Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
637/20.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 09/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - A norma do art. 62.º do CPC, que estabelece os critérios de conexão para a competência internacional legal dos tribunais portugueses, deve ser interpretada de forma sistemática e actualista a partir do direito comunitário e da jurisprudência do TJUE e do princípio da interpretação conforme, nomeadamente quando esteja em causa situações plurilocalizadas do dano, devido, por exemplo, à ubiquidade do fenómeno digital.

II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do art. 62.º, al. b), do CPC, para decidirem uma ação em que o autor, um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos pela demandada nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo, com base na responsabilidade civil extracontratual, por violação dos direitos de personalidade, e no enriquecimento sem causa (enriquecimento por intervenção no direito de personalidade ao nome e à imagem).

III - Os danos por violação dos direitos de personalidade, no tocante à imagem e ao nome, na sua vertente patrimonial, podem der ressarcidos em sede de responsabilidade civil extracontratual (arts. 70.º e 483.º do CC), como no âmbito do enriquecimento sem causa (art.473.º do CC), na modalidade de enriquecimento por intervenção.

IV - Enquanto na responsabilidade civil releva a perda ou diminuição verificada no património do lesado, já no enriquecimento por intervenção a indemnização contende com o enriquecimento injustificado do interventor, devendo corresponder à situação hipotética do património do enriquecido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


                                                                          

1.1.- O Autor - AA, de nacionalidade portuguesa, residente em Rua ..., ... ..., Portugal, instaurou na Comarca ... (Juízo Central Cível) acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Ré - ELECTRONIX ARTS INC., com sede em 209, Redwood Shores Parkway, Redwood City, Califórnia, CA 94065, EUA.

Alegou, em resumo:

A Ré, através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo, contando com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA S... Sarl, com sede na Suíça, a qual assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.

 O Autor é um jogador de futebol português, que, actualmente, joga na ..., ao serviço do Clube ....

A Ré está a utilizar a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde 28.09.10 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA 2011).

 Nos jogos em que aparece, a imagem do Autor é individualizada.

O Autor actuou, até este momento, em mais de 100 partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de extremo ..., como é conhecido nacionalmente, tendo actuado, principalmente, no ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Inglaterra), entre outros.

O Autor foi ainda internacional pelas Selecções Portuguesas de Futebol Sub 17, Sub 18, Sub 19, Sub 20 e Sub 21, por 46 (quarenta e seis) vezes.

O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), pelo menos nas edições 2011, 2012, 2014 e 2015; FIFA MANAGER, pelo menos na edição de 2012; e FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, pelo menos nas edições de 2014 e 2015, todos propriedade da Ré.

O Autor jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos eletrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e., FIFA, FIFA MANAGER e FUT.

E não conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, especificamente para jogos eletrónicos, jogos de vídeo, aplicativos, ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma.

A Ré é uma empresa mundialmente reconhecida pela produção e desenvolvimento de jogos para computadores, jogos de vídeo e aplicações diversas, conforme notícia divulgada no ano de 2010, conta com uma facturação estrondosa: os elevados resultados financeiros da Ré, decorrentes das atividades exploradas, entre elas, através dos jogos de vídeo identificados nesta petição e que se tornaram mundialmente conhecidos, de modo que a repercussão da imagem do Autor não se insere  apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global.

A título de exemplo, refira-se que a facturação da Ré, para o ano de 2010, foi na ordem dos US 4 mil milhões (4 mil milhões de dólares americanos).

O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (por exemplo o jogo FIFA 18 vendeu 24 milhões de unidades em todo o mundo.

Mais especificamente, a imagem do jogador de futebol, actualmente, é manifestamente um produto, do qual se valem tais profissionais para associarem as suas imagens a outros produtos, daí o imenso interesse na exploração de tais “bens imateriais” pertencentes ao património individual de cada atleta.

Reconhecida fonte de rendimentos, a imagem de cada atleta (sobretudo a imagem do jogador de futebol, reconhecidamente valorizada em Portugal, pois trata-se do desporto mais divulgado e apreciado do país) deve ser cultivada e objeto de um zelo extremo, motivo  pelo qual muitos jogadores contratam assessores, visando o cuidado com a sua imagem, de  modo a evitar que notícias menos abonatórias ou que qualquer outro evento negativo seja divulgado no sentido de trazer qualquer mácula a tal bem imaterial e, como isso, depreciá-lo  para os fins dessa “associação” entre a imagem do atleta e outros produtos (contratos de publicidade). Enfim, a imagem, sobretudo a do atleta de futebol, passou a ser um bem consumível

O jogo eletrónico FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), através do qual o jogador (quem está a jogar jogo de vídeo e de ora em diante designado por consumidor e/ou utilizador) pode escolher o clube de futebol com que pretende disputar o jogo (por exemplo: pode escolher o ..., o ..., o ..., etc), tendo a possibilidade de disputar o jogo contra o próprio computador (o jogador joga “sozinho”) ou contra outro oponente, que, por sua vez, também escolhe um clube para esse  efeito (neste caso, haverá dois jogadores).

