Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
593/14.5TBTNV.E2.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
REQUISITOS
PERSONALIDADE JURÍDICA
DIREITOS DOS SÓCIOS
TERCEIRO
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
CAUSA JUSTIFICATIVA
Data do Acordão: 06/06/2019
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
Doutrina:
- ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, p. 332 a 335;
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, p. 480 e ss. e 496;
- L. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, VOL. 1, 3.ª edição, 2003, p. 456 ; O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, 1996, p. 627 a 631;
- MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, p. 45 e 55;
- PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, p. 36;
- RAUL VENTURA, Dissolução e Liquidação de Sociedades,1987, p. 493;
- RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, p. 13.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 473.º, N.º 1.
Sumário :
I. A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento injusto, pressupõe, nos termos do disposto no art. 473.º, n.º 1, do Código Civil, a verificação cumulativa de três requisitos: o enriquecimento de alguém, o enriquecimento sem causa justificativa e ter sido obtido à custa de quem requer a restituição.

II. Em regra, é indispensável que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa de quem exige o direito à restituição.

III. A atribuição patrimonial indireta pode justificar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, de modo a evitar casos que, por falta da imediação, ficariam juridicamente desprotegidos e chocariam o “comum sentimento de justiça”.

IV. Há enriquecimento sem causa, ainda que a vantagem patrimonial advenha de ato de terceiro, que, entretanto, perdeu para sempre a personalidade jurídica e vem substituída por quem exige a restituição do benefício patrimonial.

V. O direito não pode alhear-se dos efeitos da sua aplicação prática, devendo excluir quaisquer situações que, para o comum da comunidade, sejam flagrantemente injustas.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA e BB, na qualidade de sócios da dissolvida CC, Lda., instauraram, no então … Juízo do Tribunal Judicial de … (Juízo Central Cível de …, Comarca de …), contra DD, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhes a quantia de € 750 602,24, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 27 de outubro de 2007.

Para tanto, alegaram em síntese, que a extinta sociedade foi constituída apenas com o objetivo de participar no capital social da Ré; na sequência de incumprimento da Ré, a Caixa EE vendeu um conjunto de ações daquela, empenhadas a seu favor, incluindo as que a CC detinha no capital social da Ré, em 26 de outubro de 2007; vendidas essas ações, a CC foi dissolvida por deliberação da assembleia geral de 24 de dezembro de 2007, verificando-se depois da liquidação a existência de bens não partilhados, nomeadamente um crédito sobre a Ré, o qual pertence aos sócios em regime de contitularidade.

Contestou a Ré, por exceção, arguindo a ilegitimidade dos Autores e a prescrição, e por impugnação, alegando a inexistência do direito de crédito, fundado no enriquecimento sem causa, e concluiu pela improcedência da ação.

Os Autores responderam à matéria de exceção.

Durante a audiência prévia, realizada em 30 de novembro de 2015, foi proferido despacho saneador-sentença, no qual a ação foi julgada improcedente, decisão que veio a ser revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de novembro de 2016, confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2017.

Prosseguindo o processo, foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a exceção de prescrição, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 23 de maio de 2018, a sentença, que condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 750 602,24, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde 11 de março de 2008 até integral e efetivo pagamento.

Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 17 de janeiro de 2019, julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença.


Mantendo-se inconformada, a Ré recorreu, em revista excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado essencialmente as conclusões:


a) O suposto crédito não pôde ser cobrado por outra via, por os sócios da CC não o terem feito valer durante a vida da sociedade e terem decidido dissolver a sociedade, declarando obrigatoriamente que não existiam créditos nem dívidas, sendo que a cobrança do suposto crédito, já na pessoa dos sócios, consubstancia, no mínimo, um abuso do direito (a entender-se que o direito exista).

b) Em questão está a possibilidade de vir cobrar o crédito por ex-sócios de uma sociedade empobrecida, após decorridos sete anos e a dissolução da sociedade, com a declaração, nesse ato, de que a sociedade não detinha nem créditos nem dívidas.

c) Tal é atentatório das regras do direito comercial e do princípio da segurança e repugna a cobrança de tal dívida em tais termos.

d) A situação não se mostra excessiva nem choca um comum sentimento de justiça, face ao desenrolar dos acontecimentos tendentes à dissolução da CC, pelo que não pode ser afastada a regra de que o enriquecimento tenha sido obtido às custas de um empobrecimento daquele que pede a restituição.

e) Não é o empobrecido quem pede a restituição, mas os seus ex-sócios.

f) Mostra-se violado o art. 473.º do Código Civil, por falta do requisito que exige que o enriquecimento seja obtido à custa do empobrecimento do requerente.


