Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1127/19.0T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
BOA FÉ
TERCEIRO
SUBCONTRATAÇÃO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
INCUMPRIMENTO POR FACTO DE TERCEIRO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. A celebração de um contrato implica a assunção, por parte do devedor, de um dever de prestação e de deveres de protecção para com a pessoa e os bens do credor, que se comunicam, em certa medida, a quem é subcontratado pelo devedor.

II. Configurando-se o subcontrato de transporte, à imagem de outros subcontratos (maxime: subempreitada), como um contrato que se relaciona com o contrato de transporte pela unidade de fim ou unidade económica, o subcontratado não aparece exactamente como um estranho perante o credor no contrato de transporte mas como alguém que, sendo parte da relação negocial ampla, está também sujeito a deveres para com aquele credor.

III. Assim, quando o contrato de transporte é incumprido por acção do subcontratado, este pode ser chamado a indemnizar os danos causados, por via de uma responsabilidade quase contratual ou quase obrigacional.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Cível ... - Juiz ..., AA e esposa, BB, residentes na Estrada ..., ..., ... ..., ..., intentaram contra a sociedade Transportes L..., Lda. (1.ª ré), com sede em ..., ..., e contra a sociedade Transportes Monte Sicó II, Lda. (2.ª ré), com sede na Rua ..., ..., ..., ..., a presente acção declarativa, com processo comum, pedindo a condenação solidária das rés no pagamento aos autores das quantias de € 143.461,60 e de € 5.500,00, a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

Invocam, para o efeito – e em síntese – que contrataram com a 1.ª ré, pelo preço de € 2.000,00, que foi pago, um transporte de mobiliário usado desde França para Portugal, tarefa de que a 1.ª ré incumbiu a 2.ª ré, transporte esse que não chegou a realizar-se porque o veículo em que foi iniciado tal transporte – em 29 Março de 2018 – ardeu, depois de carregado com os móveis dos autores, destruindo a totalidade dos bens dos autores, causando-lhes prejuízos nos valores pedidos, respectivamente a título de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais. Invoca ainda que a 1.ª Ré garantiu aos autores dispor de um seguro para esse tipo de acidentes, o que veio a verificar-se ser falso.


2. Contestou a 1.ª ré Transportes L..., Lda., aduzindo, resumidamente, que, com o conhecimento dos autores, mediou o contrato entre estes e a 2.ª ré, nada lhe cabendo indemnizar, pois que tal encargo caberia à referida transportadora, não fora o caso de o contrato ter sido cumprido por pessoal experiente, com um veículo capaz, pelo que o artigo 383.º do Código Comercial afasta a sua responsabilidade civil. Pede a sua absolvição do pedido.


3. Por seu turno, também a 2.ª ré Transportes Monte Sicó II, Lda., contestou, alegando, no essencial, que foi contactada pelo representante da 1.ª ré para efectuar o transporte em causa, desconhecendo as negociações que esta manteve com os autores, e que “o malogrado incêndio se deu enquanto o funcionário da Ré estava a dormir“, não tendo qualquer responsabilidade no ocorrido, antes tendo feito tudo quanto lhe competia para que não ocorresse. Pede a sua absolvição do pedido.


4. A final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Julgo a presente acção parcialmente provada e, nessa medida, procedente, pelo que condeno a ré Transportes L..., Lda, no pagamento, aos autores, AA e esposa, BB, da quantia total de € 133.461,60, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Absolvo a mesma ré de tudo o mais contra ela pedido.

Absolvo a ré Transportes Monte Sicó II Lda do pedido”.


5. Inconformados, recorreram os autores para o Tribunal da Relação de Coimbra.


6. Em 26.10.2021 proferiu o Tribunal da Relação de um Acórdão em que, em conclusão, os Exmos. Desembargadores decidiram:

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida, nos seus exatos e precisos termos”.


7. Notificados deste Acórdão e não se conformando, vieram os autores interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º e 672.º e s. do CPC.

Pugnam pela substituição da decisão recorrida por “outra decisão que julgue pelo mesmo montante, pela mesma data a partir da qual se contam os juros de mora, mas com responsabilidade solidária de ambas as rés, mantendo a condenação da primeira Ré (Transportes L... Lda.) condenada em sede de responsabilidade contratual – como efectivamente foi – e a segunda Ré (Transportes Monte Sicó II Lda.) condenada em sede de indemnização por Danos Patrimoniais Puros”.

A terminar a sua alegação, formulam as seguintes conclusões:

A. Em 29/03/19, os AA, ora recorrentes, promoveram uma acção declarativa de condenação contra as empresas Rés, ora recorridas, Transportes L... Lda. e Transportes Monte SicóII Lda., assim peticionando, entre outros, às RR. serem condenadas, solidariamente, a indemnizarem os AA por Danos patrimoniais no montante de € 143.461,60

B. Em sede primeira instância, o douto tribunal decidiu pela procedência parcial da petição inicial da seguinte forma: «Julgo a presente acção parcialmente provada e, nessa medida, procedente, pelo que condeno a ré Transportes L... Lda., no pagamento, aos autores, AA e esposa, BB, da quantia total de €133.461,60, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

(…) Absolvo a ré Transportes Monte Sicó II Lda. do pedido.

C. Resumidamente, em causa estava um transporte de todos os bens de um casal de nacionalidade francesa que quis viver a reforma em Portugal e que perdeu todos os bens nesse transporte por incêndio do camião onde os bens se encontravam.

D. O transporte foi contratado com a Ré, ora recorrida, Transportes L... Lda., que, sem o conhecimento dos AA, subcontratou a Ré, ora recorrida, Transportes Monte Sicó II Lda., que foi quem, efectivamente, realizou o transporte.

E. Como estamos perante um transporte internacional de bens usados, encontramo-nos numa exceção à aplicação da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), com consequente aplicação da lei geral, como afirma a certa altura, e bem, a douta sentença da primeira instância, entretanto recorrida.

F. Esteve também bem a sentença quando confirmou a mera culpa da Ré que transportou, mas não contratou, ao salientar (a meio da página 12) que «Relativamente às causas do sinistro (…) toda a prova que nos foi possível recolher (…) milita no sentido de se poder concluir que o incêndio só ocorreu porque o representante da Monte Sicó optou por poupar dinheiro, não suportando o pagamento de uma taxa (…)».

G. Sem prejuízo de melhor se apresentar esta fundamentação, sempre se explica que essa taxa seria a do contacto para a assistência em viagem, para averiguar do problema eléctrico que o camião tinha, e que, por ser um contacto nocturno, a partir de um país estrangeiro, seria de valor superior, como também foi referido em tribunal pela mesma testemunha.

H. Mas a decisão do douto tribunal de primeira instância foi, como se pode ler na mesma sentença, (na sua 4ª linha da página 15), que «disposição legal nenhuma impõe a responsabilização de quem não contratou», em resposta ao pedido de responsabilidade solidária que os AA fizeram, por responsabilidade extra-contratual de quem efectivamente transportou, e com os AA não contratou.

