Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
56149/21.1YIPRT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
REQUISITOS
RESOLUÇÃO
MODIFICAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PODERES DE COGNIÇÃO
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – O necessário requerimento das partes, a fim de actuar o direito relativo à resolução ou modificação do contrato por alteração de circunstâncias (art.º 437.º n.º1 do CCiv), não pode ser suprido oficiosamente pelo juiz.

II – A norma do art.º 437.º n.º1 do CCiv não se basta com a constatação de que as circunstâncias em que o contrato se celebrou foram alteradas – é necessário correlacionar a alteração com a teoria do risco, com a ideia de cooperação inter-subjectiva, com a interpretação contratual e com o princípio da segurança, este visando manter o contratado como expressão do princípio da autonomia privada.

III – Da conjugação das normas do art.º 5.º n.ºs 1 e 3 do CPCiv resulta que o tribunal pode qualificar como entender os factos alegados pelas partes, mas só pode pronunciar-se dentro da noção complexiva que resulta da conjugação dos factos alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada pela parte, na acção ou na defesa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

  A..., Unipessoal, Ldª, intentou a presente acção, com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, contra Fábrica de Cervejas e Refrigerantes ..., Ldª, peticionando o pagamento de € 119 146,17, sendo € 111 100,00 a título de capital, € 7 853,17 a título de juros de mora, € 40,00 a título de outras quantias e € 153,00 a título de taxa de justiça paga.

Para tal alegou, em requerimento de injunção, que tem um contrato de distribuição exclusiva com a Ré e, no âmbito do mesmo, prestou, entre Março e Julho de 2020, a totalidade dos serviços a que se obrigou, tendo emitido as respetivas facturas para pagamento, as quais, no entanto, não foram liquidadas.

A Ré opôs-se ao pedido, confessando a existência do contrato de distribuição, mas alegando que, atenta a pandemia do COVID-19, a sua atividade esteve paralisada, pelo que entre Março e Maio de 2020 não existiu praticamente distribuição e nos meses de Junho e Julho de 2020 a distribuição foi muito diminuta. Não obstante, e pelos serviços prestados em tais meses, liquidou a quantia de 33 250,00€, valores que terão sido aceites pela Autora.


As Decisões Judiciais

Em 1.ª instância ponderou-se a aplicação ao caso do disposto no art.º 437.º do CCiv (alteração anormal das circunstâncias do contrato).

Nesse sentido, entendeu que a repercussão jurídica do Covid 19 deveria ser repartida, de harmonia com um princípio de igualdade, em 50% para cada parte, tendo condenado a Ré no pagamento de 50% do capital peticionado (€ 55 550,00), acrescido de juros de mora à taxa legal aplicável aos créditos provenientes de relações comerciais, a contar da citação, e de € 40,00, a título de indemnização pelos custos de cobrança de dívida.

Tendo a Autora recorrido de apelação, o Tribunal da Relação considerou basicamente que não há lugar a recorrer ao instituto da alteração anormal das circunstâncias para modificar oficiosamente o contrato – nesse sentido, alterou a condenação da Ré para a totalidade do pedido de capital (€ 111 140,00).


Inconformada agora a Ré, recorre de revista, formulando as seguintes conclusões de recurso (aqui reproduzidas, apenas tal como apresentadas na sequência de adrede despacho de aperfeiçoamento):

I. Vem a Recorrente interpor recurso do aliás Douto Acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de fls.(…), no qual Julgou Procedente a Apelação (…).”

II. No entanto, não pode a Recorrida, aqui Recorrente, conformar-se com tal Decisão, uma vez que a apreciação da questão em causa é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

III. Veio o Tribunal da Relação de Lisboa dizer que “O tribunal não pode recorrer ao instituto da alteração anormal das circunstâncias para modificar oficiosamente o contrato. A modificação tem de ser pedida”, aplicando o instituto do Artigo 437º, do Código Civil.

IV. O objecto do litígio e os temas da prova foram perfeitamente identificados, contrariamente ao alegado pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa, ou seja, “O objecto do litígio circunscreve-se à prestação, ou não, de serviços à Ré por parte da Autora no âmbito de um contrato de distribuição exclusiva.” E como Temas da Prova foram definidos,

“1. Serviços prestados pela Autora entre Março e Julho de 2020; 2. Custos dos mesmos; 3. Pagamentos realizados pela Ré.”

