Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13688/16.1TBPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1. ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO ATRIBUTIVO DE COMPETÊNCIA
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
TRANSMISSÃO UNIVERSAL
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
PEDIDO
PETIÇÃO INICIAL
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Data do Acordão: 03/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / DISPOSIÇÕES GERAIS SOBRE COMPETÊNCIA / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, 2010, Almedina, p. 251 e 255;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, p. 124, 131, 137 e 188;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91;
- Miguel Teixeira de Sousa, Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, p. 36;
- Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, p. 72 e 450;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3.ª edição, 1982, p. 372;
- Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2.ª edição, 2004, p. 195.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 59.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 8.º, N.º 4.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012: - ARTIGO 25.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-01-1994, IN BMJ, N.º 433, P. 554;
- DE 02-07-1996, IN BMJ, N.º 459, P. 444;
- DE 03-02-1997, IN BMJ, N.º 364, P. 591;
- DE 05-02-2002, IN CJSTJ, ANO X, TOMO I, P. 68;
- DE 18-03-2004, PROCESSO N.º 04B873, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-05-2004, PROCESSO N.º 04A1213, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-04-2008, PROCESSO N.º 08B845, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-09-2011, PROCESSO N.º 3539/08.6TVLSB.LL.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2016, PROCESSO N.º 540/14.4TVLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-04-2016, PROCESSO N.º 538/14.2TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-09-2016, PROCESSO N.º 1386/15.8T8PRT-B.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 5297/12.0TBMTS.P1.S2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 2834/16.5T8GMR.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-11-2018, PROCESSO N.º 6919/16.0T8PRT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 07-07-2016, PROCESSO N.º 1387/15.6T8PRT-B.L1.P1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência internacional, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontre configurada na petição inicial.

II - As normas dos regulamentos europeus prevalecem sobre as normas processuais portuguesas e têm aplicação directa na ordem interna.

III - Uma situação jurídica plurilocalizada e transnacional pode ser objecto de pacto atributivo de competência nos termos do art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

IV - A cessão da posição contratual tem como efeito principal típico a transferência da posição processual do cedente para o cessionário e por conteúdo a totalidade dessa posição, no seu conjunto de direitos e obrigações.

V - A convenção de atribuição de jurisdição constante de um contrato, embora vincule, em princípio, os seus outorgantes, por efeito da cessão da posição contratual passa a vincular o cessionário.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 13688/16.1T8PRT.P1.S1[1]
*

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA, Lda., com sede na Rua ...;

BB, residente na Rua ...;

CC, residente na Rua ...;

DD, Lda., com sede na Rua ...;

EE, residente na Rua ...;

FF, Lda., com sede na Rua ...;

GG, residente na Rua ...;

HH, residente na ...;

II, Lda., com sede na Rua ...; e

JJ, Lda., com sede na Rua ...,

intentaram acção declarativa com processo comum contra

LL, SA, com sede na Rua ...;

MM, SA, com sede em ..., e

NN, SA, com sede em ...,

pedindo a condenação das rés nos seguintes termos:

“a.     a Ré NN, a ver o seu contrato de sublicenciamento anulado;

b.         as Rés MM e LL, a verem anulados os contratos com elas celebrados, dependentes do celebrado com a Ré NN;

Subsidiariamente, para a hipotética improcedência dos pedidos antecedentes, devem:

c.        ser declaradas nulas e/ou excluídas todas as arguidas cláusulas, do contrato dos Autores, com a Ré NN; e

d.        ser declarados resolvidos os contratos das Rés MM e LL, por incumprimento que lhes é imputável;

em qualquer caso:

e.       a  Ré LL e, solidariamente com esta, as restantes Rés - a pagarem aos Autores que produziram e entregaram fruta, indemnização a liquidar em execução de sentença, pela diferença em falta, do preço devido, pelas campanhas de 2014 e 2015, acrescida de juros à taxa legal, os vencidos e os vincendos desde a citação.”

