Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9229/14.3T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
INVALIDADE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
OBRAS
ALVARÁ
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / BENFEITORIAS – DIREITO DAS COISAS / POSSE / EFEITOS DA POSSE / BENFEITORIAS NECESSÁRIAS E ÚTEIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 216.º, N.º 3 E 1273.º, N.º 1.
Sumário :

I. Não existindo entre as partes um contrato de arrendamento válido e eficaz, não podem aplicar-se as normas que regulam a realização de obras pelo arrendatário.

II. Não se consideram benfeitorias necessárias, nos termos definidos pelo art.216º, n.3, 1ª parte do CC, as obras determinadas por entidade administrativa como condição para emissão de alvará sanitário do estabelecimento de bebidas instalado no imóvel (que aí funcionou durante mais de 10 anos sem essas obras).

III. As obras necessárias ao funcionamento de um estabelecimento comercial não têm de ser qualificadas como benfeitorias necessárias do imóvel (para efeitos da indemnização prevista no art.1273º, n.1, 1ª parte).

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA e BB instauraram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum de declaração, contra CC, peticionando a condenação da ré a pagar aos autores a quantia de € 36.481,26 (trinta e seis mil, quatrocentos e oitenta e um euros e vinte e seis cêntimos), a título de enriquecimento sem causa, imediatamente, ou se assim não se entender, no momento em que o autor deixe de ter a posse do imóvel dos autos; quantia esta acrescida de juros moratórios, à taxa legal civil, desde a data da citação da ré e até efetivo e integral pagamento. Alegaram os autores, para tanto e em síntese, os factos constantes da petição inicial.

2. A ré não contestou, vindo a falecer no decurso do prazo concedido para contestar.

Por sentença transitada em julgado, DD foi declarada habilitada como única sucessora mortis causa da ré.

A habilitada DD não contestou a ação.

3. Foram considerados confessados os factos alegados pelos autores na petição inicial para cuja prova não se exigia documento escrito, ao abrigo do disposto nos artigos 567°, nº 1 e 568°, alínea d) do Código de Processo Civil.

4. Foi proferida decisão, que julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

5. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

            A ré interpôs recurso subordinado.

6. A Relação de Lisboa, em 30.11.2017, decidiu como se transcreve: «julga-se a apelação parcialmente procedente, condenando-se a Ré DD a pagar aos Autores a quantia de € 35.514,00 (trinta e cinco mil, quinhentos e catorze euros), com acréscimo de juros de mora à taxa legal contados desde data da citação e até efectivo pagamento.

Julga-se improcedente o recurso subordinado da Ré.»

7. Não se conformando com o acórdão da Relação de Lisboa, a ré/apelada requereu (a fls.436 dos autos) a reforma do acórdão, ao abrigo do art.616º, n.2, al. b) do CPC (ex vi do art.666º) e, para o caso de a reforma não ser atendida, interpôs recurso de revista, em cujas alegações apresentaram as seguintes conclusões:

« I - Esteve mal o Tribunal a quo ao decidir a questão nos termos em que o fez.

II - Após devida análise ao processo e a todos os elementos que dele fazem parte decidiu manter a matéria de facto assente, nomeadamente a al. 5).
III - Toda a análise, fundamentação e conotações levadas a cabo pelo respeitável Tribunal a quo padecem de um grave erro na apreciação da prova que se encontra junto aos autos, de outra forma teria procedido à alteração da matéria de facto assente.
IV - A vexata quaestio reside em saber se as obras realizadas pelo Autor, como necessidade de adaptar o locado para obtenção de alvará afim de o explorar enquanto estabelecimento de café, devem ser consideradas como benfeitorias necessárias ou como benfeitorias úteis, com as legais consequências provenientes dos respectivos regimes.

V- Entendeu o respeitável Tribunal a quo que as benfeitorias necessárias, ou seja, aquelas que "têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa", não se reportam "exclusivamente a condições materiais. Por exemplo, quando se fala de "perda" pensamos que o preceito tem em vista não só o desaparecimento físico da coisa, mas também das condições essenciais do respectivo gozo.
VI - O factor determinante para o Tribunal a quo considerar as obras em crise nos presentes autos como benfeitorias necessárias, em detrimento das benfeitorias úteis, foi o facto das mesmas terem sido causa directa do cancelamento do alvará sanitário n.198, sem o qual o Autor não poderia usufruir do gozo específico a que pretendia destinar o locado, neste caso à actividade de café.
VII - Todavia, não podemos olvidar que para que o Autor pudesse usufruir do gozo a que as partes contratualmente destinaram o locado as obras explicitamente indicadas nos autos teriam obrigatoriamente de ser realizadas!

VIII   - Mais, o alvará sanitário n.198 teria de ser cancelado e o Autor teria de solicitar
novo alvará sanitário para actividade diversa do n. 198.

IX   - Caso a documentação junta aos autos pelo Autor tivesse sido convenientemente analisada, facilmente se alcançaria que no rés-do-chão direito do prédio urbano sito no n. 22 da ... (o locado descrito nos autos) nunca funcionou qualquer estabelecimento de café.

X - O documento n. 4 junto pelo Autor com a petição inicial, refere: "Pedido de caducidade do Alvará Sanitário n. … para a actividade de Taberna.

 XI - O documento n.5 junto pelo Autor com a petição inicial, refere que: "... Titular do
proc.
. 3410 de licenciamento de utilização para estabelecimento de Taberna".

