Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1384/10.8TXCBR-Z.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
CUMPRIMENTO SUCESSIVO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO O REQUERIMENTO DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / LIBERDADE CONDICIONAL.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1993, p. 550 ; Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, ed. Ministério da Justiça, 1993, p. 157;
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Católica Editora, 2015, p. 338-339.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 63.º, N.ºS 3 E 4 E 64.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-09-2015, PROCESSO N.º 112/15.6YFLSB.S1;
- DE 03-02-2016, PROCESSO N.º 6/16.8YFLSB.S1;
- DE 30-03-2016, PROCESSO N.º 37/15.5GOBVR.S1;
- DE 20-09-2017, PROCESSO N.º 82/17.6YFLSB;
- DE 24-07-2018, PROCESSO N.º 4057/10.8TXLSB-K.S1.
Sumário :

I - Ao STJ está vedada a possibilidade de substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão que está na base do pedido de habeas corpus em termos de sindicar os motivos que a ela subjazem, visto que se o fizesse estaria a criar um novo grau de jurisdição, estando, do mesmo modo, vedado ao STJ apreciar eventuais anomalias processuais situadas a montante ou a jusante da decisão que ordenou a prisão, a menos que a situação de privação de liberdade subjacente ao pedido de habeas corpus consubstancie um inequívoco abuso de poder ou um erro grosseiro na aplicação do direito.
II - Tendo transitado em julgado o despacho do TEP que, determinando a execução do remanescente da pena única de 16 anos de prisão, decidiu que o arguido devia cumprir totalmente a pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias, por a mesma resultar de revogação de liberdade condicional e não ser por isso aplicável o art. 64.º, n.º 3, do CP, terminando o respectivo cumprimento em 13-08-2019, nunca poderia o STJ reapreciar tal questão.
III - Acresce que após o termo desta pena residual o condenado será necessariamente desligado do Proc. X e colocado à ordem do processo Y, uma vez que neste processo tem para cumprir a pena única de 7 anos e 9 meses de prisão, pelo que – mesmo entendendo que no tocante à pena de prisão a executar na sequência de revogação da liberdade condicional pode beneficiar-se de nova liberdade condicional – nunca se imporia a sua libertação, mas tão somente, aferir do exato momento em que deveria ser ligado a este último processo (para iniciar o cumprimento da dita pena), problemática evidentemente alheia ao objecto da providência de “habeas corpus”.
IV - Revogada a liberdade condicional e determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida, é apenas à parte residual/remanescente que deve atender-se, e não à totalidade da pena originária, para efeito de eventual concessão de nova liberdade condicional (ao abrigo do art. 64.º, n.º 3 do CP).
V - Estatuindo o n.º 4 do art. 63.º do CP que o disposto nos números anteriores não é aplicável ao caso em que a execução da pena resultar de revogação da liberdade condicional, a jurisprudência do STJ encontra-se actualmente estabilizada no sentido de que, quando uma das penas a executar numa execução sucessiva de penas constitui o remanescente de uma pena resultante da revogação da liberdade condicional, ela não pode entrar na “soma das penas” aludida no número anterior, tendo de ser cumprida integralmente, em virtude de não poder ser objecto de nova concessão de liberdade condicional (após o integral cumprimento do remanescente, e reiniciando-se o cumprimento da pena autónoma aplicada noutro processo, deverá então reequacionar-se o problema da concessão, ou não, da liberdade condicional a metade da pena no mesmo aplicada, aos 2/3 e em renovação anual da instância).
VI - Mesmo defendendo a posição contrária, no sentido de que o arguido pode beneficiar de nova liberdade condicional no cumprimento do remanescente da primeira pena, nunca o condenado se encontraria em situação de prisão ilegal, face ao disposto no art. 63.º, n.º 3 do CP, na medida em que o cumprimento de 5/6 do somatório da pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias de prisão com a pena única de 8 anos de prisão só teria lugar em 19-12-2020, sendo certo que há ainda a considerar a pena única de 7 anos e 9 meses de prisão aplicada no Processo Y.
Decisão Texto Integral:


Acordam na 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I.