Além da identificação do clube escolhido pelo jogador, o FIFA permite ao utilizador/consumidor a possibilidade, como visto, de escolher o jogador de futebol e, para tanto, os jogadores são identificados pela sua imagem (reprodução praticamente perfeita do atleta) e nome.

Nota-se o grau de precisão da imagem utilizada pelo jogo FIFA, no tocante aos formatos dos corpos e rostos dos jogadores constantes dos documentos juntos.

Entre as imagens e nome utilizados pela Ré, nos jogos eletrónicos FIFA, FIFA MANAGER e FUT está a FOTOGRAFIA, a imagem e o nome do Autor.

Em relação ao jogo FIFA, a prova da utilização indevida da imagem, nome e demais características do Autor é patente. Veja-se:

Conforme se verifica abaixo, no jogo FIFA 2011, o Autor é plenamente identificado, porque o  jogo tem a imagem do Autor, o nome, a posição em que joga, peso, altura e idade, no jogo FIFA 2014, o Autor é plenamente identificado, porque o jogo tem a FOTOGRAFIA, a imagem do Autor, o nome, a posição em que joga, nome do  clube, peso, altura e idade.

No jogo FIFA 2015, o Autor também é plenamente identificado, porque o jogo tem a FOTOGRAFIA, a imagem do Autor, o nome, a idade, a altura, o peso e a posição em que joga, nota-se ainda, que a semelhança física, nas imagens de campo, fica cada vez mais realista nos jogos em questão

Essa identificação ocorre até mesmo quando o jogador está “a jogar” como se percebe das imagens (jogos FIFA 2012 e FIFA 2014)

O jogo eletrónico FIFA MANAGER, por sua vez, foi desenvolvido nos mesmos moldes, porém o utilizador desempenha o papel de treinador e dirigente do Clube, podendo classificar os atletas, comprar e vendê-los, transferi-los por empréstimo, gerir as finanças do clube, etc.

Também em relação ao jogo FIFA MANAGER, pelo menos na versão de 2012, mostra-se provada a utilização indevida da imagem e do nome do Autor.

Veja-se que, no caso deste jogo FIFA MANAGER, a Ré é de uma minúcia extrema quanto às características do atleta, identificando-o pela imagem e nome, bem como elencando inúmeras outras características próprias do Autor, como se comprova, nas diversas versões.

Também, em relação ao jogo FIFA MANAGER, pelo menos na versão de 2012, está amplamente provada a utilização indevida da imagem, nome e demais características do Autor.

Portanto, os jogos FIFA, FIFA MANAGER e FUT são três jogos bem diferentes e autónomos, com a identificação irrefutável do Autor, com pormenores das suas habilidades, sendo certo que tal situação ocorre sem a autorização expressa do Autor, violando grosseiramente os seus direitos de personalidade.

Como se verifica acima, em tais jogos é nítido o intento da Ré em efectivamente individualizar o atleta. Importa salientar que, cada exemplar dos lançamentos dos jogos de vídeo da série FIFA, versão CD, suporte físico, é vendido, em Portugal, por um valor aproximadamente entre os  € 15,00 e os € 65,00.

E, é possível comprar, diretamente do site da Ré, os jogos para “PC”, modalidade que dispensa a compra do CD, suporte físico, a um preço de € 59,99 a edição “Standard Edition”, a € 79,99 a edição “Champions Edition” e a € 89,99 a “Ultimate Edition”, cfr. doc. 13.

A utilização indevida da imagem, nome e apelido desportivo do Autor ocorre, pelo menos, desde 28 de Setembro de 2010 (mês de lançamento do jogo de vídeo FIFA 2011) até aos dias de hoje.

Não podendo deixar de se salientar, de igual modo, que a utilização da imagem, nome, apelidos desportivos e demais dados dos atletas que actuam no futebol português, funciona  como um impulsionador de vendas dos jogos da Ré, pois é pacífico tratar-se do desporto  mais popular em Portugal, sendo que o consumidor dos produtos da Ré acaba por comprar  tais produtos para poder jogar com o clube do seu coração, “incorporando” o atleta da sua preferência, isto é, a utilização da imagem e nome dos atletas está intrinsecamente ligada  à devoção do consumidor à imagem dos atletas do seu clube, pelo que tal utilização é um  forte factor de crescimento do lucro.

