Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
664/05.9TBENT.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PROVA TESTEMUNHAL
INADMISSIBILIDADE
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ESCRITURA PÚBLICA
DISTRATE
VONTADE DOS CONTRAENTES
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS DO RECORRENTE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 238.º, N.º 1, 347.º, 351.º, 393.º, N.ºS 1 E 2, E 394.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :
I. Em sede de impugnação da decisão de facto, a especificação dos pontos que o impugnante tem por incorretamente julgados, nos termos e para os efeitos do artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, tanto pode consistir na indicação do artigo da base instrutória em que o facto foi inserido, quando houver lugar a ela, ou do ponto da sentença que o contemple, como ainda na própria transcrição do respetivo enunciado fáctico.

II. Num caso em que, como no dos autos, conste, quer do corpo das alegações quer das respetivas conclusões, de forma inequívoca, o enunciado fáctico impugnado e a conexão com os meios concretos de prova convocados, bem como a indicação da decisão que sobre esse facto, no entender do apelante, deve ser proferida, tem-se por verificados os requisitos do ónus impugnatório estabelecidos no n.º 1 do artigo 640.º do CPC.

III. Porém, se o facto impugnado se encontrar provado por meio com força probatória legal plena, só ilidível nos termos do artigo 347.º do CC, e o impugnante tiver convocado exclusivamente prova testemunhal, inadmissível para tanto nos termos dos artigos 393.º, n.º 1 e 2, e 394.º, n.º 1, do mesmo Código, é lícito rejeitar a reapreciação dessa prova, ao abrigo do artigo 640.º, n.º 1, alínea b), parte final, do CPC, na medida em que tal meio de prova não impõe, desde logo, decisão diversa da recorrida.

IV. Constando da escritura pública de um contrato de distrate o direito à restituição de determinada quantia, não é admissível prova testemunhal ou por presunção judicial destinada a provar o acordo das partes em sentido diverso do ali consignado, nos termos dos artigos 393.º, n.º 1 e 2, 394.º, n.º 1, e 351.º do CC.

V. De igual modo, em face ao ali expressa e formalmente acordado, não é lícito apelar a uma vontade conjetural das partes estribada num presumível interesse da 1.ª R. e na exigência de um determinado padrão de comportamento do A., que não encontram o mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, no texto da escritura de distrate, como se exige o artigo 238.º, n.º 1, do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.) intentou, em 26/09/2005, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a sociedade BB - Construção Civil de O..., Lda. (1.ª R.), e CC (2.º R.), alegando, no essencial, que:  

. O A. celebrou com a 1.ª R., em 03/03/2003, um contrato-promessa para aquisição de uma moradia pelo valor de € 184.555,23, entregando a quantia de € 10.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, tendo acordado que o pagamento do remanescente seria liquidado através da entrega, por parte do A., do seu apartamento correspondente à fração G, no valor de € 54.867,77, bem como de outro apartamento correspondente à fração L e da garagem correspondente à fração C, aos quais atribuíram o valor € 69.831,71, ficando o remanescente do preço de ser pago aquando da outorga da escritura do contrato prometido;

. A fim de realizarem o negócio prometido, o A. e a 1.ª R. celebraram um contrato de permuta, pelo qual aquele entregou as frações C e L, nos valores de € 4.000,00 e de € 61.000,00, recebendo em troca a moradia, a que atribuíram o valor simulado de € 115.000,00, tendo ainda o A. entregue à 1.ª R. € 50.000,00;

. Foi também outorgada pelo A. ao sócio-gerente (aqui 2.º réu) da 1.ª R. uma procuração irrevogável, tendo por referência a fração G, como forma de dar cumprimento ao contrato-promessa;

. Assim, para a realização do contrato prometido, o A. pagou aos R.R. o total de € 184.699,48, compreendendo a entrega dos seguintes valores: € 10.000,00, em 03/03/2003, com a assinatura do contrato-promessa; € 54.867,77, em 26/03/2003, equivalente ao valor da fração G; € 69.831,71, em 26/03/2003, equivalente ao valor da frações L e C; € 50,000,00 entregues na data da escritura prometida;

. Em virtude de problemas de saúde, o A. solicitou aos R.R. o distrate do contrato de permuta celebrado, bem como a revogação da procuração referida, de forma a ser-lhe restituída a importância por si entregue, o que obteve a concordância dos R.R.;

. Porém, os R.R. apenas restituíram ao A. as duas frações mas não a quantia de € 10.000,00; e do montante de € 50.000,00 foi-lhe entregue um cheque “dobrado” no valor de € 29.927,87, estando, portanto, em dívida o total de € 30.072,13.

Concluiu o A. a pedir que os R.R. fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe:

i) - a quantia de € 10.000,00, relativa ao preço que lhes entregou a título de sinal e de princípio de pagamento;

ii) - a quantia de € 20.072,13, respeitante ao valor restante do preço que o A. pagou pela diferença de valores a mais do negócio distratado;

iii) – os juros de mora, à taxa legal, desde a citação, sobre aquelas quantias.

2. Os R.R. contestaram, arguindo as exceções da falta de representação judiciária e da ilegitimidade do 2.º R., sustentando, no mais, que:

. Não foi alegada matéria factual bastante para a demonstração da simulação nem que suporte a invocada solidariedade da dívida;

. O A. foi quem incumpriu o contrato-promessa, já que não ocorre sobreposição entre o mesmo e o contrato de permuta celebrado, não abrangendo este uma fração que constava daquele e que não estava registada em favor do A.;

. Não existiu a entrega de qualquer “cheque dobrado”;

. O A. atuou com abuso de direito, ao lembrar-se dos € 30.072,13 decorridos dois anos sobre o distrate.

3. O A. apresentou réplica, a pugnar pela improcedência das exceções deduzidas e a refutar o alegado abuso de direito, afirmando que o lapso temporal decorrido se deveu às tentativas de resolução da questão.

4. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de falta de representação judiciária e de ilegitimidade do 2.º R, bem como a invocada falta de alegação de matéria factual, na eventual perspetiva de ineptidão da petição inicial, seguindo-se a seleção da matéria de facto tida por relevante com a organização da base instrutória.