Fundamentaram estes pedidos, em resumo, em contratos que celebraram com as rés e no incumprimento por estas.

Citadas, as rés contestaram, excepcionando, além do mais, a incompetência internacional do tribunal, tendo a ré NN deduzido, ainda, reconvenção, pedindo a condenação do autor CC a pagar-lhe a quantia de 250.000,00 €, acrescida de 42.3000,00 €, bem como o montante de 5.000,00 €, nos termos contratados.

 

Os autores replicaram, respondendo à excepção deduzida e pugnando pela improcedência da reconvenção.

Dispensada a audiência prévia e realizada tentativa de conciliação, improfícua, foi proferida decisão que, julgando procedente a excepção da incompetência internacional do tribunal, absolveu as rés da instância quanto aos pedidos formulados na acção e absolveu o autor CC quantos aos pedidos contra si formulados em sede de reconvenção pela ré Sofruileg.

Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 27/9/2018, na procedência parcial do recurso, decidiu alterar a sentença recorrida, julgando o tribunal português “internacionalmente competente para o conhecimento dos pedidos que os autores deduzem contra a ré LL, SA, sob d. e e.”.

 Inconformada, desta feita, a ré LL, S.A., interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

“1.       O Tribunal da Relação do Porto errou ao apreciar os factos descritos pelos Autores, havendo efectivamente uma dependência das alíneas d. e e. relativamente às alíneas a., b. e c. do pedido formulado a final da petição inicial.

2.        A forma como estão redigidas e estruturadas as diversas alíneas do pedido final da petição inicial assim o dita, conforme acima melhor exposto.

3.        Com base na configuração da relação contratual preconizada pelos Autores na petição inicial, vertida pelo Tribunal da Relação do Porto na fundamentação da sua decisão, teve lugar uma cessão de posição contratual;

4.         Em conformidade, as partes assumem os mesmos direitos e obrigações do contrato original e, portanto, o pacto de atribuição de jurisdição constante da cláusula 17.ª do contrato celebrado entre os Autores e a Ré MM é igualmente válido e eficaz para os Autores na sua relação contratual com a Ré/ora Recorrente LL,

5.        O que dita que seja o Tribunal de Comércio de Dax, em França, o tribunal competente para apreciar um suposto incumprimento de tal contrato, bem como o pagamento de uma indemnização daí decorrente.

6.         São os próprios Autores que não fazem qualquer distinção entre contratos, tendo presente o teor expresso da redacção adoptada pelos Autores para a alínea d. do pedido final da petição inicial.

7.         Não havendo qualquer solidariedade legal, a alegação pelos Autores de uma solidariedade por vontade das partes deve ser interpretada no sentido de existir uma única relação contratual, o que implica que a Ré/ora Recorrente deva ser demandada em França conjuntamente com as outras Rés.

8.         Ao contrário do que considerou o acórdão em crise, as Rés encontram-se numa situação de litisconsórcio necessário, o que implica igualmente a conclusão do ponto 5 supra.

Nestes termos, e nos melhores de Direito a serem doutamente supridos por V. Exas., deve ser proferido acórdão revogando a decisão do Tribunal da Relação do Porto e mantendo-se a decisão de 1.ª instância, com a consequente declaração de incompetência dos tribunais portugueses para julgar os pedidos formulados nas alíneas d. e e. do pedido final da petição inicial, com o que se fará, como habitualmente, inteira e sã JUSTIÇA.”

            Os autores contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.


O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer dos pedidos formulados sob as alíneas d) e e).

II. Fundamentação

1. De facto

No acórdão recorrido foram transcritos os factos alegados pelos autores que haviam sido considerados na decisão recorrida, ali em apreciação, aditando-lhes nós letras no início de cada parágrafo para melhor identificação, que são os seguintes:

A- Os Autores celebraram com a Ré NN contrato denominado de contrato de concessão de sublicença de certificados de obtenção vegetal para o aprovisionamento exclusivo dos licenciados de marca.