1. AA, veio requerer providência de habeas corpus em favor do arguido condenado BB, recluso no Estabelecimento Prisional de ..., invocando a ilegalidade da prisão em que este se encontra.

Essencialmente, alega:

O  entendimento extraído do n.° 3 do artigo 64° do Código Penal, quando interpretado e aplicado no sentido de que só se pode beneficiar de nova liberdade condicional quando a mesma liberdade condicional foi revogada desde que não tenha havido crime cometido no seu decurso é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, igualdade, estado de direito democrático e aplicação da lei criminal, ínsitos nos artigos 1º, 2º, 3º, 18°, 20º e 29°, todos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se invoca para que dela se extraiam as necessárias consequências legais.

O recluso encontra-se "ligado" a cumprir pena de prisão à ordem do Processo n.º 2065/97.1TAPRT, tendo já ultrapassado, há muito, os cinco sextos dessa mesma pena.

Essa pena é de 16 anos de prisão, tendo iniciado o seu cumprimento em 10 de fevereiro de 1999 e sido libertado condicionalmente em 21 de março de 2007.

Entretanto, foi preso em 19 de julho de 2007, por cometimento de crime no decurso da liberdade condicional, tendo sido condenado numa outra pena, pelos novos crimes, em 8 anos de prisão.

Foi ligado à pena originária de 16 anos de prisão, tendo sido "descontado" o tempo anteriormente cumprido à ordem dessa pena, sendo que, após ter ultrapassado os cinco sextos desta pena, o TEP entendeu que, a uma liberdade condicional revogada superior a 6 anos, não se aplica o artigo 64° n.º 3 do Código Penal, o que


Também segundo o artigo 61°, n.º 4, do CP "o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumpridos cinco sextos da pena".

A liberdade condicional revogada tinha como pena "sobrante" 7 anos, 10 meses e 25 dias.

O recluso está preso à ordem do processo acima referido de forma ilegal, devendo ser imediatamente "libertado/desligado" dessa pena, com efeitos reportes à data dos cinco sextos desta pena, sendo descontado no processo 326/16.1 JACBR, ao qual tem que ser ligado, o tempo cumprido a mais nesta pena aqui em concreto.

No caso em concreto que nos ocupa, os cinco sextos de uma pena de 16 anos de prisão são atingidos assim que o condenado tenha cumprido 13 anos e 4 meses, ficando com uma liberdade condicional obrigatória por força dos 5/6 da pena revogada nos termos dos artigos 64°, n.º 3, e 61°, n.º 4, do CP, no quantitativo de 2 anos e 8 meses.

Tendo em conta que está ligado à ordem dos autos da pena originária dos 16 anos desde 19-09-2011, estando previsto o seu termo para 13-08-2019, conclui-se que se encontra preso ilegalmente à ordem dos presentes autos há mais de 2 anos e 5 meses.

O cumprido em regime de prisão efetiva à ordem destes autos depois dos 5/6 da pena, que foram atingidos em inícios de 2017, têm que ser descontados no processo 326/16.1 JACBR, com efeitos retroativos a essa mesma data.

Face a todo o supra exposto, o recluso, tendo atingido os cinco sextos da pena de prisão ao perfazer 13 anos e 8 meses (que se encontram ultrapassados há mais de 2 anos), devia ter sido "desligado" do processo 2065/97.1TAPRT e "ligado" ao processo n.º 326/16.1JACBR, do Juízo Central Criminal de Coimbra.

Consequentemente, ultrapassados os prazos de lei nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 222° do CPP, requer-se que o tempo de prisão efetiva cumprido após ter atingido os 5/6 da pena do processo 2065/97.1TAPRT, ou seja todo o excedente para além dos 13 anos e 8 meses, sejam descontados na pena efetiva do processo 326/16.1JACBR, deferindo-se o presente habeas corpus.