O Autor demonstra, assim, o seu direito, decorrente do uso indevido pela Ré da sua imagem e do seu nome.

Não se pode fixar tal quantia indemnizatória sem se levar em conta dois factores: (i) a imagem do jogador de futebol é valiosa e não pode ser valorada como a do cidadão comum; (ii) deve ser considerado o número de aparições do Autor nos jogos comercializados pela Ré.

Realmente, em cada jogo acima identificado, a Ré aproveitou-se ilicitamente da imagem e demais atributos da personalidade do Autor, facturando e tendo avultadíssimos lucros, sendo certo que nosso ordenamento repudia, também, o enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 473.º do Código Civil.

Não se pretende comparar os diferentes atletas em diferentes processos, mas a valoração da indemnização deve levar em consideração o justo ressarcimento pela ilegalidade cometida, o poderio económico da Ré que utilizou irregularmente a imagem do Autor para auferir lucros, assim como, a necessidade de valor adequado para que a punição tenha um efeito pedagógico e seja um desincentivo para a não repetição dessa conduta ilícita.

Dessa forma, para a fixação adequada e justa do valor indemnizatório, o Autor entende que, devem ser considerados os seguintes critérios:

A imagem de um jogador de futebol, pessoa pública, não pode ser valorada da mesma forma que a imagem de uma pessoa não pública, porque os jogadores de futebol, em Portugal e no mundo, valem-se de tal bem imaterial como verdadeiro produto e o mercado atribui um valor a tal bem, sob pena de se desrespeitar o princípio da igualdade, que determina que seja atribuído um tratamento igual a situações iguais, e desigual, para situações desiguais, na medida da desigualdade;

O Autor peticiona uma indemnização por uso indevido e abusivo de sua imagem e do seu nome sem autorização e sem qualquer contrapartida;

 A Ré é uma multinacional avaliada em biliões de dólares e a fixação de um valor irrisório a título de indemnização não respeitará o efeito sancionador do dano não patrimonial;

A indemnização deve ser fixada considerando o número de jogos nos quais a imagem e o nome do Autor foram utilizados (“aparições”), uma vez que a cada lançamento do respectivo jogo a Ré lucrou, a saber, pelo menos: 4 (quatro) aparições no jogo FIFA (anos 2011, 2012, 2014 e 2015), 1 (uma) aparição no jogo FIFA MANAGER (ano2012) e 2 (duas) aparições no jogo FUT (anos 2014 e 2015).

A Ré vale-se da imagem, do nome e demais características “pessoalíssimas” do Autor, de forma individualizada, completamente isolada de outros jogadores, conforme acima demonstrado.

         Pediu a condenação da Ré a pagar ao Autor:

a) A quantia global de € 121.892,58, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, sendo a quantia de € 84.000,00 (oitenta e quatro mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 37.892,58 (trinta e sete mil oitocentos e noventa e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais.

b) A quantia não inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 1.826,30 (mil oitocentos e vinte e seis euros e trinta cêntimos), tudo no total de € 6.826,30(seis mil oitocentos e vinte e seis euros e trinta cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.


1.2. - A Ré contestou, invocando, além do mais, a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses.

O Autor respondeu à excepção, pugnando pela sua improcedência.


1.3.- Por sentença de 23/02/2021, o tribunal julgou internacionalmente incompetentes tribunais portugueses e absolveu a Ré da instância.


1.4. O Autor recorreu de apelação e a Relação do Porto, por acórdão de 10/2/2022, confirmou a sentença.


1.5. O Autor interpôs recurso de revista, com as seguintes conclusões:

1) O acórdão recorrido incorre em manifesta violação das regras de competência internacional, mais concretamente, na violação das disposições firmadas nas alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

2) No que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da Ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

3) É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

4) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da Ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

5) Estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

6) Por isso, a tese sufragada no acórdão recorrido, apenas faria sentido, salvo o devido respeito, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte-americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela Ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

7) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

8) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a Ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

9) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de argumentação, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2005.

10) É este o contexto que nos encontramos, mas que o Tribunal a quo desconsidera totalmente, desvalorizando, de igual modo a protecção que a pessoa humana e a sua imagem merecem no ciberespaço.

11) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.

12) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no acórdão recorrido - a sua divulgação e exploração comercial não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.

13) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

14) O centro de interesses do Autor é em Portugal, pelo que estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção. E, estando em causa a violação, pela Ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. que não se verificam quaisquer afinidades culturais, linguísticas, nem qualquer ligação do Autor àquele país.

15) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

16) O acórdão em crise violou o disposto nos artigos 62.º, alíneas a), b) e c), e 71.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º, 72.º e 79.º do Código Civil.