I. Pelo que, concluiu o digníssimo juiz de 1ª instância (a meio da página 16 da mesma sentença) que: «Importa, assim, extrair uma dupla conclusão: primeiro, por não contratante, a ré Transportes Monte Sicó Lda não deverá responder a título de responsabilidade obrigacional perante os autores; segundo, a ré Transportes L... Lda, contratante inadimplente, responde, inclusive, pelos factos imputáveis ao terceiro executante, subcontratado por esta ré (negrito nosso).

J. E decidiu pela condenação de quem contratou - a Ré Transportes L.... Lda -, absolvendo do pedido a Ré que não contratou com os AA, a empresa Transportes Monte Sicó Lda.

K. Em sede de pedido de recurso ao Tribunal da Relação, os AA, ora recorrentes, pediram não só a correcção da sentença em primeira instância, condenando agora por responsabilidade extracontratual quem não contratou com os AA - a empresa Transportes Monte Sicó Lda. -, corrigindo para responsabilidade solidária no pagamento da indemnização do montante em que quem contratou foi condenada,

L. mas também, sem conceder, no ponto AA. das conclusões, pediram os AA a condenação de quem não contratou por «danos puramente patrimoniais».

M. Se no pedido de indemnização por responsabilidade extracontratual os venerandos desembargadores concluíram que «nada mais se provou acerca das causas desse incêndio, pelo que não podemos concluir pela culpa da 2ª Ré (…)», não dando, salvo melhor opinião, a devida relevância à culpa provada em primeira instância como aqui se citou da sentença,

N. não tendo assim provimento esta parte do pedido,

O. Mas não se pronunciaram os venerandos desembargadores quanto à alegada a questão da indemnização por danos puramente patrimoniais.

P. Está a ser recente e paulatinamente trilhado o caminho do que poderá ser uma melhor aplicação do Direito no caso do que julgamos ser uma corrente de protecção de direitos de terceiros lesados, relativamente a uma relação contratual,

Q. É assim o caso de deveres que, não chegando a constituir obrigações em sentido técnico, se podem constituir como deveres relativos, e como refere Manuel Carneiro Frada na sua obra «Forjar o Direito», pág. 165, no seu escrito «Danos Económicos Puros», em parceria com Maria João Pestana de Vasconcelos, «muitas das vezes como um plus relativamente aos deveres genéricos de respeito, contrapostos aos direitos absolutos».

R. «Esta via intermédia de responsabilidade civil», complementa o autor, «também correntemente designada “terceira via” da responsabilidade civil», não deixaria sem protecção e indemnização muitos lesados, terceiros de uma relação contratual, como nos muitos exemplos que o Autor dá nessa obra (mais adiante resumidos), ou como no caso corrente.

S. Diz este autor, (nessa mesma página), que: No âmbito desta evolução importa sublinhar uma linha de pensamento que, partindo da distinção entre as duas modalidades clássicas de responsabilidade - a obrigacional e a delitual -, defende o espaço de uma via intermédia de responsabilidade civil, ligada em particular à violação de deveres específicos decorrentes do dever de boa-fé negocial;

T. Pode ler-se então, na pág. 166, que «Em sede de responsabilidade civil obrigacional, prevista nos arts. 798º e seguintes do Código Civil, a indemnizabilidade de danos patrimoniais puros não suscita duvidas segundo a natureza do interesse afectado. Estes prejuízos serão ressarcíveis desde que se encontrem preenchidos os pressupostos desta modalidade de responsabilidade.

Contudo, a responsabilidade civil obrigacional, que resulta da violação de posições jurídicas creditícias, só é, em regra, eficaz em relação ao devedor. Tal significa, de outra perspectiva, que o dano económico puro sofrido por um terceiro (que não o credor) não é, em princípio, tutelável».

U. E é essa a desprotecção que temos no caso corrente.

V. Complementa o autor (na página 168): «De acordo com a doutrina mais sensível ao nosso tema, os danos patrimoniais puros serão em todo o caso ressarcíveis, nos termos do art. 483, nº 1, do Código Civil, quando tiver sido violada uma disposição de proteção cujo objecto seja a tutela de interesses puramente patrimoniais. As disposições de proteção representam, assim, uma via de alargamento da tutela delitual dos bens e interesses.»

W. «Dentro desta perspectiva», acrescenta o Doutor em Direito, «os chamados deveres no tráfico só tutelarão interesses patrimoniais puros nos casos e desde que esses interesses gozem de proteção aquiliana, sob pena de incongruência sistemática. Tais deveres, também conhecidos por deveres de segurança no tráfico ou por deveres de prevenção do perigo, impõem àquele que cria, controla ou mantém uma fonte de perigo, a adopção das medidas adequadas a prevenir os danos que essa fonte de perigo pode ocasionar.

X. E refere ainda Carneiro da Frada «É ainda de admitir a indemnizabilidade de danos patrimoniais quando havido uma ofensa grave do mínimo ético-jurídico exigível de todos os membros da comunidade, estejam ou não inseridos em relações contratuais.

Y. Como se pode ler no recente acórdão do STJ de 26/11/2020, que pode ser consultado em www.dgsi.pt ou no link: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1ad9561db95ed73980258640006708d4?OpenDocument onde muito claramente resumiu esta problemática a Veneranda Relatora Maria da Graça Trigo: «Para efeitos de um breve enquadramento dogmático do tema, socorremo-nos da síntese de Carneiro da Frada/ Mª João Vasconcelos (cit., págs. 161-166). Considera-se que, “em sede de responsabilidade civil obrigacional, prevista nos arts. 798º e seguintes do Código Civil, a indemnizabilidade de danos patrimoniais puros não suscita dúvidas segundo a natureza do interesse afectado” (cit., pág. 162). Porém, “no campo aquiliano, a situação é diferente: nos termos do art. 483º, nº 1, do Código Civil– norma central, a imputação delitual pode resultar da violação de direitos subjectivos de outrem ou de disposições legais destinadas à protecção de interesses alheios. Entende-se que a violação de direitos subjectivos de outrem, enquanto previsão básica de responsabilidade civil delitual, tem essencialmente em vista a lesão de posições jurídicas absolutamente protegidas.” (cit., págs. 162-163).»

Z. E complementa a veneranda Conselheira do STJ: «Deste modo, “as lesões patrimoniais que não envolvem a ofensa de uma posição jurídica absolutamente protegida só dentro de pressupostos relativamente estreitos poderão dar lugar a uma obrigação de indemnizar” (cit., pág. 163).

Concretamente, na responsabilidade delitual, apenas será de admitir a ressarcibilidade de danos económicos puros nas seguintes situações:

(i) Quando tiver sido violada uma norma de protecção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC);

(ii) Quando exista previsão delitual específica que contemple os danos económicos puros, como por exemplo, as normas dos arts.485ºe 495º do CC, ou a norma do art.8ºdo Decreto-Lei nº 147/2008, de 29 de Julho, relativamente à reparação de danos ambientais;

(iii) Quando se verifique abuso do direito, nas condições em que este constitua fonte de responsabilidade civil.