2. A Exmª Juíza do processo, nos termos do n.º 1 do art.º 223.º do CPP, prestou a seguinte informação:

O arguido (…) foi condenado no processo n° 270/07.3GAPVZ na pena de 8 anos de prisão;



Foi detido à ordem daqueles autos em 19/09/2007, esteve em prisão preventiva até 23/02/2009, data em que passou a cumprir pena, tendo o meio sido previsto para 19/09/2011, os dois terços para 19/01/2013, os cinco sextos para 19/05/2014 e o termo para 19/09/2015;

Por decisão de 17/01/2011, transitada em julgado, foi revogada a liberdade
condicional concedida ao condenado, no processo n° 2065/97.1TAPRT, por decisão de 15/03/2007, com efeitos a partir de 15/03/2007 até 15/03/2012;


Em 22/02/2011, foi efetuada a liquidação conjunta da pena do processo n° 270/07.3GAPVZ e do remanescente da pena do processo n° 2065/97.1TAPRT (tendo sido considerado que tinha a cumprir a título de remanescente 5 anos de prisão), fixando-se o meio em 19/03/2014, os dois terços em 19/05/2016, os cinco sextos em 19/07/2018 e o termo em 19/09/2020;
(…)
Em 11/12/2014, foi alterada a liquidação conjunta das penas (entendeu-se que o condenado tinha a cumprir o remanescente de 7 anos, 10 meses e 25 dias de prisão – e não 5 anos - pois o termo da pena estava previsto para 09/03/2012), passando o meio a estar previsto para 31/08/2015, os dois terços para 24/04/2018, os cinco sextos para 19/12/2020 e o termo para 13/08/2023;
(…)
Em 24/01/2018, foi remetida certidão do acórdão do processo n° 326/16.1JACBR, com nota de trânsito em julgado em 24/11/2017, que condenou o recluso na pena única de 7 anos e 9 meses de prisão;

Face a esta nova condenação, por despacho de 01/02/2018, transitado em julgado, foi entendido estar prejudicada a anterior liquidação conjunta de penas e foi efetuada nova liquidação do remanescente da pena do processo n° 2065/97.1TAPRT, em que foi entendido não haver lugar aos cinco sextos, devendo o remanescente ser cumprido por inteiro, estando o termo previsto para 13/08/2019;

Os autos estão a aguardar a colocação do condenado à ordem do processo n° 326/16.1JACBR,  após o que será elaborado novo  cômputo  de penas  em cumprimento sucessivo.

3. Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor teve lugar a audiência, nos termos dos arts. 223.º, n.º 2, e 435.º, do CPP.

4. Cumpre, pois, decidir a questão suscitada, consistente em saber se in casu se configura uma situação de prisão ilegal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.

E decidindo.

II.

5. Com interesse para a decisão, e para além do já constante do Relatório, resulta dos autos o seguinte:

5.1. - P. 270/07.3GAPVZ (Póvoa do Varzim):

(1) Factos (5 crimes de roubo) cometidos até setembro de 2007.

(2) Decisão em 1ª instância (11.08.2008): pena única de 8 anos de prisão.

(3) Trânsito em julgado: 23.02.2009.

(4) Detenção e prisão preventiva desde 19.09.2007.

(5) Liquidação da pena (despacho de 01.06.2009): termo da pena – 19.09.2015; 1/2 - 19.09.2011; 2/3 – 19.01.2013; 5/6 – 19.05.2014.

5.2. - P. 2065/97.1TAPRT (2ª Vara Criminal do Porto):

(1) Decisão em 1ª instância: pena única de 16 anos de prisão, pela prática de crimes de roubo, furto qualificado, detenção de arma proibida e emissão de cheque sem provisão (depois de aplicado um ano de perdão, sob a condição resolutiva prevista no art. 4º da Lei nº 29/99, de 12/5) e 300 dias de multa.

(2) Trânsito em julgado do acórdão: 30.04.2004.

(3) por sentença do TEP de Coimbra, proferida em 15.03.2007, foi concedida ao condenado a liberdade condicional.

(4) por decisão do TEP de Coimbra de 17.01.2011, transitada em julgado em 15.02.2011, foi revogada a liberdade condicional, ficando o condenado com a pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias de prisão para cumprir.

(5) para o efeito, foi ligado a este processo e desligado do P. 270/07.3GAPVZ (Póvoa do Varzim), a partir de 19.09.2011 (cfr. art. 63º, nº 1, do CP).