XII - O que existia para o locado em questão era um alvará sanitário para um estabelecimento de taberna e não um para café, ao contrário do que erradamente foi retirado da prova documental.

XIII- Caso o respeitável Tribunal a quo tivesse interpretado convenientemente os documentos juntos aos autos, outra não poderia ser a conclusão que, para que o Autor pudesse usufruir convenientemente do gozo do locado como café, teria de solicitar novo alvará à Câmara Municipal de ... e realizar as obras devidamente discriminadas nos autos, sob pena do pedido de licenciamento camarário lhe ser recusado.

XIV- O cancelamento do alvará sanitário n.198 não é causa da necessidade de realização das obras devidamente discriminadas nos autos.

XV- Andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu porquanto se tivesse partido de uma correcta interpretação dos documentos juntos aos autos a fundamentação do acórdão teria, obrigatoriamente, de ser diferente e, consequentemente, a decisão também o seria.

XVI- O que leva o Tribunal a quo a considerar as obras realizadas pelo Autor como benfeitorias necessárias é o facto de já existir um alvará para café que, não sendo cancelado, possibilitava ao Autor usufruir do locado para o fim a que foi pelas partes destinado, sem necessidade de realizar qualquer obra necessária a "reunir as condições materiais de funcionamento".

XVII - Existe nos autos documentação cabal e suficiente que desmorona a teoria erigida pelo douto Tribunal a quo.

XVIII - Consequentemente, deve o acórdão ora em crise ser reformado, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n. 2 do art. 616.° do CPC, aplicável ex vi do art. 666.° do CPC e substituído por outro cuja decisão, sendo diversa da então proferida, determine que as obras realizadas pelos Autores integram o conceito de benfeitorias úteis e, em consequência, absolva a Ré do pedido.

XIX - O douto acórdão do Tribunal da Relação, alterando a decisão de 1a instância, merece reparo porquanto, atento o disposto no artigo 674.°, n. 1, al. a) e n. 3, do CPC, viola a lei substantiva por erro de interpretação ou de aplicação das normas aplicáveis, erro na apreciação das provas e na  fixação dos factos materiais da causa, que é fundamento para revista.

XX- Os factos provados determinantes, que levaram o Venerando Tribunal a quo a decidir que "as despesas tidas pelo Autor com as obras indicadas pela Câmara Municipal de ... integram o conceito de benfeitorias necessárias" foi a convicção da prévia existência de um estabelecimento de café e de um alvará sanitário para exploração de café.

XXI - Não se pode perder algo que não existe previamente!

XXII - Os factos materiais tidos por determinantes para realizar a especial aplicação da
norma em questão ao caso concreto padece de total suporte probatório

XXIII - Os factos que o respeitável Tribunal a quo entendeu por essenciais para a aplicação da norma importam, para sua fixação, a produção de determinado meio de prova e/ou que não tenha sido preterida a força probatória determinado meio de prova, o que não sucedeu!
XXIV - A prova de que determinado imóvel possui alvará para o exercício de determinada actividade apenas se poderá produzir por meio de documento emitido pela entidade competente para o licenciamento.

XXV- O documento n. 4 junto com a petição inicial, é emanado pela Câmara Municipal de ... e assinado pelo Vereador EE, ou seja, um documento autêntico.

XXVI - O respeitável Tribunal a quo deu como assente um facto para cuja prova a lei exige documento autêntico, quando, compulsados os autos, facilmente se alcança que o
documento autêntico junto aos autos prova exactamente o oposto.

XXVII -  Acresce que, existe nos autos documento que, per si, é suficiente para prova dos factos que dele constam e dos que objectivamente resultam da sua percepção directa, tendo o respeitável Tribunal a quo fixado matéria de facto diversa da que dele resulta.

XXVIII   - Há erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.

XXIX   - Tendo a prova sido devidamente apreciada e a matéria de facto devidamente fixada, de acordo com o que resulta da prova documental junta aos autos, outra não poderia ser a decisão do respeitável Tribunal a quo que considerar as referidas obras como integrantes do conceito de benfeitorias úteis, ou seja, aquelas "que não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor”, mantendo, assim, o entendimento perfilhado na sentença prolatada pelo Tribunal de 1ª Instância.

XXX - Mais se refira, há violação da lei substantiva, na modalidade de interpretação e aplicação da norma.

XXXI - O Tribunal a quo enveredou pela subsunção jurídica dos factos na figura das benfeitorias necessárias.

XXXII - Dispõe o art. 216.° do CC que: "1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. 2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias.

3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante".
XXXIII - O enquadramento tem relevância para efeitos do regime de ressarcimento pelas despesas suportadas com a realização das referidas obras.
XXXIV - A interpretação de normas não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
XXXV  - O art. 216.° do CC é claro quando refere "perda, destruição ou deterioração da coisa, aliás se o legislador tivesse querido contemplar no referido preceito o fim a que a coisa se destina, tê-lo-ia incluído, bastando para tanto, ai incluir, "... ou o fim a que a mesma se destina.", o que não fez!
XXXVI    - Tem sido unânime o entendimento que as benfeitorias necessárias têm por escopo evitar a degradação, o desaparecimento material da coisa.
XXXVII - Todas as obras que não tenham por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa mas que, realizadas, lhe aumentem o seu valor, devem ser consideradas benfeitorias úteis.
XXXVIII - Considerar as obras de adaptação de um locado ao exercício de uma qualquer actividade como benfeitorias necessárias - porquanto não têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa - é confundir os conceitos em causa e a desprover de qualquer sentido uma norma elaborada por um cauto legislador que previu, nela, a solução mais acertada para os possíveis conflitos.
XXXIX    - As obras realizadas pelos Autores e devidamente discriminadas nos autos, podem ser levantadas sem existir, sequer, risco de perda, destruição ou deterioração da coisa.
XL - As obras em crise não são benfeitorias necessárias mas sim úteis, uma vez que não têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa mas antes lhe aumentam o seu valor.
XLI - As obras realizadas pelos Autores no locado em questão não tiveram por finalidade evitar a perda, destruição ou deterioração do locado mas antes adaptá-lo ao exercício de determinada actividade.

