Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3974/15.3T8LSB-B.L1-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
TEMPESTIVIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I - O recurso para fixação de jurisprudência tem um procedimento próprio. Não tem cabimento legal um recurso «híbrido» com um pedido típico de recurso ordinário e um outro pedido para fixação de jurisprudência.

II - O recurso para a fixação de jurisprudência só pode ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, pelo que salta à evidência a incompatibilidade processual de «enxertar» num recurso ordinário, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Se ainda é admissível o recurso ordinário, o de fixação de jurisprudência ainda não pode ser interposto; se é tempestivo o recurso para fixação de jurisprudência, já não pode ser interposto recurso ordinário.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 3974/15.3T8LSB.L1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. O arguido AA interpôs o presente recurso nos seguintes termos «não se conformando com o acórdão destes autos proferido em 23 de Junho de 2020; nem com o acórdão de 8 de Setembro de 2020 que indeferiu o pedido do ora recorrente de correção e reforma e das nulidades arguidas, deles interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

i) nos termos do nº 2 do artigo 437 do Código de Processo Penal (adiante designado apenas por CPP), face à manifesta oposição do acórdão ora recorrido proferido em 23 de Junho de 2020, com um outro acórdão da mesma Relação ... (e da mesma … Secção) proferido em 15 de Janeiro de 2019, já transitado em julgado, sobre a mesma questão de direito (prescrição/princípio da especialidade) e o mesmo arguido, acórdão esse já junto aos autos nas motivações do recurso de 1ª instância e referente ao processo nº 3719/07...3719/07...

ii) e, quanto às nulidades arguidas e decididas por acórdão de 8 de Setembro de 2020, nos termos do artigo 432, nº 1, alíneas b) e d); conjugado com os artigos 379, nº 2 e 414, nº 4 do mesmo CPP recurso a subir de imediato e nos próprios autos, com efeito suspensivo face aos termos do mesmo quanto à parte das nulidades.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deverá: a) ser admitido e considerado o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com efeito suspensivo; b) e sejam mandados subir os autos».

Apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

«Cl - É manifesta a oposição do Acórdão recorrido com o decidido e a jurisprudência de um outro Acórdão da mesma Relação ... (e da mesma … Secção) proferido em 15 de Janeiro de 2019, já transitado em julgado, sobre a mesma questão de direito (prescrição/princípio da especialidade) e o mesmo arguido, acórdão esse já junto aos autos nas motivações do recurso de 1ª instância e referente ao processo nº 3719/07...-…;

C2 - O Acórdão de 15 de Janeiro de 2019 decide e bem, que o princípio da especialidade não é, nem pode ser uma causa de suspensão e interrupção do prazo de prescrição sob pena de com isso se criar uma causa de suspensão e interrupção do prazo de prescrição não prevista na lei, em violação dos princípios da tipicidade e da legalidade penal (art. 29, nºs 1 e 3, da CRP).

C3 - O ora Acórdão recorrido decide ao contrário: "...ainda sem prejuízo de melhor estudo para futuro, salvo o devido respeito, não podemos por agora alinhar sem mais com a posição já assumida naquele acórdão quanto ao facto de o princípio da especialidade não suspender o decurso do prazo prescricional" (página 25,1 §).

C4 - O prazo de prescrição em relação aos factos dos presentes autos, é 10 (dez) anos (artigo 118, nº 1, alínea b do CP), sendo os últimos factos imputados ao arguido de 13 de Dezembro de 2006.

C5 - O ora recorrente foi constituído como arguido nos presentes autos de recurso em 3 de Outubro de 2019, data em que também foi notificado da acusação.

C6 - Quando tal ocorreu já tinham passado 12 (doze) anos e 10 (dez) meses sobre os últimos factos imputados ao ora recorrente.

C7 - Está, pois, prescrito o procedimento criminal em relação aos factos imputados ao ora recorrente nos presentes autos.

C8 - Até os Tribunais ..., nas sentenças citadas nestas motivações, já consideraram os presentes autos opressivos e, portanto, injustos por razão da passagem do tempo.

C9 - A prescrição é de conhecimento oficioso e invocável a todo o tempo.