V. Entende a qui Recorrente que não houve uma modificação oficiosa do contrato mas sim de uma aplicação equitativa dos prejuízos sofridos por ambas as partes, por força da situação excepcional do estado de pandemia, causado pela COVID19, que se viveu e teve como início a 11 de Março de 2020.

VI. Não podendo aceitar a Recorrente, ali Recorrida, que Autora viesse a requerer o pagamento de facturas no montante total de € 111.100,00 (cento e onze mil e cem euros) referente aos serviços, alegadamente, prestados nos meses de Março a Julho de 2020, como habitualmente, o que Não foi o caso.

VII. Como é do conhecimento geral a situação Pandémica, determinou um período excepcional, levando à quebra muito acentuada dos serviços prestados pela Recorrida, entendendo a Recorrente que, apenas, deveria pagar os serviços, efectivamente, prestados nesse período, apesar de ter celebrado um “Contrato de Distribuição”, no ano de 2015, cujo preço mensal era de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescido de IVA.

VIII. Sendo que o valor acordado para a distribuição, o era para um período “normal”, sendo várias as rotas diárias, todos os dias da semana.

IX. Por se estar em período de pandemia, é a própria Autora, aqui Recorrida, que aceitou que logo no primeiro Estado de Emergência – Março de 2020 -, “os serviços prestados pela sua empresa sofreram uma grande redução”, conforma consta das Declarações prestadas pelo Gerente – Senhor AA e que é transcrito na Sentença proferida pelo Tribunal da Comarca dos Açores, Juiz ... do Juízo Central Cível e Criminal ....

X. Afirmação esta corroborada pelo Director Geral da Ré, aqui Recorrente, Senhor BB, bem como pelas diversas testemunhas da Ré, aqui Recorrente.

XI. Se dúvidas houvessem, estas dissiparam-se com estes e outros depoimentos, uma vez que a Recorrida não prestou os serviços, como habitualmente o fazia, por estarmos em situação Pandémica.

XII. Sendo de concluir que as circunstâncias, em que foi celebrado o Contrato de Distribuição, sofreram uma “alteração anormal” naquele período e que o Senhor Juiz de Direito, do Juízo Central Cível e Criminal ..., utilizou um critério de equidade para que se estivesse perante uma Decisão Justa e Equitativa.

XIII. Entende a Recorrente que, com o devido respeito, que é muito, mal andou o Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir como decidiu, alterando a Sentença da 1ª Instância.

XIV. Nunca o Juiz de Direito do Juízo Central Cível e Criminal ..., alterou qualquer contrato firmado entre as partes, o que fez foi utilizar um critério de equidade, não se podendo dizer que violou ou extravasou os poderes, prescritos no Artigo 5º do Código de Processo Civil, ou mesmo que violou o Artigo 437º do Código Civil.

XV. Como se pode ler na Decisão proferida, “O equilíbrio das prestações contratuais que subjaz à realização de qualquer contrato está radicalmente afetado, pelo que exigir à Ré o pagamento integral das facturas dos meses de Março a Julho de 2020, quando a própria Autora passou a prestar menos serviços (…), é atentório dos princípios de boa-fé (…).”.

XVI. Veja-se que as condições em que as partes firmaram o sobredito Contrato, sofreram uma alteração que deve ser considerada relevante em face das circunstâncias – a crise que a Pandemia veio afectar todos.

XVII. E, ainda, o que vem dizer o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “Para que a alteração das circunstâncias pressupostas pelos contraentes conduza à resolução do contrato ou à modificação do respectivo conteúdo, exige o cit. art.437º que se achem reunidos cumulativamente os seguintes requisitos:

a) que a alteração considerada relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade - «como representação mental ou psicológica comum patente nas negociações (base subjectiva), ou condicionalismo objectivo apenas implícito, porque essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado (base objectiva);

b) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afectando o equilíbrio do contrato;

c) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspectiva económica, a prestação de uma das partes (conquanto não se exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica, a manter-se incólome o contrato), quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial;

d) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé negocial;

e) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato, isto é, que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, isto é, nas suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado.”, in www.dgsi.pt, Processo nº 648/2017-1, em que foi Relator, o Juiz Desembargador Rui Vouga.

XVIII. As circunstâncias, que se viveu a partir de março de 2020, afectaram o equilíbrio do Contrato, tendo o Juiz do Tribunal da 1ª Instância, tentado repor esse equilíbrio.