XLII - Sendo obras de adaptação, ainda assim, em simultâneo, não tiveram por finalidade evitar a perda, destruição ou deterioração do locado, apenas aumentaram o seu valor.

XLII - Ao julgar como julgou, o respeitável Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação da norma aplicável.

XLIII - Face ao exposto, requer-se a revogação da decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que qualifique as obras realizadas pelos Autores como benfeitorias úteis, com as legais consequências.

Nestes termos, bem como nos demais de Direito que V.a Exªs doutamente suprirão, deverá o douto acórdão ora recorrido:

     A) Ser reformado, por constarem dos autos documentos que, só per si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida. Caso assim não se entenda, o que apenas se concede por mera cautela de patrocínio,

    B) Ser concedido provimento à presente revista, devendo, em consequência, o douto acórdão do Tribunal a quo ser revogado e substituído por um outro que qualifique as obras realizadas pelos Autores como benfeitorias úteis, com as legais consequências decorrentes do regime próprio das benfeitorias úteis, absolvendo, assim, a ora Recorrente do pedido.

Assim fazendo V. Exas. a tão costumada e almejada justiça!»

8. Os autores/apelantes apresentaram contra-alegações, defendendo, em síntese, a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

9. Por decisão da conferência, de 10.09.2018, foi indeferido o pedido da reforma do acórdão por se entender que não existia fundamento para tal, e foi admitida a subida do recurso de revista.

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. O objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, a questão essencial em análise é a de saber:

- Se as obras realizadas pelos autores/recorridos devem ser qualificadas como benfeitorias necessárias ou como benfeitorias úteis, com as inerentes consequências legais. 

2. A factualidade provada

É a seguinte a factualidade que se deu como provada pela 1ª instância (tendo presente que a ré não contestou a ação):

«1) O autor é comerciante em nome individual.

2) A ré CC faleceu no dia … de … de 20…, no estado de viúva de FF

3) Consta de caderneta predial urbana do Serviço de Finanças de ... que a ré CC é titular do prédio urbano para habitação e comércio, sito no n. … da ..., ..., anterior nº … da Rua Professor …, ..., freguesia de ..., composto por rés-do-chão, com uma loja com duas divisões e sanitários, rés-do-chão esquerdo, com uma garagem ou arrecadação e logradouro, e primeiro andar, com dois quartos, sala comum, cozinha e casa de banho, inscrito na matriz da referida freguesia pelo artigo ….

4) Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., por Ap. … de 2015/03/12, a aquisição, por sucessão hereditária de CC, a favor de DD, do prédio urbano, situado no …, lote …, da União das Freguesias de ..., ... e ..., composto por edifício de rés-do-chão e primeiro andar – estabelecimento e habitação e anexo para garagem – inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob o nº ….

5) No dia 12 de agosto de 1994, no rés-do-chão direito, correspondente a uma loja, do prédio referido em 3) funcionava um estabelecimento de café, explorado pela ré e pelo seu marido, FF, ao abrigo do alvará sanitário nº …, emitido a favor deste pela Câmara Municipal de ....

6) Em 12 de agosto de 1994, a ré e o seu marido, FF, firmaram com o autor um acordo, nos termos constantes do documento intitulado "CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA DO RECHEIO DE UM ESTABELECIMENTO DE CAFÉ", que se encontra junto aos autos, do qual consta, além do mais, o seguinte:

"ENTRE, FF e CC, casados entre si no regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua Professor …, nº …, andar, …, freguesia de ..., concelho de ..., proprietários de um estabelecimento de "CAFÉ", situado no rés-do-chão da sua residência, adiante designados por primeiros outorgantes, e AA, casado, residente na Rua …, nº …, …º andar, no já referido ..., adiante designado por segundo outorgante, pelo presente contrato-promessa acordam entre si o seguinte:

Os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo outorgante e ele promete comprar todo o recheio do estabelecimento de "CAFÉ" acima referido, compreendendo todos os móveis e utensílios, mercadorias e vasilhame, constantes da lista que se anexa e que fica a fazer parte integrante deste contrato-promessa, nas seguintes condições:

PRIMEIRO: O valor dos bens a transaccionar e que fazem parte integrante da referida lista é de Esc: 1.000.000$00 (um milhão de escudos).

SEGUNDO: O segundo outorgante, no acto da assinatura do presente contrato-promessa, pagará ao 1º outorgante Esc: 500.000$00 (quinhentos mil escudos), ficando o restante para liquidar em duas prestações iguais de Esc: 250.000$00 (duzentos e cinquenta mil escudos) cada, nos próximos três e seis meses, respectivamente.

TERCEIRO: Para as situações emergentes deste contrato-promessa fica, desde já, estipulado o foro da comarca de .... (..) ".

