Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
141/17.5T9RGR.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ILICITUDE
Data do Acordão: 09/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, MANTENDO INTEGRALMENTE A DECISÃO RECORRIDA;
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
Doutrina:
- Adriano Teixeira, Teoria da Aplicação Pena. Fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato.”, Marcial Pons, São Paulo, 2015, págs. 64;106-107.
- Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito, Civitas, 1997, § 14, p. 555 a 604 ; La Teoria del Delito en la Discussión actual, Editorial Grijley, 2007, p. 52, 53 e 71 ; Fundamentos Politico-Criminales del Derecho Penal, Hammurabi, Buenos Aires, 2008, p. 63, 69 e 65;
- Francesco Antolisei, Manuale di Diritto Penale, Parte general, Giuffrè Editore, Milano, 1997;
- Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal, parte especial, Tirant lo Blanch, Valência, 2001, p. 629;
- Jesús-Maria Silva Sáchez, La teoria de la Determinación de la Pena como Sistema (dogmático): un primero esbozo, InDret, Revista para el Analisis del Derecho, Barcelona, Abril de 2007, p. 5 e 6;
- Winfried Hassemer, Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, p. 127.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 410.º.
LEGISLAÇÃO DE COMBATE À DROGA, APROVADO PELO DL N.º 15/1993, DE 22 DE JANEIRO: - ARTIGO 21.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 02-12-2013, RELATOR RODRIGUES DA COSTA.
Sumário :

I. – Na previsão do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, pretende-se proteger a indemnidade ou salvaguarda da saúde pública;

II. – A categoria jurídico-penal da ilicitude, ou antijuridicidade (material), traduz-se, na lição de Claus Roxin, “em que nela se plasma uma lesão de bens jurídicos socialmente nocivas e que não se pode combater suficientemente com meios extrapenais”;

III. – Na lição do citado Professor, “O conteúdo material do injusto tem importância tanto para o tipo (como tipo ou classe de injusto) como para a antijuridicidade (a concreta afirmação ou negação do injusto). No aspecto valorativo do tipo o injusto material representa uma lesão de bens jurídicos que regra geral é necessário combater com meios do Direito penal; e a esse respeito deve determinar-se o conceito de bem jurídico (…). E desde o ponto de vista da antijuridicidade, o injusto material da lesão de bens jurídicos pode excluir-se pelo facto de que em caso de colisão de dois bens jurídicos se prefere o interesse pelo bem jurídico mais valioso ao menos valioso, com o que o resultado é que pese ao sacrifício de um bem jurídico se produz algo socialmente proveitoso ou ao menos não se produz um dano penal jurídico-penalmente relevante.

IV. - A culpabilidade actua simultaneamente como pressuposto fundamentador da pena “posto que nunca pode impor-se uma pena se ela não estiver presente, assim como tão pouco a pena pode ir além da sua medida. No entanto a tarefa da pena é igualmente preventiva, pois ela não deve retribuir mas sim impedir a comissão de delitos (crimes). Em câmbio, a culpabilidade só tem a função de limitar, ema aras da liberdade dos indivíduos, magnitude dentro da qual devem perseguir-se objectivos preventivos. Disto resulta, por politica criminal, aquele princípio da dupla limitação que caracteriza a minha sistematização da categoria da responsabilidade: a pena não deve ser imposta nunca sem uma legitimação preventiva, mas tão pouco pode haver pena sem culpabilidade ou mais além da medida desta. A pena de culpabilidade é limitada através do preventivamente indispensável; a prevenção é limitada através do princípio da culpabilidade.” (Claus Roxin, La Teoria del Delito en la Discussión Actual, Editora Jurídica Grijleey,  2007, págs. 52-53)

Decisão Texto Integral:

I. – RELATÓRIO.

- O Ministério Público, junto do Tribunal da comarca dos ..., Secção da ..., deduziu acusação contra AA, [...], ..., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (Lei da Droga – “LD”), nos termos dos factos constantes da acusação pública de fls. 273-277;

- Com a prolação do despacho a que aludem os artigos 311º e 312º do Código de Processo Penal, foi recebida a acusação e designada data para audiência de discussão e julgamento (fls. 295 a 297);

- Realizada a audiência foi proferida sentença, datada de 3 de Maio de 2019, em que e decretou (sic): “condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de sete anos de prisão.”

- Dissentindo do julgado, recorre o arguido, tendo dessumido a fundamentação com que cevou a pretensão recursiva, no epítome que  seguir se deixa transcrito.

I.a). – QUADRO CONCLUSIVO.

1ª) Dá-se por integralmente reproduzida a matéria de facto acima transcrita.

2ª) A incriminação do nº1 do artigo 21º do DL nº 15/93, de 22/01, visa proteger e tutelar sobretudo a saúde e a segurança públicas. É um crime de perigo na medida em que não exige para a respectiva consumação, a efectiva lesão dos bens jurídicos tutelados; crime de perigo comum uma vez que a norma protege uma pluralidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública;

crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos.

3ª) Para que se ponham em causa tais valores jurídicos de forma penalmente relevante, têm que estar reunidos vários elementos constitutivos. Conclui-se serem os seguintes, os elementos objectivos deste tipo de ilícito:

- Não possuir autorização emitida pelas autoridades e nos termos que constam no Capítulo II do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro;

- Praticar qualquer uma das condutas descritas - cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver;

- Tratar-se de plantas, substâncias ou preparações constantes nas tabelas I a III, publicadas em Anexo àquele diploma legal;

- A posse do produto estupefaciente não se destinar ao consumo do agente

4ª) Por seu turno o artigo 25º do mencionado diploma legal estipula que “se nos casos previstos no art. 21º…, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações a pena é de:

a) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;”. Ora;

5ª) No que concerne ao tráfico de menor gravidade, o mesmo fundamenta-se na diminuição considerável da ilicitude do facto revelado pela valoração conjunta de diversos factores, alguns deles enunciados, a título exemplificativo

– conforme se vê do advérbio “nomeadamente”- na norma:

meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações, constituindo este preceito uma válvula de segurança do sistema destinado a evitar que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial.

6ª) Por outro lado, a detenção de substâncias compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao D.L. nº 15/93, de 22/1, para consumo próprio integra a prática de um crime de consumo de estupefacientes, do art. 40º, nº 2 (que o douto acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2008 decidiu que continuava em vigor), se a sua quantidade for superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

7ª) Na verdade, nos termos do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2008, fixou-se jurisprudência no sentido de que “não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro, o artigo 40.º n.º 2 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só quanto “ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

8ª) Caso em que estaríamos perante um ilícito meramente contraordenacional.

9ª) Conforme o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando, a tipificação do referido artigo 25.º tem o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e a frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do artigo 21.º do mesmo diploma e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º, sendo, no fundo a necessidade de distinguir, afinal, o "verdadeiro tráfico" [grande e médio] do pequeno tráfico que actualmente se vê o STJ claramente assumir.

Do caso judicie

10ª) Atentos os factos provados em 2.1 e 2.2 acima transcritos temos de reconhecer como afastado o cenário da mera contra-ordenação. Porém à luz da doutrina e jurisprudência expostas e;

11ª) Considerando os factos provados, as substâncias em causa e bem assim as quantidades, apesar de tudo pequenas, leva a concluirmos a prática pelo arguido do crime previsto e punido pelo artigo 25º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22.01 e não de ter incorrido na prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21 da mesma lei, normas que o tribunal recorrido violou e devem merecer interpretação conforme lhes é dada no presente recurso. Assim;

12ª) Deverá esse douto tribunal ad quem considerar revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene o arguido pela prática de crime de um crime p. e p. pelo artigo 25º da mesma lei.