XIX. Como ensina a Mariana França Gouveia, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é esse o papel do Juiz, conforme se pode ler In Revista JULGAR nº 1 – 2007, “OS PODERES DO JUIZ CÍVEL NA ACÇÃO DECLARATIVA, Em Defesa do Processo Civil em Defesa do Cidadão.”, “O princípio da colaboração quando aplicado ao juiz impõe-lhe uma igualdade com as partes e, em simultâneo, uma preocupação séria com o litígio privado em discussão. O juiz deve preocupar-se com a realidade daquilo que julga, isto é, com a correspondência entre a realidade intra-processual e a realidade extra-processual. O juiz não pode limitar-se a analisar aquilo que consta do processo, fechando os olhos à realidade que, em certa momento da tramitação, maxime na produção da prova, lhe aparece. Uma decisão que consiga esta correspondência será uma decisão justificada e logo legitimadora. Embora, uma decisão que não obtenha esta equivalência em respeito do dispositivo também é legitimadora desde que as partes a percebam. Só a compreensão permite a aceitação, ainda que contrariada. «Percebi, embora não concorde». A preocupação essencial do magistrado cível deve ser a da inteligibilidade das suas decisões, de todas, em especial da decisão final da causa. A compreensibilidade das suas decisões implica uma maior proximidade entre juiz e partes. Implica colaboração, trabalho conjunto. Esta proximidade, num ambiente de igualdade, é reforçada através da oralidade e da concentração. E é interessante perceber-se que tal ambiente (de proximidade e igualdade) só existirá se o juiz estiver completamente à vontade frente às partes, o que é o mesmo que dizer, aos seus mandatários. Um juiz confiante na direcção dos trabalhos, nos seus conhecimentos jurídicos, no estudo do processo em discussão, enfim, um magistrado colaborante, na procura não tanto da verdade material (sabe-se lá onde ela está), mas da solução adequada ao litígio concreto que lhe é apresentado.”, bold nosso

XX. Também o Professor Doutor Oliveira Ascenção, quanto às alterações das Circunstâncias, in Revista da Ordem dos Advogados, 2015, Ano 65, Vol.III, Dezembro 2005, Doutrina, José de Oliveira Ascenção – Onerosidade Excessiva por “alteração das Circunstâncias”, “(…)

6. Facto superveniente extraordinário

O facto gerador, como dissemos, é para o art. 437/1 a “alteração das circunstâncias”. Essa alteração atinge a base do negócio, portanto aquelas circunstâncias em que as partes fundaram (comummente, quanto a nós) a decisão de contratar. A alteração das circunstâncias é por seu lado produto dum facto superveniente. Pelo que ocorre qualificar devidamente esse facto e a alteração que produz. As circunstâncias alteram-se incessantemente. Para que uma alteração seja relevante tem de passar pelo crivo da repercussão sobre a base do negócio. O elemento fundamental do art. 437/1 consiste na referência a essas circunstâncias terem sofrido uma alteração anormal. Por si, é pouco esclarecedor. Muitos factos podem trazer alterações: quando são “anormais”? Na multidão das vicissitudes do dia a dia, quais provocarão os efeitos da resolução ou modificação do contrato? É preciso recorrer a outros trechos do artigo para alcançar esclarecimento. Na parte final do n.º 1 aparece o texto: “e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”. Qual o sujeito desta proposição? Aparentemente, seria a exigência das obrigações assumidas pela parte lesada. Mas não é assim, porque não é a exigência que está ou não coberta pelos riscos próprios do contrato. O que pode estar ou não coberto pelos riscos do contrato é a alteração anormal. Temos aqui um esclarecimento essencial. A alteração é anormal quando não estiver coberta pelos riscos próprios do contrato. Regressa assim a temática do risco. Isto significa que uma alteração é anormal quando provoque uma alteração extraordinária das circunstâncias (14). Qualquer outro tipo de alteração que não mereça a mesma qualificação não pode ser considerada anormal. Só o que ultrapassar os riscos que foram assumidos representa para o art. 437 uma alteração anormal. Isto deverá ser relacionado com o que anteriormente dissemos sobre o entendimento possível da imprevisibilidade. Se a imprevisibilidade fosse tomada subjectivamente seria inaceitável. Pode, quando celebro um contrato em Lisboa, ocorrer-me a eventual superveniência dum terremoto arrasador, porque Lisboa se encontra em zona sísmica. O terremoto alteraria os termos da execução do contrato. Mas nem por isso deixa de ser um acontecimento imprevisível. O que interessa é a imprevisibilidade objectiva: não se pode até hoje prever e levar em conta a superveniência dum terremoto. Pode-se por isso acrescentar que a alteração anormal é a alteração extraordinária e imprevisível. Por outro lado, o facto de se recorrer à previsão legal do risco para caracterizar a alteração anormal não deve levar a concluir que o instituto não pode ser aplicado no domínio dos contratos aleatórios. É verdade que se o contrato é aleatório a parte aceitou o risco. Mas a alteração das circunstâncias funciona mesmo no domínio dos contratos aleatórios, porque o que estiver para lá do risco tipicamente implicado no contrato pode ser relevante. (…).”, bold nosso.