7) Aquando do descrito em 6), a ré e o seu marido, FF, acordaram ainda com o autor transmitir-lhe a clientela do estabelecimento de café referido em 5), bem como o alvará sanitário n.198, mediante o pagamento por parte deste de uma contrapartida pecuniária, no valor mensal de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), com a condição de posteriormente vir a ser formalizado por escrito o contrato de arrendamento e ser-lhe entregue o alvará sanitário n. ….

8) Aquando do descrito em 7), a ré exibiu ao autor o alvará sanitário n. … referido em 5).

9) Em 12 de agosto de 1994, os autores pagaram à ré e ao seu marido a quantia de € 5 000,00 (cinco mil euros) e a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de preço e de renda, respetivamente.

10) Em 12 de agosto de 1994, o autor começou a explorar o estabelecimento de café referido em 5).

11) Por diversas vezes, o autor solicitou à ré a formalização por escrito do contrato de arrendamento e a entrega do alvará sanitário nº … para proceder ao averbamento do seu nome na Câmara Municipal de ....

12) A ré foi sempre protelando a formalização por escrito do contrato de arrendamento e a entrega do alvará sanitário n. …, com as desculpas mais variadas

13) Em 1 de novembro de 1999, a ré e o seu marido, FF, firmaram com o autor um acordo, nos termos constantes do documento intitulado "CONTRATO-PROMESSA DE ARRENDAMENTO COMERCIAL", que se encontra junto aos autos, do qual consta, além do mais, o seguinte:

"Entre, FF e CC, casados entre si no regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua Professor ..., n. …, …º andar, ..., freguesia de ..., concelho de ..., proprietários adiante designados por Primeiros Outorgantes, e AA, casado, residente na Rua ..., n. …, …º andar, no já referido ..., adiante designado por segundo Outorgante,

Pelo presente contrato-promessa os primeiros outorgantes prometem arrendar e o segundo outorgante aceitar o arrendamento do estabelecimento de café acima referido nas seguintes condições:

PRIMEIRO: O arrendamento destina-se exclusivamente à actividade de "CAFÉ".

SEGUNDO: O estabelecimento arrendado não pode ser, em qualquer circunstância, objecto de trespasse cedência de exploração ou qualquer outra forma de sublocação, nem poderão ser efectuadas obras sem autorização do arrendatário;

Parágrafo Único: Ficam desde já autorizadas as obras iniciais necessárias à remodelação e modernização do estabelecimento, as quais ficarão a pertencer ao prédio.

TERCEIRO: O arrendamento só terá início quando o promitente inquilino obtiver aprovação do Instituto de Emprego e Formação Profissional para iniciar a actividade comercial e será celebrado por um ano, renovado por períodos iguais e sucessivos.

QUARTO: O valor da renda é de 52.326$00 (cinquenta e dois mil, trezentos e vinte e seis escudos) e fica sujeita aos aumentos anuais legais.

QUINTO: A renda é paga ao proprietário arrendatário ou algum por ele mandatado, no dia um do mês anterior ao que corresponde a renda. (..)".

14) O acordo referido em 13) era referente ao rés-do-chão direito, correspondente a uma loja, do prédio urbano sito no nº … da ..., ..., anterior nº … da Rua Professor ..., ..., na freguesia de ....

15) Em finais de 2008, o autor deslocou-se à Câmara Municipal de ..., tendo aí tomado conhecimento que, no dia 28 de Outubro de 1999, o marido da ré, FF solicitou a caducidade do alvará sanitário n. ….

16) Por despacho de EE, Vereador da Câmara Municipal de ..., datado de 10 de novembro de 1999, foi deferido o pedido de caducidade do alvará sanitário nº ….

17) O autor foi informado que, para legalizar o estabelecimento comercial, tinha que requerer uma autorização de funcionamento à Câmara Municipal de ..., com a apresentação de um projeto de arquitetura que obtivesse a aprovação camarária, com a consequente criação das seguintes divisões e instalações:

a) criação de duas instalações sanitárias para os utentes com separação de sexos;

b) criação de uma instalação sanitária para o pessoal;

c) criação de vestiário para o pessoal junto do acesso de serviço;

d) criação da despensa do dia em espaço autónomo, junto à zona de atendimento;

e) criação de copa contígua à zona de atendimento;

f) criação de zona de armazenagem;

g) instalação de frigoríficos na contiguidade da copa.

18) A execução do projeto de arquitetura referido em 17) incluía as seguintes obras:

a) levantamento de todo o chão e azulejo;

b) levantamento de paredes de tijolo de onze para as casas de banho;

c) instalação de água, esgotos e eletricidade e gás novos;

d) colocação de teto falso com isolamento a lã de rocha em toda a área;

e) assentamento de manta sonora no chão;

f) assentamento de todo o entulho de obra para o contentor;

g) colocação de azulejo e mosaico;

h) assentamento das loiças sanitárias;

i) pintura geral.

19) O autor solicitou verbalmente à ré que realizasse as obras referidas em 18).

20) A ré recusou realizar as obras referidas em 18).

21) Em 16 de julho de 2009, a Dr. GG, na qualidade de mandatária do autor, endereçou à ré uma carta registada, com aviso de receção, que se encontra junto aos autos, da qual consta, além do mais, o seguinte:

"Assunto: Realização de obras urgentes no estabelecimento silo na Rua Prof. ..., nº …, ...