(6) Em 08.02.2018, o TEP do Porto solicitou a emissão de mandados de desligamento do P. 2065/97.1TAPRT, para oportuno ligamento ao P. 326/16.1JACBR.C1 (Coimbra), tendo a Exmª Juíza despachado em 14.02.2018: “Com um mês de antecedência   (…) sobre o termo do remanescente da pena que o condenado tem a cumprir à ordem destes autos – 13.08.2019 (…) -, emita e envie os competentes mandados de desligamento, por forma a que, naquela data, o condenado seja desligado destes autos e colocado à ordem do processo nº 326/16.1JACBRpara cumprimento da pena aí aplicada.”.

5.3. - P. 326/16.1JACBR.C1 (Juízo Central Criminal de Coimbra):

(1) Factos praticados em 2016 no âmbito da reclusão (crimes de tráfico de estupefacientes e de corrupção ativa).

(2) Decisão em 1ª instância (19.05.2017): pena única de 7 anos e 9 meses de prisão.

(3) Trânsito em julgado: 24.11.2017.

5.4. - P. 1384/10.8TXCBR-C (TEP):

(1) Num primeiro momento, antes da condenação mencionada em supra 5.3., por despacho de 11.12.2014 do Exmº juiz do TEP de Coimbra, procedeu-se à liquidação – em cumprimento sucessivo – da pena única de 8 anos de prisão (supra 5.1.) e da pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias de prisão (supra 5.2.), do seguinte modo: termo do somatório das penas (cumprimento sucessivo integral) – 13.08.2023; 1/2 – 31.08.2015; 2/3 – 24.04.2018; 5/619.12.2020.

(2) Posteriormente, por despacho de 01.02.2018, transitado em julgado, do Exmº juiz do TEP do Porto (para o qual o processo entretanto transitara), foi decidido, em síntese, o seguinte: atenta a condenação do arguido no P. 326/16.1JACBR.C1 (Coimbra), encontra-se prejudicado o cômputo das penas em cumprimento sucessivo antes efetuado, oportunamente se elaborando nova liquidação que tenha em conta a pena correspondente à última condenação; o arguido deve cumprir a pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias de prisão, totalmente, por resultar de revogação de liberdade condicional e não ser por isso aplicável o art. 64º, nº 3, do CP, terminando a mesma em 13.08.2019; após o cumprimento desta pena residual (iniciado em  19.09.2011), o condenado será colocado à ordem do P. 326/16.1JACBR.C1 e desligado do P. 2065/97.1TAPRT, para cumprir a pena (única) de 7 anos e 9 meses de prisão.
III.

6. A providência em apreço é manifestamente infundada, por três razões fundamentais.

7. Uma primeira razão, de índole formal/processual. 
Como paradigmaticamente se refere no Ac. STJ de 30 de Março de 2016, Proc. 37/15.5GOBVR.S1, 3ª Secção, Rel. Oliveira Mendes, “está vedado ao STJ substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão que está na base da petição de habeas corpus em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da respetiva decisão, visto que se o fizesse estaria a criar um novo grau de jurisdição, igualmente lhe estando vedado apreciar eventuais anomias processuais situadas a montante ou jusante da decisão que ordenou a prisão, a menos que a situação de privação da liberdade subjacente ao pedido de habeas corpus consubstancie um inequívoco abuso de poder ou um erro grosseiro na aplicação do direito”.


Esta é a jurisprudência pacifica deste Supremo Tribunal, podendo ainda ver-se no mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, o Ac. de 20-09-2017, P. 82/17.6YFLSB, 3ª Secção, Rel. Lopes da Mota: “A providência de habeas corpus constitui uma medida excecional de urgência perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei; não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais; a providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade.”.

Consequentemente, tendo transitado em julgado o despacho de 01.02.2018 do Exmº juiz do TEP do Porto [cfr. supra 5.4.(2)] – despacho que, determinando a execução do remanescente da sobredita pena única de 16 anos de prisão, decidiu que o arguido devia cumprir totalmente a pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias, por a mesma resultar  de revogação de liberdade condicional e não ser por isso aplicável o art. 64º, nº 3, do CP (todas as disposições legais doravante citadas sem menção em contrário respeitam ao Código Penal), terminando o respetivo cumprimento em 13.08.2019 –, nunca poderia o STJ reapreciar tal questão, como em caso algo similar decidiu o Ac. do STJ de 03-02-2016, P 6/16.8YFLSB.S1, 3.ª Secção, Rel. João Silva Miguel.