Por mera cautela e sem prescindir;

13ª) Caso assim não se entenda e se mantenha a decisão de punir o arguido pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 21, nº 1, do D.L. n.º 15/93, de 22.01 deva a pena ser reduzida para o mínimo legal de 5 anos. Senão vejamos;

14º) Cumpre determinar a pena concretamente aplicável ao arguido pela prática, do crime acima analisado, atendendo à pena abstratamente aplicável, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades.

15ª) Quanto às finalidades das penas, estabelece o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”

16ª) A pena tem por fundamento e limite a medida da culpa, não podendo ultrapassá-la (cfr. artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1 do Código Penal).

17ª) Para a determinação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, atender-se-á à culpa do agente e às exigências de prevenção, ponderando ainda todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as circunstâncias previstas nas diversas alíneas do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.

18ª) Resulta do disposto no artigo 21.º, nº 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, que a conduta do arguido é abstractamente punida com pena de 4 a 12 anos de prisão.

19ª) O tribunal «a quo» ponderou indevida e incorrectamente na medida concreta da pena em desfavor do arguido, a confissão do mesmo e seu contributo DETERMINANTE para a descoberta da verdade material, como não ponderou correctamente o facto do arguido e da esposa serem consumidores de estupefacientes, destinarem parte importante e significativa do produto das vendas aos seus consumos e ainda terem decorrido mais de 5 (cinco) anos desde a última condenação do arguido por tráfico de menor gravidade. – cfr. pontos 5 e 7.3 dos factos provados

20ª) Importa ainda atender à intensidade do dolo, na forma directa e a gravidade das consequências a circunstância de o arguido também ser consumidor, valorar-se ainda o facto de contar com o relevante apoio dos seus familiares para se reinserir socialmente (cfr. Ponto 6, in fine dos factos provados) ponto sendo quanto a este medianas as necessidades de prevenção especial.

21ª) Deste modo, considera-se adequada e justa a aplicação de uma pena de prisão em medida concreta nunca superior 5 anos (cinco anos), suspensa na sua execução por igual período.

Nestes termos e no que mais doutamente se suprirá, deve o presente recurso merecer provimento e consequentemente deverá:

A) Revogar-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene o arguido pela prática de crime p. e p. pelo artigo 25º do Decreto –Lei nº 15/93.

Ou caso assim não seja entendido;

B) Reduzir-se a pena de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente, para 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução.” (fls. 349 a 361)

Em resposta, o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, pugna pela manutenção do julgado, nos termos das conclusões que se deixam transcritas.

1. O acórdão impugnado não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios.

2. Os factos dados como provados integram o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo art.º 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/1.

3. A pena concretamente aplicada mostra-se equilibrada e justa.”

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público é de parecer, no segmento adrede, que (sic): “Restringindo-se o recurso à impugnação da qualificação jurídica dos factos tidos como provados pelo tribunal colectivo, não tendo ocorrido impugnação da matéria de facto fixada (por via de recurso para o TRL), nem se alcançando que o acórdão padeça de qualquer dos vícios previstos no nº2 do art. 410º do CPP, entende-se igualmente subsumir-se a factualidade apurada à prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes pp pelo art. 21º do DL 15/93 de 22.01.

No tocante à medida da pena de prisão aplicada, de 7 anos de prisão, pelos fundamentos aduzidos a fls. 341v/342v do acórdão, que se acompanham, mostrando-se já ponderados os argumentos invocados no presente recurso do arguido , afigura-se a mesma adequada e proporcional ao grau de culpa com que o arguido agiu e às necessidades de prevenção especial ( em face das condenações já sofridas por crime de tráfico, ainda que no âmbito do art. 25º do DL 15/93) e de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao tipo legal de crime em apreço.

Pelo exposto, acompanhando os fundamentos aduzidos na citada resposta do MºPº em 1ª instância, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso.”

I.b). – QUESTÕES A MERECER CONHECIMENTO PARA APRECIAÇAO DO RECURSO.

Sobressaem, para a cabal solução da lide recursiva, duas questões:

(a) – a subsunção/qualificação jurídica da factualidade adquirida;

(b) – a determinação (judicial) da pena imposta ao arguido.

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

A ausência de impugnação da decisão de facto e a inexistência de vícios inscritos no artigo 410º do Código de Processo Penal, habilitam a factualidade que a seguir queda extractada.

Da acusação pública

1. No período compreendido entre o mês de maio de 2016 e o dia 8 de outubro de 2018, o arguido vendeu diariamente heroína a toxicodependentes que o procuravam para o efeito, designadamente na sua residência, sita na Rua ..., ...;

2. Nesse contexto, naquele dia 8 de outubro de 2018 o arguido tinha consigo na aludida residência:

2.1. no interior de um cofre: 67,220 gramas de heroína (peso líquido), substância esta maioritariamente destinada à venda a terceiros, suficiente para o consumo de 88 doses individuais, bem como a quantia de € 20.380,00 em notas do BCE, proveniente de anteriores vendas daquele tipo de estupefaciente;

2.2. no interior de um recipiente em plástico: 15 panfletos, contendo o peso total de 1,055 gramas de heroína (peso líquido), substância esta maioritariamente destinada à venda a terceiros, suficiente para o consumo de 2 doses individuais;

2.3. no interior da sua carteira pessoal: € 90,00 em notas do BCE, dinheiro este proveniente de anteriores vendas de heroína;

2.4. vários sacos em plástico utilizados para embalar as doses de heroína para posterior venda;

2.5. uma tesoura utilizada para efetuar os recortes; e

2.6. uma balança de precisão utilizada para dosear heroína.

3. O arguido conhecia as características estupefacientes da heroína e sabia que não se encontrava autorizado a deter ou transacionar tais substâncias;

4. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

II. Mais se provou, da audiência de julgamento:

5. O arguido também destinava uma parte das substâncias referidas nos pontos 2.1. e 2.2. ao seu consumo pessoal e/ou ao consumo da sua esposa;

III. Mais se provou, das condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores e posteriores aos factos:

6. O arguido é o quinto elemento de uma fratria de nove irmãos, sendo originário de um agregado familiar de condição humilde. Terminou os estudos no 4º ano, aos catorze anos, por dificuldades de aprendizagem. Aos quinze anos foi auxiliar o pai na faina da pesca, profissão que veio a desempenhar e manteve, como forma de se ocupar e de apoiar a economia doméstica. Iniciou o consumo de estupefacientes aos dezasseis anos de idade. Realizou um tratamento em permanência na habitação a sob supervisão da mãe que ficou responsável por ministrar a medicação ao arguido, e, em simultâneo, efetuou tratamento a uma depressão. Retomou a atividade profissional aos vinte e sete anos, desta feita como empregado de um bar na zona de residência. Em 2003 contraiu matrimónio com ... e o casal tem dois filhos. Paralelamente estabeleceu uma relação extra matrimonial, da qual teve um filho, com a mesma idade da sua filha mais velha, o qual reside atualmente com a mãe no continente português, não tendo o arguido contacto com estes. À data dos factos, o arguido vivia com a esposa e os dois filhos do casal, com quinze e onze anos de idade, numa habitação tomada de arrendamento aos seus progenitores. Mantém-se inativo laboralmente desde há cerca de quatro a cinco anos. Durante o seu percurso de vida tem apresentado dificuldade em manter-se abstinente de consumos de estupefacientes, pois, apesar de aderir aos tratamentos, acaba por recair nos consumos que mantém em paralelo com a medicação, situação na qual se encontrava à data da detenção. Entretanto separou-se da sua esposa, apresentando-se emocionalmente instável, com alguma dificuldade em aceitar o fim da relação conjugal, como consequência da problemática aditiva e da emergência do presente processo, tendendo a adotar uma postura de vitimização e imaturidade. Apresenta dificuldades ao nível da autocrítica, do autocontrolo e da capacidade de descentração. Conta com o apoio dos seus familiares.