1.6.- A Ré contra-alegou preconizando a improcedência da revista, concluindo, em síntese:

A Ré tem sede nos Estados Unidos da América (e não num Estado-Membro da União Europeia), não lhe podendo ser aplicados os normativos europeus.

De igual modo, são inaplicáveis aos presentes autos as considerações e princípios desenvolvidos pela jurisprudência europeia, destinados a interpretar os conceitos dos regulamentos europeus em matéria de competência dos tribunais:

Por outro lado, a aplicação analógica de jurisprudência europeia redundaria na efetiva aplicação de direito europeu, em contravenção das disposições nacionais e europeias.

Acresce que não se identifica qualquer lacuna na regulamentação nacional que careça de “aplicação analógica” de jurisprudência europeia.

Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA e FIFA MANAGER, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros.

Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo Autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.

O facto ilícito imputado à Ré não consiste na venda de jogos em Portugal, mas sim na produção dos mesmos que, reconhecidamente, ocorre no estrangeiro. É o próprio autor quem declara, no já identificado art.º 2.º da petição inicial, que a Ré não tem atividade em Portugal e, quanto à comercialização dos jogos, a ré apenas se dedica aos mercados dos EUA, Canadá e Japão. O que significa que a Ré não pratica qualquer ato lícito ou ilícito em Portugal e, nessa medida, mesmo em abstrato, o lugar do alegado facto ilícito não ocorre em Portugal.

Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC – critério da causalidade –, impunha-se ao autor identificar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país. No entanto, nem os factos alegados na petição inicial, nem os documentos juntos são aptos para tal.

Quanto ao facto ilícito atribuível à Ré, o mesmo ocorre – centrados na tese do autor – nos Estados Unidos da América, não bastando, neste contexto, sustentar que foram alegados factos praticados em território nacional com base na afirmação que os jogos FIFA são vendidos em todo o mundo, incluindo Portugal, ainda que por terceiros.

De igual modo, não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo Autor, tampouco em território nacional.

Na tese do Autor, vertida na petição inicial, se o dano equivale ao facto ilícito, então o dano ocorreu no local da produção dos jogos.

Nenhum dos factos alegados permitindo, autonomamente, assacar à Ré a prática de qualquer ato em Portugal gerador de responsabilidade civil. Trata-se de factos ou conclusões sem conexão com o território nacional e muito menos em termos relevantes, para permitir que os nossos tribunais avoquem a competência internacional para este pleito.

A comercialização plurilocalizada dos jogos e, na Europa, por entidades que não a ré, não pode ser tida como um fator distintivo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.

Acresce que para que se estabeleça a competência internacional dos tribunais portugueses é necessário que os factos materiais localizados em Portugal apresentem uma conexão relevante com o ordenamento nacional., o que manifestamente não se verifica neste pleito, já que a comercialização dos jogos FIFA, a nível mundial, revela ligação identicamente ténue com todos esses territórios e, nessa medida, não assume particular conexão que justifique a atribuição de competência internacional a Portugal.

Na verdade, a consideração da venda, por terceiros, como fator de conexão geraria uma situação de conflito positivo de competência internacional, já que qualquer tribunal do mundo, considerar-se-ia competente para esta lide, hipótese que as normas de competência internacional visam evitar.

A alegação do Autor, posterior à petição inicial, acerca da ocorrência de danos globalmente e, por isso, também no seu domicílio, apelando aos conceitos de centro de interesses, boa administração da justiça e previsibilidade das normas de competência, não permite colmatar a falta de invocação de quaisquer danos em Portugal.

Quanto à alínea c) do art.º 62.º do CPC – critério da necessidade – o Autor não invocou quaisquer razões objetivas que evidenciem uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.



II – FUNDAMENTAÇÃO



2.1. – O objecto da revista

A questão submetida a recurso consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção instaurada pelo Autor contra a Ré e, por conseguinte, se ocorre ou não a excepção dilatória da incompetência internacional.


2.2.- A (in)competência internacional dos tribunais portugueses

Problematiza-se no recurso a competência internacional do tribunal para dirimir o litígio que opõe o Autor à Ré, quanto a saber se é internacionalmente competente o tribunal dos Estados Unidos da América ( Estado da Califórnia ) ( tese  da Ré e das instâncias ) ou o tribunal português ( tese do recorrente ).

A resolução do problema terá que ser encontrada, não pelas regras de conexão do direito internacional (por inexistir instrumento internacional, para o efeito), mas pelas regras de conexão estabelecidas pelo direito interno, ou seja, os arts.62 e 63 do CPC, por força do art.37 nº2 da LOSJ ( “ A lei de processo fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais” ).

Também o Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012 dispõe no art.6º que não tendo o demandado domicílio num dos Estados Membros ( no caso  a Ré tem a sede nos EUA ) que a competência dos tribunais dos Estados Membros é a definida pelas leis internas destes.