Acresce que após o termo desta pena residual o condenado será necessariamente desligado do P. 2065/97.1TAPRT e colocado à ordem do P. 326/16.1JACBR.C1, uma vez que neste processo ainda tem para cumprir a pena única de 7 anos e 9 meses de prisão, pelo que – mesmo entendendo que no tocante à pena de prisão a executar na sequência de revogação da liberdade condicional pode beneficiar-se de nova liberdade condicional  – nunca se imporia a sua libertação, mas, tão somente, aferir do exato momento em que deveria ser ligado a este último processo (para iniciar o cumprimento da dita pena), problemática evidentemente alheia ao objeto da providência de habeas corpus….

8. Segunda razão.

Alega o peticionante que, em caso de revogação da liberdade condicional e subsequente concessão de nova liberdade condicional (art. 64º, nºs 2 e 3), para efeitos de cálculo das datas neste âmbito relevantes (metade, dois terços ou cinco sextos da pena, conforme os casos, nos


termos do art. 61.º), deve ser considerado o tempo total da duração da pena e não apenas a parte ainda não cumprida.

Consequentemente, sustenta: (i) que o tempo de prisão posterior ao cumprimento de 13 anos e 4 meses (período correspondente a 5/6 da pena de 16 anos de prisão que lhe foi aplicada no P. 2065/97.1TAPRT) deve ser descontado na pena que tem para cumprir no P. 326/16.1JACBR; (ii) que os 5/6 daquela pena de 16 anos de prisão já se cumpriram há mais de 2 anos, pelo que deve ser de imediato ligado a este último processo.

Porém, ao contrário do sustentado, revogada a liberdade condicional e determinada a execução da pena de prisão ainda não cumprida, é apenas à parte residual/remanescente que deve atender-se, e não à totalidade da pena originária, para efeito de eventual concessão de nova liberdade condicional (ao abrigo do art. 64.º, n.º 3), como é jurisprudência largamente maioritária do Supremo Tribunal de Justiça.

Na expressão do Ac. de 20-09-2017, P. 82/17.6YFLSB, Rel. Lopes da Mota, e, semelhantemente, no de 24-07-2018, P. 4057/10.8TXLSB-K.S1, Rel. Vinício Ribeiro, ambos desta  3.ª Secção:

«Dispõe o artigo 64.º do Código Penal, na parte que agora releva:
“1 – (…)
2 - A revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida.
3 - Relativamente à pena de prisão que vier a ser cumprida pode ter lugar a concessão de nova liberdade condicional nos termos do artigo 61.º.”
(…)
Importa ainda ter presente o disposto no artigo 185.º, n.º 8, do CEPMPL, segundo o qual, em caso de revogação da liberdade condicional, o Ministério Público junto do tribunal de execução das penas efetua o cômputo da pena de prisão que vier a ser cumprida, para efeitos do n.º 3 do artigo 64.º do Código Penal, sendo o cômputo, depois de homologado pelo juiz, comunicado ao condenado.

O cômputo da pena a efetuar é, pois, o da “pena de prisão que vier a ser cumprida”, em caso de revogação da liberdade condicional. É relativamente a esse tempo que pode ter lugar a concessão de nova liberdade condicional, nos termos e nos marcos temporais estabelecidos no artigo 61.º, com os fundamentos aí previstos, quando, em novo juízo de prognose, frustrado o anterior de que resultou a concessão da liberdade condicional, for de esperar que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.


Dir-se-ia que, sendo o tempo de prisão a cumprir respeitante à pena que foi aplicada, pois o que resta é apenas parte dela, o cômputo a efetuar deveria ter em conta a pena na sua totalidade.

Não é esse, porém, o sentido da norma. Para além de a tal leitura do preceito se opor o elemento literal decorrente do uso do modo verbal “vier”, que se refere a um tempo condicional futuro, o recurso ao elemento histórico e sistemático de interpretação impõe conclusão diversa.