B- Celebraram-no, uns Autores em 10-05-2013 e outros nos primeiros meses do ano de 2015.

C- Tudo conforme melhor resulta de exemplar desses contratos que juntam como documento nº 1 da petição inicial.

D- Esses contratos foram celebrados nos respectivos domicílios profissionais ou pessoais dos diferentes Autores, não obstante de alguns deles constar a menção da sua celebração em ..., França, correspondente à sede comum das Rés NN e MM.

E- A Ré NN, naquele contrato e como pressuposto da contratação, declarou-se perante os Autores detentora da licença de exploração exclusiva das plantas, objecto dos certificados de obtenções vegetais das variedades de Actinidia Arguta, no território europeu, para a reprodução, distribuição e venda dos direitos de exploração da marca Nergy, na Europa, tendo, portanto, o direito de a sub-licenciar aos produtores agrícolas.

F- Mais declarou ser detentora da licença, não exclusiva, para marketing e venda dos frutos, sob aquela marca Nergy, provenientes daquelas plantas.

G- Ao abrigo daquele contrato com a Ré NN, os Autores, na qualidade de produtores de Kiwis, detentores de explorações agrícolas sitas nos respectivos domicílios profissionais ou pessoais, adquiriram os direitos de criação, cultivo e colheita de variedades de Kiwi Actinidia Arguta.

H- Ficando os Autores, no entanto, obrigados e condicionados a vender os frutos objecto daquela exploração exclusivamente a operadores comerciais, sub-licenciados pela Ré NN.

I- Na data de 11-04-2014 e posteriormente em Maio de 2015, nos seus domicílios profissionais, os Autores AA, Lda., BB, CC e DD, Lda., celebraram, com a Ré MM (na qualidade de operadora comercial, sub-licenciada e indicada pela Ré NN), o contrato de venda dos frutos explorados, nas suas explorações agrícolas, ao abrigo do contrato de concessão outorgado com a Ré NN, tudo conforme melhor resulta de exemplar desses contratos que juntam sob o documento nº 2 da petição inicial.

J- Em meados de Junho/Julho do ano de 2015, na cidade do Porto, o senhor OO, legal representante das três Rés, comunicou aos Autores com fruta para venderem nesse ano, que os direitos de comercialização da fruta dos agricultores portugueses, pela Ré Primland, iriam passar a ser exercidos por uma nova entidade, a Ré LL, à qual foram cedidos pela Ré MM, autorizada pela NN.

K- Tal aconteceu em vésperas da colheita de 2015, quando os produtores já não dispunham de tempo para eventual alternativa/solução de escoamento da fruta.

L- Assim, em Agosto de 2015, por contrato verbal, aqueles Autores venderam à Ré LL toda a fruta produzida, referente à campanha de 2015.

M- A qual foi entregue pelos mesmos e foi pela Ré LL recebida, nas instalações que disponibilizou na freguesia de Briteiros, do concelho de Guimarães, mais concretamente nas instalações da empresa “Frutas Douro ao Minho”, tal como havia já sucedido no ano de 2014.

N- Tal venda e entrega foi feita no âmbito da execução continuada do contrato supra referido de fornecimento exclusivo da fruta produzida por aqueles Autores, celebrado com a Ré MM, por imposição do contrato, com a Ré NN, a que esses Autores aderiram.

O- A cessão da posição contratual da Ré MM para a Ré LL foi confirmada, formalmente, pela Ré NN, por mensagem de correio electrónico de 04-12-2015.

P- Do contrato junto pelos autores sob o documento nº 1, consta uma cláusula (artigo 2-20 – Atribuição de Jurisdição), nos termos da qual, todos os diferendos contratuais, nomeadamente quanto à sua validade, interpretação, execução ou cessão, serão submetidos ao Tribunal de Grande Instância de Bordéus, França (fls. 24 e 51, verso).