XXI. Dúvidas não restam que estamos perante uma alteração das circunstâncias, em seria penalizador para uma das partes, tendo o Juiz que julgou, em 1ª Instância ter equilibrado os danos que ambas as partes sofreriam e não apenas uma, não tendo violado qualquer norma legal, extravasando a sua competência.

XXII. Violando o Tribunal a quo, a não aplicação do Artigo 437º do Código Civil, uma vez que:

- A alteração para ser considerada relevante tem de o ser de uma forma que seja notória, mesmo que represente perda para uma das partes;

- Houve uma alteração anormal, desde a data em que fundaram a decisão de contratar;

- A situação anormal, não se encontre espelhada no contrato inicialmente firmado entre as partes;

 A manutenção do contrato, tal como foi delineado não afete uma das partes, tornando-se demasiadamente onerosa, em face das alterações anormal das circunstâncias, afectando grandemente os princípios da Boa-fé.

XXIII. Entende, ainda, a Recorrente, que foram, igualmente, violadas as disposições elencadas no Código Civil, artigos 334º e 335º.

XXIV. Prescreve o Artigo 334º, sob a epígrafe “Abuso do direito” do Código Civil que, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” e,

XXV. Nos termos prescritos no Artigo 335º do Código Civil, temos que, “1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”.

XXVI. Tentou, por isso, o Juiz titular ser “Um juiz confiante na direcção dos trabalhos, nos seus conhecimentos jurídicos, no estudo do processo em discussão, enfim, um magistrado colaborante, na procura não tanto da verdade material (sabe-se lá onde ela está), mas da solução adequada ao litígio concreto que lhe é apresentado.”, como nos transmite a Professora Mariana França Gouveia.

Face ao exposto e no demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência ser o Douto Acórdão revogado por outro que se mostre adequado, e proporcional para Recorrente e Recorrida.


A Autora produziu as respectivas contra-alegações, pugnando pela improcedência da pretensão deduzida pela contraparte.

Preliminarmente, invocou dever o recurso de revista excepcional (tal como classificado pela Recorrente) ser rejeitado, por não vir substantivada a discussão doutrinal e jurisprudencial a que caberia aludir, na sequência da invocação do disposto no art.º 672.º n.º1 al.a) do CPCiv.

Igualmente alega que cabe ser rejeitado o recurso, por nele não se ter produzido às especificações das normas das als. a) e c) do n.º2 do art.º 639.º do CPCiv.


Factos Provados

1. A Autora dedica-se, entre outras atividades, ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de terceiros, tendo o exclusivo da distribuição de todos os produtos comercializados pela Ré dentro do perímetro da Ilha ..., seja de produção própria, seja de terceiros, bem como a recolha de todo o vasilhame.

2. A Ré é uma empresa que se dedica à produção e distribuição de cervejas e refrigerantes, com 126 anos de existência e uma larga reputação na Região Autónoma dos Açores.

3. As partes mantêm uma parceria (contrato de distribuição comercial) em vigor desde há vários anos, sendo que desde 01/11/2015 (por um período de 10 anos) estava em vigor um contrato de distribuição exclusiva.

4. Acoplada à obrigação de promover o transporte de todos os produtos comercializados pela Ré, e recolha de todo o vasilhame, junto do universo de clientes daquela, no âmbito da sobredita distribuição comercial, igualmente a Autora disponibiliza à Ré um armazém que detém, sito no ..., n.º 26, ..., para efeitos de ali aquela guardar os seus produtos.