C10 - Uma interpretação diferente dos artigos 1.º, nº 1, alínea a), 58.º, nº 2, do CPP e dos artigos 120º, nº 1, alíneas b), nºs 2 e 3, e 121.º, nº 1 alíneas a), b), e nºs 2 e 3, do CP viola os artigos 2º, 3.º, n.º 3, 29º, nºs 1 e 3, 32.º, nºs 1 e 9 da Constituição (CRP), bem como 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 8.º, n.2 2, da Constituição (CRP).

C11 - o Acórdão ora recorrido refere (página 24, penúltimo §) "As causa de suspensão e de interrupção são taxativas e elencadas - no regime geral do CP (artº120º 2 121º) ou, fora dele, nos casos especiais de lei expressa".

C12 - A seguir diz "o princípio da especialidade, quando a ele não se renuncie, não surge, que saibamos, em lei alguma, bem ou mal, de forma directa, literal e expressa como causa de suspensão ou de interrupção da prescrição do procedimento criminal não obstante ser consabido que ele contém constrangimentos fortíssimos ao exercício e à continuidade da acção penal." (página 24, último §).

C13 - Depois de ter esclarecido que "não houve renuncia ao princípio da especialidade e não foi autorizada a extensão a estes autos da execução ampliada desse MDE" (mesma página 24, antepenúltimo §)

C14 - Todavia, conclui que "...ainda sem prejuízo de melhor estudo para futuro, salvo o devido respeito, não podemos por agora alinhar sem mais com a posição já assumida naquele acórdão quanto ao facto de o princípio da especialidade não suspender o decurso do prazo prescricionar (página 25, 1 §).

C15 - E decide que "a detenção em Portugal ao abrigo do MDE referido, nas circunstâncias do caso, foi causa de suspensão do procedimento criminal e quando essa causa ocorreu o prazo de prescrição ainda estava em curso".

C16 - É, pois, manifesta a CONTRADIÇÃO entre a fundamentação, a conclusão e a decisão.

C17 - O regime da prescrição do procedimento criminal tem indiscutivelmente natureza substantiva, pois integra a "definição dos crimes e da pena", impedindo os princípios da tipicidade e da legalidade criminal (artigo 29, nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa - CRP) modificação seja por decisão judicial, erro ou lapso de Acórdão, ou seja, por qualquer outra via mesmo interpretativa.

C18 - Neste caso, o erro motivado pela manifesta contradição do Acórdão entre a fundamentação, a conclusão e a decisão, caso não fosse corrigido, resultaria num agravamento da responsabilidade criminal do ora recorrente em manifesta violação da CRP e da lei penal quanto à prescrição.

C1S - O Acórdão recorrido decide com base em factos inexistentes em relação à data de constituição do ora recorrente como arguido.

C20 - Conforme consta dos autos, e consta dos factos elencados nestas motivações de recurso, apenas em 5 de Novembro de 2018 (quase 12 anos após o alegado crime), é que o Tribunal de 1ª Instância solicitou às autoridades ... que procedessem à notificação do ora recorrente na sua residência em ... para que fosse constituído arguido, recebesse a acusação e requeresse a abertura da instrução (querendo);

C21 - E somente em 3 de Outubro de 2019 é que o ora recorrente foi constituído como arguido após longa e detalhada troca de correspondência entre o mesmo Tribunal de 1ª Instância e as autoridades ....

C22 - Todavia, o Acórdão recorrido ignora ou faz tabua rasa do pedido e correspondência entre o Tribunal de 1ª Instância e as autoridades ... para que o ora recorrente fosse constituído arguido, como o foi em 3 de Outubro de 2019, com a intervenção daquelas mesmas autoridades do ....

C23 - Se o recorrente tivesse sido constituído arguido em 25 de Maio de 2011 por ter feito declarações como testemunha, nunca o Tribunal de 1ª Instância pediria o que pediu às autoridades ... em 5 de Novembro de 2018;

C24 - O pedido é claro e não dá margem a "outras" interpretações: notificação do ora recorrente na sua residência em ... para que fosse constituído arguido, recebesse a acusação e requeresse a abertura da instrução (querendo).

C25 - Todavia, o Acórdão recorrido, apesar de reconhecer que "em finais de 2018 foi pedida novamente a constituição como arguido através da justiça do ..., o que ocorreu em 2019" (página 35, 1§)

C26 - Acrescenta que "pedido esse renovado, quanto à constituição como arguido, certamente por via de dúvidas que pudessem colocar-se, mas por mera cautela" (mesma página 35, 1§)

C27 - Ora, nos autos NÃO há nenhum facto ou informação que possa levar o Acórdão a dizer o que diz e a concluir o que conclui:

vii) NADA CONSTA que o ora recorrente foi constituído como arguido antes de o Tribunal de 1ª Instância fazer o pedido expresso para esse efeito em finais de 2018 através da justiça do ...;

viii) Esse pedido de finais de 2018 e toda a correspondência que se seguiu NÃO refere que se trata "novamente um pedido", nem tão pouco um "pedido renovado quanto à constituição de arguido"

ix) Igualmente nesse mesmo pedido de finais de 2018 e em toda a correspondência que se seguiu NADA CONSTA de que ele foi feito "por via de dúvidas que pudessem colocar-se" ou que se trataria de um pedido "por mera cautela"

C28 - Ou seja, o Acórdão recorrido decide com base em factos, informações e conjeturas que pura e simplesmente NÃO EXISTEM nem têm correspondência nos autos;

C29 - Mais: estão em TOTAL CONTRADIÇÃO com o pedido do Tribunal de 1ª Instância à justiça do ... em finais de 2018 e com toda a correspondência trocada entre o mesmo Tribunal e a mesma justiça do ....

C30 - Acresce que o arguido também NÃO foi constituído como tal em 25.11.2011.

C31 - Nas citadas fls 375 a 376 (página 33, 4§) o que consta são declarações do ora recorrente como TESTEMUNHA, NÃO como arguido

C32 - O título em ... é elucidativo "witness statement" e a respetiva tradução para português é clara e não oferece duvidas, nem permite outras interpretações: declaração de testemunha.

C33 - Ainda nas mesmas fls 375 a 376 não consta nenhum documento de constituição de arguido, nem qualquer recusa do ora recorrente nesse sentido.

C34 - Aliás, se o ora recorrente tivesse então (em 2011) sido constituído arguido ou resultasse de fls 375 a 376 que o tinha sido (que não foi, nem resulta) TODOS os pedidos e correspondência entre as autoridades portuguesas e a justiça do ... NÃO TINHAM TIDO QUALQUER SENTIDO e eram apenas ... processuais para "inglês ver", como se diz na gíria popular,

C35 - Essa falta de sentido e inutilidade teria começado no pedido e ampla correspondência (inclusive com o Supremo Tribunal em ...) de 2013 a 2015

C36 - E agora em 2018 e 2019.

C37 - Ou seja, o Acórdão baseou as suas conclusões para decidir como decidiu com base em manifesto erro sobre os factos, e com base em factos, informações e conjeturas que pura e simplesmente não existem nem têm correspondência nos autos

C38 - Acresce que ao transformar declarações de testemunha em constituição de arguido e ao ignorar e desconsiderar o solicitado em 5 de Novembro de 2018 pelo Tribunal de 1ª instância às autoridades ... para que estes procedessem à notificação do ora recorrente na sua residência em ... e fosse constituído arguido nestes autos, recebesse a acusação e requeresse a abertura da instrução (querendo); também aqui o Acórdão decide em clara violação do regime da legalidade e tipicidade (artigo 29, nºs 1 e 3 da CRP); do princípio da igualdade (artigo 13 da CRP); e dos artigos 20º, nº 4 - processo equitativo; artigo 26º, nº 1 - princípio da não descriminação artigo 32º, nº 1 e 9 - garantias de defesa; e artigo 205º, nº  1 as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei, todos da CRP.

C39 - Mais: alterar nesta fase processual a data de constituição de arguido para efeitos de contagem de prazos de prescrição ignorando o que o Tribunal de 1ª Instância solicitou às autoridades ... e reafirmou em toda correspondência posterior, é um venire contra factum próprio em violação do due process of law, inaceitável para quem está constitucionalmente vinculado a actuação de critérios de legalidade.