AA. Pode ler-se também no mesmo acórdão do STJ que: «Na doutrina, defende-se também que se inclua nesta última via não apenas o exercício abusivo de um direito mas também o gozo da liberdade geral de agir (cfr. Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, cit. pág. 547, nota 325). Já para Carneiro da Frada/Mª João Vasconcelos, “segundo a lei, o abuso pressupõe o exercício de uma posição jurídica” pelo que “é muito discutível que possa em rigor sindicar também comportamentos ofensivos de interesses puramente económicos que não se traduzam no exercício de um direito” (cit., pág. 165). Para estes autores, seria antes de “admitir a indemnizabilidade de danos patrimoniais quando tenha havido uma ofensa grave do mínimo ético-jurídico exigível de todos os membros da comunidade, estejam ou não inseridos em relações contratuais.” (cit., pág. 165)»

BB. Conclui então a mesma Relatora: «Conclui-se que, em sede de responsabilidade civil aquiliana, os danos económicos puros só são ressarcíveis em hipóteses circunscritas. No mesmo sentido, ver Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, 2008, págs. 550-551), Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, VIII – Direito das Obrigações, 2014, pág. 448) e Menezes Leitão, (Direito das Obrigações, I, 2016, pág. 261). Como bem se compreende, tal resultada “necessidade de salvaguardar a liberdade de actuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma protecção indiscriminada do património em sede de responsabilidade civil delitual” (Carneiro da Frada/Mª João Vasconcelos, cit., pág. 164).» [negritos nossos]

CC. No caso em questão, há uma ofensa grave do mínimo ético-jurídico exigível de todos os membros da comunidade, foi violada uma norma de protecção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC), incluindo a (mera) culpa provada em primeira instância, e há um terceiro a uma relação contratual, que ficou sem todos os seus bens, e que ficou desprotegido relativamente a um dos contratantes que agiu com mera culpa.

DD. Pelo que em sede de Recurso Excepcional, e salvo melhor opinião para uma melhor aplicação do Direito, estando perante a relação contratual entre empresa transportadora Transportes L... Lda. e Transportes Monte Sicó II Lda., se vejam protegidos os bens de toda uma vida dos AA, terceiros à luz da anterior relação obrigacional, sendo condenados os transportadores Transportes Monte Sicó II Lda. a indemnizarem os AA por danos puramente patrimoniais, em virtude de estarmos ofertante uma ofensa grave do mínimo ético-jurídico exigível de todos os membros da comunidade, quando foi violada uma norma de protecção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC), havendo um terceiro a uma relação contratual, que ficou sem todos os seus bens, e que ficou desprotegido relativamente a um dos contratantes que agiu com mera culpa”.


8. Não foram apresentadas contra-alegações.


9. Em 21.01.2022, o Exmo. Desembargador Relator determinou a subida dos autos como revista excepcional, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, al. a), do CPC.


10. Tendo o recurso sido distribuído à presente Relatora, proferiu esta um despacho em 31.01.2022 determinando a sua remessa à Formação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.


11. Por Acórdão de 2.06.2022, a Formação admitiu o recurso por via excepcional.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se a 2.ª ré deve ser condenada na obrigação de indemnizar os autores pelos danos por eles sofridos.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido, tal como constam do Acórdão recorrido (apresentados com referência à numeração que na peça processual de que constam lhes foi atribuída pelas partes):


Da petição:

1 - Os autores são de nacionalidade francesa, reformados, ambos com 64 anos, e adquiriram em finais de 2016 um imóvel para vir a ser a sua morada de família, situado em ..., estrada ..., ....

2 - A primeira ré é uma sociedade comercial dedicada aos serviços de transporte rodoviário de mercadorias e, entre outras, a atividades de mudanças.

3 - A segunda ré é uma sociedade comercial dedicada aos serviços de transporte rodoviário de mercadorias.

4 - A 2 de Outubro de 2017 os AA. contrataram a primeira Ré para um serviço de transporte de mobiliário, no caso um transporte da totalidade de bens pessoais do casal, desde a sua residência situada em França, em 32 ..., em ..., para Portugal, ..., na morada para onde vieram viver a sua reforma.

5 - Desocupando e deixando devoluto o imóvel onde habitavam em França, e aguardando os AA., e aqui contratantes, no dia seguinte em Portugal, a entrega de todos esses bens na nova morada portuguesa, que seria a sua nova residência.

6 - Esse encontro de vontades começou a ser construído por um email a 15 de Setembro de 2017, enviado à 01:21h, onde a primeira Ré apresenta uma proposta, referindo «como combinado, aqui envio os pressupostos para o transporte».

7 - Nessa proposta, a primeira Ré definiu o preço para o serviço em 2.000,00 euros.

8 - No sentido de melhor acautelar este acordo e de melhor firmar as suas condições, a Autora pediu num email, enviado no dia 15 de Setembro de 2017, mais esclarecimentos.

9 - Nomeadamente a direção e os dados da empresa de transportes.

10 - Em que tipo de camião se faria o referido transporte.

11 - E se «a empresa tem seguro em caso de roubo, acidente ou deterioração» dos bens a transportar.

12 - Estas questões tiveram resposta num email enviado a 24 de Setembro, no qual a primeira Ré responde, fornecendo: - a designação comercial completa da empresa, o NIPC, a informação que o transporte se realizaria num grande camião (100 metros), que a data não teria problema.

13 - E que «a empresa dispõe de seguros para qualquer coisa que possa surgir».

14 - A 2 de Outubro de 2017 os AA. exprimiram estar de acordo com as condições apresentadas pela 1ª ré, dizendo: «Estamos de acordo com o pressuposto de 2000 euros para a mudança».

15 - Os 2.000,00 euros acordados foram pagos pelos AA., através do cheque nº ...06 sobre o Banco 1..., no dia 29 de Março, mês esse em que era suposto o transporte ter sido realizado.

16 - Os AA. manifestaram por escrito a sua preocupação com o valor dos bens transportados e a sua importância pessoal, mencionando «livros, discos, móveis, sistemas hi-fi e roupa de valor».

18 - Solicitaram os AA. um seguro que pudesse garantir «deterioração ou acidente (…) «até 150.000,00 euros».

19 - A 1ª ré respondeu que «o seguro cobre toda a carga em caso de danos ou acidentes».

21 - Um camião apareceu à porta da residência francesa dos AA. no dia 29 de Março de 2018, para onde foram carregados todos os seus pertences.

23 - Depois de totalmente embalada e carregada toda a mobília, a transportadora informou que, devido ao avançado da hora atingida nesse dia, a viagem da mudança apenas seria iniciada no dia seguinte, dia 30 de Março de 2018, de madrugada.

24 - Os autores elaboraram uma listagem de todas as caixas que seriam transportadas.

25 - E fotografaram alguns dos móveis.

26 - O veículo para onde foi carregada a mobília e restantes pertences dos AA. incendiou-se nessa noite de 29 para 30 de Março.

27 - Por virtude do incêndio, todos os bens e pertences dos AA. ficaram queimados e destruídos, sem qualquer possibilidade de recuperação ou de aproveitamento.

28 - A lista de carga encontrava-se na gaveta fechada de um dos móveis que foi embalado, juntamente com a demais documentação pessoal do casal, que ardeu e ficou irremediavelmente destruída.