Com a revista, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que a absolva do pedido.


Os Réus contra-alegaram, no sentido da improcedência do recurso.


Por acórdão da Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), de 2 de maio de 2019, foi admitida a revista excecional, ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, essencialmente, está em causa uma situação de enriquecimento sem causa, resultante do pagamento, à custa do património de sociedade, entretanto liquidada, de dívida de outra sociedade, invocada pelos antigos sócios da primeira.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Os Autores constituíram, em julho de 1994, a sociedade CC, Lda., com sede na Rua do …, n.º …, em …, concelho de …, com o capital social de € 520 000,00, integralmente realizado e dividido em duas quotas: uma, no valor de € 379 600,00, pertencente ao A. AA, e outra, no valor de € 140 400,00, pertencente ao A. BB.

2. O objetivo da sociedade foi participar no capital social da R., não tendo exercido qualquer outra atividade comercial, industrial ou de serviços.

3. No dia 5 de junho de 2001, a CC detinha no capital social da R. 427 500 ações nominativas, resultantes da subscrição inicial e da participação nos aumentos do capital social.

4. Nessa data, foi outorgado um contrato de financiamento entre: a) Caixa EE, S.A., (EE), (1.ª outorgante e mutuante); b) DD, S.A., (2.ª outorgante e mutuária); c) FF - Importação e Exportação, Lda. (acionista DD); d) CC, Lda. (acionista DD); e) Construtora GG, S.A.. (acionista DD); f) HH, CRL (acionista DD); II - Serviços Internacionais de Trânsito, S.A. (acionista DD); h) JJ & Irmão, S.A.. (acionista DD); i) KK (acionista DD), pelo qual foi constituído a favor da R. um crédito, até ao montante máximo de € 8 000 000,00, bem como outro, até ao montante máximo de € 750 000,00.

5. Em garantia do cumprimento das obrigações assumidas, designadamente para assegurar o reembolso do capital, o pagamento dos juros remuneratórios, moratórios, comissões, demais despesas e encargos, todos os acionistas identificados constituíram, cada um por si, a favor da EE, primeiro penhor sobre as ações nominativas, de que eram plenos proprietários, no valor nominal de um euro cada, representativas de 96,25 % do capital social da R.

6. Tais ações encontravam-se livres de quaisquer ónus e encargos.

7. A CC constituiu, no âmbito do contrato, um primeiro penhor sobre as 427 5000 ações, de que era proprietária, e obrigou-se perante a EE a subscrever quaisquer aumentos de capital e a constituir primeiro penhor, a favor da EE, sobre todas as ações que resultassem de quaisquer aumentos de capital da R.

8. Em 31 de dezembro de 2006, a CC detinha no capital social da R. 575 552 ações nominativas, resultantes da subscrição inicial e da participação nos aumentos do capital social, todas empenhadas a favor da EE.

9. De acordo com a cláusula 25.ª, n.º 5, do contrato de financiamento, no caso de incumprimento, as ações dadas de penhor podiam ser vendidas, extrajudicialmente, pelo preço “ao melhor” e nas demais condições que a EE entendesse convenientes, em qualquer dos mercados em que se encontrassem admitidas à negociação.

10. Os acionistas entregaram, na data de assinatura do contrato, à EE, uma procuração irrevogável, conferindo-lhe poderes para proceder à alienação das ações dadas de penhor.

11. Estipulou-se ainda que o produto da venda das ações seria para imputar à satisfação dos créditos da EE emergentes do contrato de financiamento.

12. Para garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela R., perante a EE, em caso de incumprimento do contrato, aquela obrigou-se a ceder a esta última os créditos emergentes dos contratos do projeto de que fosse titular, bem como efetuar um penhor em primeiro grau de um conjunto de bens/equipamentos.

13. Para garantia do bom cumprimento do contrato, também se constituiu hipoteca sobre imóvel, a parcela de terreno para construção urbana, sita no Casal …, freguesia de …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 09…/040…1, onde se localiza a sede social.

14. A R. deixou de cumprir as obrigações assumidas no contrato de financiamento.

15. Na sequência do incumprimento, a EE procedeu à venda da totalidade das ações empenhadas a seu favor, em 26 de outubro de 2007, incluindo as da CC, correspondendo-lhe o valor de € 750 602,24.