C40 - Razões pelas quais, também nesta parte o Acórdão recorrido é nulo,

C41 - Em 27 de Maio de 2014 por sentença do ... Magistrates' Courts, em ..., o ... recusou o consentimento para que a regra da especialidade fosse afastada nestes autos e determinou, consequentemente, que o ora recorrente goza da proteção que lhe é dada pelo princípio da especialidade.

C42 - Esta sentença foi objeto de recurso, tendo sido confirmada na integra pelo Supremo Tribunal ("High Court of Justice") do ... em 12 de Março de 2015, isto é, há mais de 5 (cinco) anos.

C43 - A recusa de consentimento dos Tribunais ... foi essencialmente baseada na "passage of time", isto é já ter decorrido muito tempo desde a alegada prática dos factos, o que aqueles Tribunais consideraram opressivo e, portanto, injusto.

C44 - Todavia, tudo isto é ignorado pelo Acórdão, apesar de alegado pelo recorrente e inclusive constar das conclusões C4 a C7 das suas alegações, aliás citadas no mesmo.

C45 - A única referência (página 24, antepenúltimo §) é de que " não houve renuncia ao princípio da especialidade e não foi autorizada a extensão a estes autos da execução ampliada desse MDE". Nada mais...

C46 - Ora as decisões dos Tribunais ... sobre estes autos constituem CASO JULGADO.

C47 - E deveriam ser tidas em conta no Acórdão com as correspondentes consequências legais.

C48 - Ou seja, também aqui, este manifesto erro por omissão do Acórdão, torna-o nulo por resultar em mais um agravamento da responsabilidade criminal do arguido em manifesta violação da CRP, das convenções internacionais e da lei interna penal referentes ao princípio da especialidade e ao caso julgado.

C49 - O Tribunal da Relação é incompetente para conhecer o recurso objeto do Acórdão recorrido.

C50 - Este recurso - reexame de matéria de direito de uma decisão interlocutória - é da competência exclusiva do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 432, nº 1, alíneas c) e d) e nº 2 do CPP)

C51 - A violação das regras de competência do Tribunal é uma nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do processo (artigo 119, alínea e)).

C52 - Nulidade que, de qualquer forma já se arguiu, e reitera neste recurso para todos os devidos efeitos legais.

C53 - O Acórdão enferma ainda de vários erros ou lapsos e omissões quanto à descrição dos factos provados, a fundamentação e a decisão.

C54 - O dever de equacionar, sem erros, lapsos e/ou omissões, os factos, a fundamentação e a decisão é um dos requisitos essenciais de qualquer Acórdão, tal como decorre do artigo 379, nº1, alínea a) do CPP

C55 - A violação de tais requisitos por parte do Acórdão recorrido acarreta a nulidade do mesmo;

C56 - Nulidade que também já foi arguida nestes autos e se arguiu agora novamente para todos os devidos efeitos legais.

C57 - O que está em causa não é o mérito da Acórdão, para o qual já se esgotou o poder jurisdicional do Tribunal, mas sim os seus lapsos (erros) manifestos e as suas omissões.

C58 - Na ausência desses lapsos (erros) e omissões, ou seja, cumprido o dever de equacionar, sem erros, lapsos e/ou omissões, os factos, a fundamentação e a decisão, o Acórdão não estaria ferido de nulidade e decidiria sempre de forma diferente.

C59 - O Acórdão recorrido não se pronuncia sobre todas as questões relevantes para uma justa decisão, designadamente as colocadas peio arguido/recorrente quanto à recusa de consentimento dos Tribunais ... baseada na "passage of time", isto é já ter decorrido muito tempo desde a alegada prática dos factos, o que aqueles Tribunais consideraram opressivo e, portanto injusto - conclusões C4 a C7

C60 - É nulo o Acórdão, "quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar..." - Artigo 379, nº 1, alínea c) do CPP

C61 - Nulidade que também já se arguiu e se reitera neste recurso para todos os devidos efeitos legais.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis deverá o presente recurso ser considerado procedente, com todas as consequências legais».