Importa sublinhar que o Supremo Tribunal de Justiça já tomou recentemente posição em situações idênticas ( acções propostas por jogadores de futebol profissional portugueses contra a sociedade Ré ) através dos acórdãos de 24/5/2022 ( proc nº 3853/20), relator João Cura Mariano, de 7/6/2022 ( proc nº 4157/20), relator Aguiar Pereira, de 7/6/2022 ( proc nº 24974/19), relator Fernando Baptista de Oliveira, de 23/6/2022 ( proc nº 3239/20), Relatora Maria da Graça Trigo, disponíveis em www dgsi.pt, a cuja fundamentação se adere.

O Supremo Tribunal concluiu uniformemente nestes acórdãos que:

“São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo”.


O juízo de aferição da competência internacional legal e, portanto, dos factores de conexão, faz-se – como é sabido - a partir da alegação do Autor na petição inicial, logo independentemente do mérito ou até das vicissitudes processuais que ela possa conter.

Não sendo aqui aplicável o art.63 do CPC, vejamos os critérios previstos no art.62 CPC.

O art.62 CPC postula os factores de atribuição da competência internacional, qualificados pela designação de “critério da coincidência” ( alínea a)), “critério da causalidade”( alínea b)), e “critério da necessidade”.

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

“a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” ( critério da coincidência)

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram” ( critério da causalidade)

“c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real “(critério da necessidade ).

Como decorre da letra da lei e da sua razão de ser, também se entende sem reservas que cada um destes critérios são autónomos e não cumulativos.

Os critérios são justificados numa lógica de ponderação quanto à problemática da competência judiciária internacional a partir do “princípio de equilíbrio entre as partes” com base numa conexão razoável entre o litígio e o Estado do foro. Daqui resulta que a solução deve respeitar o direito fundamental de acesso à justiça, o princípio da protecção da parte mais fraca, e o princípio da eficácia e da boa administração da justiça


Para analisar cada um dos factores de conexão, importa, antes de mais, enquadrar a presente acção.

A pretensão do Autor radica na violação ilícita do direito de personalidade, concretamente no direito ao nome e à imagem, e ainda no enriquecimento sem causa (enriquecimento por intervenção).

Com efeito, alegou que a Ré, sem o seu consentimento, utilizou a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos jogos eletrónicos e vídeo jogos denominados FIFA.

O direito à imagem e ao nome são direitos fundamentais da pessoa, com protecção Constitucional ( art.26 nº1 CRP) e civil ( art.s 70 e 79 nº1 CC).

Não obstante a individualização de situações particulares do direito de personalidade, tal não implica uma tutela fragmentada, pois a personalidade é una, e o art.70 CC prevê uma cláusula geral., ou seja, os direitos de personalidade especiais estão enraizados no direito geral de personalidade, enquanto “direito- matriz”, “pois os “objectos” deles são antes a projecção do objecto verdadeiro desta tutela jurídica que é a personalidade no seu todo” ( ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pá.206), o que equivale a dizer que  “a personalidade “física ou moral” do “individuo” humano tutelada pelo artigo 70 do Código Civil está considerada globalmente e é abrangida pelo seu carácter unitário, multifacetado, dinâmico e individualizado” (CAPELO DE SOUSA Direito Geral de Personalidade, pág.152).

Por outro lado, o art.70 do CC deve ser aplicado em função das condições específicas dos tempos actuais em que os direitos de personalidade, designadamente o direito à imagem e ao nome, são postos à prova neste “admirável mundo novo” e na chamada “sociedade de algoritmos”, em que proliferam as novas tecnologias, a realidade virtual, e a globalização.

O direito de personalidade especial ao nome ( arts.72 a 74 CC), porque o nome exprime determinada identidade,  abarca a faculdade de identificar os indivíduos dos demais ( identidade própria) e de que nas relações sociais o atribuam ao seu titular, que o pode defender contra a utilização indevida por terceiro, nomeadamente para fins comerciais.

Por sua vez, o direito à imagem não é hoje concebido apenas como a representação gráfica da imagem – retrato, mas sobretudo como entidade colimada à identidade pessoal, logo uma dimensão da personalidade.

Note-se que a dimensão económica da imagem pessoal é actualmente uma realidade sobretudo em certas profissões, como as de futebolistas profissionais.

À responsabilidade civil por ofensas à personalidade física ou moral (art. 70 nº 1 e 2, 1ª parte) são aplicáveis, em termos gerais, os arts.483 e segs. do CC.

