Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
344/12.9TBBAO.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
ATROPELAMENTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM
NULIDADE DE ACÓRDÃO
VALOR DA CAUSA
PEDIDO
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO AUTOR. CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 8.º, N.º 3, 494.º, 496.º, N.º 4, 566.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3, 682.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 14.04.2015, PROCCESSO N.º 723/10.6TBCHV.P1.S1 - 6. ª SECÇÃO, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/CIVEL/CVEL2015.PDF .
-DE 15.09.2016, PROCESSO N.º 492/10.0TBBAO.P1.S1 - 7.ª SECÇÃO.
Sumário :
I - Entre o valor do pedido e o valor da causa existe uma relação de conexão subordinada – o segundo corresponde à expressão económica do primeiro e este conforma-o –, pelo que não se pode limitar o valor dos pedidos formulados ao valor da acção. Assim, tendo o autor indicado, como valor da acção, a importância de € 600 000, não se incorre em condenação além do pedido se a soma de todas as quantias líquidas e ilíquidas a suportar pela recorrente perfizer, a final, um montante superior àquele.

II - Demonstrando-se que, em consequência dos ferimentos sofridos, o autor poderá vir a ter que ser internado em instituição cujo custo, acrescido de despesas medicamentosas, ascenderá a € 2.000/mês, justifica-se, sob pena de enriquecimento injustificado daquela, que se estabeleça aquela importância como um limite máximo actualizável anualmente em vez de se condenar no pagamento mensal daquela importância à instituição.

III - Tendo as indemnizações devidas pelos danos patrimoniais futuros e pelos danos não patrimoniais sido fixadas com recurso à equidade, a intervenção do STJ deve cingir-se à formulação de um juízo de proporcionalidade dos montantes em causa, em ordem a assegurar que as decisões judiciais cumprem os critérios jurisprudenciais generalizadamente adoptados neste Tribunal.

IV - Demonstrando-se que o autor, então com 44 anos de idade e desempregado (i) sofreu lesões físicas gravíssimas e sofreu diminuição total da acuidade visual; (ii) ficou a padecer de um défice permanente da integridade física-psíquica de 87%; (iii) teve dores avaliáveis em 7 numa escala de 7 graus; (iv) depende da ajuda de terceira pessoa para a realização das tarefas do dia-a-dia e terá que ser formado para as executar por si; (v) vive extremamente angustiado e preocupado com o seu futuro num quadro de isolamento social e manifesta revolta e tristeza; (vi) o atropelamento de que foi vítima deu-se por culpa exclusiva e situada acima da média do condutor segurado na ré; não merecem censura a fixação, pela Relação, da indemnização devida por danos patrimoniais futuros em € 150 000 e da indemnização devida por danos não patrimoniais em € 160 000.

Decisão Texto Integral:            
Acordam no supremo Tribunal de Justiça:



          I. Relatório:

          AA propôs acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra Companhia de Seguros BB, S.A. e Fundo de Garantia Automóvel e pediu a condenação, de uma ou de outro, no pagamento:

a) da quantia de € 500.363,53 euros, correspondente à soma dos valores de indemnização devidos pelos (1) danos não patrimoniais (€ 250.000 euros), (2) dano patrimonial futuro/lucro cessante (€ 250.038,53 euros), e (3) outros danos patrimoniais (vestuário, € 150,00, e transportes, € 175,00), acrescidos de juros de 4% desde a citação;

b) da quantia mensal vitalícia de € 2.000,00 euros, correspondente ao custo de um lar onde deverá ser internado, a actualizar anualmente pelo índice de preços no consumidor e acrescida de juros de 4% desde a citação;

c) da quantia, a liquidar ulteriormente, com cursos de aprendizagem dos actos da vida diária e outros.


Para sustentar os pedidos, o autor alegou, em suma, que no dia 10 de Novembro de 2011, na Estrada Municipal n. º 579, em Valadares, Baião, foi atropelado pelo veículo de matrícula PB-...-..., acidente causado por desatenção do condutor, e sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial, que a 1.ª ré, por força do contrato de seguro obrigatório automóvel, ou o 2.º réu, não se apurando o veículo responsável, devem indemnizar.


Os réus contestaram por impugnação.

Os autos seguiram os seus normais termos, com enunciação do objecto do litígio e temas da prova e, bem assim, realização de audiência de julgamento.

Foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré Fidelidade a pagar, por referência aos pedidos formulados inicialmente:

a) a quantia de € 447.977,10, acrescida de juros de mora (desde a sentença sobre a quantia de € 447.802,10; desde a citação sobre a quantia de € 175,00), sendo € 200.000 pela compensação dos danos não patrimoniais,€ 247.802,10 para ressarcimento dos danos patrimoniais futuros/dano biológico e € 175,00 de outros danos patrimoniais (vestuário);

b) a quantia mensal vitalícia de € 2.000,00 a lar ou instituição onde o autor vá viver, montante actualizável anualmente pelo índice de preço dos consumidores, acrescida de juros de mora;

c) da quantia, a liquidar ulteriormente, com cursos de aprendizagem dos actos da vida diária e outros,

e absolveu esta ré do demais peticionado e considerou prejudicado o pedido formulado contra o FGA.


A ré BB interpôs recurso de apelação principal e o autor AA interpôs recurso de apelação subordinada.


O Tribunal da Relação do … proferiu o acórdão, em 7 de Novembro de 2016 (fls. 1097 a 1149), rectificado por acórdão de 20 de Fevereiro de 2017, no qual concedeu parcial provimento ao recurso principal e:

a) revogou a condenação feita na al. a) da decisão recorrida e, consequentemente, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 310.175,00 euros, acrescida de juros de mora (desde a sentença, sobre a quantia de € 310.000,00; desde a citação, sobre a quantia de € 175,00), sendo € 150.000 euros pelo danos não patrimoniais, € 160.000 euros pelo dano futuro/perda de capacidade de ganho;

b) alterou a condenação feita na al. b) da decisão recorrida e, condenou a ré a pagar a instituição onde o autor se encontre internado, até o dia 5 de cada mês, a título vitalício a quantia de € 2.000,00, montante anualmente actualizado em Janeiro de cada ano, por aplicação do índice de preços no consumidor do Continente, fixado pelo INE para o ano imediatamente anterior, a partir do momento que o A. comunique à Ré/recorrente a instituição onde se encontra internado;

c) manteve o demais decidido. 


Inconformados, a ré BB e o autor AA interpuseram recurso de revista.

       O autor formulou na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:

«1ª- vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pela 5a secção do Tribunal da Relação do … no processo n° 344/12.9TBBAO.P1, por discordar das indemnizações aí arbitradas por dano patrimonial decorrente da total afectação da capacidade de ganho do A. AA

 Após o sinistro e por virtude deste e por danos não patrimoniais resultantes das lesões sofridas, dos tratamentos efectuados e das sequelas permanentes que o passaram a afectar;

2ª - salvo o devido respeito - que é muito - o acórdão recorrido, nesse particular, ao decidir como o fez, não procedeu a uma justa valoração dos factos provados após audiência de discussão e julgamento nem à correcta interpretação e aplicação dos preceitos e valores legais pertinentes;

3ª - com relevo para a apreciação do presente recurso, importa reter a seguinte factualidade dada como provada na sentença proferida em ia instância que acima ficou transcrita no ponto ii-n° 1 das presentes alegações e se dá aqui por integralmente reproduzida;

4ª - conforme relatório do exame médico-legal realizado na pessoa do A. e junto aos autos, após consolidação médico-legal das lesões sofridas, apresenta o a. AA as sequelas permanentes que se transcrevem no ponto ii-n° 2 das presentes alegações e se dão aqui por integralmente reproduzidas;

5ª- ainda de acordo com tal relatório médico-legal o dano estético permanente é fixável no grau 5/7 (considerável);

6ª- como decorre dos factos provados relativamente às circunstâncias em que o sinistro se produziu, o mesmo ficou a dever-se culposa, causalmente e por forma única e exclusiva, ao comportamento do condutor do veículo seguro na BB - Companhia de Seguros, S.A., o qual, após colher o sinistrado AA, o abandonou no local, sem sequer se deter, não lhe prestando assistência, deixando-o à sua sorte, inconsciente e desamparado, caído no talude que marginava a via, oculto para quem nesta transitasse;

7ª- o mesmo conduzia - como se provou - com total desatenção, imperícia, inconsideração, negligência e falta de destreza, nem sequer tendo atentado na presença do a. À sua frente numa recta e na rua principal de uma localidade;

