Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
424/13.3T2AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
QUESTÃO NOVA
DESPISTE
MORTE
SEGURO OBRIGATÓRIO
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
COMISSÁRIO
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / ACIDENTES CAUSADOS POR VEÍCULOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Noções de Direito Civil, p. 135;
- António Abrantes Geraldes, Recursos Em Processo Civil - Novo Regime, Almedina, 2ª Edição, p. 25 e ss. e 94 e ss.;
- Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1992, p. 140 e 175;
- Castro Mendes, Recursos, 1980, p. 27;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, 4ª edição, p. 35/37, 41/49;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, p. 395.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 503.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 291/2007, DE 21-08: - ARTIGOS 47.º E 49.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 10-07-2008, PROCESSO N.º 08B1846;
- DE 18-11-2008, PROCESSO N.º 08B2758;
- DE 15-09-2010, PROCESSO N.º 322/05.4TAEVR.E1.S1;
- DE 29-10-2013, PROCESSO N.º 1410/05.2TCSNT.L1.S1;
- DE 14-01-2015, PROCESSO N.º 2881/07.8TTLSB.L1.S1.
Sumário :
I. O que delimita o recurso e constitui o seu ponto de cognoscibilidade é a decisão impugnada, não podendo, o respectivo âmbito, exceder o que foi fixado e delimitado pela actividade cognoscente do órgão jurisdicional.

II. Os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso.

III. O Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, satisfeita que seja a indemnização ao lesado, donde, não cumprida ou satisfeita a obrigação, não faz sentido o apelo ao mecanismo de substituição assegurado pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel, e muito menos pugnar-se que na demanda onde se discute a responsabilidade civil dos Réus, decorrente do 503º do Código Civil e artºs. 47º, e 49º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, seja apreciado, um fundamento de responsabilidade novo e autónomo face à discutida e aludida responsabilidade civil, importando que o aludido fundamento de responsabilidade, novo e autónomo, terá de ser presente a Juízo, se necessário, em momento posterior, e autonomamente, na medida em que a lei impõe aos obrigados ao seguro, a obrigação de ressarcir o Fundo de Garantia Automóvel, das quantias que este satisfez, em função do facto de não haverem celebrado contrato de seguro válido e eficaz.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO



AA e BB intentaram a presente acção declarativa, contra, Herdeiros de CC, na pessoa de DD; EE - Comércio de Automóveis, Lda.; FF, Unipessoal, Lda.; GG - Comércio de Automóveis, Lda., e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação destes a pagar-lhes a quantia global de €236.130,18, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida dos juros legais, vencidos e vincendos.

Articulam, com utilidade, que no dia 25/06/2011, cerca das 03,15 horas, na A1, ao Km 258,909, sentido norte–sul, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo automóvel da marca BMW, modelo 663C, com a matrícula ...-JB-..., conduzido por CC, e no qual seguiam, como passageiros, HH, II e JJ, tendo o referido veículo sofrido um despiste com capotamento transversal, de que resultou a morte do HH, filho dos Autores.

O veículo BMW circulava sem seguro de responsabilidade civil automóvel, e, de acordo com o auto de notícia, era propriedade de EE - Comércio de Automóveis, Lda., pese embora, na Conservatória do Registo Automóvel, a propriedade do veículo se encontre registada em nome da Ré GG - Comércio de Automóveis, Lda..

O legal representante destas empresas afirma ter vendido este BMW ao CC a 21/06/2011, afirmando a mãe deste, que as assinaturas apostas nos documentos da aquisição do veículo não pertencem ao seu filho.

O aludido veiculo BMW foi vendido à EE, Lda., pela Ré/FF, Unipessoal, Lda.



O Instituto da Segurança Social, IP, veio deduzir, contra os ora Réus, pedido de reembolso de €5.030,64 que pagou, a título de despesas de funeral a DD (€ 2.515,32) e a AA (€ 2.515,32), mães, respectivamente, de CC e de HH, falecidos em resultado das lesões sofridas no acidente, dizendo ter direito ao reembolso daquele montante total contra os responsáveis do acidente, por sub-rogação legal, prevista no art.º 70.º da Lei n.º 4/2007, de 16/01, e nos termos do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22/02.


A Ré/FF, Unipessoal, Lda., na contestação que apresentou, requer a sua absolvição do pedido, por não lhe poder ser assacada qualquer responsabilidade por aquilo que está descrito no petitório.


A Ré/GG, Lda., na sua contestação, informou ter a empresa EE - Comércio de Automóveis, Lda, alterado a sua denominação particular para GG - Comércio de Automóveis, Lda. e excepcionou: a) a ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido; b) que os AA. são parte ilegítima por, segundo esta Ré, a acção dever ser proposta pela herança jacente e indivisa do HH; c) a sua (da Ré GG) ilegitimidade passiva por ter vendido, a 21/06/2011, o veículo ao CC, sustentando ainda que o CC foi o único responsável pela ocorrência do acidente que vitimou o filho dos AA.


Na sua contestação, o Fundo de Garantia Automóvel alega ter procedido à abertura de um processo de sinistros, e, terminado o processo de averiguações, entendeu que o sinistro ocorreu por culpa do condutor do veículo de matrícula ...-JB-..., considerando, porém, que o comportamento do falecido HH, ao fazer-se transportar no veículo de matrícula ...-JB-..., sem utilizar o cinto de segurança, esteve na origem da projecção e embate violento do seu corpo no separador central em cimento da A1, provocando-lhe as lesões corporais que estiveram na génese da sua morte.

Entende, por isso, que o grau de comparticipação do lesado para a produção dos danos terá de se fixar em 33%, por aplicação do disposto no artigo 570º do Código Civil.

O Réu/Fundo de Garantia Automóvel, na resposta de fls. 187/192, pede a sua absolvição do pedido de reembolso deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP, com o fundamento de que, nos termos do n.º 3 do art.º 51º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, não responde por ele.