2. Respondeu o Ministério Público nos seguintes termos (transcrição):

«O presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, vem interposto pelo arguido AA invocando verificar-se oposição de Acórdãos, indicando como Acórdão recorrido o proferido nestes autos a 23.06.2020, transitado antes de decorrido o prazo de 30 dias a que alude o artigo 438º, nº 1, do C. P. Penal e como Acórdão fundamento o Acórdão da Relação ..., proferido a 19.02.2019, Proc. n.º 3719/07... - ... Secção, já transitado em julgado.

Dos requisitos de natureza formal

O acórdão recorrido mostra-se transitado, não sendo susceptível de recurso ordinário. Tendo o presente recurso sido interposto atempadamente e por quem tem legitimidade (arts. 438º nº1 e 437ºnº 5 do CPP), mostra-se preenchido o pressuposto formal da sua admissibilidade.

Dos requisitos de natureza substancial

A interposição do presente recurso extraordinário visa, exclusivamente, a fixação de jurisprudência mediante acórdão - vd. Artº. 437º e seguintes, do C.P.Penal - e funda-se na evidente oposição dos acórdãos supra identificados, sendo que as decisões opostas exaradas em tais arestos versam a mesma questão de direito e desenvolvem-se no domínio da mesma legislação.

A questão de direito versada nos acórdãos em oposição reporta-se à questão de saber se a proibição legal de instauração ou prosseguimento da acção penal contra alguém por força do princípio da especialidade, consagrado no artigo 7º, da Lei nº 65/2003, de 23/08, quando o visado a ele não renuncie, tem como efeito a suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 120º, nº1 - a), do Código Penal.

No âmbito do acórdão recorrido, a questão jurídica sob apreciação foi decidida no sentido de que a proibição legal de instauração ou prosseguimento da acção penal contra alguém por força do princípio da especialidade suspende o prazo da prescrição, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 1 - a), do Código Penal.

Por sua vez, o Acórdão da Relação ... proferido a 19.02.2019, no Proc. n.º 3719/07... - ... Secção, consagrou o entendimento de que a proibição legal de instauração ou prosseguimento da acção penal contra alguém por força do princípio da especialidade não se deve considerar abrangida pela alínea a), do nº 1, do artigo 120º, do Código Penal, não suspendendo o prazo de prescrição do procedimento criminal.

Breve análise dos fundamentos dos acórdãos

O Acórdão fundamento, ao interpretar o disposto no artigo 120º, nº 1 - a), do Código Penal, entende que, passo a citar "A falta de autorização legal reporta-se a situações em que se justifica protecção especial para pessoas empossadas em determinados cargos, merecedores de imunidade, como é o caso dos deputados (art. 157º, nº 3, da CRP), ou dos membros do governo (art. 196º, nº 1, da CRP), em que é exigida autorização da Assembleia da República. Em hipótese alguma se podem considerar abrangidas por esta alínea, as situações em que o arguido invoca o princípio da especialidade na sequência de entrega a Portugal por outro estado em execução de MDE emitido noutro processo."

A verdade é que, tanto na situação de pessoas empossadas em cargos merecedores de imunidade como na situação decorrente do princípio da especialidade, estamos perante o mesmo contexto, ou seja, o procedimento criminal não pode iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal.

Se o legislador não distingue qualquer situação, não deverá o intérprete fazê-lo, até porque nem se descortina qualquer razão que justifique tal distinção. Se assim fosse, a grande motivação dos visados para a não renúncia ao princípio da especialidade seria, como é óbvio, o de deixar decorrer os prazos de prescrição do procedimento criminal e furtarem-se à acção da justiça.

Não temos qualquer dúvida de que essa não foi a intenção do legislador, pelo contrário, foi a de evitar que tal se verifique.

Como bem refere o acórdão recorrido, sic, com sublinhado nosso "Não vislumbramos que o espírito do legislador queira distinguir situações de eficácia equivalente. É a lei que não autoriza que se instaure ou prossiga o procedimento criminal quando o princípio da especialidade esteja actuante e não seja renunciado ou enquanto não se verifiquem as situações de excepção previstas para a possibilitação do prosseguimento penal. Não é ao Estado que pode ser imputada responsabilidade por inacção procedimental mas sim à Lei MDE que o impede de prosseguir a acção penal."