7. O arguido foi condenado:

7.1. por sentenças de 14.02.2002, 30.01.2003, 04.03.2015, 25.03.2015 e 25.01.2017, transitadas em julgado, pela prática de crimes de condução de veículo sem habilitação legal em 02.02.2002, 19.01.2003, 13.12.2013, 21.03.2015 e 21.01.2017, em penas de multa e de prisão suspensa na sua execução;

7.2. por sentença de 20.11.2006, transitada em julgado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade em 21.11.2005, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução, pelo período de 2 anos, com regime de prova, incluindo o dever de efetuar um tratamento contra a toxicodependência; e

7.3. por sentença de 29.10.2010, transitada em julgado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade em 10.11.2008, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva.”

Encontrou o tribunal motivação para a decisão de facto alinhada no sequente razoamento (sic): “

A convicção do Tribunal assentou, em primeiro lugar, nas declarações confessórias do arguido quanto os factos constantes do libelo acusatório (grupo I., pontos 1. a 4.) – à exceção do início do período da traficância (que delimitou a partir do verão de 2017 e não antes) e da exclusiva finalidade de venda da droga (defendeu que parte também se destinava ao seu consumo e/ ou da sua esposa) –, contextualizando-os no desemprego de há longa data (quatro a cinco anos) e na sua própria dependência (e da sua esposa) de drogas duras (talqualmente foi confirmado pelas testemunhas BB e CC, irmãos do arguido, e DD, tia da esposa do arguido, concretamente quanto aos consumos desta – cfr. grupo II., ponto 5.), embora tenha procurado “aligeirar” a atividade desenvolvida (colocando a tónica nos consumos e secundarizando a traficância), do que é exemplo as supostas vendas “a fiado”, as quantidades transacionadas compaginado com o volume que adquiria e a mera detenção (e não a propriedade) do dinheiro referido no ponto 2.1., matéria esta que, de resto, não se prende diretamente com o thema do processo (tal como se encontra definido o objeto do processo na acusação e na contestação), mas cujas declarações, de todo o modo, afiguraram-se-nos inverosímeis quer por falta de qualquer corroboração probatória (notamos que se trata de uma tese carreada aos autos pelo próprio arguido), quer por não se mostrarem globalmente consentâneas com regras de experiência comum e juízos de normalidade [por norma, o fornecedor – que está um degrau acima da cadeia em pirâmide – não entrega heroína a um toxicodependente para venda “à consignação”, não transporta nem deposita os produtos até/ em casa do revendedor e não transporta nem recolhe o dinheiro em casa do revendedor (muito menos só uma parte desse dinheiro, lá deixando outros milhares de euros…) de forma a desassociar-se de todos os riscos inerentes], quer por serem, em parte, contraditórias nos seus termos [como por exemplo as aquisições ao fornecedor na ordem dos 50 gramas e às vezes mais, mas consumia juntamente com a esposa entre 3 a 6 gramas por dia, e na data da apreensão detinha quase 70 gramas sendo que o último fornecimento/ entrega de dinheiro havia sido há “três, quatro, cinco meses” (sic)…].

A demonstração da data de início do período do exercício da atividade (em detrimento do pugnado pelo arguido) resulta do depoimento da testemunha EE na parte em que, com segurança, espontaneidade e coerência, referiu - por várias vezes em audiência - que comprava heroína ao arguido desde há “três, quatro anos” (portanto, pelo menos desde maio de 2016), data que se recorda por associação à altura em que teve uma recaída nos consumos dessa substância.

A prova da natureza estupefaciente do produto apreendido e respetiva quantidade resulta do teor do relatório pericial – exame de toxicologia – a fls. 258, elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, resultando a referência ao número de doses de consumo da tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26 de março. A este respeito, adiantamos que corrigimos os valores das quantidades indicados no libelo acusatório pois nele constavam (inexplicavelmente) com reporte ao peso bruto ou ilíquido.

O depoimento das duas demais testemunhas arroladas pelo Digno acusador não teve relevância adicional a nível probatório.

Por fim, quanto às condições pessoais do arguido, a sua situação económica e as condutas anteriores e posteriores aos factos (grupo III., pontos 6. e 7.), atendemos ao teor do relatório social a fls. 328 e ss. e do certificado do registo criminal a fls. 320 e ss. e, bem assim, ao depoimento abonatório das testemunhas BB e CC.”

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – QUALIFICAÇÃO JURÍDICO-PENAL DA FACTUALIDADE ADQUIRIDA.

Pretende o arguido minorar a alçada do ilícito por que foi acusado e condenado, valendo-se da “reduzida” quantidade de produto estupefaciente que foi encontrado na sua residência no momento em que a busca foi executada (cfr. itens 2.1 e 2.2 da factualidade adquirida).

A comprovada facticidade alçapremou o tribunal recorrido a qualificar a actividade criminosa como integradora do tipo base (artigo 21º do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), tendo-se para o efeito, munido da sequente argumentação (sic): “(…) no caso dos autos, e em face da factualidade provada, dúvidas não existem de que a conduta do arguido, dolosa que foi [dolo direto – art. 14º nº 1 do Código Penal (CP)], mostra-se contemplada pelo sobredito preceito, conforme espelha a factualidade assente, na medida em que procedeu à venda de heroína a terceiros, durante quase dois anos e meio, substância esta que, aliás, detinha na sua residência na data da apreensão (maioritariamente destinada à venda), e a avultada soma um dinheiro que também detinha provinha dessas transações, tudo com conhecimento e vontade de o fazer, inexistindo qualquer causa de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade.

Por seu turno, a “imagem global” aponta para uma considerável dimensão do tráfico dentro do espectro das (re)evendas “a retalho”, do que se destaca o referido período de duração da atividade, a natureza e a quantidade do produto estupefaciente (que, de entre as denominadas “drogas duras”, causa os efeitos mais perniciosos ou nocivos para a saúde), assim como a frequência das transações, compaginado com a ausência de qualquer outra atividade ou ocupação, bem elucidativo de que fazia da desta atividade de traficância o seu modo de vida (o que permite considerar o arguido como o abastecedor a quem os consumidores recorriam sistematicamente na circunscrita área geográfica da freguesia de Rabo de Peixe). Consideramos que inexiste, pois, uma considerável diminuição de ilicitude do facto, mostrando-se concomitantemente afastado o cenário do tráfico de menor gravidade a que alude o art. 25º al. a) da LD.

Assim sendo, impõe-se a condenação do arguido em conformidade com o crime que lhe vem imputado.”

Vê a realização/perpetração de uma acção, ou actividade, voluntariamente executada e finalisticamente dirigida ao conteúdo preceptivo inscrito na norma contida no artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III”, devendo, ou podendo, ser “punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.      