5. No cumprimento das obrigações contratuais subjacentes, a Autora, entre março e julho de 2020, alocou, como habitualmente, os seus recursos humanos e viaturas de transporte que afetou à entrega pontual e rigorosa, dos produtos aos clientes da Autora, assim como em permanência cedeu o gozo do imóvel identificado em 4.

6. A Autora emitiu as seguintes faturas:

 FAC/189, emitida em 02.03.2020, vencida em 01.04.2020, no montante de €16.700,00;

 FAC/194, emitida em 01.04.2020, vencida em 01.05.2020, no montante de €23.600,00;

 FAC/198, emitida em 04.05.2020, vencida em 03.06.2020, no montante de €23.600,00;

 FAC/201, emitida em 03.06.2020, vencida em 03.07.2020, no montante de €23.600,00;

 FAC/2020, emitida em 02.07.2020, vencida em 01.08.2020, no montante de €23.600,00,

7. Em março de 2020, teve início nos Açores e não só, a Pandemia do COVID-19 a qual teve um grande impacto na Ilha ....

8. Encerraram, restaurantes, pastelarias, bares, hotéis, que são os principais clientes da Ré.

9. A Ré sofreu uma quebra uma quebra nas suas vendas e atividade.

10. (eliminado).

11. Entre março e julho de 2020 a Ré pagou à Autora 33 250,00€.

12. Conforme estipulado no acordo referido na 2.ª parte do ponto 3, “o preço a pagar pela distribuição será de € 20 000,00 (vinte mil euros) mensais, acrescidos de IVA, à taxa em vigor”.


Factos Não Provados

a) A quantia de 33 250,00€, referida em 11., destinou-se ao pagamento das faturas referidas em 6.

b) Nos meses mais afectados pela pandemia, os valores inerentes à distribuição efectuada pela Requerente foram os seguintes:

Março de 2020 - € 6 600,00;

Abril de 2020 - € 4 400,00;

Maio de 2020 - € 7 850,00;

Junho de 2020 - € 9 900,00;

Julho de 2020 - € 4 500,00.


Conhecendo:


Vejamos quanto à invocação preliminar relativa à rejeição do recurso, na sequência da qual foi proferido despacho de aperfeiçoamento das conclusões, à luz da norma do art.º 639.º n.º3 do CPCiv.

Em primeiro lugar, o presente recurso configura-se como de revista ordinária, face ao disposto no art.º 671.º n.º1 do CPCiv, norma que, no caso, não vem exceptuada pelo disposto no n.º3 do normativo – da classificação que a parte lhe dá de “revista excepcional” nenhuma consequência cabe retirar, que não seja a correcção oficiosa da classificação dada pela parte (no caso, que ficou a cargo do relator, no despacho liminar).

Após despacho de aperfeiçoamento, as novas conclusões apresentadas aludem expressamente às normas jurídicas violadas – os artºs 437.º, 334.º e 335.º do CCiv.

Diga-se, porém, desde já, que as duas últimas normas invocadas, relativas às matérias de abuso de direito e de colisão de direitos, não cabem ser conhecidas na revista, posto que o despacho de aperfeiçoamento das conclusões não pode ser aproveitado para o acrescento de itens de argumentação recursória, fossem ou não eles relevantes, pois que, relativamente aos mesmos, a parte havia já perdido o direito de invocação, por não apresentados com as iniciais alegações/conclusões – nem o despacho de aperfeiçoamento proferido, visto o respectivo teor, circunscrito à norma do art.º 639.º n.º3 do CPCiv, a tanto se poderia destinar.



*


Não se colocou em causa nas instâncias que a Autora tem direito à remuneração da respectiva prestação de serviços, nos termos que constam do contrato que celebrou com a Requerida/Recorrente e que se vieram a traduzir nas facturas apresentadas à Requerida e cujo valor a Autora reclamou nos autos, resultando, entre o mais, no valor constante da condenação proveniente do 2.º grau.

Em causa apenas o bem fundado da revogação da decisão de 1.ª instância, no sentido de reduzir o montante peticionado em metade, por aplicação da norma do art.º 437.º n.º1 do CCiv.

Tal revogação, operada no acórdão recorrido, fundou-se, por um lado, no teor da norma juscivilística em causa, e, por outro, no conteúdo da alegação da Requerida, que apenas invocou, em oposição, que as facturas apresentadas extravasavam, em muito, o valor dos serviços prestados pela Autora.