Contestou, também, a Ré/DD: a) excepcionando a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido e por falta de causa de pedir; b) defendendo que o CC não era o proprietário do veículo de matrícula ...-JB-..., e que o despiste com capotamento ocorre em virtude do rebentamento do pneu traseiro, tendo concorrido para este rebentamento o mau estado em que se encontravam os pneus, com sulcos com altura inferior a 1,6 mm, a par de que as lesões sofridas pelo HH não teriam ocorrido se este viajasse com o cinto de segurança devidamente colocado.


Os Autores, na réplica, requerem que se releve o lapso de escrita da parte conclusiva da petição inicial, pois dizem “ser o R. condenado” quando pretendiam dizer “ser os RR. condenados”; defendendo, outrossim, que as invocadas excepções devem ser julgadas improcedentes.

 

Foi proferido despacho, a 03/06/2013, que decidiu que o pedido de condenação do Réu, sem especificar qual dos Réus demandados pretendem os Autores ver condenados, tem de ser levado à conta de lapso manifesto e que, sendo patente, admite correcção, nos termos do artigo 249º do Código Civil, tendo sido proferido despacho, a convidar os Autores a corrigir a petição inicial, por falha na alegação de factos para caracterizar a culpa do condutor do veículo na eclosão do acidente.

 

Os Autores vieram apresentar petição inicial corrigida.


Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as excepções: a) de nulidade da petição inicial, por ininteligibilidade do pedido, por o pedido de condenação do R., sem especificar qual dos RR. demandados pretendem os AA. ver condenados, ter de ser levado à conta de lapso, que já foi corrigido na nova petição inicial apresentada; b) de nulidade da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, por todos os RR. terem compreendido perfeitamente a causa de pedir da petição inicial, tendo sido supridas as deficiências da mesma na nova petição apresentada; c) de ilegitimidade dos AA., por serem estes os titulares da indemnização que julgam assistir-lhes, nos termos dos artigos 495.º e 496.º do C.Civil; d) de ilegitimidade passiva da Ré GG, Lda, por ser controvertida a questão de saber quem é o proprietário do veículo de matrícula ...-JB-.... A Ré é, por conseguinte, parte legítima, por ter interesse directo em contradizer - artigo 30.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Foi proferida decisão que julgou a acção improcedente quanto à Ré/FF, Unipessoal, Lda., absolvendo-a dos pedidos, por os Autores não terem articulado factos de onde se possa retirar por que razão esta sociedade há-de responder civilmente perante eles.

Foi, também, julgado improcedente o pedido feito pelo Instituto da Segurança Social, IP, contra o Fundo de Garantia Automóvel, por a responsabilidade deste estar limitada ao excedente do que não for satisfeito pela Segurança Social, nos termos do n.º 3 do art.º 51º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08.

Foram elaborados os temas da prova, que não sofreram reclamações.


Calendarizada a audiência final, foi esta realizada com observância do formalismo legal, tendo o Tribunal de 1ª Instância proferido decisão, de facto e de direito, que julgou a acção parcialmente procedente por provada, e, consequentemente, condenou:

“a) os RR. Herança aberta por óbito de CC, GG, Lda, e Fundo de Garantia Automóvel a pagarem, solidariamente, aos AA. AA e BB a indemnização total de € 117.000,00, sendo metade para cada um dos AA., valor a que acrescem juros de mora, à taxa legal, a partir da prolação da presente sentença e até integral pagamento;

b) a GG, Lda, e a Herança aberta por óbito de CC a pagarem, solidariamente, ao Instituto da Segurança Social, IP, € 2.515,32, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

c) e absolveu os RR. do mais contra eles peticionado.”

                                                                 

Inconformados, os Autores/AA e BB, e os Réus, Herdeiros de CC, GG - Comércio de Automóveis, Lda., e Fundo de Garantia Automóvel, recorreram de apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“a) - julgar a apelação interposta pela Ré Herança aberta por óbito do CC parcialmente procedente por provada e consequentemente revogando a decisão recorrida, absolve-se a referida Ré dos pedidos contra si formulados pelos Autores AA e BB;

b) - Julgar as apelações interpostas pelos Autores, Ré GG, Lda e Fundo de Garantia Automóvel improcedentes por não provados e, consequentemente, manter a condenação solidária da Ré GG, Lda. e Fundo de Garantia Automóvel a pagar aos Autores o montante de € 117.000,00 (cento e dezassete mil euros), bem como ao Instituto ao Instituto da Segurança Social, IP, a quantia € 2.515,32 (dois mil quinhentos e quinze euros e trinta e dois cêntimos).

c) - manter o restante decidido.”


Contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação do Porto, insurgiram-se os Réus, GG - Comércio de Automóveis, Lda., e Fundo de Garantia Automóvel, tendo sido proferida decisão singular que rejeitou os interpostos recursos, sendo que o Réu/Fundo de Garantia Automóvel, reclamou para a Conferência, desta decisão singular, tendo sido proferido acórdão que atendeu a aludida reclamação, revogando a decisão singular, na parte que rejeitou o recurso do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, admitindo-o, como de revista.


O Réu/Fundo de Garantia Automóvel, ao interpor recurso de revista, sustentou o mesmo, aduzindo as seguintes conclusões:

“I. Considerando o facto de o Tribunal da Relação ter condenado o aqui Recorrente - solidariamente com a Ré GG - Comércio de Automóveis, Lda. - tendo por base as regras da responsabilidade objectiva ou pelo risco, logra aplicação no caso sub judice o disposto no n.º 3 do artigo 504.º CC, ou seja, a responsabilidade do FGA abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada;

II. E tal sucederá já que todos os passageiros que seguiam no veículo de matrícula JB eram transportados gratuitamente, ou seja, esse tipo de transporte “...é o não pago, o gracioso, efectuado por gentileza, por cortesia, normalmente por espírito de liberalidade e no interesse, sobretudo, do transportado, de que a boleia é o caso típico.” - cfr. Acórdão do STJ, de 4.7.96, publicado no BMJ 459-532;