5. Realizada a audiência final e decidida a matéria de facto controvertida conforme despacho de fls. 232-233, foi proferida a sentença de fls. 236-257, datada de 10/04/2014, a julgar a ação parcialmente procedente e consequentemente:

a) – a condenar a 1.ª R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, a pagar ao A. a quantia de € 20.072,13, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, e a absolvê-la no mais contra ela peticionado;

b) – a absolver o 2.º R. CC do pedido.

6. Inconformada, a 1.ª R. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, mediante impugnação de facto e de direito, tendo a apelação sido julgada improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, conforme o acórdão de fls. 399-414, datado de 08/09/2016.

7. Mais uma vez inconformada, vem a mesma R. pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A matéria de facto impugnada pelo recorrente foi art.º 14.º-A da base instrutória onde se perguntava se “os réus deixaram de entregar ao A. as quantias referidas nos pontos 13 e 14 da base instrutória por assim o terem acordado com este”, o qual foi dado como “não provado” e cuja resposta ao quesito deveria ter sido provado, o que facilmente se constata da análise do recurso, bastando atentar nos artigos 39.º, 40.º e 42.º das alegações de recurso, conjugados com o depoimento das testemunhas transcrito pelo recorrente e com a análise que é feita aos mesmos depoimentos;

2.ª - O recorrente indicou a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões impugnadas, ou seja, o artigo 14.º-A da base instrutória;

3.ª - Logo não poderia o recurso apresentado pela recorrente ser rejeitado com base na inobservância do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, porquanto o recorrente deu cumprimento a tais disposições;

4.ª - Em consequência disso, deveria o Tribunal “a quo” ter apreciado recurso quanto à matéria de facto;

5.ª - Face aos factos considerados provados na sentença verifica-se a existência de um contrato-promessa de compra e venda efetuada entre o A. AA e a 1.ª R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, em 03/03/2003 e a entrega de € 10.000,00 pelo A. à 1.ª R.;

6.ª - Tendo a mesma escritura de promessa de compra e venda sido concretizada através de uma escritura de permuta e ainda na constituição de uma procuração irrevogável passada pelo A. a favor do gerente da 1.ª R., o 2.º R. CC, ocorridas a 26/03/ 2003;

7.ª - Verifica-se, face ao descrito, que o A. entrou na posse do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 57…, omisso na respetiva matriz mas solicitada a sua inscrição em 24/10/2002;

8.ª - E a escritura de distrate do negócio efetuado apenas ocorreu a 14/05/2003 e a procuração irrevogável apenas foi revogada com o consentimento do 2.º R. no dia 15/05/2003;

9.ª - Tendo, portanto, decorrido um período de quase dois meses, que o A. tomou posse e ocupou o imóvel objeto de permuta e referido no artigo 13.º;

10.ª - E apenas em 14 e 15 de maio de 2003 foram efetuadas as escrituras de distrate e revogação com consentimento da procuração irrevogável;

11.ª - Atentando no critério do homem médio, que este tipo de negócio não era do interesse da R. e apenas e só do interesse do A., uma vez que o interesse e o fim das sociedades é o lucro, e o negócio tal como configurado pelo A., nenhum lucro trouxe à sociedade;

12.ª - Nenhuma sociedade aceitaria distratar uma permuta sem qualquer contrapartida, muito menos uma sociedade que se dedica precisamente à compra e venda de imóveis, motivo pelo qual o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87 € e declarar na escritura que recebera os € 50.000,00;

13.ª - Ora, é justamente este padrão abstrato, meio estatístico, meio normativo, como critério para aferir os cuidados devidos nas mais variadas circunstâncias. O bom pai de família é, por isso, um padrão para aferir a culpa, mas a palavra «culpa» tem aqui um significado também técnico. Não está em causa toda e qualquer apreciação dos comportamentos, mas apenas a aferição dos cuidados que, em certa ocasião, devam ser tomados;

14.ª - Assim verifica-se que, face ao conceito plasmado no artigo 487.º do CC, isto é, o conceito de um bom pai de família, jamais se poderia sequer pensar que, após se ter efetuado o negócio constante dos presentes autos, o mesmo seria desfeito sem quaisquer contrapartidas, tanto mais sendo um dos intervenientes uma sociedade;

15.ª - Ao ser desfeito o negócio através da escritura de distrate e da revogação da procuração irrevogável, o conceito do “bom pai de família” obriga a aceitar que a R. tenha de ser ressarcida de algum valor;

16.ª - É este mesmo conceito que deve ser aplicado ao chamado cheque “dobrado”, pois é impossível alguém receber um cheque e, após o ter recebido não o ter verificado, se fizesse logo pelo menos tê-lo-ia verificado, no caso dos presentes autos até à assinatura da escritura de distrate;

17.ª – Porque, recebendo um cheque no valor de € 29.297,87, ninguém vai posteriormente assinar uma escritura a dizer que recebeu € 50.000,00 senão tiver acordado previamente isso mesmo, obviamente que o A. se recusaria a assinar a escritura de distrate, como qualquer comum mortal, o que não aconteceu;

18.ª - E não aconteceu porque obviamente era o que estava previamente acordado entre as partes e só por má fé pode o A. alegar o contrário.    

Pede a Recorrente que se revogue o acórdão recorrido e se absolva a 1.ª R. do pedido.

8. O Recorrido apresentou contra-alegações em que começa por arguir a inadmissibilidade da revista por verificação de dupla conforme e, quanto ao objeto do recurso, pugna pela confirmação do julgado.

        

       Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

        

II – Quanto à questão prévia da inadmissibilidade da revista arguida pelo Recorrido


O A. Recorrido arguiu, a título de questão prévia, a inadmissibilidade da revista por considerar que se verifica dupla conforme nos termos prescritos no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

Sucede que, tendo a ação sido proposta em 26/09/2005 e as decisões impugnadas proferidas em 10/04/2014 (na 1.ª instância) e em 08/09/2016 (na Relação), é aplicável à presente revista o atual regime recursório, mas com a ressalva do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-06, ressalvando-se também o valor da alçada para efeitos de admissibilidade do recurso, a que se aplica a lei em vigor à data da propositura da ação.