Diga-se que o exacto valor dos serviços prestados pela Autora, tal como provinha da alegação da Requerida, resultou “não provado” – embora se haja comprovado que as facturas se reportaram a um período temporal em que se verificou uma acentuada redução da actividade económica, resultado das medidas sanitárias legalmente impostas.

Daí que a 1.ª instância haja atendido à norma do art.º 437.º n.º1 do CCiv, ao invés da Relação, aqui por se entender não ter a Requerida alguma vez expresso a pretensão de modificação do contrato.

Nada há que objectar à forma como a Relação decidiu.

De facto, a construção jurídica da sentença abstrai totalmente da forma como a Requerida se defendeu, dos factos provados e não provados, e, em consequência, da discussão havida no processo.

Se a situação desenhada pelas partes apontava apenas para a discussão do teor dos serviços prestados pela Autora e para o custo dos mesmos, a discussão à volta da norma legal era estranha à alegação das partes, não podendo o juiz suprir oficiosamente o necessário requerimento das partes (assim, para o exacto caso da norma, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 3.ª ed., pg. 389).

Centrando, pois, a decisão no teor do dispositivo do art.º 437.º n.º1 do CCiv, a 1.ª instância olvidou que era a Ré que deveria ter exercido os direitos que a norma lhe conferia, fosse por via da resolução do contrato, fosse por via da sua modificação por juízos de equidade.

Note-se que a norma do art.º 437.º n.º1 do CCiv não se basta com a constatação de que as circunstâncias em que o contrato se celebrou foram alteradas – é necessário correlacionar a alteração com a teoria do risco, com a ideia de cooperação inter-subjectiva, com a interpretação contratual e com o princípio da segurança, este visando manter o contratado como expressão do princípio da autonomia privada (cf. S.T.J. 11/3/99 Col.I/141, rel. Torres Paulo).

Esta necessária ponderação ficou de todo alheia à discussão dos autos, tendo a decisão ficado a dever-se apenas ao elemento de facto, insuficiente para a decisão, relativo à redução dos serviços prestados pela Autora, nos cinco meses apontados, afectados que foram, é facto notório, pelas restrições de circulação e consumo, determinadas pelas medidas sanitárias então em vigor.

E, se é certo que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art.º 5.º n.º3 do CPCiv), não é menos certo ser às partes que “cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (art.º 5.º n.º1 do CPCiv) - da conjugação dos factos assim alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada resulta a conhecida teoria da substanciação, pela qual a causa de pedir se define em função da noção complexiva que resulta da conjugação dos factos alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada, relação essa da qual o tribunal se não pode afastar (cf. A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I-207).

Como escreve M. Teixeira de Sousa (CPC Online, art.º 5.º), “a liberdade de qualificação pelo tribunal dos factos alegados pelas partes não deve ser confundida com a dispensa da vinculação do tribunal aos pedidos formulados das partes; o tribunal pode qualificar como entender os factos alegados pelas partes, mas, dentro da qualificação que atribui a esses factos, só pode pronunciar-se sobre os pedidos formulados pelas partes (art. 3.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, 2.ª parte)”.

Não podia assim haver-se decidido, em 1.ª instância, em função de um instituto jurídico sem correspondência com o teor da defesa, fundada esta que foi no incumprimento parcial da prestação invocada, a cargo da Autora, e na consequente redução do preço exigido nos autos.


Concluindo:

I – O necessário requerimento das partes, a fim de actuar o direito relativo à resolução ou modificação do contrato por alteração de circunstâncias (art.º 437.º n.º1 do CCiv), não pode ser suprido oficiosamente pelo juiz.

II – A norma do art.º 437.º n.º1 do CCiv não se basta com a constatação de que as circunstâncias em que o contrato se celebrou foram alteradas – é necessário correlacionar a alteração com a teoria do risco, com a ideia de cooperação inter-subjectiva, com a interpretação contratual e com o princípio da segurança, este visando manter o contratado como expressão do princípio da autonomia privada.

III – Da conjugação das normas do art.º 5.º n.ºs 1 e 3 do CPCiv resulta que o tribunal pode qualificar como entender os factos alegados pelas partes, mas só pode pronunciar-se dentro da noção complexiva que resulta da conjugação dos factos alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada pela parte, na acção ou na defesa.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.

                                     

S.T.J., 15/12/2022

Vieira e Cunha (Relator)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira