merecedora de tutela é relativa e aí, logo, não se integra a «recusa absoluta de prestar serviço militar»;
d) A mesma, ademais, é geral, no sentido de que flui de oposição a todo e qualquer «tipo de emprego de armas», em qualquer «tipo de guerra»;
e) Não são atendíveis as motivações políticas e ideológicas;
f) Prevêem-se, como sucedâneos do serviço militar típico, um «serviço militar não armado» e um «serviço substitutivo civil»;

g) São puníveis a recusa de serviço militar, fora do âmbito da objecção, e a recusa do serviço alternativo, do qual o agente se não exonera pela «expiação da pena».
A ordem jurídica italiana, entrementes, não prescinde de uma «subordinação à supremacia da administração militar». A lei portuguesa, de outra maneira, optou por um «serviço não vinculado ou subordinado a instituições militares ou militarizadas» e por isso mesmo não se põe, entre nós, o problematismo da objecção absoluta ao serviço militar (cf. supra). Objectores, por conseguinte, podem ser, em Portugal, os que, mediante convicção reconhecida, se não conformam, absoluta ou relativamente, com a prestação de serviço militar.
Ainda assim, há objectores e objectores. Não faltam, na verdade, os que recusam o serviço cívico, em conflito aberto com o ordenamento jurídico do Estado, v. g. por tomarem o mesmo como serviço militar encapotado ou disfarçado. E acerca destes pode dizer-se que, autores de recusa de serviço cívico (em abstracto e em geral), à partida, não deixarão de ser autores de recusa do serviço cívico (em concreto e em particular), se não vierem a cumprir a respectiva colocação.
Não continuemos, porém, a antecipar noções e detenhamo-nos sobre o processo que, em princípio, há-de culminar na efectiva prestação do serviço cívico. Pelo trânsito da reserva de recrutamento para o serviço cívico efectivo normal (cf. supra).
5 - O processo de objecção é específico de um objector determinado. Cada objectar tem o seu processo. E, a respeito, todos os processos correm pelo Gabinete do Serviço Cívico dos Objectores de Consciência.
Os órgãos de recrutamento militar enviam ao Gabinete os processos militares dos objectores. Com base nos mesmos, o Gabinete organiza os processos individuais dos objectores. Ocorre, de todo o ponto, uma transformação (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro).
De seguida, no prazo de 15 dias, o Gabinete remete a cada objector carta registada, pela qual informa da respectiva sujeição às obrigações do serviço cívico e com a qual há-de seguir o boletim de inscrição (cf. a portaria acima referida), para preenchimento e devolução, em 30 dias (citado artigo 8.º, n.º 2). O que faz nascer, do lado do destinatário - já genericamente adstrito às obrigações próprias do serviço cívico -, e no âmbito da predita formação sucessiva, o especial e novo dever de cumprir aquela devolução, a começar toda uma série.
Trata-se de imposição «de facere» a que a lei quis conferir tutela penal. Na verdade, a «não devolução injustificada constitui crime de desobediência simples» (artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, aditado pela Lei n.º 101/88, de 25 de Agosto). E a principal questão que se põe é a de saber se este facto, para além do seu significado delituoso, conduz à paralisação do processo.
A propósito, responde o parecer da Procuradoria-Geral da República invocado nos autos:
Se o objector de consciência [...] não indica as áreas de preferência, inviabiliza o processo futuro de classificação e selecção e, consequentemente, a sua colocação. No momento em que omite esse dever informativo que, em regra, perpetua no tempo, o objector consuma a prática do crime de recusa de prestação do serviço cívico, uma vez verificados os restantes elementos da infracção.
Nestes termos se transforma, todavia, uma por assim dizer simples e intermédia omissão de informar em acabada omissão de prestar serviço cívico. E como se congela o objector, posto em condições de não cumprir serviço cívico nem serviço militar, com o processo de objecção num beco sem saída. O que, a todas as luzes, não pode ser.