Q- Do contrato junto pelos autores sob o documento nº 2, consta uma cláusula (artigo 17: Atribuição de Jurisdição), nos termos da qual, todos os diferendos contratuais serão submetidos ao Tribunal de Comércio de DAX, França (fls. 29, verso).

2. De direito

No que respeita à competência internacional dos tribunais portugueses, o art.º 59.º do CPC estabelece:

 “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

No art.º 62.º são enunciados três critérios de atribuição da competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses, habitualmente designados por critérios da coincidência [al. a)], da casualidade [al. b)] e da necessidade [al. c)].

No art.º 63.º são enunciados factores de competência exclusiva dos tribunais portugueses que se traduzem numa reserva de jurisdição.

E no art.º 94.º está regulada a competência convencional internacional, prevendo os pactos de jurisdição, através dos quais as partes convencionam sobre a jurisdição nacional competente para apreciar um litígio que apresente elementos de conexão com mais de uma ordem jurídica, os quais podem ser atributivos ou privativos.

Os pactos atributivos de jurisdição são aqueles que “concedem competência aos tribunais portugueses para apreciação de pedido referente a uma situação jurídica plurilocalizada, para o que não eram por lei competentes”.

Por sua vez, os pactos privativos são “aqueles que lhes retiram a competência que para tanto tinham por lei”, atribuindo-a a um ou vários tribunais estrangeiros[3].

Assim, os tribunais portugueses podem receber competência internacional por efeito de aplicação de normas de regulamentos europeus, de normas de outros instrumentos internacionais ou de normas de direito interno português, sendo que aquelas, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do CPC[4]

É o que decorre do primado do direito comunitário, da sua prevalência sobre o direito português e da sua aplicação directa na ordem interna, previsto no art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais de direito democrático”.

E é o que resulta da ressalva no citado art.º 59.º.

Um desses regulamentos é o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012 (doravante apenas Regulamento), aqui aplicável, visto a acção ter sido instaurada depois de 10 de Janeiro de 2015 (cfr. seu art.º 66.º, n.º 1), o qual revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, e que substituiu (cfr. art.ºs 80.º e 81.º).

 Aquele Regulamento, à semelhança do que o antecedeu, “aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição” (art.º 1.º, n.º 1).

Tratando o presente pleito dessa matéria, tendo a acção sido intentada após 10 de Janeiro de 2015, mais precisamente no dia 3/7/2016, em plena vigência de tal Regulamento, não há dúvida de que o mesmo pode e deve ser aqui aplicado, como foi no acórdão recorrido.

O art.º 25.º[5] do Regulamento estipula:

1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado: 

a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; 

b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si;

ou 

c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.

5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.

A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido”.

Depreende-se do n.º 1 deste preceito que as partes, independentemente do seu domicílio, e não se colocando qualquer vício ou imperfeição formal relativamente ao pacto atributivo de jurisdição, podem convencionar que um tribunal (ou tribunais) de um Estado-Membro da União Europeia tenha competência para decidir quaisquer litígios surgidos ou a surgir entre elas de “uma determinada relação jurídica”.

Também decorre do primado do direito comunitário, da sua prevalência sobre o direito português e da sua aplicação directa na ordem interna que, à luz do Regulamento, não cabe aferir da eventual aplicação do disposto em normas de direito nacional, como as vertidas no CPC (nomeadamente a do art.º 94.º).

           Assim foi entendido no acórdão recorrido, que concluiu pela incompetência dos tribunais portugueses relativamente aos pedidos deduzidos sob as alíneas a), b) e c), bem como nas alíneas d) e e), quanto à ré MM, confirmando, nessa parte, a sentença da 1.ª instância. Esta apenas foi alterada na parte referente à ré LL, SA, relativamente aos pedidos deduzidos sob as alíneas d) e e), para cujo conhecimento o tribunal português foi julgado internacionalmente competente, por não ter tido intervenção no pacto atributivo de jurisdição.