Avalizando situações em que “a ilicitude do facto se mostrar considerável diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade e a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, (…) – artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro – a lei qualifica a acção substanciada na materialidade (ilícita e típica) matricial firmada no artigo 21º do citado diploma legal, como “tráfico de menor quantidade”. [[1]]

É neste quadro de ilicitude – “consideravel[mente] diminuída” – que o recorrente estima dever ser integrada a acção ilícita e típica que a factualidade reverbera, nomeadamente pelas qualidade e quantidade das substâncias comerciadas pelo arguido durante cerca de dois (2) anos – cfr. item 11º da síntese conclusiva.                       

A previsão contida no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, constitui-se como o ilícito axial de todos os sub-tipos ou tipos, exasperados e/ou mermados, que a lei contempla – cfr pena é de: a) prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e Vi; b) prisão a té 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendias na tabela IV.”. artigos 24º e 25º do mesmo diploma legal. [[2]]

O bem jurídico [[3]] que a proibição das acções tipificadas na norma do artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro pretende salvaguardar é a indemnidade ou protecção da saúde pública, pela nocividade que as substâncias elencadas nas tabelas anexas são susceptíveis de provocar no equilíbrio físico-psíquico dos indivíduos e reflexamente, na comunidade onde esses indivíduos se integram incubadora dos malefícios induzidos por comportamentos desviados dos padrões comummente aceites e tidos por relevantes pelo legislador penal.

A incriminação jurídico-penal dos comportamentos decorrentes da detenção, compra, venda e consumo de estupefacientes [[4]], decorre da indicação feita pela Organização Mundial de Saúde do que se pode entender por droga. Para esta entidade por droga deve entender-se toda a substância, natural ou sintética, cujo consumo repetido, em doses diversas, provoca nas pessoas: 1º o desejo opressivo “abrumador” ou a necessidade de continuar o consumindo-a (dependência psíquica); 2º a tendência a aumentar a dose (tolerância) e 3º a dependência física ou orgânica dos efeitos da substância que torna verdadeiramente necessário o seu uso prolongado, para evitar a síndrome da abstinência” [[5]].

Tornou-se incontestado, ou não, que o tráfico de estupefacientes concita uma necessidade ingente de combate permanente pela danosidade social que comporta. Não sendo este o lugar apropriado para uma discussão que enfrente esta temática, mas não querendo deixar de bosquejar o tema, temos para nós que a criminalização absoluta do “tráfico de droga”, como soe apelidar-se, pode assumir e comportar efeitos perversos e servir de álibi a actividades potenciadoras de conflitualidade gerada e gestionada, que induzem interesses e estratégias que pouco ou nada tem a ver com a preocupação do bem-estar social. Bastaria ler alguma literatura descomprometida [[6]] para se adquirir a ideia dos fins para que podem ser utilizados o tráfico de droga e o dinheiro por ele gerado.

Partindo da configuração de um tipo, modelo ou nuclear, o previsto no artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, o legislador português exasperou-o no artigo 24º, em face das repercussões económicas, sociais, financeiras que uma actividade, em exclusivo e de grandes dimensões acarreta, e doseou-o, de acordo com a intensidade da acção objectiva, a reduzida penetração e disseminação no tecido social e diminutos efeitos danosos que poderiam percutir nomeio onde se desenvolve um tráfico de cingido espectro no artigo 25º e, finalmente, com a qualidade e motivação subjectiva do agente no artigo 26º.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal é inabarcável quanto ao tema da qualificação jurídica dos tipos de crime base e crime agravado pelas circunstâncias (“Circunstância do crime é, em geral, aquilo que está em torno (em redor) do crime (circum stat)”. [[7]] O que caracteriza a circunstância em sentido técnico é o facto de que ela determina em regra (di regola) uma maior ou menor gravidade do crime e em todo (in ogni) caso uma modificação (agravamento ou atenuação) da pena” (tradução nossa).
Qualquer circunstância (elemento acessório do crime principal) que tenha por função interferir na valoração da conduta de um sujeito responsável por uma acção delitiva, tem, para ser considerada como factor agravativo ou atenuativo da responsabilidade penal, que ser traduzida em factualidade de referência típica, ou seja aquela factualidade que o legislador pretendeu incutir na descrição agravativa ou atenuativa como relevante para a densificação do sentido axiológico-normativo com que pretende a salvaguarda de específicos bens jurídicos e a protecção dos valores ético-socialmente prevalentes.

Para ilustração jurisprudencial do que vem sido argumentado, poder-se-ia chamar à colação o que foi doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2013, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça em que se escreveu que (sic): “O crime de tráfico de estupefaciente abarca todas as condutas não autorizadas previstas no artº 21º do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro: “cultivar, produzir, fabricar, exportar, preparar, oferecer, puser a venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.

À sua consumação é-lhe indiferente a intenção lucrativa, ou o destino do produto estupefaciente, desde que não para consumo, sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da acção proibida.

O crime de tráfico como crime de perigo abstracto, centraliza-se na perigosidade da acção, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência – (cfr. AC Tribunal Constitucional de 02-04-1992, “in” BMJ 411, p. 56).

No mesmo eito se surpreende o doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Outubro de 2008, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa. O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico é o do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93 – tipo esse que corresponde aos casos de tráfico normal e que, pela amplitude da respectiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão – abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão.

(…) Por conseguinte, a grande generalidade do tráfico de estupefacientes caberá dentro das amplas fronteiras do tipo matricial; os casos de gravidade consideravelmente diminuída (pequeno tráfico) serão subsumidos no tipo privilegiado do art. 25.º e os casos de excepcional gravidade serão agravados de acordo com as circunstâncias agravantes do art. 24.º. (…)

(…) O crime base do artigo 21º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico.” [[8]]

A norma epigrafada como “tráfico de menor gravidade”, faz depender, ou impõe, como critérios de aferição/ponderação referente para que a ilicitude do facto se possa reputar e crismar de  “consideravelmente diminuída” (i) a natureza dos meios utilizados; (ii) a modalidade ou as circunstâncias da acção; (iii) e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações. 

A ilicitude, ou antijuridicidade (material), traduz-se, na lição de Claus Roxin, “em que nela se plasma uma lesão de bens jurídicos socialmente nocivas e que não se pode combater suficientemente com meios extrapenais”[[9]] (O autor distingue também entre injusto material e formal. “O conteúdo material do injusto tem importância tanto para o tipo (como tipo ou classe de injusto) como para a antijuridicidade (a concreta afirmação ou negação do injusto). No aspecto valorativo do tipo o injusto material representa uma lesão de bens jurídicos que regra geral é necessário combater com meios do Direito penal; e a esse respeito deve determinar-se o conceito de bem jurídico (…). E desde o ponto de vista da antijuridicidade, o injusto material da lesão de bens jurídicos pode excluir-se pelo facto de que em caso de colisão de dois bens jurídicos se prefere o interesse pelo bem jurídico mais valioso ao menos valioso, com o que o resultado é que pese ao sacrifício de um bem jurídico se produz algo socialmente proveitoso ou ao menos não se produz um dano penal jurídico-penalmente relevante.” [[10]

Na densificação jurídico-material de um tipo de ilícito intervêm factores de intencionalidade e acção realizadora que pela sua especificidade psico-racional e determinação objectiva de vontade se perfilam, na ordem de conformação de um quadro típico, como susceptíveis de, pela sua relevância e incidência na qualificação da acção típica, modificar, não a estrutura axial do ilícito fundamental, ou seja o concreto e radical bem jurídico que o legislador pretendeu tutelar e proteger, mas a dosimetria consignada na consequência penal inscrita na norma incriminante.