Não é, pois, aplicável ao presente processo o invocado impedimento da dupla conforme, sendo assim a revista admissível em função do valor da causa ou da sucumbência em conjugação com o valor da alçada da Relação em vigor à data da propositura da ação.

Termos em que improcede a arguição do Recorrido.


III - Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Das conclusões da Recorrente colhem-se as seguintes questões:

i) – A questão da alegada violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, por parte do tribunal a quo, ao ter rejeitado a apelação na parte da impugnação da decisão de facto;

ii) – A questão do erro de direito quanto à solução em que se reconhece o direito do A. à restituição da quantia de € 20.072,13 por parte da 1.ª R..


 IV – Fundamentação


1. Factualidade provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. No dia 03 de março de 2003, o autor (A.) e a primeira ré (1.ª R.) “BB - Construções Civis de O…, Ld.ª”, esta representada pelo sócio-gerente, aqui 2.º R., reduziram a escrito um acordo que designaram como “contrato-promessa de compra e venda”, conforme documento de fls. 14 – alínea A) dos factos assentes;

1.2. Nesse acordo escrito, a 1.ª R. declarou prometer vender ao A. na moradia de r/chão e 1.º andar, com sete assoalhadas e garagem, sita na Rua Projetada à Avenida …, lote 5, na freguesia do …, que se encontra descrita na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 57…, omisso na matriz, mas participada em 23/10/2002 conforme doc. de fls. 14 – alínea B) dos factos assentes;

1.3. Pelo preço de € 184.555,23, conforme documento de fls. 14 – alínea C) dos factos assentes;

1.4. Em 03/03/2003, o A. entregou à 1.ª R. a quantia de € 10.000,00 – alínea D) dos factos assentes;

1.5. O que fez através do cheque n.º 98…, da Caixa DD do E…, emitido à ordem do sócio-gerente da 1.ª R., aqui 2.º R., conforme documento de fIs. 16 – alínea E) dos factos assentes;

1.6. A. e R.R. declararam, ainda, no mesmo documento escrito, que a restante parte do preço, ou seja, os restantes € 174.555,23 seriam pagos da seguinte forma, conforme doc. de fls. 14 (alínea F) dos factos assentes) :

a) - O A. entregaria à 1.ª R. o seu apartamento correspondente no primeiro andar direito, fração “G”, com três assoalhadas e arrecadação no sótão, sito na Rua D. …, lote D-3, no E…, descrito na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 44… e inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 77…, ao qual declararam atribuir o valor de € 54.867,77, livre de ónus ou encargos;

b) - O A. entregaria, ainda, à 1.ª R. um outro apartamento correspondente ao 1.º andar direito e sótão, fração “L”, e a garagem n.º 3 fração “C”, sitos na Rua …, n.º 1 no E…, descritos na Conservatória do Registo Predial do Entroncamento sob o n.º 8… e inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 69…, aos quais declararam atribuir o valor global de € 69.831,71, livre de ónus ou encargos;

c) - A restante parte do preço, no valor de € 49.855,75, seria entregue no ato da escritura prometida;

1.7. No dia 26 de março de 2003, o A. e a 1.ª R., esta representada por EE, compareceram no Cartório Notarial do Entroncamento, tendo, perante notário, celebrado, através de escritura pública, um acordo escrito que designaram como “Permuta”, conforme doc. de fls. 18 e seguintes – alínea G) dos factos assentes;

1.8. No âmbito do qual declararam que o A. recebia da 1.ª R. o prédio urbano para habitação, sito na Rua Projetada à Avenida …, n.º 9 de polícia, da freguesia e concelho do E…, descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial, sob o número 5.7…, da indicada freguesia, inscrito a favor da 1.ª R. pela isenção G – dois, omisso na matriz, mas solicitada a sua inscrição em 24/10/2002, identificado em 1.2. – alínea H) dos factos assentes;

1.9. O qual declararam atribuir o valor de € 115.000,00, conforme doc. de fls. 18 e seguintes – alínea I) dos factos assentes;

1.10. Também declararam que a 1.ª R. recebia do A. as seguintes frações autónomas do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sitas na Rua …, n.º 1 de polícia, freguesia e concelho do E…, descritas na referida Conservatória do Registo Predial sob o número 8…, da indicada freguesia, afeto ao regime da propriedade horizontal pela inscrição F – 1, inscritas a favor do A. pelas inscrições G – 1, inscritas na matriz sob o art.º 69…:

a) - Uma garagem na cave com o número três, designada por fração C, com o valor patrimonial de € 3.345,34, ao qual declararam atribuir o valor de € 4.000,00;

b) - Primeiro andar direito, para habitação designada por fração L, com arrecadação no sótão com o número oito, situado no hall direito, com o valor patrimonial de € 31.305,23, ao qual declararam atribuir o valor de € 61.000,00;

1.11. No dia referido em 1.7, o A. entregou à 1.ª R. a quantia de € 50.000,00, através do cheque com o n.º 55…, da Caixa DD do E…, emitido à ordem de “BB, Ld.ª”, conforme doc. de fls. 22 – alínea L) dos factos assentes;

1.12. No dia 26 de março de 2003, no Cartório Notarial do E…, apareceram o A. AA e o 2.º R. CC, tendo o primeiro declarado que constituía seu bastante procurador este último, a quem conferia os “necessários poderes para vender pelo preço, cláusulas e condições que melhor entender, inclusive a si próprio, o primeiro andar direito para habitação e arrecadação no sótão, designado pela letra G do prédio urbano sito na Rua D. …, Lote B-3, freguesia e concelho do E…, inscrito na matriz sob o art.º 7.7…, podendo receber o preço, dar quitação, outorgar e assinar a respetiva escritura, bem como qualquer contrato remessa de compra e venda, requerer quaisquer actos de registo predial, provisórios definitivos, seus averbamentos e cancelamentos, para junto da Repartição de Finanças ou Câmara Municipal competentes, praticar e assinar tudo quanto se torne necessários “os indicados fins” – alínea M) dos factos assentes;