            Contra este entendimento, insurge-se a ré LL, por entender que também está abrangida por tal pacto, em face da cessão da posição contratual verificada e da dependência destes pedidos relativamente aos restantes formulados sob as alíneas a), b) e c).

            Vejamos.

           Importa começar por lembrar que, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado[6], a aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência em razão da nacionalidade, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial. Se assim é noutros tipos de competência, por maioria de razão o será na competência internacional, uma vez que a respectiva legislação condiciona o exercício da função jurisdicional dos tribunais portugueses e a infracção das suas regras determina a incompetência absoluta do tribunal e implica a absolvição do réu da instância [art.ºs 96.º, al. a), 97.º e 99.º, n.º 1, todos do CPC). Assim sendo, constituindo uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou de improcedência, a apreciação desta excepção dilatória terá de ser ajuizada à luz do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor na petição inicial.

Na petição inicial, os autores alegaram a cessão da posição contratual da ré MM à ré LL, autorizada pela ré NN [cfr. factos acima indicados sob as alíneas J) e O)] e, com base nessa cessão, pediram a condenação da ré, ora recorrente.

A cessão da posição contratual é, como resulta do disposto no art.º 424.º, n.º 1, do CC, a “transmissão a um terceiro do acervo de direitos e deveres que, por uma parte, emergem de determinado contrato. Esse acervo de direitos e de deveres é designado “posição contratual”, em homenagem à sua origem. A parte que transmite a sua posição diz-se cedente; a outra parte, cedido; e o terceiro, cessionário”[7]. Constitui o meio dirigido à circulação da relação contratual, isto é, à transferência, «ex negotio», por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cedido), para um terceiro (cessionário), do complexo das posições activas e passivas criadas por um contrato.

O seu efeito típico principal consiste na transferência da posição contratual, com a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, passando todas as situações subjectivas, activas e passivas, cujo complexo unitário, dinâmico e funcional, constitui a chamada relação contratual, a figurar na titularidade do cessionário[8].

Tem por conteúdo a totalidade da posição contratual, no seu conjunto de direitos e obrigações[9], transferindo-se para o terceiro cessionário os direitos e obrigações indissociáveis da posição contratual do cedente, sem que se trate de um somatório de créditos e dívidas transmissíveis, isoladamente, que se associaram para efeitos de transmissão[10].

Tendo havido convenção de atribuição de jurisdição entre os contratantes iniciais, como alegaram os autores e consta designadamente dos factos constantes da supra enunciada alínea Q), e foi reconhecido no acórdão recorrido quanto às restantes rés, nessa parte não impugnada, parece-nos claro, face aos contornos e efeitos da figura da cessão da posição contratual, que a cessionária (a terceira ré) fica vinculada nos mesmos termos em que a cedente (a ré MM) o estava[11].

Assim, também a ré/recorrente, na qualidade de cessionária, está sujeita à cláusula com pacto atributivo de jurisdição tal como estava a cedente, ainda que não tivesse assinado o contrato onde aquela cláusula foi inserida.

Destarte, com o devido respeito, cremos que andou mal o tribunal a quo ao entender que aquela convenção não a vinculava e, por isso, eram os tribunais portugueses internacionalmente competentes, atentos os elementos de conexão relevantes – domicílio da ré e local de cumprimento -, por forçado disposto nos art.ºs 59.º, 62,º, al. a), e 71.º, n.º 1, todos do CPC.

Encontrando-se a cessionária vinculada nos mesmos termos em que estava a cedente, também existe, quanto a ela, pacto atributivo de jurisdição, no caso o Tribunal de Comércio de DAX, França.

E existindo pacto atributivo de jurisdição, nos termos do art.º 25.º do Regulamento, ficam excluídas quer a competência determinada pelo princípio geral do foro do demandado, consagrado no art.º 4.º, quer as competências especiais previstas nos art.ºs 7.º a 9.º do mesmo Regulamento[12].