São pressupostos do direito da responsabilidade civil extracontratual ou delitual, o facto ilícito ligado ao agente por nexo de imputação subjectiva ( a culpa ) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto. Incumbe ao autor, como facto constitutivo do seu direito ( art.342 nº1 do CC) a alegação e prova destes pressupostos.

Acresce que o Autor baseia ainda o seu pedido, máxime quanto aos danos patrimoniais, no enriquecimento sem causa ( art.473 CC ).

Sendo este, em traços largos, o enquadramento jurídico da acção, tal como é configurada pelo Autor, vejamos os critérios de conexão legal.

Considerando a alegação do Autor, o facto voluntário ( produção de jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos com o nome, a imagem  e características do Autor) foi feita pela Ré ( empresa líder global em entretenimento digital interactivo) nos Estados Unidos ( Califórnia ), local do evento causal.

Por seu turno, a ilicitude consubstancia-se na violação do direito ao nome, à imagem, pois a Ré utilizou a imagem individualizada do Autor, o seu nome, as suas características pessoais e profissionais nos jogos denominados FIFA, sem o seu consentimento.

Na verdade, o Autor alegou que jamais concedeu autorização para ser incluído nos jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, nem conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome para tal, que nos jogos em que aparece e que a sua imagem individualizada “é utilizada pela Ré a nível global”, pelo menos desde 28/9/2010 ( data de lançamento do jogo vídeo FIFA 2011)

Nas situações de responsabilidade civil extracontratual o lugar do facto ilícito causal pode não coincidir com lugar do dano, sobretudo em casos plurilocalizados com diferentes jurisdições. Uma vez que os direitos de personalidade são bens incorpóreos, a localização geográfica do dano nem sempre é fácil de determinar, dada a ubiquidade do fenómeno digital.

É neste contexto que se convoca o direito comunitário, realçando-se o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22de Dezembro 2000, conhecido por Regulamento Bruxelas I, e posteriormente substituído pelo Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012), actualmente em vigor, em matéria de competência internacional, tanto fundada na responsabilidade civil extracontratual, como no enriquecimento sem causa

A jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o conceito de “matéria extracontratual”, na acepção do art.7 nº2 do Regulamento nº 1215/2012, abrange qualquer ação destinada a pôr em causa a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionada com a “matéria contratual”, na definição do art. 7.º, ponto 1, alínea a) ( cf. por ex., Acórdãos de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis, 189/87, EU:C:1988:459, n.º 18, e de 12 de Setembro de 2018, Löber, C-304/17, EU:C:2018:701, n.° 19).

Note-se que o Ac TJUE de 28/7/2016 ( proc C-102/2015 ) afastou a aplicação do Regulamento (CE) nº 44/2001 ao enriquecimento em causa, mas porque se tratava de uma relação administrativa e por isso mesmo excluída.

O Tribunal de Justiça tem interpretado autonomamente o segmento “lugar onde ocorreu o facto danoso”, constante do n.º 2 do art. 7.º, do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e no sentido de abranger tanto o local onde se produz o evento causal, como o local onde se materializa o dano. E se não houver coincidência, o lesado pode escolher entre a jurisdição de cada um deles.

A propósito da difamação por meio da imprensa o então TJCE no caso Fiona Shevill c.Presse S.A., de 7/3/1995, Rec 1995-I, pág.145) acolheu a “teoria da ubiquidade” em que o país de origem seria competente para decidir o litígio , reconhecendo-se também competência aos tribunais dos outros Estados quanto aos danos aí sofridos pelo autor da acção. Não obstante a fragmentação da jurisdição, a justificação dada ancora-se no princípio da boa administração da justiça.

No acórdão de 25/10/2011 o TJUE no caso (eDate Advertising c. X e Olivier e Robert Martinez c. MGN), sobre a interpretação do art. 5ºnº3 do Regulamento 44/2001, sobre competência judiciária (Bruxelas I) e do art. 3ºnº1- 2 da Diretiva 2000/31 sobre comércio eletrónico, justificou-se  a necessidade de adaptar os referidos critérios de conexão, no sentido de que a vítima de um delito de direitos de personalidade cometido através da Internet possa intentar, em função do lugar da materialização do dano causado na União Europeia pela referida violação, uma acção a reclamar a totalidade dos danos, porque  o tribunal onde o lesado tem o centro dos seus interesses está em melhores condições para apreciar dos efeitos danosos da violação dos direitos de personalidade, impondo-se a conexão pelo princípio da boa administração da justiça.

Muito embora o centro de interesses corresponda, por regra, ao lugar da residência habitual, a sua determinação casuística pode resultar de outros indícios, como, por exemplo, o exercício de uma atividade profissional, em termos de estabelecimento de um nexo particularmente estreito com o Estado Membro.