É verdade que o Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro, faculta ao objector a indicação de áreas preferenciais para efeitos de colocação, a fim de que na mesma se tenham em conta os seus interesses (artigo 9.º, n.º 1). O voluntário não desempenhou esse poder; porém, não mata o processo. O objector, por força de uma atitude abdicativa, há-de sofrer as consequências da sua omissão e, pois, ser seleccionado e colocado «de acordo com as conveniências do serviço e as necessidades das entidades disponíveis» (cf. artigo 48.º, n.º 2, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio). O que apenas pode aguardar, se caso disso, «a duração da pena», em puro regime de suspensão do processo de objecção - nos antípodas da inviabilização -, justificado por razoável vantagem ou interesse em adquirir ou confirmar a certeza da omissão, como facto merecedor de censura, cujo encargo compete ao processo penal. E sempre sobra ao objector o crédito de possível mudança de situação (artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro).
A recusa não se confunde com a omissão do dever de informar. Exige uma situação típica, que só pode aparecer depois da colocação. E se se entende que aquela omissão realiza o modelo do n.º 1 do artigo 47.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, não se reduzindo este à só não devolução, tudo viria a caber, em sede criminal, no artigo 8.º do mesmo diploma. Em termos pouco abonatórios para o legislador.
7 - Após a devolução (ou sem ela, nas condições que vêm de ser indicadas), surge a grelha da selecção (artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro). E chega, depois, o tempo da colocação, que parte da «atribuição de tarefas e funções do serviço cívico» (artigo 7.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, e artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro), para culminar na comunicação imposta pelo n.º 3 desta última disposição legal.
A débito do objector se contabiliza, assim, um segundo especial e novo dever (cf. supra), em ordem à apresentação, que é o acto voluntário de aceitar o serviço cívico, marcando o correlativo começo de execução. E que também dispõe de tutela penal (artigo 47.º, n.º 2.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio).
Valem agora, a uma primeira mirada, na zona da omissão do dever de apresentação, e com as necessárias adaptações, as notas que se deixaram acerca da omissão do dever de devolver. Temos, porem, de chegar mais longe e de pensar que a não apresentação admite duas formas: retardamento (se temporária) e não aceitação (se definitiva).
À primeira de tais formas se refere o tipo do n.º 2 do artigo 47.º, acima citado. À outra, onde já mora a recusa, corresponde, diversamente, o tipo do artigo 8.º, n.º 1, também acima citado. Com efeito, a recusa posterior à apresentação, com o serviço iniciado, é já abandono.
De toda a sorte, o domínio em que nos encontramos não se enquadra na matéria do recurso. E por isso aqui se não deixa mais do que uma breve notícia atinente.
8 - Temos de retornar à época em que o objector fica sujeito ao dever de preencher e devolver o boletim de inscrição. À mesma, na verdade e incasu, se reportam as decisões em conflito. Seguro como ambas trataram de hipóteses de devolução com expressa declaração de recusa, exarada naquele.
Não discutimos, por exterior às fronteiras do recurso, o ponto de saber se, para os fins do artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, à não devolução equivale a devolução sem informação. Preocupa-nos, tão-só, o escopo de reflectirmos em face da mencionada declaração.
Assim e prosseguindo.
Em determinado sector se refere que declaração vale recusa, se não ocorrer informação. E aí se acrescenta que a declaração fica inócua se a informação se verificar. Pois, em tal caso, o processo prosseguirá, como se não tivesse havido declaração.