29 - Tendo outra via dessa lista, que o transportador detinha, ficado totalmente destruída, pois estava na posse do condutor que a colocou na cabine do camião, que ardeu completamente.

32 - Exceção feita a dois álbuns de fotografias familiares que a segunda Ré transmitiu posteriormente que estão na sua posse.

34 - Foram embaladas cerca de 140 caixas com os objetos pessoais, peças de mobiliário, livros – alguns de primeiras edições ou de coleções de reconhecido valor, como a coleção francesa de luxo da Biblioteca Pléiade – uma coleção de discos de toda uma vida, computadores pessoais dos AA. e quadros.

35 - O valor da totalidade dos bens queimados e destruídos ascende a € 127.829,00.

40 - Tendo ficado sem qualquer bem, seja mobília, roupa, eletrodomésticos, pertences pessoais, entre outros, os AA. viram-se forçados a comprar as mobílias básicas da marca ... para permitir habitarem na sua casa de ..., mobília básica de quarto, de sala e de cozinha, suportando novos custos que não estavam previstos;

44 - Não dominando a língua portuguesa, os AA. tiveram dificuldades em diligenciar todo um conjunto de iniciativas no sentido de obter a documentação necessária para reclamar perante a transportadora e perceber os trâmites legais portugueses relativos ao transporte da mobília.

45 - Para seu auxílio, contrataram advogados que os acompanhassem e assessorassem nas diligências para resolução deste assunto.

46 - Inclusive o da presente ação judicial, com honorários e taxas de justiça.

47 - Assim como suportaram diversos custos em deslocações do ... a Lisboa, por inúmeras vezes desde que o acidente ocorreu, custos estes traduzidos em gasolina, portagens, refeições, entre outros, que nunca seriam suportadas caso o sinistro não tivesse ocorrido.

48 - Os autores sofreram, como resultado da destruição da totalidade dos seus bens, um prejuízo de €127.829,00 em bens móveis, bem como quantia que, em concreto, não foi possível apurar, em despesas com aquisição de móveis essenciais e despesas de auxílio e de deslocação.

75 - Esta situação trouxe vários incómodos e perturbação da vida familiar aos AA.

85 - O Autor desde há quase um ano passou a andar nervoso, alterado no seu comportamento, de mau humor, triste e cabisbaixo, deprimido.

90 - O A. marido há cerca de um ano que por vezes não dorme, anda cansado, fatigado e irritado.

91 - A A. tem feito um grande esforço físico e psicológico para apoiar o A., com fadiga e cansaço acrescido que toda esta situação tem trazido.

93 - O A. anda a ser acompanhado por um psicólogo.

97 - As despesas de consultas com o psicólogo totalizam 100,00 euros.

99 - As despesas de farmácia da compra dos medicamentos ascendem a €32,60.


Da contestação de Transportes L..., L.da

27 - Nesse dia esteve presente na casa dos AA. o Sr. CC, representante da 1ª Ré, que ajudou o motorista da 2ª Ré a carregar os bens dos AA.


Da contestação de Transportes Monte Sicó II, L.da

10 - A 2ª R. foi contactada pela 1ª R. Transportes L..., L.da para que aquela efectuasse o transporte de uma carga a partir de França para Portugal.

11 - As RR. acordaram a data e local da carga (França) e descarga (Portugal).

14 - Para o transporte acordado, a 2ª R. utilizou o conjunto constituído por: a. trator com matrícula ..-PD-.., inspecionado, com seguro relativo a acidentes de viação, e detentor de licença n.º 666646 para transporte rodoviário internacional de mercadorias por conta de outrem e o semi-reboque com matrícula L-......, inspecionado, com seguro relativo a acidentes de viação

15 - No dia ... de Março de 2018, tal como acordado com a R. Transportes L...., Lda., a 2ª R., na pessoa do seu funcionário DD, dirigiu-se ao local onde se encontrava a mercadoria a transportar – 32 ..., em ... – e aí o funcionário da 2ª R., DD, e CC carregaram o veículo.

17 - O funcionário da 2ª R. já havia carregado mercadoria pertencente a EE.

20 - O incêndio ocorreu enquanto o funcionário da 2ª R. estava a dormir.

21 - Acordado pelo fumo e cheiro intenso a queimado, o funcionário da 2ª R. saiu do camião e apercebeu-se do incêndio que já havia consumido todo o semi-reboque.

22 - O funcionário da 2ª R. de imediato chamou as autoridades de emergência, tendo sido aquele transportado para o Hospital local devido às queimaduras e à inalação do fumo.

23 - O trator e o semi-reboque foram totalmente consumidos pelas chamas.

25 - O representante da 2ª R. de imediato se dirigiu para França a fim de diligenciar todas as formalidades necessárias.

26 - Em consequência do acidente, a 2ª R. comunicou à sua seguradora ..., no dia 02.04.2018, o sucedido, tendo transferido para esta qualquer responsabilidade.

27 - Os AA. não contrataram a 2ª R.


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido, igualmente tal como constam do Acórdão recorrido:


Da petição:

41 - Ou seja, atualmente os requerentes encontram-se na sua nova habitação em ..., sem os seus bens, sem mobílias, possuindo o mais básico mobiliário de sobrevivência comprado no ... para «remediar».

42 - Valor esse razoável que um homem médio suportaria a mobilar a sua casa, que se define num mínimo de 15.000,00 euros.

43 - O que o A. marido fez, mas que dada a sua condição de saúde não pediu fatura, nem guardou talão de entrega na altura, um período de grande transtorno.

48 - Os autores sofreram, como resultado direto da destruição da totalidade dos seus bens, que nunca chegaram ao destino nem se recuperaram, um dano de: - €15.000,00 em despesas com aquisição de móveis essenciais; - €500,00 de despesas estimadas de auxílio e sobretudo de deslocação.


Da contestação de Transportes L..., L.da

24 - A 1ª Ré interveio na elaboração e conclusão do contrato de transporte entre a 2ª Ré e os AA.

25 - Durante a fase pré negocial informou os AA. que a 2ª Ré forneceria o camião e que também possuía o respetivo seguro que acautelaria a perda ou deterioração da carga,

26 - Deste modo…

45 - O camião onde foram transportados os bens dos AA. era um camião em perfeito estado de conservação.

46 - Equipado com vários extintores, quer na cabine quer no reboque.

47 - Com todas as revisões em dia.

48 - O seu motorista, um funcionário experiente e diligente.

49 - O que em nada contribuiu para o deflagrar do incêndio, antes pelo contrário.

50 - O incêndio não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências.


Da contestação de Transportes Monte Sicó II, L.da

10 - Para o efeito precisaria de meio camião livre (medidas do camião totalmente livre: comprimento 6,5 metros e altura 2,70 metros)

13 - Durante as negociações entre a aqui 2ª R. e a R. Transportes L..., Lda. nunca foi por esta questionado se a 2ª R. teria seguro, que tipo de seguro e coberturas teria, nem valores dos mesmos.

16 - Os bens que se encontravam na residência não foram todos carregados no camião,

17 - O espaço que se encontrava livre no camião não foi suficiente para realizar o transporte de todos os bens.