A chamada à colação do direito comunitário e da jurisprudência do TJUE, não se destina à sua directa e imediata aplicação ao caso, mas como elementos indispensáveis à plena e actual compreensão dos factores de conexão estabelecidos no art.62 CPC, designadamente da alínea b). Aliás, foi esta a metodologia seguida nos acórdãos do Supremo, já citados.

Importa acentuar que o direito comunitário faz parte do direito interno, logo a interpretação sistemática e actualista da norma do art.62 CPC deve ser feita, também por razões sistemáticas, a partir do direito comunitário, da orientação jurisprudencial do TJUE, e do princípio da interpretação conforme.

De resto, fala-se hoje, cada vez mais, da “comunitarização” do Direito Internacional Privado e “a jurisprudência da União viria a condicionar a aplicação das regras de direito internacional privado dos Estados Membros em domínios não abrangidos pela competência da União e, portanto, limitar também por essa forma, a aplicação dos sistemas de direito internacional privado da natureza estadual que haviam sido criados por aqueles “ ( MOURA RAMOS  Estudos Direito Internacional Privado da União Europeia, pág. 66 e 67 ).

Por conseguinte, e como  está amplamente justificado nos acórdãos do Supremo já referenciados , o critério jurisprudencial seguido pelo TJUE para a aplicação da jurisdição é do centro da vida do lesado, onde tem o seu “centro de interesses”, pois “é nele que existe a relação social mais premente com os outros ( ambiente social) e onde naturalmente a repercussão negativa da agressão à personalidade se faz sentir, porque é precisamente nele que se localiza o centro principal das relações sociais do lesado”.

No caso do direito à imagem, na concepção abrangente, a lesão não se dá apenas com a produção do jogos, mas também com a distribuição, e foi alegado que, pelo menos desde 28/9/2010,  a imagem do Autor “é utilizada pela Ré a nível global”, ou seja, não obstante o Autor alegar que a comercialização era efectuada por empresas subsidiárias da Ré, a verdade é que imputou a divulgação apenas à Ré, pelo que, segundo a alegação da petição inicial ( e é isto que releva, e não o mérito)  a  Ré é responsável pela produção, distribuição por tais jogos FIFA.

Por conseguinte, tendo sido alegado que a Ré utiliza ilicitamente a imagem do Autor a nível global, também em Portugal ocorre a lesão do bem jurídico, a violação dos direitos de personalidade do Autor.

Além disso, pode afirmar-se que é também em Portugal que se consubstancia o dano, pois é aqui que o Autor tem o seu “centro de interesses”, na acepção definida.

Na verdade, o Autor, indicou a sua residência em ..., Portugal, é um jogador de futebol português, mantém já uma longa carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses e estrangeiros, joga actualmente  na ..., ao serviço do Clube ..., actuou, em mais de 100 partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de extremo ..., como é conhecido nacionalmente, tendo actuado, principalmente, no ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Portugal), ... (Inglaterra), entre outros, e foi internacional pelas Selecções Portuguesas de Futebol Sub 17, Sub 18, Sub 19, Sub 20 e Sub 21, por 46 vezes.

Nesta medida, considerando que os clubes onde jogou maioritariamente em Portugal, as internacionalizações ao serviço da selecção portuguesa, o seu centro de interesses da repercussão do seu nome e imagem enquanto futebolista profissional situa-se em Portugal, onde sofreu as desvantagens da lesão aos direitos de personalidade.

Contrariamente à objecção da Ré, o Autor alegou danos patrimoniais e não patrimoniais.

Os danos patrimoniais correspondem ao aproveitamento económico da personalidade do Autor e a lesão verifica-se no local onde o bem da personalidade é explorado economicamente. Como acentua ELSA OLIVEIRA -“ A lesão do bem de personalidade , na sua vertente patrimonial, ocorre no lugar onde se sofre a agressão, onde o bem é utilizado  sem autorização, e o dano verifica-se no lugar onde o titular do direito que tem por objecto o bem em causa, devido a essa actuação, sofre uma perda ou uma desvantagem” (Da Responsabilidade Civil Extracontratual Por violação dos Direitos de Personalidade em Direito Internacional Privado, 2011, pág. 408 ).

O Autor alegou que cada exemplar de lançamento dos jogos de vídeo da série FIFA versão CD, suporte físico, é vendido em Portugal por um valor entre € 15,00 a e 65,00, que é possível comprar directamente do site da Ré os jogos para “PC”, a um pelo entre € 59,99 a € 89,99, e ainda que a Ré vendeu milhões de jogos com o seus nome e imagem. Alegou ainda que a Ré beneficia de um enriquecimento ilegítimo, pois o valor de € 12.000,00 por lançamento do jogo equivale ao pagamento de € 1.000,00 por mês e por jogo, o que é absolutamente razoável a título de pagamento de direito de imagem para um jogador com a notoriedade do Autor, dizendo ser até escasso por se tratar da remuneração pelo uso da imagem de um jogador de futebol profissional e internacional ( pelo seu país) em Portugal.