1.13. Mais declarou que tal procuração era também conferida “no interesse mandatário ou de terceiros, pelo que é irrevogável nos termos do n.º 3 do art.º 265.º, n.º 2 do art.° 1170.° ambos do Código Civil e os poderes ora conferidos não caducam por morte, interdição ou inabilitação do mandante nos termos do art.º 1.175.º do Código Civil e poderão ser exercidos pelo mandatário para celebração de negócio consigo mesmo, nos termos do art.º 261º do referido Código” – alínea N) dos factos assentes;

1.14. Mais tarde, o A. começou a ter problemas de saúde – resposta ao art.º 6.º da base instrutória;

1.15. O A. manifestou à R. a vontade de desfazer o negócio – resposta ao art.º 8.º da base instrutória;

1.16. No dia 15 de maio de 2003, no Cartório Notarial do E…, compareceram o A. e o 2.º R., tendo o primeiro declarado revogar a partir dessa data a procuração irrevogável que outorgou em 26/03/2003 no mesmo Cartório – alínea O) dos factos assentes;

1.17. A qual se encontrava arquivada nesse Cartório no maço de documentos n.º 5, fls. 13 – alínea P) dos factos assentes;

1.18. Tendo o 2.º R. declarado prestar o necessário consentimento à revogação efetuada – alínea Q) dos factos assentes;

1.19. No dia 14/05/2003, no mesmo Cartório Notarial do E…, o A. e o 2.º R., este na qualidade de sócio-gerente da 1.ª R., declararam que, através de escritura, distratavam o contrato de permuta celebrado por escritura pública referido em 1.7, mais tendo declarado terem “já sido restituídos os bens permutados e a quantia de € 50.000,00 que a representada pelo segundo outorgante recebeu, correspondente à diferença de valores declarados, declarando ambos que nenhuma das partes efetuou o registo a seu favor dos bens recebidos” – alínea R) dos factos assentes;

1.20. O registo da aquisição da fração G do prédio urbano sito na Rua D. …, Lote B-3, no E… a favor do A., cuja apresentação data de 18/03/2003 apenas foi efetuado e registado no livro de emolumentos em 02 de julho de 2003 – alínea S) dos factos assentes;

1.21. A fração G correspondente ao 1.º andar do prédio urbano sito na Rua D. …, lote B3, Entroncamento não poderia ser levada à escritura de permuta, devido ao facto referido em 1.20 – alínea T) dos factos assentes;

1.22. O A. recebeu da R. um cheque onde estava inserta a quantia de € 29.927,87 – resposta conjunta aos artigos 11.º e 12.º da base instrutória;

1.23. O A. não recebeu qualquer quantia para além dos referidos € 29.927,87 – resposta ao art.º 18.º da base instrutória.


  2. Do mérito do recurso


2.1. Quanto à alegada violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC


A Recorrente começa por questionar o segmento decisório do acórdão recorrido respeitante à rejeição da impugnação da decisão de facto, sustentando que:

- A matéria de facto impugnada, em sede de apelação, foi a constante do art.º 14.º-A da base instrutória onde se perguntava se os R.R. deixaram de entregar ao A. as quantias referidas nos artigos 13.º e 14.º por assim o terem acordado com este;

- Tal matéria, ali dada como “não provada”, deveria ter sido julgada provada, como facilmente se constata da análise do recurso, bastando atentar nos artigos 39.º, 40.º e 42.º das respetivas alegações, conjugados com o depoimento das testemunhas transcrito pelo apelante e com a análise que é feita aos mesmos depoimentos;

- Além disso, o recorrente indicou a decisão que no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões impugnadas, ou seja, o artigo 14.º-A da base instrutória.

        

     Vejamos.


No caso dos autos, constata-se que da base instrutória constam, entre outros, os seguintes artigos:

9.°

  Face ao real negócio que haviam celebrado, ficou acordado que os RR. restituiriam ao A., na data da escritura do distrate:

   a) - € 10.000,00, relativos à quantia entregue pelo A. a titulo de sinal e princípio de pagamento ?

   b) - € 69.831,00, com a entrega dos apartamentos e garagem da Rua … ?

   c) - € 54.867,77, com a entrega do apartamento da Rua D. … ?

   d) - € 50.000,00, relativo à diferença de valores que o A, levou a mais com a permuta e que havia pago à primeira R. ?

10.°

Os RR. apenas entregaram os apartamentos e garagem da Rua … e o apartamento da Rua D. … ?

11.º

A., na data da escritura do distrate recebeu, do segundo réu, um cheque dobrado?

12.°

Tendo posteriormente verificado que no mesmo cheque apenas estava inserta a quantia de € 29.927,87 ?

13.°

A. interpelou o segundo R., sócio gerente do primeira R., para pagar a diferença relativa aos € 50.000,00 que lhe tinham sido pagos, isto é, de € 20.072,13 ?

14.º

    Bem como a quantia de € 10.000,00 referida em 9.º ?

14.º-A

Os R.R, sendo o segundo na qualidade de sócio gerente e representante da segunda ré, deixaram de entregar ao Autor as quantias referidas nos pontos 13.° e 14.° da base instrutória, por assim o terem acordado com este ?


     O Tribunal da 1.ª Instância, conforme despacho de fls. 232-233, julgou:

a) - Quanto à matéria do “quesito 9.º”, provado apenas o que consta da alínea R) dos factos assentes com o seguinte teor:

   «No dia 14/05/2003, no mesmo Cartório Notarial do Entroncamento, o A. e o 2.º R., este na qualidade de sócio-gerente da 1.ª R., declararam que, através de escritura, distratavam o contrato de permuta celebrado por escritura pública referido em 1.7, mais tendo declarado terem “já sido restituídos os bens permutados e a quantia de € 50.000,00 que a representada pelo segundo outorgante recebeu, correspondente à diferença de valores declarados, declarando ambos que nenhuma das partes efetuou o registo a seu favor dos bens recebidos»;

b) - Quanto à matéria dos artigos 11.º e 12.º, provado apenas que “o A. recebeu da R. um cheque onde estava inserta a quantia sacada de € 29.927,87”;

c) - Quanto à matéria dos artigos 10.º, 14.º e 14.º-A, “não provado”.   