18 - Os bens aí descritos jamais caberiam no espaço que se encontrava no camião.

30 - A 2ª R. desconhecia totalmente a alegada essencialidade da proteção de mercadoria a transportar, bem como desconhecia as alegadas exigências dos AA. aquando da contratação com o R. Transportes L..., Lda.

33 - A 2ª Ré desconhece as circunstâncias em que ocorreram as negociações entre os AA. e a R. Transportes L..., Lda.


O DIREITO

No caso presente, os autores celebraram um contrato de transporte de bens móveis com a 1.ª ré, mediante o pagamento de um preço, e esta comprometeu-se a transportar esses bens de França para Portugal.

A 1.a ré encarregou a 2.a ré desse transporte.

O transporte não se realizou e os autores ficaram sem os seus bens porque ocorreu um incêndio do camião, destruindo todos os bens.

Os autores pretendem que ambas as rés sejam condenadas solidariamente – a 1.a ré em sede de responsabilidade contratual (como efectivamente foi e, portanto, já não está em causa), e a 2.a ré “em sede de indemnização por danos patrimoniais puros”.

Assim, a questão que se coloca é saber se, não sendo o caso de aplicação da Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR)[1], os autores, sendo terceiros relativamente à relação contratual estabelecida entre as rés mas sofrendo danos pela acção da 2.a ré, podem exigir uma indemnização a esta.

Sobre a questão ora em apreço, o Tribunal a quo decidiu, como se sabe, em sentido desfavorável à pretensão dos autores, absolvendo a 2.a ré do pedido, explicando, no essencial, que não havia fundamento para a responsabilidade da 2.ª ré pois nada se tinha sido apurado quanto às causas do incêndio.

A fundamentação do Acórdão recorrido é sintética mas inequívoca:

Resulta da sentença recorrida que entre os AA. e a Ré Transportes L..., L.dª foi celebrado um contrato de transporte internacional de bens móveis usados, desde França para Portugal, ao qual não se aplica a chamada Convenção Internacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias (CMR), dado o disposto na al. c) do nº 4 do artº 1º dessa CMR – esta convenção não se aplica ao transporte de mobiliário por mudança de domicílio -, como bem resulta do despacho saneador proferido a fls. 127/128, o que os Recorrentes aceitam e não discutem – ver conclusão recursiva C..

Logo, ao transporte de mercadorias usadas em causa aplica-se o direito civil comum, como também foi entendido na sentença recorrida.

Como houve um incumprimento contratual da parte da 1ª Ré, parte essa que foi quem contratou o transporte com os AA., pois a mercadoria dos AA. carregada em França e a ser transportada não chegou ao seu destino (Portugal), entendeu-se condenar esta Ré no pagamento aos AA. do montante do prejuízo apurado, por responsabilidade contratual, o que não é objeto do recurso interposto, nem sequer o valor apurado para os danos.

Mas também se entendeu que a 2ª Ré, contratada pela 1ª Ré para executar o transporte em causa e que foi quem efetivamente o iniciou e em cuja viatura se deu o incêndio que consumiu todos os bens móveis dos AA. nela carregados, não responde perante os AA. mas, apenas e tão só, poderá vir a responder perante a 1ª Ré por via de aplicação do chamado ‘direito de regresso’ entre ambas as Rés, como foi decidido no Ac. do STJ de 30/04/2019, Proc.º nº 613/13.0TVPRT.

É deste entendimento que os agora Recorrentes discordam, defendendo, em resumo, que se deve também responsabilizar a 2ª Ré a título de responsabilidade civil não contratual ou aquiliana, em conjunto ou solidariamente coma 1ª Ré (responsabilidade civil dita híbrida).

Isto porque, no entender dos AA./Recorrentes, a 2ª Ré foi quem violou o direito de propriedade dos AA., ao ter permitido / contribuído para o incêndio ocorrido e a destruição dos seus bens transportados.

Alegam ou defendem os Recorrentes que provaram a culpa da 2ª Ré pelo incêndio ocorrido, o que é um dos pressupostos desse tipo de responsabilidade civil, como bem resulta dos artºs 483º, nº 1, e 487º, ambos do C. Civil.

Ora, com o devido respeito, não podemos concordar com tal argumentação, pois não se provou em que circunstâncias concretas se deu o incêndio do veículo transportador, apenas tendo ficado provado que na noite de 29/30 Março de 2018 se incendiou o veículo onde a mobília dos A. fora carregada – ponto 26 da pi – e que o incêndio ocorreu quando o motorista do semi reboque estava a dormir – ponto 20 da contestação da 2ª Ré.

Nada mais se provou acerca das causas desse incêndio, pelo que não podemos concluir pela culpa da 2ª Ré ou do seu motorista em questão no deflagrar do incêndio do camião transportador, o mesmo é dizer que não podemos responsabilizar a 2ª Ré a título de responsabilidade civil aquiliana.

Note-se que na própria fundamentação da decisão de facto se refere que ‘relativamente às causas do sinistro, evidentemente que os autores nada sabem, e os representantes das Rés também não...’.

Mas não só, pois que lendo a p.i. dela resulta que os AA. nada alegaram a respeito da eventual culpa da 2ª Ré, pois não alegaram um único facto que seja de que pudesse resultar ter havido algum tipo de comportamento por parte da 2ª Ré ou do seu motorista que possa evidenciar uma conduta inapropriada no transporte iniciado e de que possa ter resultado o incêndio na viatura.

Logo, carece de fundamentação a alegação dos Recorrentes de que houve negligência ou culpa da 2ª Ré ou do seu motorista – pontos 20, 21, 32, 36, 53 e 54 das alegações recursivas e suas conclusões J., N., V., CC., OO. e AAA..

Concluindo, improcede o recurso interposto, impondo-se a confirmação da bem elaborada sentença proferida, nos seus exatos e precisos termos, o que se decide”.

Recorde-se o raciocínio exposto na sentença:

Os factos provados deixam pouca margem para dúvidas sobre a circunstância de que os autores contrataram com a Transportes L..., esta, por sua vez – e sem qualquer intervenção dos autores a esse respeito – contratou com a Transportes Monte Sicó. Estamos perante a discutida questão da eficácia externa das obrigações, decorrente, desde logo, da disciplina do nº 2 do art.º 406º do código civil: “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei“.

Em concreto, difícil que sempre se tornaria deixar de identificar a Transportes L... Lda como o contraente não cumpridor, a questão é a da responsabilidade (ou não) da ré por este contratada para a execução do transporte, já que os autores igualmente aqui a demandaram, enquanto devedor solidário. E a solução aponta para a eficácia regra dos contratos, já que – afastado o regime da Convenção CMR – disposição legal nenhuma impõe a responsabilização de quem não contratou. E assim se tem vindo a pronunciar a jurisprudência. Contudo, a responsabilidade do contratante – no caso a L... Lda – não resulta excluída pela circunstância de esta ter optado por não realizar directamente a prestação, dela tendo incumbido terceiros.