Assim, na previsão paradigmática do tipo contido no artigo 133º do Código Penal, a privação da vida de uma pessoa – bem jurídico inscrito no tipo base de homicídio (artigo 131º) – pode ser penada com uma sanção menor – pena de um a cinco anos – do que a que se encontra estabelecida no artigo matricial, desde que se comprove que a actuação ilícita e proibida pela norma incriminadora teve como fundamento actuante uma “compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a pena.” 

No tipo privilegiado recortado no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, a diminuição da pena, relativamente ao tipo base (artigo 21º), consegue-se com a comprovação de que o sujeito inserido na previsão do artigo 21º - ter concorrido com a sua acção para a conjugação de um dos verbos (activos) assumidos como promotores e fautores da previsão ilícita e típica contida na norma – tenha agido (i) com uma ilicitude consideravelmente diminuída, decorrente (a) dos meios utilizados; (b) da modalidade ou circunstâncias da acção; (c) da qualidade ou da quantidade das plantas, das substâncias ou preparações.

A norma faz derivar o privilegiamento, ou esmorecimento da carga punitiva que a proibição nor- mativa contém, de um esvaimento da densidade ilícita da acção conduzida pelo agente. No caso a acção do agente conjugava-se com o verbo «vender» produtos estupefacientes, notadamente heroína. Ficou comprovado, pela confissão do próprio arguido, que, pelo menos durante dois anos, desde Maio de 2016 até Outubro de 2018, o arguido terá «vendido» diariamente heroína, na sua residência, a indivíduos adictos que o procuravam. Na validação da acção ilícita que ditou o infracção ao comando preceptivo o que releva não é a quantidade ou a qualidade das substâncias objecto de comércio ilegal e proibido, mas sim o arco temporal em que a acção se estendeu – mais de dois (2) anos – e o tipo de estupefaciente que era objecto de venda, a heroína. A quantidade de produtos apreendido não releva para a integração da conduta no tipo de injusto, mas sim a qualidade do produto, a heroína, e o tempo durante o qual o “comércio” se estendeu, bem como os meios utilizados pelo agente para o realização do “comércio”, ilustrados nos itens 2.4 a 2.6..

Reverbera da factualidade comprovada que o arguido fazia da «venda» de produto estupefaciente o seu «modo habitual» de vida, o que pode ser inferível da pingue soma de numerário que lhe foi apreendido, concretamente 20.280,00 euros.  

A perduração dos actos de venda – durante mais de dois (2) anos – e a qualidade do produto vendido – heroína – habilitam a integração da actividade delitiva operada pelo arguido na noma incriminadora do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, como bem avalizou a decisão recorrida.

Desfeiteia-se, com a argumentação aduzida, a primeva das pretensões convocadas pelo recorente.

II.B.2. – DETERMINAÇÃO (JUDICIAL) DA PENA.

Descartada a primeira das duas pretensões perfiladas pelo arguido, permite-se introduzir a alteração da pena imposta pelo crime previsto no artigo 21º do Decreto-lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, induzindo, em seu abono, o facto de que o tribunal a quo (sic); “(…) não ponderou correctamente o facto do arguido e da esposa serem consumidores de estupefacientes, destinarem parte importante e significativa do produto das vendas aos seus consumos e ainda terem decorrido mais de 5 (cinco) anos desde a última condenação do arguido por tráfico de menor gravidade. – cfr. pontos 5 e 7.3 dos factos provados”; e que “importa ainda atender à intensidade do dolo, na forma directa e a gravidade das consequências a circunstância de o arguido também ser consumidor, valorar-se ainda o facto de contar com o relevante apoio dos seus familiares para se reinserir socialmente (cfr. Ponto 6, in fine dos factos provados) ponto sendo quanto a este medianas as necessidades de prevenção especial”, rematando com a indicação/quantificação de uma pena concreta que estima ser a «justa e adequada» no patamar dos cinco anos «suspensa na sua execução por igual período».

Na escolha e determinação da pena o tribunal recorrido razoou, lógico-racional, que “O crime em apreço é punível com pena de quatro a doze anos prisão (art. 21º nº 1 da LD).

Os fins das penas são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade (art. 40º nº 1 do CP). Por seu turno, na determinação concreta da medida da pena deve atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção, conforme o disposto no art. 71º nº 1 do CP, aplicável ex vi do art. 47º nº 1 do mesmo diploma. Assim, é dentro da moldura da prevenção geral que, desde logo, deve a pena ser fixada, sendo orientada pelo limite máximo fornecido pelo grau de culpa do agente – referencial que o julgador nunca pode ultrapassar – e pelo limite mínimo correspondente à tutela ótima das expectativas comunitárias na validade dos preceitos normativos violados. Em segunda linha, o quantum concreto da pena deve ser ponderado pelas necessidades de prevenção especial, isto é, deve ser alcançado, por um lado, atendendo às exigências da ressocialização e reintegração do agente e, por outro lado, visando que o mesmo se abstenha da prática de novos ilícitos.

A enormidade do flagelo da droga, que grassa todo o território mundial, determina serem elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, quer atento o número e a proliferação de ilícitos criminais desta natureza, quer por força do contributo negativo para a prática de delitos de outra natureza, gerando grande insegurança no seio da comunidade e um sentimento de combate com determinação a este tipo de fenómenos mediante a boa administração da Justiça.

Dentro das hipóteses cogitáveis previstas pela norma incriminadora do art. 21º da LD, e sem prejuízo do referido supra quanto à qualificação jurídica dos factos, e pese embora o período temporal da atividade e o elevado montante do lucro obtido (superior a vinte mil euros), entendemos que o grau de ilicitude é mediano (ainda assim não se apurou que o arguido estivesse integrado em rede organizada, que utilizasse intermediários e/ou que detivesse e/ou transacionasse quantidades muito superiores à normalidade da relação abastecedor – consumidor).

Por seu turno, e não descurando a circunstância de a traficância se apresentar “de mãos dadas” com o consumo de drogas por parte do arguido, entendemos que o grau de culpa é superior à média face ao desvalor da ação, sobretudo tendo presente os antecedentes criminais pela prática de dois distintos crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade (pontos 7.2. e 7.3.), tendo inclusivamente cumprido uma pena de um ano e seis meses de prisão efetiva (ponto 7.3.) que, pelos vistos, não atingiu o pretendido efeito ressocializador pois não se coibiu de retomar a atividade, demonstrando assim uma fraca motivação para a mudança (o arguido – homem maduro que conta presentemente com 45 anos de idade – não conseguiu controlar o vício das drogas de há longa data, sem prejuízo das oportunidades que foi beneficiando neste domínio, mormente os “tratamento” que lhe foram proporcionados).

O arguido conta ainda com cinco condenações por crimes de condução de veículo sem habilitação legal, o que, aliado às supra referidas condenações, demonstra uma séria dificuldade em levar uma vida conforme ao Direito.

Ademais, o arguido assume uma postura descentrada e desculpabilizada quanto aos factos, tem reduzidas autocrítica e autocontrolo, tendendo a desvalorizar a gravidade deste ilícito criminal, como resultou notório das suas declarações em audiência, e está social e profissionalmente desinserido, o que determina a falta de meio adequado de sustento, tornando mais apetecível o tráfico (no descrito quadro de dificuldade e pouca motivação para cessar os consumos de drogas duras), o que, conjugadamente entre si, eleva, em muito, as exigências de prevenção especial, alinhadas, conforme expusemos, nas também fortes exigências de prevenção geral.