    E, na respetiva fundamentação, o tribunal da 1.ª instância consignou o seguinte:

«Para das como provados os factos supra mencionados o Tribunal baseou-se na apreciação livre, crítica e global dos seguintes meios de prova:

- Na confissão de parte do R. CC, conforme exarado em acta, quanto aos factos que admitem prova por confissão e tendo presente o princípio da indivisibilidade da confissão;

- Declarações das testemunhas EE (filha do R e empregada da R., que relatou a vontade manifestada pelo A: em distratar o negócio), FF (filho do R., idem), e GG (pessoa que referiu ter realizado alguns trabalhos na moradia permutada) que depuseram com alguma isenção e revelando suficiente conhecimento directo dos factos; e,

- Documentos de fls. 29, 30 e 81.


*


Não se deram como provados quaisquer outros factos por falta de prova bastante, segura e credível, tendo os casos de dúvida sido resolvidos conforme o disposto no art.° 516.° do C.P.C..

*


   Breve apreciação crítica da prova.

  A questão de facto central traduz-se na alegada declaração simulatória que foi exarada na escritura de distrate.

  O Tribunal convenceu-se que o A., além dos imóveis permutados, apenas recebeu a quantia pecuniária de € 29.927,87, porque o R. assim o admitiu expressamente no decurso da audiência, sendo que o declarou pessoalmente e como legal representante da R., como poderes para tal, e sendo tal confissão o meio por excelência para comprovar a simulação.

 O R. também aludiu a outras quantias acordadas com o A., nomeadamente que este deveria dar ou perder cerca de € 30.000 para que aquele aceitasse o distrate. Entendeu-se que tal matéria não poderia implicar, sem mais, a confissão de que o negócio de distrate importava o recebimento pelo A. de ainda mais cerca de € 10.000. Na verdade, o princípio da indivisibilidade da confissão importaria a admissão da versão global ou essencial do R.. Isto é, além dos € 50.000 referidos na escritura e de mais € 10.000 reclamados pelo A., teria que se admitir igualmente que ambas as partes acordaram que aquele perderia € 30.000 com o distrate. Em termos de prova por confissão, é impossível destrinçar um facto do outro, sob pena de violação do citado princípio legal.

  Já no que diz respeito à questão do recebimento da quantia de € 29.927,87, o Tribunal não está limitado apenas pela prova por confissão. Na verdade, há prova escrita que indica que o pagamento da quantia acordada foi feito por cheque nesse montante. Por isso, conjugando tais elementos (confissão e documentos), o Tribunal pode afirmar com absoluta segurança que o A. apenas recebeu essa quantia pecuniária.

   No que diz respeito à prova testemunhal nota-se que foi muito débil e apenas permitiu contextualizar alguns pormenores, pois as testemunhas pouco revelaram conhecer quanto aos detalhes centrais do negócio ou mostraram-se intimamente ligadas aos RR. por laços familiares ou laborais, numa matéria em que a própria lei coloca diversas e graves exigências de valoração probatória. Daí o reincidente uso do critério do citado art.º 516.°, do C.P.C.»

 

Sucede que a 1.ª R., aqui Recorrente, nas suas alegações em sede de apelação, começou por transcrever uma série de factos sob os artigos 13.º a 39.º daquela peça processual, entre os quais os seguintes:

Art.º 38.º

O certo é que o Autor convenceu os Réus a efectuarem o distrate e aceitaram a revogação da procuração irrevogável.

39.º

 E por seu lado o Autor acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87.


Seguidamente, aquela apelante convocou os depoimentos das testemunhas EE e FF com a indicação de que foram inquiridas, respetivamente, aos quesitos 9 a 14-A e 11 a 14-A da base instrutória”, bem como do início e termo das respetivas gravações, transcrevendo o teor desses depoimentos.

Nessa base, considerou que, em face daqueles depoimentos, terá de se aceitar que efetivamente existiu o acordo entre a R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, na pessoa do seu gerente CC e o A. AA.   

E das respetivas conclusões recursórias consta o seguinte:

«AH – O certo é que o Autor convenceu os Réus a efectuarem o distrate e aceitaram a revogação da procuração irrevogável;

AI – E por seu lado o Autor acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87;

AJ – Tudo isto se infere do depoimento da testemunha EE, inquiridas aos quesitos 9 a 14-A da base instrutória (…);

AL – No mesmo sentido foi o depoimento da testemunha FF, inquirido sobre os quesitos 11 a 14-A da base intrutória (…)

AN – Ora face aos depoimentos das testemunhas EE e FF, ter-se-á de aceitar que efectivamente existiu o acordo entre a R. BB – Construção Civil de O…, Ld.ª, na pessoa do seu gerente CC e o Autor AA;

     AO – Tanto mais que se verifica que apenas assistiram às reuniões além do Autor e do 2.º Réu CC, as testemunhas EE e FF;

   AP – E face aos depoimentos prestados terão de ser considerados credíveis e verdadeiros:

   AQ – Assim, nada mais restará que a absolvição da Ré BB – Construção Civil de O…, Ld.ª»


No entanto, o Tribunal da Relação, no que respeita a tal impugnação, considerou o seguinte: 

«Como resulta do art. 662.º, n.º 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.

Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo.

É duvidoso que a recorrente tenha querido impugnar a decisão sobre a matéria de facto, já que em momento algum das alegações ou das conclusões o diz.

Na verdade, depois de enunciar a maioria dos factos dados como provados na sentença, limitou-se a recorrente a interpretar esses mesmos factos, concluindo que o autor convenceu os réus a efetuarem o distrate e a aceitarem a revogação da procuração irrevogável, tendo acordado receber apenas e só a quantia de € 29.297,87.

Segundo a recorrente tudo isto se infere dos depoimentos das testemunhas EE e FF, que transcreve em larga medida, face aos quais, prossegue, «ter-se-á de aceitar que efectivamente existiu acordo entre a Ré BB – Construção Civil de O…, Lda., na pessoa do seu sócio gerente CC e o Autor AA», testemunhas que alegadamente terão assistido às reuniões entre o autor e o 2º réu, pelo que, defende a recorrente, devem os respetivos depoimentos «ser considerados credíveis e verdadeiros».