Exm. a Senhora,

Estou devidamente mandatada pelo Exm. o Sr. AA, para a resolução do assunto referido em epígrafe. Como é do V. conhecimento, o meu constituinte é arrendatário do imóvel supra mencionado, sendo V. Ex a proprietária. Chegou ao conhecimento do meu constituinte que o estabelecimento de bebidas que o mesmo explora não está devidamente licenciado, pois V. Ex. inexplicavelmente pediu a caducidade do Alvará Sanitário nº …, à revelia do meu constituinte.

Por outro lado, V. Ex. continuou a receber as rendas actualizadas anualmente, bem sabendo que ao retirar o alvará, o meu constituinte ficaria a laborar ilegalmente, estando sujeito a que as autoridades competentes encerrassem o estabelecimento.  Consequentemente, o estabelecimento necessita de obras urgentes, pois, face à ausência do dito Alvará, o arrendado não cumpre os requisitos legais impostos pelo DL nº 234/2007, de 19.06, no qual se estabelecem novos procedimentos para a abertura de estabelecimentos.

Face à gravidade da situação o meu constituinte foi informar-se junto das entidades competentes, sendo necessários diversos procedimentos, os quais são da responsabilidade de V. Ex. na qualidade de senhoria. Assim, é necessário:

1. projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal de ...;

2. realização das obras que cumpram os requisitos do DL 234/2007 de 19.06;

3. demolição do anexo contíguo ao café (muito urgente);

Ademais, para evitar o encerramento do estabelecimento o meu constituinte requereu aos serviços camarário uma autorização de funcionamento para o estabelecimento de Bebidas, a qual lhe foi concedida, a título precário.

Ou seja, conforme cópia da proposta de decisão referente ao processo n. 5436/I/LA/E/OR/2008, que junto para conhecimento de V. Ex.  tal autorização apenas vigorará até que se encontrem reunidos os pressupostos jurídicos necessários à emissão da licença de utilização.

Uma vez que já existe um projecto de arquitectura aprovado pela C. M ..., projecto este elaborado pelo Arqt.º HH, assim como orçamento para as obras a realizar no estabelecimento, o qual junto para V. conhecimento, solicito que me informe o seguinte:

1. se pretende assumir o valor das obras, cfr. orçamento junto, bem como os encargos e despesas inerentes à legalização do estabelecimento?

2. despesas e honorários do arquitecto (os quais ser-lhe-ão enviados com a maior brevidade possível, pois ainda não se encontram na posse do meu constituinte);

3. quando irá providenciar pela demolição do anexo abarracado contíguo ao estabelecimento? (MUITO URGENTE). Por outro lado, informo V. Ex. que o meu constituinte pretende iniciar as referidas obras no período de férias, a iniciar no próximo dia 27. 07.2009, numa tentativa de evitar maiores prejuízos para ambas as partes.

Fico deste modo a aguardar as notícias de V. Ex. com a maior brevidade possível, e na expectativa da resolução amigável deste assunto.

Junta: Proposta de decisão da C. M ... e orçamento referente às obras a realizar no estabelecimento. (...)".

22) A ré recebeu a carta referida em 21) no dia 21 de julho de 2009.

23) A ré não respondeu à carta referida em 21).

24) No dia 27 de julho de 2009, a Dra. GG, na qualidade de mandatária do autor, endereçou à ré uma carta registada, com aviso de receção, que se encontra junto aos autos, da qual consta, além do mais, o seguinte:

"Assunto: Ausência de Notícias (Realização de obras urgentes no estabelecimento sito na Rua Prof ..., nº 2, ...)

  Exm. a Senhora,

Na sequência da minha carta 16.07 pp., não detecto qualquer resposta da parte de V. Exa no que concerne ao assunto referido em epígrafe. Assim, no silêncio de V. Ex. considero que o mesmo se traduz no consentimento da realização das referidas obras, pelo que as mesmas serão imediatamente iniciadas. Brevemente, voltarei ao contacto com V. Exa apresentando-lhe os valores que ao meu constituinte são devidos. (..)".

25) A ré recebeu a carta referida em 24) no dia 29 de julho de 2009.

26) A ré comunicou aos autores que autorizava a realização das obras necessárias ao regular funcionamento do estabelecimento, desde que licenciadas pelas entidades competentes, mas sem qualquer participação financeira.

27) A ré recusou-se a realizar as obras.

28) Perante a atitude da ré, o autor, para manter o estabelecimento comercial aberto ao público, realizou obras nos termos enunciados em 17) e 18) e diligenciou pela obtenção de uma nova autorização de funcionamento.

29) Para a realização das obras referidas em 28), o autor contratou, num primeiro momento, os serviços da sociedade II, Arquitetos, Lda, num segundo momento, os serviços da sociedade JJ, Lda, num terceiro momento, os serviços da sociedade KK, Lda e, num quarto momento, os serviços de LL.

30) Com a realização do projeto de arquitetura referido em 17) e acompanhamento de obra, os autores pagaram à sociedade II, …, Ldª a quantia global de € 3 684,00 (três mil, seiscentos e oitenta e quatro euros).  

31) Com a instalação de um sistema de deteção de incêndio no estabelecimento, os autores pagaram à sociedade KK, Ldª a quantia de € 630,00 (seiscentos e trinta euros).

32) Com as obras de serralharia, nomeadamente, com o fornecimento e assentamento de duas portas de duas folhas de batente e duas janelas fixas, bem como com o arranjo de grades de ferro para adaptação das caixilharias a duas portas, três janelas, os autores pagaram à sociedade JJ, Ldª a quantia total de € 2 400,00 (dois mil e quatrocentos euros).