Ouçamos os mestres: “A impossibilidade da prestação, sendo imputável a terceiro, exonera, em princípio, o devedor da responsabilidade. Mas a solução não seria justa, quando a impossibilidade provenha, não de estranhos ao processamento da relação obrigacional, mas de pessoas (…) que o devedor utiliza no cumprimento, como seus auxiliares”. Em nota, o autor explica: “De contrário, o credor ficaria injustificadamente sujeito a que terceiros, estranhos à relação, em que ele não teve nenhuma interferência, se substituíssem ao devedor originário em grande parte da responsabilidade deste”. E exemplifica: “Se, sem culpa e diligentemente, o devedor encarrega alguém de lhe ir pagar uma dívida, e o encarregado foge com o dinheiro ou negligentemente se esquece de cumprir, não se justificaria que, por não haver culpa do devedor, o credor sofresse as consequências da culpa do auxiliar”.

Já a Relação de Coimbra perfilha semelhante entendimento, ao afirmar que o contraente responde pela actuação de “outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato, como (aquele a que chama) o sub-transportador”. Igualmente assim o entende o nosso mais alto Tribunal: “O facto de o réu ter recorrido ao auxílio de terceira pessoa para o cumprimento da obrigação de guarda e conservação do veículo não o exonera da sua responsabilidade, nos termos do disposto no art.º 800.º, n.º 1, do código civil, não podendo o réu ficar em melhores condições do que se a obrigação fosse directamente cumprida por si”. Ou ainda, neste caso com intervenção de um transitário, que contratou terceiros para efectuar o transporte: “É na esfera jurídica da empresa transitária – que contratou uma outra empresa para efectuar o transporte de mercadorias desde Lisboa até à Polónia – que recai a responsabilidade pelo incumprimento das obrigações daquela empresa com quem contratou (…) tal como sucede num caso como o presente em que as mercadorias nunca chegaram ao destino, por terem sido roubadas durante a viagem”. E explica: “Sendo a obrigação assumida pelo transportador uma obrigação de resultado (e não apenas de meios), o transitário garante, perante o seu cliente e em caso de perda total ou parcial da mercadoria transportada, o pagamento da indemnização que venha a ser devida pelo transportador que não cumpriu, ou não cumpriu integral e correctamente, a obrigação de transportar a mercadoria, tendo depois direito de regresso da indemnização que tiver pago”. Pelo que, justifica, não está em causa a sua (do terceiro não contratante) condenação: “A possibilidade de um réu exercer sobre terceiro o direito de regresso quanto ao que vier, eventualmente, a ser condenado numa acção apenas permite que aquele provoque a intervenção deste como parte acessória e somente para apreciação das questões relativas ao direito de regresso e já não obter a condenação solidária desse terceiro juntamente com o réu”.

Importa, assim, extrair uma dupla conclusão: primeiro, por não contratante, a ré Transportes Monte Sicó Lda não deverá responder a título de responsabilidade obrigacional perante os autores; segundo, a ré Transportes L... Lda, contratante inadimplente, responde, inclusive, pelos factos imputáveis ao terceiro executante, subcontratado por esta ré”.



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Cumpre verificar do acerto da decisão recorrida.

É preciso enquadrar, ainda que brevemente, o tema aqui em apreço – da responsabilidade de um terceiro pela violação de um direito de crédito [2] - que, como bem se recorda no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019 (Proc. 261/14.8TBVCD.P1.S1), “está entre os mais controversos de todo o direito civil”.

É sabido que a função da responsabilidade civil é a de distribuir os danos que se produzem no contacto social. Os danos ocorrem, na maioria dos casos, em dois tipos de situações, dando, consequentemente, origem a duas modalidades de responsabilidade. Pode existir um prévio vínculo obrigacional entre as partes, resultando os danos do não cumprimento tout court ou do não cumprimento adequado das obrigações acordadas entre as partes (responsabilidade contratual – rectius: obrigacional), ou pode não existir prévio vínculo obrigacional, resultando os danos da inobservância dos deveres gerais de conduta (responsabilidade aquiliana, delitual ou extracontratual – rectius: extraobrigacional).

Quando não existe prévio vínculo jurídico entre as partes, para que nasça uma obrigação de reparar os danos causados devem estar preenchidos os pressupostos do artigo 483.º do CC. Destaca-se, com especial interesse para os presentes autos, o pressuposto da ilicitude, que pode definir-se, grosso modo, como a contrariedade ao direito. A ilicitude pode, por sua vez, revestir duas modalidades: a violação dos direitos de outrem ou a violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios (também conhecidas como “normas de protecção”).

É neste contexto que adquirem relevância os danos patrimoniais puros, danos puramente patrimoniais ou danos patrimoniais primários, a que os autores / ora recorrentes insistentemente se referem nas alegações da revista.

Os danos patrimoniais puros podem ser definidos como os danos que atingem o património da pessoa sem implicar a violação de um direito absoluto. Como se diz, com maior precisão, no Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 8.09.2016 (Proc. 1952/13.6TBPVZ.P1.S1), são “aqueles em que há uma perda económica (ou patrimonial) sem que tenha existido prévia afectação de uma posição jurídica absolutamente protegida”.

O entendimento da doutrina tradicional ou clássica é o de que, não existindo, em rigor, um direito ao património, na ausência de vínculo prévio (relação obrigacional ou ligação especial), deve adoptar-se do princípio da irressarcibilidade dos danos patrimoniais puros (Manuel de Andrade[3], Vaz Serra[4], Antunes Varela[5], Almeida Costa[6], Sinde Monteiro[7], Calvão da Silva[8], Pinto Oliveira[9], entre outros). Admitem-se, porém, duas excepções: no caso de se configurar violação de norma de protecção, quando esta tenha em vista a salvaguarda dos particulares contra certos danos e os danos em concreto produzidos sejam do tipo dos que a norma visa prevenir ou evitar, e no caso de se configurar abuso do direito (cfr. artigo 334.º do CC).

É paradigmático do acolhimento desta corrente na jurisprudência o Acórdão referido por último, onde se diz que os danos patrimoniais puros “não são reparáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual, salvo no caso de violação de normas destinadas a proteger interesses alheios (segunda regra do art. 483º, nº 1, do CC) ou em determinadas hipóteses especiais como as dos arts. 485º e 495º do CC, ou ainda quando se verifique abuso do direito enquanto fonte de responsabilidade civil[10].

Paralelamente, outra parte da doutrina defende aquilo que se designa “eficácia externa das obrigações” ou “tutela aquiliana dos direitos de crédito”, entendendo que o credor pode responsabilizar o terceiro sempre que este, pela sua acção, tenha causado o incumprimento da obrigação pelo devedor (Pessoa Jorge[11], Menezes Cordeiro[12], Santos Júnior[13] e, mais recentemente, Pinto Monteiro[14]). Parte esta doutrina de uma interpretação declarativa da primeira cláusula do artigo 483.º, n.º 1, do CC, segundo a qual os direitos de outrem referidos na norma são todos os direitos subjectivos, abrangendo, portanto, não só os direitos absolutos mas também os direitos de crédito[15].