III. Não tendo ficado demonstrado ou provado que esse transporte era oneroso, dúvidas não podem existir que o mesmo era feito de forma gratuita, tal como decorre da experiência do curso ou andamento natural das coisas, da normalidade da vida;

IV. Do conjunto normativo contido no artigo 504.º do CC resulta que, relativamente às pessoas transportadas, a obrigação de indemnizar que impende sobre o responsável abrange apenas os danos pessoais, ou seja, os que atingem a própria pessoa transportada (além das coisas por esta transportadas, no caso de contrato);

V. Ficam, pois, excluídos, os danos não patrimoniais “laterais” que, embora ligados à morte da vítima e, consequentemente a danos pessoais desta, cuja titularidade a lei, em razão do casamento e de certos laços de parentesco ou afinidade, reconhece, iure próprio, às pessoas enumeradas no n.º 2 do artigo 496.º do CC;

VI. Estamos, na verdade, no campo da responsabilidade objetiva ou pelo risco, em que o legislador teve por bem, no uso da sua liberdade de conformação, não estender, limitando-o, a certas pessoas o direito a indemnização nos termos em que lho reconhece em caso de responsabilidade por facto ilícito culposo ou nos termos gerais;

VII. Trata-se de um dos casos em que, como expressamente ressalvado no artigo 499.º CC, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos não são extensivas à responsabilidade pelo risco, apresentando-se o artigo 504.º como preceito que exclui da categoria de beneficiários do direito à indemnização por danos morais próprios os familiares eleitos na norma do n.º 2 do artigo 496.º do mesmo diploma legal.

VIII. Consequentemente, no caso de responsabilidade objetiva ou pelo risco, restringindo-se a obrigação de indemnizar do responsável civil aos danos pessoais da pessoa transportada, por via da limitação constante dos n.ºs 2 e 3 do artigo 504.º do CC, aos mesmos limites se nade ter por restringida a responsabilidade do segurador ou do FGA;

IX. Donde não são indemnizáveis os danos não patrimoniais sofridos pelos Autores decorrentes da morte do seu filho, enquanto passageiro transportado no veículo de matrícula ...-JB-..., em virtude de por eles estar excluída a responsabilidade do transportador, não podendo manter-se a condenação solidária do ora Recorrente e dos responsáveis civis no pagamento aos ditos Autores, a tal título, da quantia global de € 45.000,00 (ou seja, 2 x € 25.000,00, reduzindo-se 10% desse valor a título de culpa do lesado);

X. Ao não decidir assim, o Tribunal recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto no artigo 504.º, n.ºs 1 e 3 e o art.º 342.º, ambos do Código Civil.

XI. O aqui Recorrente não se pode conformar com a absolvição da ré herança aberta por óbito de CC, na qualidade de representante legal do malogrado condutor do veículo de matrícula ...-JB-..., único interveniente no acidente de viação em apreço nos presentes autos;

XII. Na expressão - responsável civil - incluem-se todos aqueles que nos termos gerais da responsabilidade civil, por factos ilícitos ou pelo risco, podem responder perante o lesado. Em regra, está em causa a responsabilidade do condutor e do proprietário do veículo;

XIII. No entanto, o disposto no artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, veio alargar esse âmbito a todos aqueles que contribuíram para o facto de o veículo interveniente no sinistro circular sem beneficiar de contrato de seguro válido e eficaz, consagrando a figura do “responsável incumpridor da obrigação de segurar”;

XIV. Bastará o facto de a Ré representar legalmente o condutor do veículo sem seguro, para que se considere, que impendia igualmente sobre esse condutor a obrigação legal de celebrar um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel - vide n.º 1 do artigo 4.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto -, o que, por si só, determina a necessidade da sua condenação;

XV. Essa conclusão é a única que promana da interpretação conjugada dos diversos números que compõem o artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto;

XVI. Esse normativo habilita o FGA a demandar a pessoa obrigada à celebração do seguro, com base, única e simplesmente, no facto de aquela não ter celebrado o respetivo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, ou seja, a lei prevê que se prescinda, relativamente a estas pessoas, da verificação, face a elas, dos pressupostos da responsabilidade civil, por factos ilícitos, ou pelo risco;

XVII. O que está aqui em causa é um fundamento de responsabilidade novo e autónomo face à responsabilidade civil decorrente dos artigos 483.º e 503.º do Código Civil: a lei impõe aos obrigados ao seguro a obrigação de ressarcir o Fundo de Garantia das quantias que este despendeu em função do facto de não haverem celebrado contrato de seguro válido e eficaz;

XVIII. Da matéria de facto considerada assente conclui-se que o veículo sem seguro era conduzido pelo malogrado CC, o qual, sem que o tenha justificado nos autos, omitiu a obrigação de celebrar contrato de seguro válido e eficaz, impondo-se assim a sua condenação tal como está delimitada pelo âmbito do n.º 1 do artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, para o qual remetem o nºs 3 e 4 da mesma norma.

XIX. Ao não decidir assim, o Tribunal recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto no artigo 54.º, n.ºs 1, 3 e 4 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos acima peticionados.”


Foram apresentadas contra alegações pelos Recorridos/Autores/AA e BB (suscitando questão prévia, traduzida na invocada inadmissibilidade dos recursos interpostos, entretanto conhecida por decisão singular quanto ao recurso interposto pela Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., e em Conferência, depois de ter sido proferida decisão singular, quanto ao recurso interposto pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel), concluindo, em todo o caso, pela improcedência do admitido recurso, apresentado pelo Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel, aduzindo, para o efeito as seguintes conclusões:

“I. Vem o recurso interposto pelo FGA do Acórdão da Relação do Porto que manteve a decisão recorrida pelo Tribunal de 1ª instância quanto a estes, e consequentemente os condenou solidariamente a pagar aos AA. a quantia €117.000,00.

II. Entendem os AA/Recorridos que existe uma dupla conforme que impede a apreciação parcial do recurso interposto e por se verificar uma coincidência de fundamentação e decisão nos termos e para os efeitos do n.º 3 do art.º 671º do CPC.

III. O legislador pretendeu “aliviar” o Supremo Tribunal de um número excessivo de recursos e conferir-lhe a “dignidade” de Tribunal fundamentalmente vocacionado para “orientação e uniformização de jurisprudência”, que não uma 3.ª Instância como se vinha transformando.

IV. A fixação da indemnização por danos não patrimoniais aos AA. não sofreu qualquer alteração em 1ª e em 2ª instância.

V. No recurso interposto da 1ª decisão a R. delimitou o objeto daquele ao montante indemnizatório, pelo que, fez caso julgado a decisão quanto à fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais e conforme n.º 5 do art.º 635º do CPC.

VI. Verifica-se que tanto em 1ª instância como em 2ª instância a R. FGA foi condenada com os mesmos fundamentos e no mesmo quantitativo.

VII. Termos em que, o segmento decisório atacado pela R. FGA não pode ser objeto de revista por existir uma dupla conforme das decisões proferidas em 1ª e em 2ª Instância e conforme n.º 3 do art.º 671º do CPC

VIII. Quanto ao mais invocado nos recursos interpostos, acompanham os recorridos o entendimento de que deve ser assacada responsabilidade também ao condutor do veículo e em consequência, manter-se a decisão proferida em 1ª instância.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas Colendos Juízes Conselheiros certamente suprirão, deve ser parcialmente rejeitado o recurso interposto pela R./Recorrente Fundo de Garantia Automóvel, com todas as demais consequências legais.”


Foram colhidos os vistos.


Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. Cotejadas as alegações apresentadas pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel, distinguimos que as questões a resolver, recortadas das respectivas conclusões, consistem em saber se:


(1) O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, na medida em que:

(a)) Ao condenar, solidariamente, o Réu/Fundo de Garantia Automóvel e a Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., tendo por base as regras da responsabilidade pelo risco, importa reconhecer que a responsabilidade do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada, e não a reclamada por danos morais próprios dos seus pais, aqui Autores?

(b)) Outrossim, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, ao absolver a Ré/Herança aberta por óbito de CC, porquanto, da matéria de facto considerada assente, conclui-se que o veículo interveniente no ajuizado acidente, desprovido de seguro, era conduzido pelo CC, o qual, sem que o tenha justificado, omitiu a obrigação de celebrar contrato de seguro válido e eficaz, impondo-se, assim, a sua condenação?


II. 2. Da Matéria de Facto


Reapreciada a decisão de facto, foi considerada demonstrada a seguinte facticidade:

“1. - No dia 25/06/2011, cerca das 03,15 horas, na A1, ao Km 258,909, sentido norte- sul, ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo automóvel da marca BMW, modelo 663C, com a matrícula ...-JB-..., descapotável e com a capota aberta na altura.

2. - Este veículo era conduzido por CC.

3. - E nele seguiam, como passageiros, HH, II e JJ.

4. - O JJ seguia no lugar da frente, do lado direito.

5. - O HH seguia atrás do condutor e a II seguia atrás, do lado direito.

6. - O CC e o JJ levavam o cinto de segurança colocado.

7. - Os passageiros que seguiam no banco de trás - HH e II - não utilizavam o cinto de segurança na altura do acidente.

8. - O veículo circulava no sentido norte-sul.

9. - No local do acidente, e no sentido norte–sul, a A1 tem faixa de rodagem em piso betuminoso, com 11,10 metros de largura, permitindo 3 vias de trânsito, com um traçado recto, imediatamente antecedido de ligeira curva à esquerda, com perfil em patamar.

10. - A berma direita estava pavimentada e tem 3,80 metros.

11. - A berma esquerda estava parcialmente pavimentada, tinha 2,80 metros de largura e era adjacente ao separador central construído em betão.

12. - A sinalização no local era a seguinte: a) sinalização vertical “C13” (proibição de circular a mais de 120 km/hora) e “D8” (obrigação de transitar à velocidade mínima de 50 km/hora); b) marcas longitudinais “M2” (linhas descontínuas que separavam as vias de trânsito) e “M19” (guias que delimitavam a faixa de rodagem da berma).

13. - O veículo de matrícula ...-JB-... circulava na via de trânsito mais à esquerda.

14. - A velocidade não concretamente apurada mas que era superior a 120 km/hora.

15. - Quando transitava nas imediações do km 258,909, ao finalizar uma curva à esquerda, o pneumático traseiro do lado esquerdo rebentou.

16. - No seguimento da travagem, a banda de rodagem deste pneu desprendeu-se da carcaça do pneumático.

17. - O veículo entrou em derrapagem com derivação para a direita, rodopiou sobre si mesmo, e foi embater, já com a frente voltada para o lado de onde procedia, com os rodados do lado esquerdo na caleira de drenagem de águas pluviais, situada do lado direito (sentido norte–sul).

18. - De seguida, entrou no talude, tendo aí capotado e acabou por se imobilizar na berma direita (sentido norte–sul), em posição oblíqua à via e com a parte frontal orientada para a faixa de rodagem.

19. - Aquando do embate do veículo na caleira os rodados esquerdos separam-se do veículo.

20. - No decorrer do capotamento, os passageiros que viajavam no banco da retaguarda do veículo foram projectados: a) o HH ficou prostrado junto do separador central que divide os dois sentidos de trânsito; b) a II ficou prostrada junto da linha que separa a faixa de rodagem da berma direita da autoestrada (sentido norte- sul), aproximadamente 20 metros à frente do veículo.

21. - Do acidente veio a resultar: a) a morte, no local, do HH, após ter embatido num bloco de cimento do separador central; b) o falecimento do CC, a 28/06/2011; c) ferimentos graves na II; d) ferimentos leves no JJ.

22. - Em consequência do capotamento, o pára-choques, a porta lateral esquerda (que ficou na faixa de rodagem, junto à linha descontínua que separa a via central da via direita) e a bateria soltaram-se do veículo.

23. - No alinhamento do km 258,909, verificou-se existir uma marca contínua do pneumático, do rodado traseiro esquerdo, no pavimento da via mais à esquerda, passando a marcas de derrapagem ao km 258,823, com derivação para o lado da berma direita e que terminou, na caleira de drenagem das águas pluviais, ao km 258,689, com a consequente entrada do veículo no talude e com a sua posterior imobilização, na berma direita, ao km 258,572.

24. - O certificado de matrícula do veículo ...-JB-... indica as seguintes dimensões para os pneus: 245/35R20 nos pneumáticos da frente e 275/30R20 nos pneumáticos da retaguarda, ou, ainda, em anotações especiais: PN= 245/45R18; FT 245/45R18; RT 275/40R18; FT 245/40R19; FT 275/35R19; 245/50R17.

25. - O veículo ...-JB-... estava equipado, nos rodados da frente, com pneus “Hankook” 245/45ZR19 e à retaguarda com pneus “Pirelli” 275/40R19 (isto é, 275 mm de largura, radiais, montados em jante de 19 polegadas, com índice de carga 102 (850 kg) e projectados para uma velocidade máxima de 300 km/hora).

26. - São pneus de dimensões diversas das inscritas no livrete mas respeitando, entre os conjuntos jante/pneu dianteiros e traseiros, diferença proporcional idêntica à dos que equipam veículos novos da mesma marca e modelo.

27. - Os dois pneus do rodado da retaguarda do veículo ...-JB-... apresentavam na zona de rodagem desenhos com altura inferior a 1,6 mm nos relevos principais.

28. - Na sequência do auto de notícia elaborado pelo Destacamento de Trânsito de …, foi instaurado Inquérito no âmbito do processo nº 135/11.4GTSJM, que correu termos na Comarca do …–…–DIAP, 3ª Secção–fls. 24/25 e 26/32.

29. - Este Inquérito concluiu: “não fornecendo os autos elementos que indiciem suficientemente ter o acidente ocorrido porque outrem que não CC violasse normas reguladoras do trânsito rodoviário ou circulasse sem a atenção ou cuidado requeridos para a condução de veículos motorizados, e não se vislumbrando quaisquer diligências cuja realização permita melhor esclarecimento da verdade, determino o seu arquivamento”.

30. - As análises efectuadas ao sangue do CC e do HH foram negativas quanto à presença de álcool e de estupefacientes – fls. 349/351 e 594/603, respectivamente.

31. - O HH nasceu a 22/02/1986, e foi registado como filho dos ora AA. AA e BB–fls. 21.

32. - E faleceu a 25/06/2011, no estado de solteiro, não tendo deixado descendentes, testamento ou qualquer outra disposição de última vontade – fls. 22 e 19/20.

33. - A A. AA nasceu a 12/07/1960 – fls. 332.

34. - A A. é empregada de … e presta serviços a duas empresas, a KK e LL, Lda, e a MM, Lda, auferindo um rendimento mensal líquido global de cerca de € 620,00-fls. 34 e 35.

35. - Paga de renda mensal da casa onde habita a quantia de € 325,00 – fls. 36.

36. - O HH era um filho extremoso.

37. - E era um jovem a quem se augurava uma promissora carreira profissional e académica.

38. - À data do seu falecimento, o HH era um aluno de …. na Faculdade de Ciências da Universidade de ….

39. - Exercia funções de … na mesma Faculdade, auferindo o vencimento de € 436,49, durante 14 meses por ano.

40. - Ia ser proposto para fazer o …. na referida Faculdade, o que era algo que o HH sempre disse que queria fazer.

41. - O HH auferia, ainda, o montante mensal de € 745,00, durante 12 meses por ano, com início a 01/09/2010, no âmbito do contrato de bolsa de investigação celebrado com a Fundação da Faculdade .    – fls. 38.

42. - O HH residia, na data da sua morte, na Rua …, nº …, Bloco D, 1º Esq., …, em casa dos tios.

43. - Gozava de excelente saúde.

44. - Era um jovem alegre, jovial, dinâmico e trabalhador, responsável e com imensos projectos para o seu futuro.

45. - Com os amigos e colegas da faculdade sempre demonstrou um constante espírito de ajuda e companheirismo, o que o tornava numa pessoa respeitada, acarinhada e admirada.

46. - Era uma pessoa educada e com uma sólida formação cívica e moral.

47. - Entre o HH e a sua mãe existiam fortes laços de união e afecto.

48. - Também existia afecto entre o HH e o pai, embora tivessem um relacionamento mais distante em virtude de este residir em Angola.

49. - A A. AA sente de forma muito profunda e dolorosa a falta do filho HH, causa-lhe um sentido e prolongado sentimento de luto, e mantém-na mergulhada num grande desgosto.

50. - A A., devido à morte do filho HH, teve de suportar despesas com a obtenção da certidão de habilitação de herdeiros, no valor de € 205,18 – fls. 44.

51. - O HH vestia, na altura do acidente, camisa de manga curta, calças de ganga da marca Levy Strauss e um cinto de material sintético–fls. 335.

52. - O Instituto da Segurança Social, IP, pagou, a título de despesas de funeral, € 2.515,32 a DD, e € 2.515,32 a AA, mães, respetivamente, de CC e de HH –fls. 64 e 69.

53. - O veículo de matrícula ...-JB-... já tinha tido intervenção num outro acidente ocorrido a 09/07/2010.

54. - Circulava, à data do acidente, sem seguro válido e eficaz de responsabilidade civil automóvel.

55. - A propriedade do BMW de matrícula ...-JB-... encontrava-se, à data do acidente, registada em nome da Ré GG, Lda–fls. 33.

56. - Entre o CC e o gerente da Ré GG, Lda, estabeleceu-se um acordo mediante o qual este disponibilizava ao CC veículos de alta gama e cilindrada do Stand da Ré GG, para que o CC neles se fizesse transportar.

57. - Em “contrapartida” o CC fazia publicidade ao stand da Ré GG, mediante autocolantes colocados no veículo por aquela sociedade.”

Factos não provados:

“a) o HH residia com a mãe na Rua …, nº …, r/c esq., …, …;

b) e era um importante suporte económico da mãe, ajudando-a a suportar a renda da casa onde habitavam e contribuindo para as despesas de alimentação, água, luz e gás, no que despendia um valor anual nunca inferior a € 5.000,00;

c) a A. viu alterar-se a sua situação económica, de modo súbito e imprevisto, com a morte do filho;

d) a empresa angolana, NN, LDA, com sede em …, …, através de correspondência dirigida ao HH, com data de 17/05/2011, havia formalizado o convite para que o mesmo viesse a integrar o quadro dos seus colaboradores, como consultor de tecnologias de informação de segurança e telecomunicações–planeamento e optimização;

e) era absolutamente previsível que o HH o contrato de trabalho que lhe foi proposto pela NN, LDA.;

f) a A. despendeu € 1.000,00, com a aquisição de roupas de luto para si e familiares;

g) e suportou despesas com o funeral, exumação e flores, no valor de 4.425,00;

h) a GG, Lda (anteriormente designada EE, Lda) tivesse vendido o BMW 635d de matrícula ...-JB-... ao CC.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - artºs. 635º n.º  4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º do Código de Processo Civil.

II. 3.1. O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, na medida em que: (a)) Ao condenar, solidariamente, o Réu/Fundo de Garantia Automóvel e a Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., tendo por base as regras da responsabilidade pelo risco, importa reconhecer que a responsabilidade do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada, e não a reclamada por danos morais próprios dos seus pais, aqui Autores? (b)) Outrossim, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, ao absolver a Ré/Herança aberta por óbito de CC, porquanto, da matéria de facto considerada assente, conclui-se que o veículo interveniente no ajuizado acidente, desprovido de seguro, era conduzido pelo CC, o qual, sem que o tenha justificado, omitiu a obrigação de celebrar contrato de seguro válido e eficaz, impondo-se, assim, a sua condenação? (1)

Conforme já adiantamos, o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao Tribunal de recurso conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.

Tanto quanto se alcança das conclusões do recurso interposto, o Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel vem reclamar um destino diverso da demanda, traçado na Instância recorrida, sustentando, desde logo, que, ao condenar-se, solidariamente, o Réu/Fundo de Garantia Automóvel e a Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., tendo por base as regras da responsabilidade pelo risco, importa reconhecer que a responsabilidade do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada, e não a reclamada por danos morais próprios dos seus pais, aqui Autores.

Cotejado o acórdão recorrido distinguimos que o mesmo foi chamado o conhecer, não só o objecto do recurso interposto pelos Autores/AA e BB, mas também, os recursos interpostos pelos Réus, Fundo de Garantia Automóvel, Herança aberta por morte de CC e GG - Comércio de Automóveis, Lda..

O aresto recorrido evidencia os conceitos e institutos jurídicos atinentes à causa, sendo que não encontramos dificuldade em entender o processo intelectivo do Tribunal a quo que decidiu com propósito e segurança.

O Tribunal recorrido, acompanhando, com critério, o objecto dos recursos interpostos, formulou as questões que importava apreciar, consignando, a propósito:

“São as seguintes as questões que importa apreciar:

1. Recurso dos Autores

a) - saber se devia, ou não, o tribunal ter fixado a favor da Autora prestação de alimentos nos termos estatuídos no artigo 495.º, nº 3 do CCivil; b) - saber se, pelo facto de o falecido HH não levar o cinto de segurança colocado na altura do acidente, também lhe deve, ou não, ser atribuída qualquer percentagem de culpa para o agravamento das lesões que sofreu.

2. Recurso do Fundo de Garantia Automóvel

a) - saber se mostra equilibrado o montante da indemnização devida pela perda do direito à vida da vítima HH fixado pelo tribunal recorrido; b) - saber se o montante da indemnização devida pelos danos morais próprios dos demandantes fixado pelo tribunal recorrido também se mostra o adequado; c) - saber qual o grau de contribuição para o agravamento dos danos decorrente da não utilização do cinto de segurança pela infeliz vítima HH.

3. Recurso da Herança aberta por morte de CC

a) - saber se a sentença recorrida padece das nulidades estatuídas nas alíneas b) e c) do artigo 615.º, nº 1 do CPCivil; b) - saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; c) - saber se o acidente deve ser atribuído a culpa efectiva ou presumida do CC; d) - saber se os montantes indemnizatórios fixados pelo tribunal se mostram, ou não, excessivos; e)- saber se a contribuição para o agravamento dos danos pela não utilização do cinto de segurança pela infeliz vítima HH devia ser superior à que o tribunal fixou.

4. Recurso da Ré GG, Lda.

a) - saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; b) - saber se o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do JB; c) - saber de quem era a propriedade do veículo JB; d)- saber se entre o CC e a Ré GG, Lda existia uma relação de comissão.”

Ademais, decorre do enquadramento jurídico vertido no aresto recorrido, ao apreciar o recurso do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, que este não põe em causa a indemnização aos Autores, tão só os valores arbitrados, o quantum.

Na verdade, o reconhecimento da 1ª Instância quanto ao fundamento da responsabilidade de cada um dos Réus, Herança aberta por óbito de CC, GG - Comércio de Automóveis, Lda., e Fundo de Garantia Automóvel, e consequente responsabilidade pelo pagamento das indemnizações pedidas pelos Autores e aceites como indemnizáveis, não foi questionado.

Ou seja, o reconhecimento de que a Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., responde objectivamente, nos termos do n.º 1 do art.º 503° do Código Civil, pelos danos que vierem a ser apurados, a par de que o CC responderá, solidariamente com ela, nos termos do art.º 497°, n.º 1, do Código Civil, a menos que a Ré/Herança aberta por óbito de CC prove que o acidente não foi devido a culpa dele, nos termos da primeira parte do n.º 3, do art.º 503° do Código Civil, tendo rematado, a este propósito, o aresto da 1ª Instância “Em conclusão, responsáveis pelas indemnizações que vierem a ser apuradas como devidas, são a GG, Lda., como comitente e mesmo por incumprimento do n.º 1 do art. 6.º do Decreto Regulamentar n.º 7/98, e o CC, se vivo fosse, não só por culpa presumida, mas, mesmo, por culpa efetiva. A reparação dos danos que se vierem a apurar é garantida pelo FGA, nos termos do art. 47.º, n° 1, e 49.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n° 2, do RSSORCA, uma vez que o veículo, sendo propriedade de pessoa coletiva conhecida, circulava sem seguro válido e eficaz à data do acidente”, o que não foi objecto da apelação interposta pelo Fundo de Garantia Automóvel, conforme distinguimos das questões enunciadas a propósito pelo Tribunal recorrido (2. Recurso do Fundo de Garantia Automóvel a) - saber se mostra equilibrado o montante da indemnização devida pela perda do direito à vida da vítima HH fixado pelo tribunal recorrido; b) - saber se o montante da indemnização devida pelos danos morais próprios dos demandantes fixado pelo tribunal recorrido também se mostra o adequado; c) - saber qual o grau de contribuição para o agravamento dos danos decorrente da não utilização do cinto de segurança pela infeliz vítima HH), tão pouco pela Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., tendo a Ré/Herança aberta por óbito de CC, conquanto não questionasse a responsabilidade pelo risco da Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., reclamado o reconhecimento de que o acidente não ocorreu por culpa do condutor, CC.

Confrontado o acórdão recorrido, temos de convir que o respectivo enquadramento jurídico, não deixou de apreciar e reconhecer a responsabilidade civil, no âmbito da responsabilidade objectiva (Responsabilidade pelo risco – art.º 503º do Código Civil [Acidentes causados por veículos]), pese embora, se reconheça que o comissário, condutor do veículo interveniente no acidente ajuizado, tenha logrado fazer prova de que não houve culpa da sua parte, nos termos do art.º 503º n.º 3 do Código Civil, determinando, por isso, a absolvição da Ré/Herança aberta por óbito de CC, contrariando, nesta parte, a posição que logrou vencimento em 1ª Instância.

Como sabemos, decorre do direito adjectivo civil que o Tribunal de recurso não pode conhecer de questões que não tenham sido objecto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o Tribunal recorrido (artºs. 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 e 4 do Código de Processo Civil).

O que delimita o recurso e constitui o seu ponto de cognoscibilidade é a decisão impugnada, não podendo, o respectivo âmbito, exceder o que foi fixado e delimitado pela actividade cognoscente do órgão jurisdicional.

Os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso, estando o Tribunal de recurso, sublinhamos, limitado nos seus poderes de cognição às questões que, tendo sido ou devendo ter sido objecto da decisão recorrida, sejam submetidas à sua apreciação, isto é, constituam objecto da impugnação, neste sentido, Castro Mendes, in, Recursos, 1980, página 27; Armindo Ribeiro Mendes, in, Recursos em Processo Civil, 1992, páginas 140 e 175, Miguel Teixeira de Sousa, in, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, página 395, António Abrantes Geraldes, in, Recursos Em Processo Civil - Novo Regime, Almedina, 2ª Edição, páginas 25 e seguintes e 94 e seguintes, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 2008 (Processo n.º 08B1846), de 18 de Novembro de 2008 (Processo n.º 08B2758), de 15 de Setembro de 2010 (Processo n.º 322/05.4TAEVR.E1.S1), de 29 de Outubro de 2013 (Processo n.º 1410/05.2TCSNT.L1.S1), e de 14 de Janeiro de 2015 (Processo n.º 2881/07.8TTLSB.L1.S1).

Cotejado o objecto do recurso de revista interposto pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel, atinente ao presente segmento que contende com a invocação de que a respectiva responsabilidade, abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada, e não a reclamada, por danos morais próprios, dos aqui Autores, tendo por base as regras da responsabilidade pelo risco assacada à Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., e, solidariamente, ao Réu/Fundo de Garantia Automóvel, enquanto garante, uma vez que o veículo, sendo propriedade de pessoa colectiva conhecida, circulava sem seguro válido e eficaz à data do acidente, distinguimos que esta questão tão pouco foi suscitada no acórdão recorrido, aceitando todos os Recorrentes, e em concreto o Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel, o decidido em 1ª Instância quanto à reconhecida responsabilidade objectiva da Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., enquanto comitente, nos termos do n.º 1 do art.º 503º do Código Civil, pelos danos que vierem a ser apurados, a par de que o CC responderá, solidariamente com ela, nos termos do art.º 497º, n.º 1, do Código Civil, a menos que a Ré/Herança aberta por óbito de CC prove que o acidente não foi devido a culpa dele, nos termos da primeira parte do n.º 3, do art.º 503º do Código Civil.

Daqui decorre que a enunciada questão não foi suscitada no recurso de apelação.

Com efeito, esta questão surge colocada, pela primeira vez, em sede de recurso de revista sem ter sido submetida à apreciação do Tribunal Relação.

Como vimos, o procedimento definido pelo legislador ordinário quanto ao modo do exercício do direito de recurso, não garante aos interessados a faculdade de alegar de forma ilimitada e em qualquer fase processual os factos constitutivos do seu direito e/ou os factos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito invocado pela contraparte.

Assim, como se alcança, a questão em apreço, na medida em que apenas em sede da vertente impugnação recursiva suscitada, traduz-se em questão nova - “ius novarum”, “nova” - como tal insusceptível de apreciação por este Tribunal ad quem, ficando prejudicado o respectivo conhecimento.

Afastada a reponderação por este Tribunal ad quem da questão enunciada na alínea a) do presente segmento II. 3.1., qual seja, saber se o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, na medida em que, ao condenar, solidariamente, o Réu/Fundo de Garantia Automóvel e a Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., tendo por base as regras da responsabilidade pelo risco, importa reconhecer que a responsabilidade do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, abrangerá apenas os danos pessoais da pessoa transportada, e não a reclamada por danos morais próprios dos Autores, uma vez que não foi colocada no Tribunal recorrido, impõe-se relembrar e conhecer daqueloutra questão, objecto do presente recurso de revista, condizente a saber se o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, ao absolver a Ré/Herança aberta por óbito de CC, porquanto, da matéria de facto considerada assente, conclui-se que o veículo, sem seguro, era conduzido pelo CC, o qual, sem que o tenha justificado, omitiu a obrigação de celebrar contrato de seguro válido e eficaz, impondo-se, assim, a condenação Ré/Herança aberta por óbito de CC.

Estatui o art.º 54º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) sob a epígrafe Sub-rogação do Fundo:

“1 - Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.”

“3 - São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro.”

Chamando à colação o consignado preceito legal, sustenta o Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel a errada subsunção jurídica dos factos provados, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, ao absolver a Ré/Herança aberta por óbito de CC, porquanto, da matéria de facto considerada assente, resulta que o veículo sem seguro, era conduzido pelo CC, impondo-se, conforme reclama, a condenação solidária da Ré/Herança aberta por óbito de CC.

Cremos, no entanto, que sem razão.

Resulta do enunciado normativo, que o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, satisfeita que seja a indemnização ao lesado, donde, não cumprida ou satisfeita a obrigação, não faz sentido o apelo ao mecanismo de substituição assegurado pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel, e muito menos pugnar-se que na presente demanda seja condenada a Ré/Herança aberta por óbito de CC, mesmo considerado assente que o veículo interveniente no articulado acidente, desprovido de seguro válido, era conduzido pelo CC.

O acórdão recorrido ao ter reconhecido que a Ré/Herança aberta por óbito de CC, fez prova de que o condutor do veículo interveniente no acidente, não teve culpa na sua eclosão, concluiu pela absolvição da Ré/Herança aberta de CC, fazendo apelo ao estabelecido no n.º 3 do art.º 503º do Código Civil, reconhecendo somente a obrigação da Ré/GG - Comércio de Automóveis, Lda., enquanto comitente, responsável pelas indemnizações apuradas como devidas, e o Réu/Fundo de Garantia Automóvel, enquanto garante da reparação dos danos apurados, uma vez que o veículo, sendo propriedade de pessoa colectiva conhecida, circulava sem seguro válido e eficaz à data do acidente, o que de resto encerra uma situação jurídica diversa, daqueloutra invocada pelo Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel, atinente ao reembolso devido ao Réu/Fundo de Garantia Automóvel, eventualmente a ser reconhecido, na medida em que se trata de um alegado direito de crédito sub-rogado, que pressupõe, necessariamente, o cumprimento da obrigação determinada pelo Tribunal, relativa à reparação dos danos invocados e reconhecidos, sofridos pelos lesados, aqui Autores.

Decorre do consignado normativo legal que, no âmbito de um acidente de viação, sempre que o Fundo de Garantia Automóvel venha a ser chamado a garantir a reparação de danos na falta de seguro obrigatório (art.º 47º e 49º Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), sucede nos direitos do lesado, na medida do montante pago.

Sendo a sub-rogação uma forma de transmissão das obrigações, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao credor primitivo, importa considerar como efeito principal da sub-rogação, a transmissão do crédito existente.

O credor sub-rogado, antes da satisfação do direito do credor é terceiro, alheio ao vínculo obrigacional.

O direito substantivo civil disciplina a sub-rogação, sendo esta restrita a quem cumpre a obrigação.

Só se verifica a sub-rogação nos direitos do credor quando tiver sido garantido o cumprimento da obrigação, ou quando o terceiro, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito - art.º 592º n.º 1 do Código Civil - sendo que no caso sub iudice existe fonte que legitima, juridicamente, a exigência de reembolso por parte do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, para o qual é transmitido um direito de crédito existente, conforme já adiantamos ao consignar que o nosso ordenamento jurídico estabelece, no âmbito de um acidente de viação, a sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel, uma vez satisfeita a indemnização, que foi chamado a garantir, enquanto reparação de danos na falta de seguro obrigatório (artºs. 47º, 49º e 54º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto [Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel])

Sublinhamos resultar daquele normativo, que o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, satisfeita que seja a indemnização, donde, não cumprida ou satisfeita a obrigação do Réu/Fundo de Garantia Automóvel, não faz sentido o apelo ao mecanismo de substituição atribuído ao Réu/Fundo de Garantia Automóvel, conforme resulta da própria natureza da sub-rogação (instituto previsto no art.º 589º do Código Civil), traduzida na transmissão de créditos que pode resultar da própria lei, e pressupõe uma obrigação anterior e um devedor obrigado à sua prestação, adquirindo o terceiro que cumpra tal obrigação, o sub-rogado, os poderes dados ao credor na medida da sua satisfação (artºs. 592º nº. 1 e 593º nºs. 1 e 2 ambos do Código Civil), neste sentido, Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, Volume II, 4ª edição, páginas 35/37, 41/49; Almeida Costa, in, Noções de Direito Civil, página 135.

O que está em causa na presente demanda é determinar a responsabilidade civil decorrente do 503º do Código Civil e artºs. 47º e 49º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, ao passo que o que está invocado pelo Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel, é um fundamento de responsabilidade novo e autónomo face à discutida e aludida responsabilidade civil, cuja apreciação terá de ser presente a Juízo, se necessário, em momento posterior, e autonomamente ao presente litígio, na medida em que a lei impõe aos obrigados ao seguro, a obrigação de ressarcir o Fundo de Garantia Automóvel, das quantias que este satisfez, em função do facto de não haverem celebrado contrato de seguro válido e eficaz.

Na improcedência das conclusões retiradas das alegações trazidas à discussão pelo Réu/Fundo de Garantia Automóvel, não reconhecemos à respectiva argumentação, virtualidade no sentido de alterar o acórdão recorrido.


III. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente/Réu/Fundo de Garantia Automóvel.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Maio de 2019  


Oliveira Abreu (Relator)                                                   

Ilídio Sacarrão Martins

Nuno Pinto Oliveira