33) Com a execução do projeto de arquitetura que implicou a remodelação do estabelecimento nos termos enunciados em 17) e 18), os autores pagaram a LL a quantia de € 28 800,00 (vinte e oito mil e oitocentos euros).

34) Em 17 de novembro de 2009, o autor, após a realização das obras, requereu a autorização precária de funcionamento do estabelecimento comercial à Câmara Municipal de ....

35) Em 10 de dezembro de 2009, o autor reclamou junto da ré o pagamento das obras.

36) A ré não pagou aos autores as obras referidas em 28).

37) O autor instaurou contra a ré uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, a qual correu termos sob o n. 6667/104TCLRS na (extinta) 2.a Vara de Competência Mista do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de ..., peticionando a condenação da ré no pagamento de € 35 514,00 (trinta e cinco mil, quinhentos e catorze euros), a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros legais, vencidos e vincendos, desde a citação e até efetivo e integral pagamento, bem como no pagamento das despesas e indemnizações devidas a liquidar em execução de sentença, pelos lucros cessantes.

38) No âmbito do processo referido em 37), em 31 de agosto de 2012, foi proferida a sentença, transitada em julgado em 9 de outubro de 2012, que se encontra junto aos autos.

39) No início do ano de 2009, a loja referida em 5), com cerca de 60,40 m2, tinha um valor comercial de € 15. 000,00 (quinze mil euros)

40) Com a realização das obras referidas em 28), a loja referida em 5) passou a ter um valor comercial de € 50. 514,00 (cinquenta mil, quinhentos e catorze euros).

41) Para a realização das obras, o autor teve de encerrar o estabelecimento comercial durante os meses de agosto, setembro e outubro de 2009.

42) Durante o período referido em 41), os autores continuaram a pagar à ré o valor mensal de € 319,14 (trezentos e dezanove euros e catorze cêntimos), a título de contrapartida pela utilização da loja referida em 5).

43) Durante o período referido em 41), os autores não usufruíram da loja referida em 5).

44) Aquando da instauração da presente ação, em dezembro de 2014, o autor pagava, a título de contrapartida pecuniária pela detenção, ocupação e utilização da loja referida em 4), a quantia mensal de € 335,97 (trezentos e trinta e cinco euros e noventa e sete cêntimos).»

3. O direito aplicável:

3.1. Dado que a recorrente limita o objeto do recurso à questão da qualificação das benfeitorias, só quanto a esta questão (e inerentes consequências legais) há que concluir se o acórdão em revista fez ou não a correta aplicação do direito.

Tudo o que a recorrente alega sobre “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa” reduz-se a um tipo de considerações que este tribunal não pode tomar em conta, atento o disposto nos artigos 682º, n.2 e 674, n.3 do CPC.

3.2. Para se concluir se as concretas obras realizadas pelos autores têm a natureza de benfeitorias necessárias ou de benfeitorias úteis, e qual o regime indemnizatório aplicável, não basta atender à tipologia dessas obras, há também que considerar a razão pela qual foram realizadas. Importa, portanto, saber em que qualidade os autores realizaram aquelas obras e com que objetivo.

3.3. O enquadramento legal das obras que um possuidor/detentor pode realizar em imóvel alheio não se esgota no regime das benfeitorias que resulta dos artigos 216º e 1273º do CC. Pode também emergir do estatuto específico de alguns contratos em especial. Assim acontece com o regime do contrato de arrendamento urbano, no qual são previstas diversas hipóteses de indemnização ou reembolso do arrendatário por obras realizadas no imóvel arrendado. Assim acontece quanto à realização de obras urgentes (art.1036º do CC), cujo montante o arrendatário pode descontar no valor da renda (art.1074), quanto à realização de obras exigidas por lei ou pelo fim do contrato, nos arrendamentos para fins não habitacionais (art.1111º, n.2), e ainda quanto ao regime específico de indemnização por benfeitorias, em certas hipóteses de extinção do contrato (previsto no art.29º da Lei n.6/2006). Há ainda a considerar o regime jurídico das obras em prédio arrendado, previsto no DL n.157/2006 (sucessivamente alterado), que permite ao arrendatário, com direito a reembolso, realizar obras que seriam da responsabilidade do senhorio.

O quadro legal acabado de enunciar não pode, todavia, ter aplicação ao caso concreto, dado que ambas as instâncias entenderam que entre as partes tinha existido um contrato de arrendamento nulo por falta de forma (já que não tinha sido celebrado por escritura pública, como se exigia na vigência do RAU).

Não cabe agora discutir se o que efetivamente existia entre as partes era um contrato de arrendamento nulo por vício de forma ou, antes, um contrato-promessa de arrendamento (que as partes assinaram), porque a questão se encontra processualmente encerrada e não integra o objeto do presente recurso.

3.4. Tendo, assim, de se concluir que o contrato que as partes celebraram, tendo por objeto o gozo do imóvel, não produziu um efeito vinculativo definitivo, não se encontrará no regime do arrendamento urbano a solução indemnizatória para as obras que os autores realizaram no imóvel da ré.

Todavia, tendo os autores acedido legitimamente ao gozo do imóvel (no qual realizaram as obras), no âmbito do contrato celebrado, e tendo sido autorizados (pelos antecessores da ré) a realizar aquelas obras, sempre serão possuidores de boa-fé, pelo que será potencialmente convocável a aplicação das correspondentes soluções indemnizatórias previstas no art.1273º do CC.