A favor do arguido concorre quer a confissão dos factos – com uma certa relevância para efeitos probatórios –, tendo assumido, por isso, um comportamento processual colaborante com o Tribunal, quer o apoio familiar de que beneficia (embora não se tenha revelado adequado, a montante, à sustação da atividade criminosa).

Assim sendo, e sopesando todas as referidas circunstâncias, afigura-se-nos necessário, justo, adequado e proporcional a aplicação de uma pena (ainda assim abaixo do meio da moldura penal) de sete anos de prisão.

A pena, na asserção de Claus Roxin, “só resulta legítima quando é preventivamente necessária e, ao mesmo tempo, é justa no sentido de que evita ao autor qualquer carga que vá além da culpabilidade do facto”. [[11]] (“As cominações penais só estão justificadas se têm em conta a dupla restrição que encerra o princípio de protecção subsidiária de prestações [públicas necessárias para a existência que permitem ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a Constituição considera como pressuposto de uma existência humana digna] e bens jurídicos. Neste âmbito o fim das disposições penais é de prevenção geral”, [[12]] sendo que “o Direito penal enfrenta-se ao individuo de três maneiras: ameaçando com, impondo e executando penas (…)”) [[13]]

Para este Professor, a culpabilidade actua simultaneamente como pressuposto fundamentador da pena “posto que nunca pode impor-se uma pena se ela não estiver presente, assim como tão pouco a pena pode ir além da sua medida. No entanto a tarefa da pena é igualmente preventiva, pois ela não deve retribuir mas sim impedir a comissão de delitos (crimes). Em câmbio, a culpabilidade só tem a função de limitar, ema aras da liberdade dos indivíduos, magnitude dentro da qual devem perseguir-se objectivos preventivos. Disto resulta, por politica criminal, aquele princípio da dupla limitação que caracteriza a minha sistematização da categoria da responsabilidade: a pena não deve ser imposta nunca sem uma legitimação preventiva, mas tão pouco pode haver pena sem culpabilidade ou mais além da medida desta. A pena de culpabilidade é limitada através do preventivamente indispensável; a prevenção é limitada através do princípio da culpabilidade.” [[14]]     

 “A pena há-de entender-se sobretudomás bien») como marginalização do facto no seu significado lesivo para a norma e, com issocom ello»), como constatação de que a estabilidade normativa da sociedade permanece inalterada: a pena é a confirmação da identidade da sociedade, isto é, da estabilidade normativa, e com a pena se alcança sempre este – se se quiser – fim da pena.” [[15]]  

Para este Autor, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. [[16]] “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” [[17]/[18]]

Para Bacigalupo a culpabilidade só logra a sua função de parâmetro delimitador da pena, se for referido à «culpabilidade do facto».  “Isto requer excluir das considerações referentes à culpabilidade as que se referem a uma ponderação geral de personalidade como objecto do juízo de reprovação (“juicio de reproche”). Concretamente o juízo de culpabilidade relevante para a individualização da pena, deve excluir como objecto do mesmo referências à conduta anterior ao facto (sobretudo a penas sofridas), a perigosidade, ao carácter do autor, assim como á conduta posterior ao facto (que só pode compensar a culpabilidade do momento da execução do delito.”    

A ordem jurídico-penal viger, estabelece no artigo 40º do Código Penal que as penas visam a protecção dos bens jurídicos e almejam ou prospectivam a reintegração do agente na sociedade.   

A determinação da medida da pena epigrafada no artigo 71 nº 1 do Código Penal estabelece-se “dentro dos limites definidos na lei” e “é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção".

Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente societária e comunitária para a reprovação do comportamento do agente e a correlata necessidade no asseguramento da confiança (da sociedade) na norma, traduzido na punibilidade de condutas contrárias ao sentido conformador-normativo) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Mediante o estabelecimento e indicação de critérios, o legislador fornece ao juiz orientações para a formação cognitiva de juízos avaliativos e condensadores dos pressupostos e da fixação de premissas que possibilitam a conformação e determinação das escolhas a realizar perante um concreto responsável em face da realidade factual ressumada pela facticidade adquirida pelo julgamento. Assim na individualização da pena o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha uma insubstituível tarefa mediadora, construtiva e constitutiva da reacções penais ajustadas ao caso e convincentes da sua justeza perante a sociedade que se destinam a influenciar.
Na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente;
– A intensidade do dolo ou negligência;
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
– A conduta anterior ao facto e posterior a este;
– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. [[19]]

Ponderando nos critérios a observar na individualização judicial da pena – que o legislador português crismou de determinação da medida da pena – refere Winfried Hassemer [[20]] que “na decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o seu comportamento posterior ao delito”. Num seminário sobre os fins das penas, [[21]] Claus Roxin advoga, acompanhando Hans Scultz, que na determinação da pena se trata de retribuir a culpabilidade [[22]], devendo na operação de determinação aplicar a «teoria da margem de liberdade», que a jurisprudência alemã formulou da forma seguinte: “Não se pode determinar com precisão que pena corresponde à culpabilidade. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada no seu grau máximo pela pena adequada (à culpabilidade). O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua magnitude ou natureza seja tão grave que já não se sinta por ela como adequada à culpabilidade, No entanto, o juiz … poderá decidir até donde pode chegar dentro dessa margem de liberdade.” [[23]

Outros anteriores, mais arreigados a um concreto e porfiado agir da realidade com as regras legalmente estabelecidas, como é o caso do penalista espanhol Jesús-Maria Silva Sánchez, adverte, na esteira de Hörnle [[24]] (Determinación de la Pena y Culpabilidad, Buenos Aires, 2003) que a individualização da pena pressupõe as seguintes premissas. “Em primeiro lugar, que o marco penal abstractamente previsto se configura como resposta preconstituida para um conjunto de factos que coincidem em constituir um determinado tipo de injusto penal, culpável e punível, no qual se contêm os elementos que fundamentam o merecimento e a necessidade de aquela pena-marco. Em segundo lugar, que injusto e culpabilidade (assim como punibilidade) constituem magnitudes graduáveis. Por isso, o marco penal abstracto pode ver-se como a união de um conjunto de cominações penais mais detalhadas (submarcos) que assinalariam medidas diversas de pena às distintas subclasses de realizações (subtipos), mais ou menos graves, do injusto culpável e punível expressado no tipo. E, em terceiro lugar, que, desde esta perspectiva, o acto de determinação judicial da pena se configura essencialmente como aquele em virtude do qual se constata o concreto conteúdo de injusto, culpabilidade e punibilidade de um determinado facto, traduzindo-o numa determinada medida da pena. O que reitera o já expresso de forma concisa: a única política criminal que deve realizar o juiz é a que discorre por um curso das categorias dogmáticas. (…) No entanto, o facto de que a única politica criminal que o juiz deva realizar seja a que decorre pelo curso das categorias dogmáticas não implica deixar de atender aos critérios preventivos. Isso porque precisamente as ditas categorias dogmáticas podem e devem ser reconstruídas no conchavo (“en clave”) politico-criminal considerando as finalidades preventivas e de garantia que legitimam o recurso ao direito penal. A teoria do delito configurar-se-á assim como um sistema de regras que permitem estabelecer com a maior segurança possível o sim e o não dos tais merecimento e necessidade de pena. E a teoria da determinação da pena como teoria da concreção do conteúdo delitivo do facto implicará, por sua vez, o estabelecimento do quantum do seu merecimento e necessidade politico-criminal de pena.” (a tradução nossa) [[25]]       

Não sendo este o lugar para uma crítica do sistema penal português, nomeadamente na parte relativa à individualização da medição judicial da pena sempre se dirá que não se compreende como conciliar a determinação judicial da pena, ou melhor, ou melhor dito “individualização judicial da pena”, numa terminologia mais arreigada e afeiçoada com a realidade do proceder judicial – é desse procedimento que se trata quando a norma epigrafa “determinação da medida de pena” - aferida pela culpabilidade do agente, ou seja com a intencionalidade colocada na concreto proceder em que a materialidade ilícita se verteu na tipicidade recortada na norma, com factores como “a conduta anterior ao facto”, “a falta de preparação para manter uma conduta licita” (mesmo que manifestada no facto e quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena). A norma carrega um conjunto de factores que são exteriores à culpabilidade concreta e pontual precipitada na realização/execução do concreto facto ilícito. Fazer intervir e dotar a individualização judicial de juízos e ponderações que não formaram e determinaram uma concreta e especifica acção constitui fazer inflectir na censura daquele concreto agir típico e ilícito factores que são externos a uma conduta que se formou e deve ser apreciada a ajuizada de forma confinada.