Também na jurisprudência é possível encontrar movimentos favoráveis a esta tese. Destaca-se, com interesse especial para os presentes autos (dado que também aí se discutia a responsabilidade do obrigado no subcontrato de transporte perante o credor e proprietário dos bens transportados), o Acórdão deste Supremo Tribunal de 25.10.1993 (Proc. 084098), onde se diz que “[n]o caso de contrato de transporte seguido de subcontrato [ ] o primeiro contraente poderá [ ] agir contra o subcontratante, terceiro violador do seu direito de crédito, ao abrigo do princípio da eficácia externa das obrigações, desde que se verifiquem todos os pressupostos da responsabilidade civil exigidos por lei[16].

Voltando ao caso em apreço, verifica-se que, estando excluída a hipótese de violação de um direito absoluto, não há nada que indique que a 2.ª ré tenha violado alguma norma de protecção, dirigida à salvaguarda dos particulares contra danos do tipo dos que em concreto ocorreram, ou tenha incorrido em abuso do direito, mesmo interpretado em sentido amplo (abrangendo as simples liberdades).

Resulta disto que não se pode condenar a 2.ª ré em responsabilidade aquiliana ou delitual. Mas não haverá outro fundamento para a sua responsabilização?

Não há dúvidas de que a estrita responsabilidade contratual ou obrigacional também está excluída, já que, como sublinha o Tribunal de 1.ª instância, o contrato de transporte foi celebrado apenas entre os autores e a 1.ª ré[17].

Mas a verdade é que, na sequência deste contrato e por causa deste contrato, foi celebrado um segundo contrato entre a 1.ª e a 2.ª ré, através do qual a 1.ª ré transferiu para a 2.ª ré a obrigação que assumira perante os autores. Poderá / deverá esta circunstância ser ignorada?

A celebração de um contrato implica, sem dúvida, a assunção, por parte do devedor, do dever de prestação e de deveres de protecção para com a pessoa e os bens do credor. Não se comunicarão à 2.ª ré, subcontratada para o transporte, os deveres assumidos pela 1.º ré contratada pelos autores, podendo, no caso afirmativo, a 2.ª ré ser responsabilizada pelos autores por violação de deveres de protecção?

Não deve recusar-se a hipótese apoditicamente, apenas com o argumento de que os direitos de crédito são relativos, de que cada contrato vincula apenas as partes e não produz efeitos para terceiros (cfr. artigo 406.º, n.º 2, do CC).

Como bem se lembra no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2019 (Proc. 1563/16.4T8AMT.P1.S2), “[o] princípio da relatividade dos contratos, consagrado no art.406º, n.2 do CC, não é um princípio absoluto e hermético. Encontram-se na ordem jurídica várias figuras contratuais, em cujo regime legal se identifica uma eficácia de proteção para terceiros”.

No quadro dos subcontratos [contratos em que, após a celebração de um primeiro contrato, em que ficou definida a prestação a efectuar pelo devedor, este celebra um segundo contrato com um terceiro (subcontrato), que se vincula a executar o conteúdo daquela prestação ou de parte dela), afirma, não obstante exclusivamente a propósito do subcontrato de empreitada (subempreitada)], João Cura Mariano que “[n]a hipótese de o subempreiteiro incumprir definitivamente a obrigação de eliminação dos defeitos ou a de realização de obra nova, também assistirá ao dono da obra um direito de indemnização sobre aquele, relativo ao custo dos trabalhos de reparação por si efetuados ou contratados a terceiro[18].

Explica o autor que, “apesar de os dois contratos serem distintos, eles prosseguem uma finalidade comum (…) estando ligados por um vínculo funcional (…) Estamos, pois, perante um fenómeno de conexão internegocial, com reflexos no regime jurídico destes contratos [19]. E, adiante, acrescenta: “[s]uscitam-se (…) algumas particularidades, em matéria de responsabilidade civil contratual do subempreiteiro pela existência de defeitos na obra realizada, e que decorrem da circunstância de o contrato e subempreitada se encontrar funcionalmente conexionado com o contrato de empreitada em que foi acordada a realização da obra que, no seu todo ou em parte, constitui o objeto da prestação do subempreiteiro. Na verdade, a dependência da subemepreitada relativamente ao contrato de empreitada verifica-se não só na sua formação, mas também durante a sua execução, pelo que as vicissitudes ocorridas num se reflectirão necessariamente no outro. Daí que as consequências do cumprimento defeituoso da prestação do subempreiteiro não serão indiferentes às repercussões que esse tipo de incumprimento tiverem no contrato base, estando por isso, muitas vezes, condicionadas às reacções do dono da obra face à existência de defeitos na parte executada pelo subempreiteiro. Esta circunstância não coloca necessariamente em causa o princípio da relatividade das obrigações, uma vez que estes dois contratos não deixam de integrar um complexo negocial no qual participam dono da obra, empreiteiro e subempreiteiro, pelo qual todos eles são partes dessa formação complexa [20].

Também Pedro Romano Martinez entende, em considerações tecidas ao contrato de subempreitada, que, “seja pela admissibilidade de excepções à [ ] teoria [da relatividade dos contratos], pela condenação da mesma, ou considerando que o dono da obra e o subempreiteiro não são verdadeiros terceiros um em relação ao outro é de aceitar, nalgumas situações, a existência de uma acção directa com carácter de reciprocidade. Assim sendo, o dono da obra, como credor de uma determinada indemnização pode exigir o seu cumprimento ou a responsabilidade derivada do incumprimento ao subempreiteiro, em razão da íntima conexão existente entre os dois negócios que visam a prossecução do mesmo fim [21].

Existindo reconhecida proximidade entre a empreitada e o transporte[22], torna-se admissível, a esta luz, encarar o subcontrato de transporte como um contrato que se insere num grupo de contratos que se relacionam entre si por uma unidade de fim ou uma unidade económica.

Nesta ordem de ideias, o subcontratado posiciona-se perante o credor no primeiro contrato, não exactamente como um estranho, mas como alguém que, sendo parte da relação negocial ampla, está também sujeito a deveres para com aquele credor. Nesta conformidade, quando o primeiro contrato é incumprido por acção do subcontratado, este poderá ser chamado a indemnizar os danos causados, por via de uma responsabilidade quase contratual ou quase obrigacional.

Uma forma alternativa de enquadrar a situação, que, na prática, conduziria ao mesmo resultado, seria a de conceber o subcontrato de transporte como uma espécie de contrato com eficácia de protecção para terceiro[23]. Esta é uma figura situada na fronteira entre a responsabilidade contratual e a extracontratual e que consubstancia um reconhecido desvio ao princípio da relatividade dos contratos. Radica na ideia de que um contrato é susceptível de ter como beneficiários outros sujeitos que não só as partes. Aqui, no entanto, ao contrário do que sucede na construção anterior, a ilicitude residiria na violação de deveres de protecção e de cuidado, designadamente por força da regra de conduta segundo a boa fé (cfr. artigo 762.º, n.º 2, do CC), e não na violação do dever de prestar (neste contrato, o terceiro não tem um direito à prestação)[24].

A visão da responsabilidade civil que se propugna é uma consequência do reconhecimento de que o contrato é cada vez menos um mero acordo entre duas pessoas e está, já há tempo, em evolução para modelos mais complexos, de contratos integrados e que encontram a sua justificação na função económica unitária que desempenham – numa palavra: é o corolário lógico de uma concepção realisticamente (mais) sócio-económica das relações jurídico-creditícias.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido na parte em que absolveu a 2.ª ré, Transportes Monte Sicó II, Lda., e decidindo-se:

– condenar a 2.ª ré, Transportes Monte Sicó II, Lda., em regime de solidariedade com a 1.ª ré, Transportes L..., Lda., na obrigação de pagamento aos autores da quantia total de € 133.461,60, a que acrescem juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.


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Custas da acção pelas rés; custas da apelação e da revista pela 2.ª ré.

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Lisboa, 15 de Setembro de 2022


Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Este regime não se aplica aos transportes de mobiliário por mudança de domicílio [cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. c), da CMR].
[2] Segue-se de perto, nesta parte inicial, a exposição clara, simples e rigorosa de Jorge Sinde Monteiro [“Rudimentos da responsabilidade civil”, in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2005, pp. 349 e s. (https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/23773?mode=full)].
[3] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, Coimbra, Almedina, 1966 (3.ª edição), pp. 48 e s.
[4] Cfr. Adriano Vaz Serra, “Responsabilidade de terceiros no não cumprimento de obrigações”, in: Boletim do Ministério da Justiça, 1959, n.º 85, pp. 345-360.
[5] Cfr. João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Coimbra, Almedina, 2000 (10.ª edição), pp. 172-182.
[6] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina,2006 (10.ª edição, pp. 89-90 e 564. O autor retoma os argumentos “A eficácia externa das obrigações. Entendimento da doutrina clássica”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 135 (2006), pp. 130-136.
[7] Cfr. Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina,1989, pp. 535-582.
[8] Cfr. João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 359-377.
[9] Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011 pp. 965-1008.
[10] Mas veja-se ainda, em data posterior, os Acórdãos do Supremo Tribunal de 12.09.2019 (Proc. 149/16.8T8VIS.C1.S1), de 30.04.2019 (Proc. 261/14.8TBVCD.P1.S1) e de 20.11.2020 (Proc. 895/17.9T8PTM.E1.S1).
[11] Cfr. Fernando Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, Lisboa, AAFDL, 1975-1976, pp. 599 e s.
[12] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil português, II – Direito das Obrigações, Tomo III – Gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 447-448 e, mais recentemente, Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em geral, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 131 e s.
[13] Cfr. E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 437 e s.
[14] Cfr. António Pinto Monteiro, “A responsabilidade do terceiro que coopera com o devedor na lesão do direito de crédito – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2018 e ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2019”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 149 – Março / Abril de 2020, pp. 273-304.
[15] Como se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal de 27.01.2022 (Proc. 6296/20.4T8GMR.S1), a grande discussão não é exactamente sobre responsabilizar ou não responsabilizar o terceiro; é sobre se o terceiro pode ser responsabilizado nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC ou (como defende quem defende a interpretação restritiva da norma) deve ser responsabilizado nos termos do artigo 334.º do CC (abuso do direito).
[16] Negava-se a possibilidade de o primeiro contraente se valer “em geral, de 'acção directa' contra o devedor do seu devedor, ou seja, contra o subcontraente, mormente quando não seja exigida responsabilidade extracontratual, uma vez que tal acção reveste a feição de uma acção de cumprimento”. Mas responsabilizava-se o terceiro, ao abrigo do princípio da responsabilidade de terceiro por lesão de direito de crédito – o princípio da eficácia externa das obrigações. Para um breve comentário a este aresto e o seu significado cfr. . E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., pp. 433-435.
[17] Cfr., neste sentido, admitindo embora a responsabilidade aquiliana ou delitual do subcontratado, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2006 (Proc. 06A1640). Pode ler-se aí: “não se estabelecendo uma relação jurídica entre o primeiro contraente e os subcontratados, ou auxiliares, não há - salvo em situações muito especiais que aqui irrelevam – acção directa pois os subcontratados são terceiros (cf. vg. Dr. Orlando Gomes, "Contratos", 7ª ed., 102 e Prof. Dias Marques, "Teoria Geral do Direito Civil", I, 350); refere o Prof. Romano Martinez – ob.cit. 155 §s e 162 - que do facto da acção directa ser admissível em certos casos não se pode "extrair a existência de um princípio geral." Se, contudo, se verificarem os pressupostos da responsabilidade aquiliana já poderá aceitar-se a acção directa contra o subcontratado. (cf. vg. Acórdão STJ 15/7/93, CJ/STJ,subcon1993, III, 88)”.
[18] Cfr. João Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, Coimbra, Almedina, 2020 (7.ª edição), p. 252.
[19] Cfr. João Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, cit., p. 236.
[20] Cfr. João Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, cit., p. 239.
[21] Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte especial) – Contratos – Compra e venda, locação, empreitada, Coimbra, Almedina, 2005 (2.ª edição), p. 252.
[22] Recorda, por exemplo, Nuno Manuel Pinto Oliveira [“O contrato de prestação de serviço no Direito português”, in: Revista de Direito Comercial, 2020, p. 574 (https://www.revistadedireitocomercial.com/o-contrato-de-prestacao-de-servico-no-direito-portugues)] que, tendo-lhe sido confiado o projecto de revisão do título do Código Civil relativo aos contratos civis, “Galvão Telles propôs a distinção entre o tipo contrato de prestação de serviço e quatro subtipos — o mandato, o depósito, a empreitada e o transporte. Os contratos de mandato e de depósito deveriam ficar no Código Civil. Os contratos de empreitada e de transporte deveriam ficar no Código Comercial, 'e nele exclusivamente'. Explicando-o, Galvão Telles dizia que os dois contratos, empreitada e transporte, 'pressupõem, envolvem pela sua mesma índole, uma empresa, são contratos economicamente produtivos, e isso fá-los ingressar na órbita do direito mercantil' (sublinhados do autor).
[23] A solução vem sendo considerada e acolhida na jurisprudência portuguesa, incluído este Supremo Tribunal. Veja-se, para alguns exemplos, os Acórdãos de 14.06.2018 (Proc. 8543/10.1TBCSC.L1.S1) (sobre contrato de locação), de 8.09.2020 (Proc. 148/14.4TVLSB.L1.S1) (sobre contratos de profissionais de saúde dos hospitais) e de 3.11.2020 (Proc. 561/18.8T8CSC.L1.S1) (sobre contrato de concessão do posto de abastecimento de combustíveis de um aeródromo).
[24] Se se tratasse de um contrato a favor de terceiro, este teria um genuíno direito à prestação. Por isso, embora desenvolvida a coberto deste, a figura do contrato com eficácia de protecção para terceiro não deve ser confundida com ele. Recorde-se, a propósito, que Manuel Henrique Mesquita (“Contrato de subempreitada com uma cláusula penal a favor do dono da obra – T.R.C., Acórdão de 10 de Dezembro de 1996”, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 131 – Agosto de 1998, pp. 113 e s.) qualificou um contrato de subempreitada em que se convencionou que, em caso de atrasos no cumprimento das obrigações assumidas pela subempreiteira, esta pagasse uma multa à dona da obra, como um contrato a favor de terceiro na parte relativa à cláusula penal.