Dado que estas soluções variam em função da qualificação das obras realizadas – benfeitorias necessárias ou úteis – é crucial, para o sentido decisório do caso concreto, a solução deste problema.

3.5. O acórdão em revista entendeu que se tratava de benfeitorias necessárias, porque imprescindíveis ao funcionamento do estabelecimento que os antecessores da ré trespassaram aos autores.

Nas páginas 19 e 20 do acórdão em revista (a fls. 426 e 427 dos autos) lê-se, quanto à sua fundamentação, o seguinte:

«O propósito do arrendamento do imóvel foi a de nele explorar um estabelecimento de café – que já existia, sendo explorado pelos senhorios – e para tal o locador obrigou-se a entregar o respectivo alvará ao arrendatário. Contudo, em vez de entregar o alvará foi requerer a caducidade deste à Câmara Municipal de ..., o que veio a acontecer.

Na sequência, para poder explorar o estabelecimento, o arrendatário carecia de novo alvará, mas para isso tinha de realizar um vasto número de obras, devidamente explicitadas pelas autoridades camarárias.

As obras tinham de ser realizadas para evitar a perda da coisa, não no sentido físico – o prédio não iria ruir, por exemplo – mas no sentido de se perder o gozo específico a que a coisa estava destinada contratualmente, neste caso a de exploração de um estabelecimento comercial aberto ao público.

Nesta medida e contrariamente à sentença recorrida, entendemos que as despesas tidas pelo Autor com as obras indicadas pela Câmara Municipal de ... integram o conceito de benfeitorias necessárias.

Ora, as benfeitorias necessárias conferem ao possuidor o direito à respectiva indemnização, nos termos do art. 1273º nº 1 do Código Civil.

E tal indemnização não está dependente de procedência de acção instaurada pelo senhorio com vista à reivindicação do imóvel.

Sendo o contrato nulo por falta de forma, estabelece o art. 289º n.1 do Código Civil:

“Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

Num contrato de arrendamento a prestação do senhorio consiste em assegurar o pleno gozo da coisa ao arrendatário. A prestação do arrendatário consiste no pagamento da renda.

No caso dos autos o arrendatário sempre pagou a renda mensal. Contudo, como simultaneamente dispôs do gozo da coisa, entende-se que as prestações se equivalem.

Contudo, o arrendatário só tem podido gozar a coisa nos termos do arrendamento, ou seja, explorar um estabelecimento comercial de café, devido às obras que realizou, por indicação camarária. Cabia ao locador proporcionar tal gozo nos termos contratados, mas foi o próprio locador que o tornou inviável ao fazer caducar, deliberadamente, a licença de exploração do café, consubstanciada no alvará.

Para proporcionar o gozo do imóvel ao arrendatário, e fruto da caducidade do alvará por si promovida, o senhorio teria de realizar as obras indicadas pela Câmara, para que fosse concedido um novo alvará. Sem isso, a prestação do senhorio – que tem como contrapartida o pagamento das rendas – não se pode considerar realizada.

Tendo as obras sido levadas a cabo e pagas pelo Autor, arrendatário, tem este a haver do senhorio, atentas as regras do enriquecimento sem causa, o respectivo montante, ou seja, € 35.514,00, de acordo com a matéria dada como provada nos nºs 30 a 33 da decisão factual.

Falamos de enriquecimento sem causa pois o senhorio recebeu rendas que seriam, como vimos, contrapartida de uma prestação que não realizou, a saber, proporcionar o gozo da coisa locada, de acordo com o objecto da locação. O Autor só obteve tal gozo por ter sido ele próprio a realizar as obras que o tornaram possível – quando era ao senhorio que as mesmas incumbiam

Já quanto ao peticionado valor das rendas pagas pelo Autor, relativamente ao período em que duraram as obras e não pôde explorar o estabelecimento, o mesmo não é devido no âmbito do aludido enriquecimento sem causa.

Se o senhorio tivesse realizado e pago as obras para poder proporcionar ao arrendatário o gozo do locado, estaria a realizar a sua prestação, criando as condições necessárias para o gozo do imóvel, traduzido na exploração de estabelecimento comercial.

Sendo o senhorio condenado a indemnizar o Autor no pagamento das despesas que este teve com as obras, a situação revela-se equivalente.

É que o pressuposto que aqui norteia o enriquecimento sem causa, ou seja, recebimento de rendas sem contrapartida de proporcionar o gozo da coisa como contratado, tem como desfecho o ressarcimento do Autor no valor gasto nas obras que lhe possibilitaram finalmente obter o gozo do imóvel, explorando-o como estabelecimento de café. Condenar o senhorio a pagar as rendas do período em que duraram as obras seria, nesse aspecto, uma duplicação

3.6. Revelam-se, na fundamentação transcrita, imprecisões conceituais e interpretativas que conduzem a errada aplicação da lei. Se a decisão recorrida entendeu que as partes celebraram um contrato de arrendamento nulo por vício de forma, não faz sentido falar em incumprimento das obrigações do senhorio. Por outro lado, se entende que as obras realizadas constituem benfeitorias necessárias, não há que referir a existência de enriquecimento sem causa da proprietária do imóvel, porque não seria esse o regime indemnizatório/compensatório aplicável (nos termos do art.1273º).