Para a individualização da medição judicial da pena proporcional ao facto objecto de julgamento – actividade de venda de produto estupefaciente durante cerca de dois (2) anos – haverá que ponderar-se a perdurabilidade da actividade do agente; o tipo de estupefaciente objecto dos actos de venda (a heroína) e o volume de venda - de que é sinal a quantia de numerário apreendido – que a actividade delitiva envolvia, a supor um pecúlio arrecadado, certamente, campanudo.

A decisão recorrida é parcimoniosa em descrever/escorchar a situação concreta em que as vendas eram efectuadas, o que poderia constituir uma forma mais ajustada de apreensão/compreensão do modo de agir e proceder do arguido, o que, certamente, não teria sido difícil pois que a duração temporal de uma investigação (policial) deste tipo de crimes comporta, normalmente, a visualização das acções concretas, junto da morada do investigado, depoimento de testemunhas que adquiriram a substância estupefaciente e outros elementos de pesquisa e análise que depois de condensados num relatório servem de base ao requerimento de acusação.

Na concreção do comando ínsito na norma regente – artigo 40º do Código Penal – e concretamente no segmento pertinente com a protecção dos bens jurídicos, dir-se-á que bem jurídico ofendido ou lesado pela acção ilícita e típica do arguido – a saúde e a sanidade da física e intelectual dos indivíduos que compõem uma determinada comunidade – se situa entre aqueles que a sociedade preleva pela danosidade e disseminação capciosa e suspicaz que conleva na sua estruturação e devir societário. Os efeitos deletérios e socialmente impressivos derivados e dimanados pelo uso deste tipo de produtos – especialmente aquele que foi apreendido ao arguido e parece ser o que seria o mais vultuoso, a heroína – tornou-se, em determinados estratos sociais, um factor de preocupação, não só pela deterioração da saúde psíquica, no plano pessoal, que desencadeia, como pelos efeitos desviantes, pessoal e socialmente, que precipita, potencia e desenvolve. Esta vertente, da danosidade social, que uma determinada conduta co-envolve e desfila no elenco de factores ponderativos da individualização judicial da pena, não pode deixar de ser valorizada no momento em que se aquilate a medida concreta do quantitativo da pena pela vulneração da ordem jurídica, na sua integralidade, como igualmente pela necessidade de produzir um sinal de atenção e resposta do sistema perante violações reiteradas e incisivas das proibições legais.

Num quadro legal, proposto pela norma de punição, em que a pena se situa entre um mínimo de quatro (4) anos e um máximo de doze (12) a pena encontrada pelo tribunal recorrido perfila-se correcta e proporcionada ao desvalor concreto da conduta do agente e ao fim para a pena tende.

III. – DECISÃO.

Na defluência ao exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar provimento ao recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida;

- Condenar, pelo decaimento no recurso, o arguido/recorrente nas custas.

     Lisboa, 11 de Setembro de 2019

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[1] O tipo privilegiado desenhado no artigo 25º do Decreto-lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro injunge uma carga penal de “a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.” 

[2] Acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2013, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa, em que se escreveu (sic): “O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico de estupefacientes é o do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93 – tipo esse que, pela amplitude da respectiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão - e pela multifacetada descrição típica, abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão. Esse tipo fundamental corresponde, pois, genericamente, a casos que são já de média e de grande gravidade. 
[3]Pode entender-se por bem jurídico todo o facto (interesse, recurso ou valor) que é reconhecido legitimamente como merecedor de protecção penal a partir de uma discussão baseada em princípios (discussão que pode ser ético-critica ou politico-pragmática)”  – cfr. Gerhard Seher, “la legitimación de normas penales en princípios y el concepto de bien jurídico, in Roland Hefendehl (ed.), La teoria del Bien Jurídico, Fundamento de legitimación del derecho penal ou juego de abalorios dogmático, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 92. Para uma distinção entre bem jurídico e objecto de acção, veja-se no mesmo livro “El Bien Juridico como eje material de la norma penal, de Roland Hefendehl, págs. 179 a 196. Sobre o conceito de bem jurídico como instrumento de crítica legislativa, veja-se o artigo de Claus Roxin, na Revista Electrónica de Ciência Penal e Criminologia, nº 15-1, 2013, págs. 1 a 27 (“El concepto de Bien jurídico como instrumento de critica legislativa sometido a examen”). Cfr. ainda Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito, pág. 63 (“Bien jurídico, por tanto, es el bien ideal que se incorpora en el conceto objeto de ataque; y es lesionable sólo dañando los respectivos obejtos individuales de lacción”).              
[4] Numa questão colocada por Claus Roxin no artigo citado na nota antecedente, prende-se com a legitimidade constitucional da punibilidade da posse determinadas drogas para consumo próprio, dado que nestes casos “está ausente toda a afectação de outros”. Nesta caso os representantes de um conceito de bem jurídico critico relativamente á legislação defendem a impunidade e a não punibilidade das condutas pela não afectação dos direitos e da esfera pessoal de quaisquer outras pessoas. Op. loc. cit. p. 7.
[5] Cfr. Francisco Muñoz Conde,  “Derecho Penal – parte especial”, Tirant lo Blanch, Valência, 2001, p.629.
[6] Observatoire Geopolitique des Drogues – Geopolitique des Drogues, 1995, Editions la Decouverte, 1995 e Geopolitique de la Drogue, Campagne européenne dínformation sur la drogue, Paris, 1991. Com proveito poder-se-á ainda consultar Pierre Kopp, in A economia da Droga, Edição Livros do Brasil, Lisboa.
[7] Francesco Antolisei, Manuale di Diritto Penale, Parte general, Giuffrè Editore, Milano, 1997.