16. As ações foram vendidas por € 6 374 000,00.

17. A venda mencionada em 9. foi comunicada à CC, por carta remetida pela EE de 31 de outubro de 2007.

18. Efetuada a venda, a EE considerou-se integralmente ressarcida do seu crédito e a R. deixou de ser devedora da EE.

19. A EE não executou qualquer outra das garantias dadas pela R. no contrato de financiamento.

20. A LL, responsável pela elaboração da contabilidade da R., informou-a de que deveria lançar na escrita comercial o pagamento do débito à EE e registar o crédito a favor dos ex-acionistas.

21. Neste sentido, também se pronunciou o ROC e o advogado da R.

22. Na escrita comercial da R., a EE deixou de ser credora.

23. Na contabilidade da R., na conta “outros devedores e credores”, pelo menos até 2016, consta um crédito a favor dos ex-acionistas, no montante igual ao valor correspondente das suas ações nominativas.

24. No dia 11 de março de 2008, MM, ROC da R., remeteu-lhe o e-mail de fls. 242, com o seguinte teor: “Entendo que devem ser registadas as operações seguintes: a) Registar o pagamento dos empréstimos da EE, capital e juros; b) Ajustar o montante estimado dos juros para o valor efetivamente pago, anulando o excedente, reduz os encargos financeiros do ano e, pelo excedente, ajusta exercícios anteriores). Além disso, tendo a dívida sido satisfeita pelo penhor das ações dado pelos acionistas (havia uma garantia hipotecária e penhor de equipamentos do DD, mas suponho não terem sido executados, apenas o penhor das ações o foi), entendo que os acionistas que deram as suas ações em penhor são agora credores do DD, na quota-parte proporcional a cada um, por sub-rogação, conforme resulta do disposto nos artigos 592.º, 593.º e 644.º do C. Civil. Isto é, a liquidação da dívida não é um ganho para o DD, mas o credor deixou de ser a EE para passar a ser cada um dos acionistas que entregaram as ações em penhor, na proporção das ações dadas em penhor por cada um, conforme consta do contrato de penhor.

25. Vendidas as ações, a CC decidiu dissolver-se, por deliberação da assembleia geral de 24 de dezembro de 2008.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias e matéria conclusiva, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente a situação de enriquecimento sem causa, resultante do pagamento, à custa do património de sociedade, entretanto liquidada, de dívida de outra sociedade, invocada pelos antigos sócios da primeira.

Como se viu, ambas as instâncias foram convergentes e decidiram no mesmo sentido, tendo reconhecido a situação de enriquecimento sem causa.

A Recorrente, condenada no pagamento da quantia de € 750 602,24, acrescida dos juros de mora, insiste, fundamentalmente, que, não sendo os Recorridos os empobrecidos, foi violado o disposto no art. 473.º do Código Civil (CC).

Feito o enquadramento, sumário, da controvérsia jurídica emergente dos autos, vejamos então o direito aplicável ao caso em análise.


Como se sabe, o art. 473.º do CC, aproveitando o reconhecimento concretizado pela jurisprudência, consagrou como fonte autónoma de obrigações, o enriquecimento sem causa, o enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia.

A obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se (RODRIGUES BASTOS, Das Obrigações em Geral, II, 1972, pág. 13, e MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, pág. 45). Por isso, se atribui à ação de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2.ª reimpressão, 2003, pág. 36).

A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento injusto, pressupõe, nos termos do disposto no art. 473.º, n.º 1, do CC, a verificação cumulativa de três requisitos: o enriquecimento de alguém, o enriquecimento sem causa justificativa e ter sido obtido à custa de quem requer a restituição (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segs.).

Dos requisitos o que tem levantado mais dificuldades é o especificado em segundo lugar, não definindo a lei a causa do enriquecimento, embora tenha fixado um critério de orientação, nomeadamente no n.º 2 do art. 473.º do CC, prescrevendo que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

A causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio. Por isso, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio. Por outro lado, carece também de causa a deslocação patrimonial, sempre que a ordenação substancial dos bens aprovada pelo direito a atribua a outro, isto é, que seja substancialmente ilegítima ou injusta (ANUNES VARELA, ibidem, pág. 487, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, pág. 335, e MENEZES CORDEIRO, ibidem, pág. 55).

A falta de causa justificativa pode decorrer da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido.

Contudo, também o terceiro requisito, em causa nestes autos, pode levantar alguma dificuldade de aplicação.

Em regra, para a obrigação de restituição, é indispensável que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa de quem exige o direito à restituição.

No entanto, situações podem ocorrer em que a atribuição patrimonial indireta pode justificar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, de modo a evitar casos que, por falta da imediação, ficariam juridicamente desprotegidos e chocariam o “comum sentimento de justiça”.

Essa possibilidade, inspirada na doutrina germânica, é admitida, expressamente, por ANTUNES VARELA (ibidem, pág. 496) e ALMEIDA E COSTA (Direito das Obrigações, 1979, págs. 332 a 334). De forma mais aberta, porém, afirma-se L. MENEZES LEITÃO, destacando que a verdadeira função do instituto do enriquecimento sem causa é a de reprimir o enriquecimento injustificado e não o de compensar os danos sofridos (Direito das Obrigações, VOL. 1, 3.ª edição, 2003, págs. 456 e 456, e, em especial, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, 1996, págs. 627 a 631).

Assim, a aplicação do terceiro requisito deve ser cuidadosa e abrangente, de modo a contemplar o enriquecimento injustificado, que, numa interpretação mais restrita, poderia ficar intoleravelmente intocável e ferir, de modo intenso, o sentimento geral de justiça.

Acresce ainda que o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (art. 474.º do CC), só podendo ser invocado quando a lei não faculta ao empobrecido qualquer outro meio de compensação ou restituição.


Por outro lado, no processo, está adquirido que os Recorridos, enquanto antigos sócios da sociedade liquidada, têm legitimidade substantiva para invocar, como causa de pedir da ação, o enriquecimento sem causa, nomeadamente pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2017 (fls. 414 a 427).

Na verdade, estando extinta a sociedade e verificando-se um eventual ativo superveniente, nomeadamente um direito de crédito, que pertencerá, em contitularidade, aos antigos sócios, não pode a sociedade liquidada, porque desprovida de personalidade jurídica, demandar em ação o devedor, podendo os antigos sócios fazê-lo, na medida do seu interesse, como resulta do disposto no art. 164.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (RAUL VENTURA, Dissolução e Liquidação de Sociedades,1987, pág. 493).

     

Como já se aludiu, a Recorrente apenas impugna a verificação do último requisito do preenchimento do enriquecimento sem causa, nomeadamente o de ter sido obtido à custa de quem requereu a restituição, por entender que a empobrecida foi a sociedade liquidada e não os antigos sócios, os Recorridos.

Não há dúvida de que a Recorrente beneficiou da vantagem da venda das ações da sociedade, entretanto liquidada, entregues como uma das garantias (penhor) do contrato de financiamento, celebrado entre a Caixa EE e a Recorrente. Efetivamente, através de ato de terceiro, a Recorrente deixou de ter o correspondente débito para com a mutuante, em particular à custa da sociedade titular das ações.

Estando a sociedade dissolvida e não sendo admissível a sua repristinação, não deixaria de ofender, de forma chocante, o comum sentimento de justiça, a impossibilidade absoluta da restituição do equivalente à vantagem obtida. Existindo a sociedade, e com um sentido de coerência, nada se objetaria à verificação do enriquecimento sem causa.

Se os sócios antigos de sociedade liquidada podem ser sujeitos ativos ou passivos de ações, no caso de superveniência de passivo ou ativo, como decorre do disposto nos arts. 163.º, n.º 2, e 164.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, não se encontra razão suficiente, nomeadamente de ordem dogmática, que possa obstar a que os antigos sócios da sociedade liquidada exijam a efetivação da restituição por enriquecimento sem causa, ainda que empobrecida seja a sociedade.

De resto, a circunstância da sociedade liquidada ter sido instrumental para o financiamento da sociedade Recorrente, fez daquela uma mera executante material, acabando por ser os sócios os verdadeiros interessados (L. MENEZES LEITÃO, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, pág. 630).

Perante a situação peculiar decorrente dos autos, há enriquecimento sem causa, ainda que a vantagem patrimonial advenha de ato de terceiro, que, entretanto, perdeu para sempre a personalidade jurídica e vem substituída por quem exige a restituição do benefício patrimonial.

No fundo, mantém-se a regra do enriquecimento imediato de alguém à custa de outrem, mas com possibilidade de admissão da atribuição patrimonial indireta, nomeadamente quando a manutenção da situação, sem outro meio de ser legalmente reparada, fosse de uma clara e flagrante injustiça. 

O direito, regulando normativamente as relações entre as pessoas, não pode alhear-se dos efeitos da sua aplicação prática, devendo excluir quaisquer situações que, para o comum da comunidade, sejam flagrantemente injustas.

Assim, reitera-se o entendimento sufragado pelo acórdão recorrido, o qual não violou qualquer disposição legal, designadamente o art 473.º do Código Civil.


Nestes termos, nega-se a revista.  



2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar a Recorrente (Ré) no pagamento das custas.



Lisboa, 6 de junho de 2019


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Hélder Almeida