3.7. Parece fora de dúvida que as obras/benfeitorias realizadas se tornaram imprescindíveis ao funcionamento do estabelecimento comercial trespassado, em virtude da necessidade de obtenção do respetivo alvará sanitário.

Todavia, os autores não fundam o seu pedido em responsabilidade contratual (ou pós-contratual), que, eventualmente, poderia existir no caso concreto. Os autores fundam o seu pedido na existência de benfeitorias e invocam o instituto do enriquecimento sem causa como base normativa desse pedido.

A qualificação que se atribua às benfeitorias realizadas tem como consequência a determinação do correspondente modo de compensação: indemnização diretamente fundada no art.1273º, n.1, 1ª parte (benfeitorias necessárias) ou direito de levantamento das benfeitorias sem detrimento da coisa (benfeitorias úteis), o qual é legalmente convolado em direito indemnizatório, segundo as regras do enriquecimento sem causa, quando o levantamento cause detrimento da coisa (art.1273º, n.2).

3.8. Quanto às benfeitorias necessárias, a adjetivação usada pelo art.216º do CC aponta não apenas para um grau de necessidade máxima – evitar a perda ou a destruição da coisa – mas também para uma necessidade de menor grau (ou relativa) – evitar a deterioração da coisa –, na qual pode caber a perda de caraterísticas físicas essenciais ou aptidões funcionais que a coisa tinha ou está em risco de perder.

Por contraposição às necessárias, as benfeitorias úteis aumentam o nível de aptidão funcional ou o nível de conforto da coisa (por confronto com o nível funcional ou de conservação anterior) e, por isso, aumentam o seu valor.

3.9. As definições que emergem do art.216º têm subjacente um critério de essencialidade ou utilidade das benfeitorias para a coisa, em si mesma, ou seja, independentemente do específico fim a que possa estar temporariamente afetada.

Deve entender-se, assim, que nas benfeitorias necessárias não devem ser incluídos aqueles trabalhos/obras que se tornam fundamentais apenas para a prossecução de um fim ao qual o imóvel é contratualmente destinado, como se entendeu no acórdão em revista[1].

 As obras realizadas pelos autores, descritas nos pontos 17 e 18 da matéria de facto provada [criação de duas instalações sanitárias para os utentes com separação de sexos;  criação de uma instalação sanitária para o pessoal; criação de vestiário para o pessoal junto do acesso de serviço;  criação da despensa do dia em espaço autónomo, junto à zona de atendimento;  criação de copa contígua à zona de atendimento; criação de zona de armazenagem; instalação de frigoríficos na contiguidade da copa], segundo as normais regras de experiência, serão, sem dúvida, fundamentais para a prossecução do fim que os autores desenvolvem no imóvel.

Todavia, do ponto de vista da sua essencialidade para a integralidade do próprio imóvel elas não podem ser vistas como necessárias, mas sim como úteis, dado que aumentam a funcionalidade e o nível de conforto do imóvel, mesmo que nele deixe de ser exercida a atividade que os autores aí exercem.  

3.10. Importa ainda ter presente que o estabelecimento comercial explorado pelos autores funcionou no imóvel, durante mais de 10 anos, antes de aquelas obras terem sido realizadas, sem que as caraterísticas do imóvel impedissem tal funcionamento.

As obras que realizaram não foram determinadas pela perda de qualidades essenciais do imóvel (resultantes, por exemplo, de uma intempérie), mas sim por decisão de autoridade administrativa, 10 anos depois de ter caducado o alvará primitivo.

3.11. A argumentação desenvolvida pela recorrente, no sentido de que o alvará caducado era de “taberna” e não de “café”, bem como a contra-argumentação dos recorridos, no sentido de que a atividade de taberna e a atividade de café são equivalentes, relevariam crucialmente se o que estivesse em discussão nos presentes autos fosse um problema de saber qual o âmbito do objeto do contrato que as partes celebraram, e se esse contrato tinha ou não sido integralmente cumprido. Ora, não é esse tipo de problemática que foi trazida ao presente recurso.

Como supra referido, a presente revista tem o seu âmbito confinado à questão de saber se a decisão recorrida fez correta aplicação da lei quando entendeu que as obras realizadas pelos autores tinham a natureza de benfeitorias necessárias (nos termos do art.216º), correspondendo-lhes o regime indemnizatório previsto no art.1273º, n.1, 1ª parte.

3.12. Tendo-se já concluído que as obras realizadas pelos autores não são benfeitorias necessárias, mas sim benfeitorias úteis, como a própria ré admite nas suas contra-alegações, os autores têm direito de levantar as benfeitorias que puderem ser levantadas sem detrimento da coisa e têm o direito de ser indemnizados, segundo as regras do enriquecimento sem causa, quanto às benfeitorias que, desse modo, não possam ser levantadas.

Todavia, na presente decisão não é possível ir mais longe, ou seja, não é possível dizer quais as concretas benfeitorias que podem ser levantadas e quais as que devem ser indemnizadas segundo as regras do enriquecimento sem causa, porque o objeto do recurso não sofreu essa ampliação (nem existiria base factual para o efeito).

III.  DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 30 de abril de 2019

Maria Olinda Garcia (Relator)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1][1][1] Por exemplo, a construção de um cofre-forte (em betão e aço) pode ser uma “benfeitoria essencial” para a prossecução da atividade da instituição bancária que é arrendatária de determinado imóvel, mas não acrescentar qualquer valor ao próprio imóvel.