Analisando o corpo das alegações e as conclusões, verificamos que a recorrente não cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art.º 640.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Desde logo, não indicou a recorrente os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorretamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença.

Embora o facto aparentemente em causa seja o do artigo 14º-A da base instrutória, onde se perguntava se «os réus deixaram de entregar ao autor as quantias referidas nos pontos 13.º e 14.º da base instrutória, por assim o terem acordado com este», artigo esse que obteve a resposta de «não provado», era essencial que a recorrente o dissesse, coisa que não fez.

E também não indicou a recorrente a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as concretas questões de facto impugnadas [al. c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC], o que se mostra, aliás, em consonância com o facto de não ter indicado os pontos da materialidade fáctica considerada incorretamente julgada.

Ademais, não basta transcrever os depoimentos das testemunhas e concluir-se, sem mais, que as mesmas merecem credibilidade, sendo certo que, na motivação da decisão de facto, o Mm.º Juiz explicou devidamente as razões por que entendeu desvalorizar a prova testemunhal.

Ora, decorre da letra da lei que a mesma não comporta qualquer outra interpretação que não seja a da imposição da imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, caso não seja observado pelo recorrente algum dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria.

O novo CPC veio, aliás, manter em termos praticamente idênticos todos os ónus anteriormente existentes, aditando ainda o de o recorrente dever especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, mantendo igualmente a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento.

A inobservância, por parte da recorrente, do que lhe é imposto pelas alíneas a) e c), do n º 1 do art. 640º do CPC, determina a imediata rejeição do recurso no que toca à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita na mesma.»


Ora, em primeira linha, importa ter presente que, no domínio do nosso regime recursório cível, a reapreciação da decisão de facto pela Relação, nos termos definidos nos artigos 662.º, n.º 1, e 607.º, n.º 4, aplicável este por remissão do art.º 663.º, n.º 2, do CPC, não se traduz num novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas numa reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal de 1.ª instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso nesse particular não é proferir um novo julgamento da ação, mas julgar a própria decisão recorrida.

Por isso mesmo é que o artigo 640.º do CPC, no que aqui releva, prescreve que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravações nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

 O sentido e alcance destes requisitos formais de impugnação da decisão de facto devem ser equacionados à luz das razões que lhes estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza e estrutura da própria decisão de facto.

Nessa conformidade, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto é circunscrita aos pontos impugnados, embora, quanto à latitude da investigação probatória, o tribunal da relação tenha um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do preceituado no citado artigo 662.º, n.º 1, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido.

São portanto as referidas condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza e estrutura da decisão de facto que postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC. Tal especificação pode fazer-se de diferentes modos: o mais simples, por referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, quando tenha havido lugar a ela, ou aos pontos da sentença em que se encontram inseridos; ou então pela transcrição dos próprios enunciados probatórios.

Por seu turno, a indicação dos concretos meios probatórios convocáveis pelo recorrente, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, já não respeita propriamente à delimitação do objeto do recurso, mas antes à amplitude dos meios probatórios a tomar em linha de conta, sem prejuízo, com foi dito, dos poderes inquisitórios do tribunal de recurso de atender a meios de prova não indicados pelas partes, mas constantes dos autos ou das gravações realizadas.

Impõe-se também ao impugnante, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 640.º, o requisito formal de indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Este é, pois, o método processual assumido como garantia de um julgamento equitativo das questões de facto e da legitimidade da decisão que sobre elas venha a recair, com observância dos princípios do contraditório e do tratamento igual das partes.

Por outro lado, o legislador terá sido cauteloso em não permitir a utilização abusiva ou facilitação do mecanismo-remédio de impugnação da decisão de facto. Aliás, mal se perceberia que o impugnante atacasse a decisão de facto sem ter bem presente cada um dos enunciados probatórios e os meios de prova utilizados ou a utilizar na sua fundamentação cirúrgica. Daí a cominação severa da sua imediata rejeição.

Tem-se também suscitado, com frequência, a questão de saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no n.º 1 do artigo 640.º podem figurar apenas no corpo das alegações ou se devem antes ser levados às conclusões recursórias, não existindo consenso jurisprudencial nesta matéria.

Segundo determinado entendimento, pelo menos, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar deve constar das conclusões do recurso, sob pena de rejeição do recurso nessa parte, por aplicação subsidiária do disposto nos artigos 635.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1, do CPC. De acordo com outro entendimento, a falta de disposição expressa nesse sentido não permitiria uma consequência tão drástica, desde que a indicação de tais pontos constem com nitidez do corpo das alegações. Esta divergência tem-se arrastado desde a introdução do novo regime recursal pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, estranhando-se que o legislador se tenha alheado dela na última reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-06.     

Embora se afigure mais curial que a especificação dos pontos de facto impugnados e mesmo a indicação da decisão a proferir sobre cada facto constem das conclusões do recurso, face à ambiguidade da lei, inclinamo-nos para um critério moderado, no sentido de aproveitar a especificação que seja feita no corpo das alegações, desde que provida do recorte e clareza necessária à delimitação do objeto do recurso, nessa parte.


No caso presente, não obstante a 1.ª R., no recurso de apelação, não ter dito, de forma literal, que impugnava à resposta do artigo 14-A da base instrutória e que tal resposta devia ser dada como não provada, o certo é que, tanto no corpo das alegações como nas próprias conclusões, afirmou, inequivocamente, em relação ao distrate, que “o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87 e que tal deveria ser assim considerado em face daqueles depoimentos testemunhais por si convocados.

Tal alegação e conclusão só poderiam dizer respeito à matéria vertida no artigo 14.º-A da base instrutória, como, no acórdão recorrido, se acaba por admitir.

Nessas circunstâncias, salvo o devido respeito, afigura-se que o fundamento de rejeição daquela impugnação é demasiado formal, já que a substância do juízo probatório impugnado se encontrava perfeitamente clara e circunscrita.


Todavia, daí não se segue que, mesmo assim, assista razão à Recorrente.