A recusa, portanto, encontrar-se-ia mais na ausência de informação do que na declaração. Esta seria simples condição ou requisito formal da recusa, cuja substância e cuja dinâmica causal se deslocariam para aquela. Com a inviabilidade do processo (cf. supra) a fechar o círculo.
Não pode ser! O processo, com efeito e como se viu, não resulta inviabilizado o se não se preencher o boletim e ou não se cumprir a devolução. A ausência de informação não impõe sentido a declaração. Esta apenas exprime anúncio ou ameaça de recusa, ao nível de intenção-projecto de não acatar um dever de prestação ainda insusceptível de ser omitido, por ainda em embrião ou não efectivado. Falta lugar para a recusa antecipada, sob a forma de non facere, por desprovida de qualquer sustentação, ou seja, pois: de um actual dever «de facere».
O objector que devolve e informa bem poderá apesar da declaração de recusa, vir a apresentar-se, ulteriormente para prestar serviço cívico. O mesmo, contudo, não escapa ao alcance, v. g., do objector que não devolve, não informa e não declara, do objector que devolve, não informa e declara, como do objector que devolve, não informa e não declara. E uma tal comunhão opõe-se, de pleno, a toda a diversidade de tratamento. Em nome da certeza de que só se recusa o dever efectivo de prestação concreta e exigível, enquanto só ele pode ser omitido.
Há, aliás, uma específica progressão, determinante de deveres sucessivas, porque tudo se passa no interior de um processo, onde nada deixa de ter o seu momento e cujos tópicos tem de ser observados. Como mais a fundo vamos ver.
9 - O artigo 47.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, aditado - consoante se notou - pela Lei n.º 101/88, de 25 de Agosto, estabeleceu novos tipos penais. Não reduziu, porém, a esfera de acção do artigo 8.º do mesmo diploma. E o intuito director foi, sem dúvida, o de estabelecer e garantir balizas certas. Com a vantagem de assim se superar a tentação, e a praxis, de pedir à recusa o que a recusa, em si mesma, porque fora do seu âmbito, não pode oferecer.
Ficou seguro, antes do mais, que a violação do dever de devolução não se reporta ao velho tipo do n.º 1 do citado artigo 8.º Ficou claro, ademais, que a simples violação do dever de apresentação desencadeia um crime diverso e menos grave, em face do de recusa. Ficou adquirido, ainda, que a recusa é a violação do dever de prestar serviço cívico de harmonia com a colocação, por voluntário não ingresso no mesmo. E ficou consagrado em último termo, que os tipos expostos se conexionam com a marcha do processo de objecção onde se separam e se conjugam uma fase preparatória - (a acabar na devolução do boletim), uma fase de selecção e colocação (até à apresentação) e uma fase de prestação (a partir da apresentação).
Cada uma destas fases dispõe de rito e regime próprios. Todas repudiam efeitos que não caibam nos seus limites. E entre estes se encontram, naturalmente, os penais.
Se, por exemplo, um objector declarar, na fase preparatória, que não se apresentará - ao desfecho da fase de selecção e colocação -, não é caso de ou para intervir o n.º 2 do artigo 47.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio. E isto porque defrontamos entidades idóneas para a satisfação de escalonados fins correlativos. Pela imposição de deveres típicos e autónomos, que se situam e se definem em distintas parcelas do espaço processual e em separadas ocasiões do tempo do processo, onde se cumprem ou se omitem.
A progressão processual é também, e necessariamente, uma progressão criminal, já que se trata de crimes reportados a deveres processuais localizados. E a acontecida ampliação da tutela penal (cf. supra), comporta, inclusive, resultados colaterais ou subsidiários que não deixam de determinar, outrossim, a observância da ordem consagrada.
Na verdade, e v. g., a pena imposta pelo delito do artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio, à luz dos seus fins de ressocialização e reinserção como da influência sobre o condenado constitui valiosa fonte de desmotivação criminal. Pela via respectiva é possível esperar e confiar numa maior adequação do objector que não devolveu o boletim à disciplina do processo e aos ditames da vida em sociedade, como numa boa redução das taxas da recusa. Com ressalva dos princípios fundamentais da legalidade da igualdade e da proporcionalidade. E com conexa atenuação do risco da espiral de condenações por recusa, que, em alguns países, já levou ao remédio de se evitar a terceira punição e, noutros, conduziu ainda, nos casos extremos de objecção absoluta a aceitação prática do predomínio de ordenamentos diversos sobre o ordenamento jurídico do Estado (cf. supra). Talvez por que a recusa, não dispondo, ao nível da lei, de eficácia bem fixada e com o terreno livre de barreiras próprias, de autêntica compreensão - como, v. g., as inseridas nos n.os 1 e 2 do artigo 47.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio -, a actuar demasiado cedo - antes da omissão do dever de prestar serviço alternativo ou substitutivo - e a ir, pois, demasiado longe, nem sempre teria cumprido a justiça de cada caso.
10 - São condições em que:

a) Se confirma o acórdão recorrido;


b) Se estabelece, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:

O objector de consciência que, no boletim de inscrição no serviço cívico, declara, por escrito, recusar-se a aprestá-lo, não comete o crime do artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio.

Lisboa, 7 de Novembro de 1991.

Victor Manuel Lopes Sá Pereira - Luís Vaz Sequeira - José Alexandra Lucena e Valle - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Armando Pinto Bastos - António Cerqueira Vahia - Manuel Lopes Maia Gonçalves - Agostinho Pereira dos Santos (vencido como relator, conforme declaração junta)- Manso Preto (vencido de acordo com a declaração que junto)- José Saraiva (vencido, conforme declaração que junto)- Fernando Ferreira de Sousa Sequeira (vencido pelas razões aduzidas na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Dr. Manso Preto)- Bernardo Guimarães Fischer Sá Nogueira (vencido pelas razões aduzidas no voto de vencido do Exmo. Conselheiro Manso Preto e pelas que expendi no Acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Maio de 1990, in Colectânea - XV, 3.º, p. 154, de que fui relator)- Fernando Lopes de Melo (vencido, concordando com os fundamentos invodados pelo Exmo. Conselheiro Manso Preto).

Declaração de voto


Segundo a tese vencedora, o crime do artigo 8.º n.º 1, da Lei n.º 6/85 desaparece do mundo jurídico.

Com efeito, o objector de consciência que recusa não vê o processo prosseguir nem é convocado para prestar o serviço cívico efectivo normal [artigo 7.º, n.º 1, alínea h) do Decreto-Lei n.º 91/87, de 27 de Fevereiro].
E se por acaso fosse convocado, comparecesse ou não, mas recusasse ainda nesta altura o serviço cívico, o crime cometido não seria o do artigo 8.º, n.º 1, mas o crime do artigo 47.º, n.º 2, da Lei n.º 6/85, na redacção da Lei n.º 101/88, de 25 de Agosto.
Na verdade, o regime da punição pela recusa convicta do objector de consciência pode não ser o mais justo, mas é, sem dúvida, o que o legislador pretende.
Quod erat demonstrandum. - Agostinho Pereira dos Santos.

Declaração
Vencido. Salvo o devido respeito, entendo que o objector de consciência que, após a obtenção do respectivo estatuto, apõe sobre o boletim de inscrição a declaração expressa e firme de que não presta nem prestará serviço cívico por tal não ser consentido pela sua religião (testemunhas de Jeová), devolvendo esse boletim com a omissão voluntária de qualquer indicação relativa às áreas preferenciais de actuação, comete o crime de recusa de prestação de serviço cívico, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 6/85, de 4 de Maio.

Com tal comportamento, ele tornou-se objector de consciência do próprio serviço cívico, o que é uma contradição insanável em face do estatuto que requereu e obteve. Não pode, com efeito, aceitar este estatuto na parte favorável - dispensa do serviço militar obrigatório - e rejeitado na parte em que lhe impõe o serviço cívico.
Feita declaração nos termos referidos, o crime consuma-se e o processo não deverá prosseguir, por necessariamente inútil, não podendo haver já lugar a selecção e colocação, e assim não poderão ocorrer os crimes de não apresentação injustificada ao serviço e de abandono deste, como nos parece manifesto. - Manso Preto.

Declaração
O objector de consciência, desde que adquiriu o respectivo estatuto pela sentença proferida, ficou obrigado à prestação de serviço cívico.

A partir daí, se recusar prestar tal serviço comete o crime previsto no artigo 8.º da Lei n.º 6/85, ficando sujeito à respectiva sanção, em substituição da prestação do referido serviço, cujo processo paralisa, por inútil, com tal recusa, já que nemo potest coegi ad factum.
O referido crime não pode consistir na recusa de comparecimento ao serviço cívico, quando para ele convocado apenas, pois que tal não comparecimento é punido expressa e especialmente como desobediência simples pelo artigo 47.º da referida Lei n.º 6/85. - José Saraiva.