Procede, deste modo, o recurso, ficando prejudicada a apreciação do outro fundamento invocado.

Sumariando:
1. A aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência internacional, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontre configurada na petição inicial.
2. As normas dos regulamentos europeus prevalecem sobre as normas processuais portuguesas e têm aplicação directa na ordem interna.
3. Uma situação jurídica plurilocalizada e transnacional pode ser objecto de pacto atributivo de competência nos termos do art.º 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
4. A cessão da posição contratual tem como efeito principal típico a transferência da posição processual do cedente para o cessionário e por conteúdo a totalidade dessa posição, no seu conjunto de direitos e obrigações.
5. A convenção de atribuição de jurisdição constante de um contrato, embora vincule, em princípio, os seus outorgantes, por efeito da cessão da posição contratual passa a vincular o cessionário.

III. Decisão

Pelo exposto, julga-se a revista procedente, revoga-se o acórdão recorrido e, repristinando a decisão da 1.ª instância, declara-se a incompetência dos tribunais portugueses também para julgar os pedidos formulados sob as alíneas d) e e), com a consequente absolvição da ré/recorrente da instância.


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          Custas pelos autores/recorridos.
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Lisboa, 7 de Março de 2019

Fernando Samões (Relator) *

Maria João Vaz Tomé

Garcia Calejo

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. Garcia Calejo
[3] Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, págs. 131, 137 e 188.
[4] Cfr., neste sentido, os autores referidos na nota anterior, obra citada, pág. 124 e a jurisprudência ali mencionada, e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 26/1/2016, processo n.º 540/14.4TVLSB.S1, de 21/4/2016, processo n.º 538/14.2TVLSB.L1.S1, de 6/9/2016, processo n.º 1386/15.8T8PRT-B.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt, e o da RP de 7 de Julho de 2016, processo n.º 1387/15.6T8PRT-B.L1.P1, relatado pelo aqui relator, também disponível em www.dgsi.pt, que aqui estamos a seguir e reproduzir, confirmado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 9/2/2017, acessível no mesmo sítio.
[5] Correspondente ao art.º 23.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, com algumas alterações.
[6] Cfr., entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91; Miguel Teixeira de Sousa, Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, pág. 36; e Acs. do STJ de 12/1/94, 2/7/96 e de 3/2/97, no BMJ, respectivamente, n.ºs 433, pág. 554, 459/444 e 364/591, de 5/2/2002, na CJ – STJ -, ano X, tomo I, pág. 68, de 18/3/2004, no processo n.º 04B873, de 13/5/2004, no processo n.º 04A1213 e de 10/4/2008, no processo n.º 08B845, estes três últimos disponíveis em www.dgsi.pt; do Tribunal de Conflitos, de 20/10/2011, proferido no processo n.º 13/11, disponível no mesmo sítio, entre outros, embora a propósito da competência interna, e ainda o acórdão do STJ de 18/10/2018, processo n.º 2834/16.5T8GMR.S1, disponível no mesmo sítio da internet.
[7] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, 2010, Almedina, pág. 255.
[8] Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, págs. 72 e 450 e Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 251.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3.ª edição, revista e actualizada, 1982, pág. 372.
[10] Romano Martinez, Direito das Obrigações, 2.ª edição, 2004, 195 e acórdão do STJ de 18/10/2018, processo n.º 5297/12.0TBMTS.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt

[11] Neste sentido, embora reportando-se a convenção de arbitragem, decidiu o acórdão do STJ de STJ 8/9/2011, processo n.º 3539/08.6TVLSB.LL.S1 , disponível em www.dgsi.pt

[12] Cfr. acórdão deste Tribunal e Secção, de 13 de Novembro de 2018, processo n.º 6919/16.0T8PRT.G1.S1, onde é referida vasta jurisprudência, acessível em www.dgsi.pt.