Entendo que será esta, precisamente, uma das situações que o legislador pretendeu abranger, ao estabelecer a suspensão da prescrição de procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 1 - a), do Código Penal.

Conclusão

Atento o supra exposto, concluo que a proibição legal de instauração ou prosseguimento da acção penal contra alguém por força do princípio da especialidade suspende o prazo da prescrição, nos termos do disposto no artigo 120º, nº1 - a), do Código Penal. Pelo que se impõe a fixação de jurisprudência, neste sentido».

3. Neste STJ a Procuradora Geral Adjunta foi de parecer que se verificam todos os pressupostos de admissibilidade do recurso.

4. No exame preliminar (art. 440.º/1, 2.ª parte, CPP), considerou-se que o recurso foi interposto por quem tinha legitimidade, mas é extemporâneo, porque interposto antes de transitada a decisão recorrida.

5. Colhidos os vistos e realizada a conferência (art. 440.º/4, ex vi art. 446.º/1, CPP, e art. 244.º, do CEPMPL), cabe decidir.

II

1. A marcha processual relevante (Processo n.º 3974/15....):

1.1. Em 23.06.2020 foi proferido acórdão no ... que julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido. Estava em causa o decurso, ou não, do prazo de prescrição do procedimento criminal à data do despacho recorrido, proferido a 04-11-2019 nos autos de proc.º comum coletivo NUIPC 3974/15.....

1.2. Em 01.07.2020 o arguido requereu a correção do predito acórdão, arguindo na mesma peça a sua nulidade e, inclusivamente, interpôs recurso para o STJ.

1.3. Em 08.09.2020 foi proferido acórdão no ... a julgar improcedentes as pretendidas correção e declaração de nulidade.

1.4. Em 22.09.2020 foi interposto o presente recurso.

1.5. Em 29.09.2020 foi proferido o seguinte despacho pelo Desembargador relator:

«(…) 1. Apenas é admissível nos termos do art. 437.º n.º 2 (alegada oposição de acórdãos da Relação) após trânsito.

Já não o é quanto à decisão em matéria de nulidades arguidas face ao disposto no art. 400.º, n.º1-c) e 432.º.º n.º1 b, “a contrario” do CPP.

2. Aliás, a interposição nos termos do n.º 2 do art.º 437.º do CPP supõe que haja trânsito em julgado dos acórdãos.

3. Consequentemente, não admito recurso ordinário para o STJ na parte relativa às nulidades decididas».

1.6. Em 06.10.2020 o arguido reclamou do despacho que antecede para o Presidente do STJ.

1.7. Por decisão de 18.12.2020, a Vice-Presidente do STJ indeferiu a reclamação do arguido.

1.8. Em 11.01.2021 o arguido interpôs recurso para o TC, onde, por decisão sumária de 01.04.2021, foi decidido não conhecer do recurso e por acórdão de 27.05.2021 indeferir a reclamação entretanto apresentada, mantendo o decidido na decisão Sumária. Este acórdão do TC, conforme certidão de fls 148 do respetivo apenso, transitou em julgado em 11.06.2021.

III

O direito.

Questão a decidir: saber se o recurso para fixação de jurisprudência pode ser interposto antes de esgotados os recursos ordinários e antes de transitada em julgado a decisão.

1. Os arts. 437.º/1/2/3 e 438.º/1/2, do CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste STJ (PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal, Comentado, 2021, p. 1402), fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos:

a) Formais:

1. Legitimidade do recorrente;

2. Interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;

3. Identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. Trânsito em julgado do acórdão fundamento.

b) – Substanciais:

1. Que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito;

2. Sejam proferidos no domínio da mesma legislação;

3. Assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto;

4. Que as decisões em oposição sejam expressas.

2. Quanto a estes dois últimos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

3. O recorrente tem legitimidade e interesse em agir, dado que o acórdão recorrido negou provimento a recurso por si interposto de uma decisão de primeira instância – despacho proferido a 04-11-2019 – que decidiu não declarar a prescrição do procedimento criminal, contrariando o entendimento e pretensão do recorrente, para quem o procedimento criminal estava prescrito.