Referindo-se ao artigo 63.º, n.º 2, do Código Penal, na redação originária, que corresponde ao artigo 64.º, n.º 2, na redação vigente, resultante da revisão de 1995, escreve Figueiredo Dias que “a revogação determina a execução da parte da pena ainda não cumprida, podendo, relativamente a esta parte, ser concedida de novo a liberdade condicional nos termos gerais. Esta doutrina está político-criminalmente justificada: se o resto da pena a cumprir é ainda por tempo que, se se tratasse de pena privativa da liberdade autónoma, justificaria a eventual concessão da liberdade condicional, não há qualquer razão para que esta esteja excluída, tudo devendo depender do novo juízo de prognose que o Tribunal haverá de efetuar” (As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1993, p. 550). E, referindo-se à concessão da liberdade condicional prevista no atual n.º 3 do artigo 64.º (n.º 2 do Projecto) esclareceu, no âmbito da Comissão Revisora do Código Penal, a que presidiu, que este preceito “nunca pode ter como pressuposto o cumprimento da pena principal, mas sim o resto” (Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, ed. Ministério da Justiça, 1993, pág. 157). No mesmo sentido, explicitando (e exemplificando) que o cômputo se faz com referência ao que resta da pena por cumprir, podem ainda ver-se as anotações de Pinto de Albuquerque ao artigo 64.º do Código Penal (Comentário do Código Penal, Católica Editora, 2015, pp. 338-339).

Este tem sido, aliás, o entendimento subjacente a diversas situações apreciadas e decididas neste tribunal em providências de habeas corpus relacionadas com a revogação da liberdade condicional.
(…)»

No mesmo sentido, v.g., Ac. de 24-09-2015, P. 112/15.6YFLSB.S1, 5ª Secção, Rel.  Isabel Pais Martins: de acordo com o art. 64.º, n.º 3, no caso de remanescente de pena a cumprir, o cômputo para efeitos de nova concessão de liberdade condicional incide sobre a parte da pena a cumprir e não sobre a totalidade da pena (a parte cumprida e a parte ainda não cumprida).

Deste modo, ao invés do sustentado pelo requerente, mesmo que, após a revogada liberdade condicional, o arguido pudesse no caso vertente beneficiar de nova liberdade condicional (o que, pelas razões infra expostas, não é legalmente admissível), nunca seria esta calculada em função da totalidade da pena originária.




9. Terceira razão.

9.1. Nuclearmente, questiona o peticionante que, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado e caso seja revogada a liberdade condicional de uma das penas com fundamento na prática de um crime pelo qual ao arguido foi aplicada pena de prisão, o mesmo tenha de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro, por força do disposto no art. 63º, nº 4.

Dispõe o art. 63º, nº 3: Se a soma das penas que devam ser cumpridas sucessivamente exceder seis anos de prisão, o tribunal coloca o condenado em liberdade condicional, se dela não tiver antes aproveitado, logo que se encontrarem cumpridos cinco sextos da soma das penas.

Como se sabe, estatuindo o nº 4 do mesmo artigo que o disposto nos números anteriores não é aplicável ao caso em que a execução da pena resultar de revogação da liberdade condicional, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça encontra-se atualmente estabilizada no sentido de que, quando uma das penas a executar numa execução sucessiva de várias penas constitui o remanescente de uma pena resultante da revogação da liberdade condicional, ela não pode entrar na ”soma das penas” aludida no número anterior, tendo de ser cumprida integralmente, em virtude de não poder ser objeto de nova concessão de liberdade condicional[1] (após o integral cumprimento do remanescente, e reiniciando-se o cumprimento da pena autónoma aplicada noutro processo, deverá então reequacionar-se o problema da concessão, ou não, da liberdade condicional a metade da pena no mesmo aplicada, aos 2/3 e em renovação anual da instância).

Todavia, mesmo defendendo a posição contrária (i.e., que, havendo lugar à execução de várias penas de prisão, caso seja revogada a liberdade condicional com fundamento na prática de um crime por que venha a ser condenado em nova pena de prisão, o arguido pode beneficiar de nova liberdade condicional no cumprimento do remanescente da primeira pena), nunca o condenado em causa se encontraria em situação de prisão ilegal.

Com efeito:

Em caso de cumprimento sucessivo de penas cuja soma seja superior a seis anos de prisão, o tribunal coloca o condenado em liberdade condicional logo que se encontrem cumpridos cinco sextos da soma das penas (art. 63º, nº 3).