Com efeito, encontra-se provado por documento autêntico, reproduzido a fls. 25-28, conforme o ponto 1.19 da factualidade acima consignada, que;     

No dia 14/05/2003, no mesmo Cartório Notarial do E…, o A. e o 2.º R., este na qualidade de sócio-gerente da 1.ª R., declararam que, através de escritura, distratavam o contrato de permuta celebrado por escritura pública referido em 1.7, mais tendo declarado terem “já sido restituídos os bens permutados e a quantia de € 50.000,00 que a representada pelo segundo outorgante recebeu, correspondente à diferença de valores declarados, declarando ambos que nenhuma das partes efetuou o registo a seu favor dos bens recebidos” – alínea R) dos factos assentes.

  Tal só pode significar que as partes declararam realizar o distrate do contrato de permuta ali formalizado mediante a restituição dos bens permutados e da quantia de € 50.000,00, que a 1.ª R. havia recebido do A., correspondente à diferença dos valores declarados no precedente contrato de permuta reproduzido a fls. 18-21.

     Assim, o acordo sobre a restituição ao A., por parte da 2.ª R., da quantia de € 50.000,00, como efeito do referido distrate, encontra-se coberto pela força probatória plena da escritura reproduzida a fls. 25-28.

     Sucede que, nos termos do artigo 347.º do CC, essa força probatória plena “só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”, como são as relativas à inadmissibilidade de prova testemunhal ou da prova por presunção judicial, constantes dos artigos 393.º a 395.º e 351.º do CC.

        Com efeito, segundo o preceituado no artigo 393.º do CC:

   1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou disposição das partes houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.

   2. Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.


E o artigo 394.º do mesmo diploma, prescreve que:

 1- É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, que sejam posteriores.

 2 – A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores.

    Tais restrições são, pois, igualmente aplicáveis à prova por presunção judicial por via do disposto no artigo 351.º do CC.

Nessa conformidade, constando da sobredita escritura de distrate o acordo de restituição, além do mais, da quantia de € 50.000,00, não é admissível a prova testemunhal convocada pela R. Recorrente no sentido de provar que o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87.

Nem se trata aqui sequer de simples interpretação do contexto do documento para que seja admissível prova testemunhal a coberto do n.º 3 do artigo 393.º do CC     

    É certo que os outorgantes da escritura de distrate também declararam que os bens permutados e a referida quantia já tinham sido restituídos, o que foi impugnado pelo A., ao sustentar que, relativamente aos € 50.000,00, só lhe foi entregue o valor de € 29.297,87 através do dito cheque dobrado.

     Estaríamos, pois, perante uma declaração de quitação dada pelo A. na referida escritura, sobre a qual recai a força probatória legal plena da confissão, nos termos conjugados dos artigos 358.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, do CC, também só ilídível nos termos do art.º 347.º do CC, com as restrições acima indicadas.

     Neste ponto, porém, o tribunal da 1.ª instância considerou feita a prova de que dos indicados € 50.000,00 o A. só recebeu a quantia de € 29.297,87, com base na declaração confessória do 2.º R. e dos documentos juntos aos autos, o que tem acolhimento no disposto no citado art.º 347.º do CC.

     Nesta conformidade, a prova testemunhal que a 1.ª R. convocou, em sede de apelação, é absolutamente irrelevante para demonstrar o alegado acordo do A. em contrário com o constante da escritura de distrate, dela não podendo resultar decisão diversa da recorrida.

    Em suma, mesmo verificado o ónus de impugnação por parte da 1.ª R. Recorrente sobre o juízo probatório constante da resposta ao art.º 14.º-A da base instrutória, a inadmissibilidade da prova testemunhal, por ela convocada para o efeito, justificava, por si só, a rejeição da apreciação dessa impugnação por força do preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), parte final, a contrario sensu, do CPC.

    Termos em que improcedem as razões da Recorrente neste particular.    


2.2. Quanto ao alegado erro de direito no tocante à solução em que se reconhece o direito do A. à restituição da quantia de € 20.072,13   

          

Antes de mais, convém reter que o A., desde logo sob os artigos 43.º a 49.º da petição inicial alegou que:

- Foi acordado entre o A. e os R.R. que estes, na data da escritura do distrate, lhe restituíam os referidos 60.000,00 – art.º 43.º;

- O A., confiando na boa fé do sócio-gerente da 1.ª R., recebeu um cheque dobrado no ato do referido distrate – art.º 44.º;

- Mas verificou posteriormente que no mesmo apenas estava inserta a quantia de € 29.927,87 – art.º 45.º;

 - Pelo que se dirigiu ao 2.º R., sócio-gerente da 1.ª R., dizendo-lhe que faltava a diferença relativa aos € 50.000,00 que lhe tinham sido pagos, ou seja, de € 20.072,13 – artigos 46.º e 47.º;

- O 2.º R. virou-se para o A. dizendo-lhe que ele a sua empresa nada mais tinham a restituir em virtude do distrate – art.º 49.º.

Por seu turno, os R.R., sob os artigos 48.º a 59.º da contestação, alegaram, no que aqui interessa, que:

   - de acordo com a cláusula 8.ª do contrato-promessa o promitente comprador perderia o sinal assim como os seus possíveis reforços, caso não cumprisse o contrato - art.º 48º;  

  - foi nessas condições, plenamente acordadas entre A. e R., que foram outorgadas quer a escritura de permuta quer a escritura de distrate – art.º 49.º - não tendo qualquer cabimento a versão do R. segundo a qual teria recebido um “cheque dobrado” e que só posteriormente, sem especificar quando, tomou conhecimento da quantia nele inscrita – artigos 49.º a 51.º;   

  - a conduta do A. sempre foi concordante com os termos da escritura de distrate, propondo e recebendo exatamente quanto dela consta - art.º 52º;

  - só depois de decorridos dois anos e meio da escritura de distrate é que o A. se lembrou de que, afinal ainda tinha a receber dos R.R. a quantia de € 30.072,13 - art.º 53º;

  - é óbvio que, em tais condições a R. não teria aceite outorgar a escritura de distrate nem ela era suscetível de ser outorgada - art.º 54º;   

   - factos que o A. contornou aceitando outorgar a escritura nos ter-mos em que se encontra exarada para, posteriormente, tentar subverter os termos do acordo – artigos 55.º e 56.;  ; 

   - a conduta assim descrita tornaria o exercício do eventual direito do A. ilegítimo nos termos do disposto no artigo 334.º do CC - art.º 59.º;  

      Na réplica, o A. ainda contrapôs, quanto ao tempo decorrido entre o distrate e a propositura da ação, que tal dilação se ficou a dever às inúmeras e frustradas tentativas do A. para, de uma forma amigável, tentar que lhe fosse restituída a quantia em falta.


    Neste capítulo, as instâncias foram unânimes em considerar que a factualidade provada é insuficiente para concluir pela verificação dos pressupostos do abuso de direito à luz do disposto no artigo 334.º do CC.


    Todavia, a Recorrente vem sustentar que:

- A escritura de distrate do negócio efetuado apenas ocorreu a 14/05/2003 e a procuração irrevogável apenas foi revogada com o consentimento do 2.º R. no dia 15/05/2003, tendo, portanto, decorrido um período de quase dois meses, que o A. tomou posse e ocupou o imóvel objeto de permuta e referido no artigo 13.º;

- Apenas em 14 e 15 de maio de 2003 foram efetuadas as escrituras de distrate e revogação com consentimento da procuração irrevogável;

- Atentando no critério do homem médio, que este tipo de negócio não era do interesse da R. e apenas e só do interesse do A., uma vez que o interesse e o fim das sociedades é o lucro, e o negócio tal como configurado pelo A., nenhum lucro trouxe à sociedade;

- Nenhuma sociedade aceitaria distratar uma permuta sem qualquer contrapartida, muito menos uma sociedade que se dedica precisamente à compra e venda de imóveis, motivo pelo qual o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87 € e declarar na escritura que recebera os € 50.000,00;

- É justamente este padrão abstrato, meio estatístico, meio normativo, como critério para aferir os cuidados devidos nas mais variadas circunstâncias. O bom pai de família é, por isso, um padrão para aferir a culpa, mas a palavra «culpa» tem aqui um significado também técnico. Não está em causa toda e qualquer apreciação dos comportamentos, mas apenas a aferição dos cuidados que, em certa ocasião, devam ser tomados;

- Assim verifica-se que, face ao conceito plasmado no art.º 487.º do CC, isto é, o conceito de um bom pai de família, jamais se poderia sequer pensar que, após se ter efetuado o negócio constante dos presentes autos, o mesmo seria desfeito sem quaisquer contrapartidas, tanto mais sendo um dos intervenientes uma sociedade;

- Ao ser desfeito o negócio através da escritura de distrate e da revogação da procuração irrevogável, o conceito do “bom pai de família” obriga a aceitar que a R. tenha de ser ressarcida de algum valor;

- É este mesmo conceito que deve ser aplicado ao chamado cheque “dobrado”, pois é impossível alguém receber um cheque e, após o ter recebido não o ter verificado, se fizesse logo pelo menos tê-lo-ia verificado, no caso dos presentes autos até à assinatura da escritura de distrate;

- Porque, recebendo um cheque no valor de € 29.297,87, ninguém vai posteriormente assinar uma escritura a dizer que recebeu € 50.000,00 senão tiver acordado previamente isso mesmo, obviamente que o A. se recusaria a assinar a escritura de distrate, como qualquer comum mortal, o que não aconteceu;

- E não aconteceu porque obviamente era o que estava previamente acordado entre as partes e só por má fé pode o A. alegar o contrário. 


Vejamos.


Tal como foi considerado no ponto precedente, constando da sobredita escritura de distrate o acordo de restituição da quantia de € 50.000,00, não é admissível, nos termos dos artigos 393.º, n.º 1 e 2, e 394.º, n.º 1, do CC, a prova testemunhal convocada pela R. Recorrente no sentido de provar que o A. acordou receber apenas e só a quantia de € 29.297,87; nem é também admissível a prova por presunção judicial (art.º 351.º do CC).

Assim, face ao ali expressa e formalmente acordado, não se mostra lícito apelar agora a uma vontade conjetural das partes estribada num presumível interesse da 1.ª R. e na exigência de um determinado padrão de comportamento do A., que não encontram o mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, no texto da escritura de distrate, como, de resto, exige o artigo 238.º, n.º 1, do CC. Nem se está sequer perante um caso que imponha a integração da vontade negocial nos termos previstos do art.º 239.º do mesmo Código.

Acresce que a própria posição da R. assumida na contestação, conforme o acima transcrito, se revela, no mínimo, ambígua, ao reconduzir o alegado acordo do A., em só receber a quantia de € 29.297,87 inscrita no cheque reproduzido a fls. 81, ao que fora anteriormente acordado no âmbito do contrato-promessa (artigos 48.º e 49.º da contestação) e ao afirmar, literalmente sob o art.º 52.º daquele articulado, que “a conduta do A. sempre foi concordante com os termos da escritura de distrate, propondo e recebendo exatamente quanto dela consta”. Nem tão pouco a R. apresentou qualquer explicação para o facto de ter sido consignada na escritura de distrate a restituição da quantia de € 50.000,00, em discordância com o que ela considerava ter sido acordado com o A..

É certo que a R. ainda chegou a invocar, inicialmente, o abuso de direito por parte do A., solução que não foi acolhida, desde logo, pela 1.ª instância por se considerar que a factualidade provada “é insuficiente para permitir concluir que o A., com a sua conduta, criou nos R.R. a expetativa de que não queria as quantias cujo pagamento estava em falta”, o que incumbia àquela R. provar, como se salientou na sentença recorrida.

Todavia, a mesma R., quer na apelação, quer na presente revista, parece ter deixado cair a questão do abuso de direito, já que nada argumentou sobre o assim julgado nesse plano.

Nestas circunstâncias, para além do que já foi dito, não cumpre retomar tal questão, tanto mais que da factualidade provada nada de pertinente se extrai para que, mesmo oficiosamente, essa questão seja aqui ponderada.

Termos em que improcedem, também neste capítulo, as razões da Recorrente, não merecendo censura o acórdão recorrido.

        

V - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação diferente no respeitante ao segmento decisório que rejeitou a reapreciação da decisão de facto.

As custas do recurso ficam a cargo da R. Recorrente.

Lisboa, 1 de junho de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

 

João Luís Marques Bernardo