[8] Ambos os arestos citados se encontram disponíveis em www.dgsi.pt. Sobre a qualificação do crime descrito no artigo 24º salienta-se ainda o escrito no acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2013, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa, em que se escreveu (sic): “Frequentemente designado como um tipo privilegiado de tráfico, não o será em termos próprios, se atendermos ao que FIGUEIREDDO DIAS assinala a propósito da teoria das circunstâncias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial Notícias, p. 199), afirmando que «estas situações circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes distinguem-se das consideradas de qualificação ou privilegiamento, porque, enquanto nestas a modificação da moldura penal se opera por efeito de alterações ao nível do tipo ou dos elementos típicos – seja,  como é geralmente, do tipo-de-ilícito, seja, menos frequentemente,  do tipo-de-culpa - , na situação de que agora tratamos ela verifica-se por força de circunstâncias modificativas. Circunstâncias são, nesta acepção, pressupostos ou conjuntos de pressupostos que, não dizendo directamente respeito nem ao tipo-de-ilícito (objectivo ou subjectivo), nem ao tipo-de-culpa, nem  mesmo à punibilidade em  sentido próprio, todavia contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um  todo e relevam por isso directamente para a doutrina da determinação da pena».
Por conseguinte, de acordo com tal doutrina, do que estamos em face, quer no caso do art. 24.º, quer no caso do art. 25.º, é de circunstâncias modificativas, agravantes (art. 24.º) e atenuantes (art. 25.º).
[9] Não vem ao caso a definição de “antijuridicidade formal” – Veja-se para uma definição de antijuridicidade  Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito, Civitas, 1997, § 14 (págs. 555 a 604).
[10] Ibidem, pág. 558.
[11] Claus Roxin, “La Teoria del Delito en la Discussión actual”, Editorial Grijley, 2007, p.71.
[12] Claus Roxin, Fundamentos Politico-Criminales del Derecho Penal, Hammurabi, Buenos Aires, 2008, p. 69 e 65.
[13] Claus Roxin, Fundamentos Politico-Criminales del Derecho Penal, Hammurabi, Buenos Aires, 2008, p. 63. “Se quiséssemos perfilar numa frase, o sentido e limites do Direito Penal, poderíamos caracterizar a sua missão como protecção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais mediante a prevenção geral e especial que salvaguarde a personalidade no marco traçado pela medida da culpabilidade individual. Trata-se, se me é permitido dar um nome a esta concepção, de uma teoria unificadora dialéctica, que há que distinguir estritamente, tanto metodologicamente como pelo seu conteúdo, das tradicionais teorias monistas, assim como da teoria dominante da unificação por adição.” – ibidem, p. 85.     
[14] Claus Roxin, op. loc. cit. ps. 52-53. No mesmo eito pode colher-se lição em Enrique Bacigalupo, in “Justicia Penal y Derechos Fundamentales”, Marcial Pons, 2002, p. 117, quando assevera que “A gravidade da culpabilidade determina o limite máximo da pena, mas não obriga – como na concepção de Kant – à aplicação da pena adequada á culpabilidade. Por debaixo desse limite é possível observar exigências preventivas que, inclusive, podem determinar uma redução da pena adequada á culpabilidade. Dito de outra maneira: a retribuição da culpabilidade, que provém das teorias absolutas, só determina o limite máximo da pena aplicável ao autor, sem excluir a possibilidade de dar cabida às necessidades preventivas, proveniente das teorias relativas, até ao limite fixado pela culpabilidade.”      
[15] Günther Jakobs, Dogmática de Derecho Penal y la Confirmación Nornativa de la Sociedad”, Editorial Thomson/Civitas, Madrid, 2004, pág. 41.
[16] cfr. Eduardo Crespo, op. loc.cit., pag. 121.
[17] Cfr. Günther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, 2ª edição, corrigida, Marcial Pons, 1997, pag. 13.
[18] Para uma abordagem mais aprofundada sobre a acepção «social de culpabilidade» veja-se Bernd Schünemann, págs. 98 a 114, “La Culpabilidad: Estado de la Questión”;  in “Sobre el Estado de la Teoria del Delito” (Seminário en la Universitat Pompeu Fabra), Claus Roxin, Günther Jakobs, Bernd Schünemann; Wolfang Frish e Michael Köhler; Cuardernos Civitas, 2016. 
[19] Paragonado com o estabelecido no artigo 71º do nosso ordenamento jurídico-penal, pontua-se no apartado II do § 46 do StGB, que o tribunal deverá na “medición” da pena ponderar as circunstâncias favoráveis e contrárias ao autor. “com este fim se contemplarão particularmente: - os fundamentos da motivação e os fins do autor; - a intencionalidade que se deduz do facto e a vontade com a qual se realizou o facto; - a medida do incumprimento do dever; - o modo de execução e os efeitos inculpatórios do facto; - os antecedentes do autor, a sua situação pessoal e económica, assim como a sua conduta depois do facto, especialmente os seus esforços para reparar os danos, e os seus esforços para acordar uma compensação com o prejudicado.”    
[20] Winfried Hassemer, “Fundamentos del Derecho Penal”, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, pág. 127.
[21] Cfr. Claus Roxin, “Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal” (“La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, págs. 143 a 166.
[22]O princípio - fundamentado segundo opinião generalizada na Constituição - nulla poena sine culpa (princípio da culpabilidade) não significa nesta situação senão que «o suposto de facto e a consequência jurídica devem estar em proporção adequada», quer dizer, a imputação ao autor deve ser necessária, por estar descartada a possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor. Também a medida da culpabilidade se vê limitada pelo necessário. Sobretudo, o conteúdo da culpabilidade não é algo prévio ao Direito, sem consideração às situações sociais.” – Günther Jakobs, op. loc. cit. pág. 588-589.     
[23] À teoria da margem da liberdade opõe-se a teoria da «pena exacta», segundo a qual «a la culpabilidad» só pode corresponder una pena exactamente determinada (punktuell).  – Clus Roxin, op. loc. cit. P. 146.
[24] Tatjana Hörnle representa na dogmática alemã, juntamente com Bernd Schünemann e Hans Joachim Hirsch, um dos epígonos do modelo da determinação da pena proporcional ao facto que de pretende contrariar a designada teoria da margem da liberdade, maioritariamente seguida pela jurisprudência alemã. Para esta teoria (da determinação da pena proporcional ao facto), os  “Fins legítimos da sanção penal seriam a prevenção geral intimidatória e a prevenção de integração (prevenção geral positiva). Estas finalidades, entretanto, deveriam ser promovidas em harmonia com o princípio da igualdade e da proporcionalidade, pois, dado o fato de que a pena representa uma intervenção direta nos direitos fundamentais do cidadão, a sanção criminal deveria legitimar-se em face do atingido. Nesse sentido, o principal critério para a aferição do quantum da pena seria a quantificação do desvalor do delito cometido. Isso significa que “apenas as circunstâncias imputadas ao autor a título de culpabilidade devem compor o fundamento real da medição da pena. A forma, a extensão e a modalidade da lesão do bem jurídico, bem como o nível da ameaça que se materializa no delito deveriam ser levados em consideração nesse processo.” “No âmbito das consequências jurídicas, nomeadamente, na medição da pena, o princípio da culpabilidade adquire, igualmente, importância. Trata-se da cognoscibilidade individual de circunstâncias que são significativas para a medição da pena concreta”. Isso quer dizer que nada para além do injusto e da culpabilidade stricu senso pode fundamentar um determinado segmento de pena, ou seja, nenhum dia de pena de pena a mais imposta ao condenado pode ter a sua razão de ser em circunstâncias alheias ao injusto culpável cometido.” Hörnle, “afirma que apenas uma aplicação da pena ancorada na valoração interpretativa do facto delitivo satisfaz o princípio da culpabilidade da melhor forma.” – Apud Adriano Teixeira, “Teoria da Aplicação Pena. Fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato.”, Marcial Pons, São Paulo, 2015, págs. 64;106-107.      
[25] Cfr. Jesús-Maria Silva Sáchez, La teoria de la Determinación de la Pena como Sistema (dogmático): un primero esbozo”, InDret, Revista para el Analisis del Derecho, Barcelona, Abril de 2007, págs. 5 e 6.