Ora, o cumprimento de 5/6 do somatório da pena residual de 7 anos 10 meses e 25 dias de prisão com a pena única de 8 anos de prisão só teria lugar em  19.12.2020  [cfr. supra 5.4.(1)], sendo certo que há ainda a considerar a pena única de 7 anos e 9 meses de prisão aplicada no P. 326/16.1JACBR.C1/Coimbra, totalmente incumprida…

9.2. Assim sendo (uma vez que mesmo à luz da doutrina contrária à da atual jurisprudência do STJ, nunca o arguido se encontraria em situação de prisão ilegal), fica prejudicada a apreciação das inconstitucionalidades invocadas pelo peticionante.

Sempre se dirá, não obstante, que não vemos que a preconizada interpretação dos nºs 3 e 4 do art. 63º viole os “princípios da legalidade, igualdade, estado de direito democrático e aplicação da lei criminal, ínsitos nos artigos 1º, 2º, 3º, 18°, 20º e 29°, todos da Constituição da República Portuguesa”, sendo certo que o requerente não concretiza as razões em que alicerça aquele seu juízo de desconformidade constitucional e, como é jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, não basta acusar uma norma de violar um preceito da Constituição para se considerar bastante tal alegação, impondo-se a indicação dos correspondentes motivos concretos.

Não deixando ainda de se relembrar já ter o Tribunal Constitucional decidido que  “[O] condenado, ao infringir os deveres de comportamento resultantes de se encontrar em liberdade

condicional, sabe que esta medida poderá ser revogada, pelo que não lhe assiste qualquer expectativa tutelada de que já não terá que cumprir a parte da pena privativa de liberdade não executada” (Ac. n.º 477/2007, de 25.09.2007, Diário da República n.º 212/2007, Série II de 2007-11-05).
IV.

10. Em face do exposto, por falta de fundamento, acorda-se em indeferir o requerimento de habeas corpus.

Custas pelo requerente, com taxa de justiça de 4 UCs.



                                       Lisboa, 12.06.2019
(Mário Belo Morgado)


 (Manuel Augusto de Matos)

(Santos Cabral)

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[1] Neste sentido v.g. Acs. de 14-08-2009, P. 490/09.6YFLSB.S1, 3.ª Secção, Rel. Maia Costa; de 04-02-2010, P. 2329/00.9TXLSB-A.S1, 3.ª Secção, Rel. Armindo Monteiro; de 01-10-2015, P.  114/15.2YFLSB.S1 - 5.ª Secção, Rel. Helena Moniz; de 03-02-2016, P.  6/16.8YFLSB.S1, 3.ª Secção, Rel. João Silva Miguel; de 13-07-2016, P. 570/11.8TXPRT-F1.S1, 3.ª Secção, Rel. Oliveira Mendes; de 13-07-2016, Proc. n.º 46/16.7YFSLB.S1, 3.ª Secção, Rel. Raúl Borges; de 12-08-2016, P. 1314/11.0TXPRT-N.S1, 3.ª Secção, Rel. Manuel Augusto de Matos; de 24-07-2018, P. 4057/10.8TXLSB-K.S1, 3.ª Secção, relator Vinício Ribeiro; e de 23-01-2019, P. 6533/07.0TDLSB-F.S1, 3.ª secção, Rel. Nuno Gonçalves. Assinale-se que, numa abordagem flexível da matéria, se decidiu no Ac. do STJ de 24-09-2015, P. 112/15.6YFLSB.S1, 5.ª Secção, Rel. Isabel Pais Martins, que, em caso de cumprimento sucessivo de penas de prisão em que não seja aplicável o disposto nos nºs 1 e 2 do art. 63.º do CP, por força do estatuído no n.º 4 do mesmo dispositivo em virtude da revogação da liberdade condicional e onde, necessariamente, uma das penas terá de ser cumprida por inteiro, o mais razoável é que o seja a pena remanescente resultante da revogação da liberdade condicional, embora nada obsta a que excecionalmente se proceda de forma inversa, caso de tal aplicação resulte uma situação concretamente mais favorável ao recluso.