O dano à personalidade do Autor, no tocante à imagem, nome e dados pessoais, na sua vertente patrimonial, corresponde ao valor do uso que o detentor ( a Ré )  dela fez ( arts.483, 562 e 566 do CC ), ou seja à sua exploração económica.

Por outro lado, o Autor fundamentou o dano patrimonial no enriquecimento indevido por parte da Ré, com a exploração económica, não autorizada, da sua imagem.

Ao lado da responsabilidade civil delitual tem-se admitido o concurso do instituto do enriquecimento sem causa, na modalidade de enriquecimento por intervenção. Nestes casos (de intervenção ilegítima), mesmo que a pessoa afectada nenhum proveito tire dos bens, sempre o intrometido estará obrigado a indemnizá-la, restituindo-lhe o valor do uso de que ilegitimamente beneficiou.

Argumenta-se, para o efeito, que segundo a teoria da destinação, afectação ou ordenação que caracteriza determinados direitos, como os direitos absolutos, tudo quanto diga respeito à rentabilização e ao destino dos bens cabe, em princípio ao respectivo proprietário, de maneira que se um terceiro se intromete no uso do bem, sem consentimento daquele, ficará obrigado a indemnizá-lo, restituindo-lhe o valor da exploração, ainda que o proprietário não tenha tirado qualquer proveito desses bens.

Deste modo, está em causa a aplicação do enriquecimento por intervenção no tocante às lesões dos direitos de personalidade, que, tendo em conta a dimensão económica, é hoje admitida pela jurisprudência alemã, pelo que “não há, assim, qualquer obstáculo em que a intervenção em direitos de personalidade seja abrangida na cláusula geral do art.473 nº1 do Código Civil”. E mesmo nas situações de pessoas notórias, impõe-se fazer uma interpretação restritiva do art.79 nº2 CC e “reconhecer a aplicação do enriquecimento por intervenção em todas as hipóteses em que segundo as concepções da sociedade seja comum pagar uma contrapartida comercial pela utilização da imagem” (MENEZES LEITÃO, O Enriquecimento sem causa no Direito Civil, pág.709 e segs. ).

Enquanto na responsabilidade civil releva a perda ou diminuição verificada no património do lesado, já no enriquecimento por intervenção a indemnização contende com o enriquecimento injustificado do interventor, devendo corresponder à situação hipotética do património do enriquecido.

Portanto, sendo alegado a sua imagem individualizada “é utilizada pela Ré a nível global”, pelo menos desde 28/9/2010 ( data de lançamento do jogo vídeo FIFA 2011) e dado que a repercussão profissional ( da imagem enquanto futebolista ) ocorre sobretudo em Portugal, onde foi por 46 vezes jogador da selecção, e os valores alegados para a venda em Portugal dos jogos, também por esta via, a do enriquecimento por intervenção, se dá a conexão com os danos.

Neste contexto, verifica-se que a acção assume relevante e suficiente conexão com Portugal, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, por força do art.62 alínea b) CPC.


2.3. – Síntese conclusiva


1. A norma do art.62 do CPC que estabelece os critérios de conexão para a competência internacional legal dos tribunais portugueses deve ser interpretada de forma sistemática e actualista a partir do direito comunitário e da jurisprudência do TJUE e do princípio da interpretação conforme, nomeadamente quando esteja em causa situações plurilocalizadas do dano, devido, por exemplo, à ubiquidade do fenómeno digital.


2. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que o autor, um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos pela demandada  nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo, com base na responsabilidade civil extracontratual, por violação dos direitos de personalidade, e no enriquecimento sem causa ( enriquecimento por intervenção no direito de personalidade ao nome e à imagem ).


3. Os danos por violação dos direitos de personalidade, no tocante à imagem e ao nome, na sua vertente patrimonial, podem der ressarcidos em sede de responsabilidade civil extracontratual ( arts. 70 e 483 CC), como no âmbito do enriquecimento sem causa (art.473 CC), na modalidade de enriquecimento por intervenção.

4. Enquanto na responsabilidade civil releva a perda ou diminuição verificada no património do lesado, já no enriquecimento por intervenção a indemnização contende com o enriquecimento injustificado do interventor, devendo corresponder à situação hipotética do património do enriquecido.



III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido, julgando-se improcedente a excepção dilatória da incompetência internacional.

2)


Condenar a Ré nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Setembro de 2022.


Os Juízes Conselheiros

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Manuel Aguiar Pereira