4. Em tema de tempestividade do recurso importa considerar que o acórdão recorrido foi proferido em 23.06.2020. Ocorre que em 01.07.2020 o arguido requereu a correção do acórdão, arguindo na mesma peça a sua nulidade e, inclusivamente, interpôs recurso para o STJ. Em 08.09.2020 foi proferido acórdão no TRL a julgar improcedentes essas pretensões do arguido. Em 22.09.2020 foi interposto o presente recurso. Em 29.09.2020 foi proferido despacho do Desembargador relator em que referia «(…) apenas é admissível [recurso] nos termos do art. 437.º n.º 2 (alegada oposição de acórdãos da Relação) após trânsito». Mas não era admissível recurso da decisão «(…) em matéria de nulidades arguidas face ao disposto no art. 400.º, n.º 1-c) e 432.º n.º1 b, “a contrario” do CPP». E reforçava «(…) a interposição nos termos do n.º2 do art.º 437.º do CPP supõe que haja trânsito em julgado dos acórdãos». Em face do exposto decidiu o relator «(…) não admito recurso ordinário para o STJ na parte relativa às nulidades decididas». Em 06.10.2020 o arguido reclamou do despacho que antecede para o Presidente do STJ. Por decisão de 18.12.2020, a Vice-Presidente do STJ indeferiu a reclamação do arguido. Em 11.01.2021 o arguido interpôs recurso para o TC, onde por decisão sumária de 01.04.2021, foi decidido não conhecer do recurso e por acórdão de 27.05.2021, indeferir a reclamação, entretanto apresentada, mantendo o decidido na decisão Sumária. Este acórdão do TC, certidão de fls 148 do respetivo apenso, transitou em julgado em 11.06.2021. Em conclusão, o presente recurso foi interposto em 22.09.2020, mas transitando a decisão recorrida apenas em 11.06.2021, o recurso para fixação de jurisprudência é intempestivo, porque prematuro, pois devendo ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, foi interposto cerca de nove meses antes do trânsito da decisão recorrida, realidade de que o arguido aqui recorrente tinha perfeito conhecimento, pois todos os recursos e reclamações foram da sua autoria.

5. O regime processual penal do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é muito claro ao fixar para a sua interposição «o prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar», art. 438.º, CPP. Esta exigência legal, de natureza formal, mas taxativa e inultrapassável, de o recurso de fixação de jurisprudência só poder ser interposto depois de esgotados os recursos ordinários, com o sentido de que à data da interposição do recurso extraordinário, já não ser possível a interposição de recurso ordinário (ac. STJ de 6.7.2011, disponível em www.dgsi.pt) não foi respeitada, pelo que à data em que foi interposto, o recurso para fixação de jurisprudência era inadmissível, motivo pelo qual se agora se rejeita (art. 441.º/1, CPP).

6. O recurso para fixação de jurisprudência tem um procedimento próprio. Não tem cabimento legal um recurso «híbrido» como pretendido pelo arguido, com um pedido típico de recurso ordinário e um outro pedido para fixação de jurisprudência. Como o recurso para a fixação de jurisprudência só pode ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido (art. 438.º/1, CPP), salta à evidência a incompatibilidade processual de «enxertar» num recurso ordinário, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Se o recurso ordinário é ainda admissível, o de fixação de jurisprudência ainda não pode ser interposto; se é tempestivo o recurso para fixação de jurisprudência, já não pode ser interposto recurso ordinário. O respeito desta exigência legal (art. 438.º, CPP) implica que o recurso para a fixação de jurisprudência não pode ser cumulado com o recurso ordinário. Repete-se, não tem cabimento legal um recurso «híbrido» com um pedido típico de recurso ordinário e um outro pedido para fixação de jurisprudência. Como o pedido típico do recurso ordinário foi conhecido em todas as instâncias (reclamação para o STJ e recurso para o TC), não sobra qualquer questão de que cumpra conhecer.

III

Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA.

Custas pelo recorrente com a taxa de justiça de 4 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 09.12.2021.

António Gama (Relator)

Orlando Gonçalves