8ª- violando o condutor do veículo seguro na ré, deste modo, o disposto nos artigos 3°-n° 2, 11-n° 2 e 130-nº 1, do Código da Estrada, constituindo a infracção ao disposto no artigo 13°-n° 1 referido contra-ordenação grave, conforme preceitua o artigo 145°-nº 1, alínea f), do mesmo diploma legal, sendo tal infracção determinante de coima e sanção acessória de inibição de conduzir, de acordo com o preceituado nos artigos 13°-n° 3 e 147°-n° 1, do referido diploma legal, devendo tal infracção passar a constar do registo estradal do condutor (artigo 149°, alínea b), do CE.), mais integrando os factores atinentes às circunstâncias em que o sinistro se produziu a previsão do disposto nos artigos 144°, alíneas a) e b), 148°-n°s 1 e 3 e 200°-n°s 1 e 2, do Cód. Penal, constituindo-se o condutor do veículo seguro na ré fidelidade como autor material de um crime de ofensas graves à integridade física por negligência e de um crime de omissão de auxílio;

9ª- com todo o seu comportamento de fuga à responsabilidade - aproveitado pela ré na sua defesa - foi dificultada a posição processual do a. Ora recorrente, no apuramento e prova dos factos ocorridos, como sobejamente resulta dos autos - cfr. Artigo 486°-n°1,doc.c;

10ª- e, colocando o A. em situação de grave sofrimento físico e moral, totalmente incapacitado para angariar meios de subsistência, dependente em absoluto da indemnização devida pela ré BB - companhia de seguros, S.A., e objecto do pedido nestes autos;

11ª- ré essa que - como é sobejamente conhecido - é só, de longe, a seguradora de maior dimensão e actuar em Portugal, dispondo de um valioso património e de proveitos de larguíssimo montante, como vem explicitado e resulta nos seus relatórios e contas dos sucessivos exercícios, que vêm sendo publicados;

12ª- não é no caso aplicável o disposto no artigo 494°, do c.c, não havendo que limitar, por qualquer forma, a indemnização a arbitrar ao lesado, o a. Aqui recorrente;

13ª- tem, deste modo, o mesmo A. AA efectivo direito ao  ressarcimento  integral dos danos  sofridos – artigos 483°-no 1, 562° e 564°, do C.P.C. - por forma a que, por via da Indemnização a arbitrar, se permita ao lesado, na impossibilidade de o restituir à situação anterior ao sinistro, compensação pecuniária que lhe faculte usufruir e disfrutar na sua vida futura de condições económicas que minimizem e compensem de algum modo as graves limitações e o significativo sofrimento para o A. decorrentes do sinistro dos autos, que se manterão por toda a vida.

14ª - no que concerne à indemnização a fixar por virtude da situação em que o A. AA ficou, após o sinistro, de Incapacidade absoluta e permanente para angariar meios de subsistência, importa salientar, de entre os factos provados, os que se transcrevem no ponto iv-n°1 das presentes alegações e se dão aqui por integralmente reproduzidos;

15ª- como vem sendo entendimento jurisprudencial, é de admitir que o A., com 44 anos de idade ao tempo do sinistro, pudesse manter a sua capacidade para o trabalho na sua profissão por mais 31 anos, até, pelo menos, atingir os 75 anos de idade;

16ª- auferindo o A. cerca de € 35,00 (trinta e cinco euros) por dia de trabalho, salário esse o praticado na zona para trabalhadores com a categoria profissional do A. - sendo facto conhecido que é usual na região o trabalho aos sábados e dias feriados não religiosos -, os proveitos anuais que o A. auferiria e para tal tinha capacidade não fosse o acidente dos autos são do montante de € 10.710,00 (dez mil setecentos e dez euros) [€ 35,00 x 306 dias];

17ª- considerado o tempo já decorrido, sem que o A. tenha podido angariar pelo seu trabalho meios de subsistência, de mais de 5 anos, o dano patrimonial a este título já sofrido nesse período é não inferior a € 53.500,00 (cinquenta e três mil e quinhentos euros);

18ª- sendo certo que o A. teria ainda hoje - não fora o acidente e suas consequências - pela frente um tempo esperado de vida activa de, pelo menos, mais 26 anos;

19ª- a valores do salário auferido ao tempo do sinistro - 10/11/2011 -nesses 26 anos auferiria o A. rendimentos do seu trabalho no montante de € 171.460,00 (cento e setenta e um mil quatrocentos e sessenta euros);

20ª- dado que se trata de determinar um capital indemnizatório a receber de uma só vez e tendo em consideração, por um lado, as reduzidas taxas de rentabilidade das aplicações de capital que nos depósitos a prazo tendem para o zero e, por outro lado, as legítimas expectativas de incremento salarial num tempo futuro ainda longo de 26 anos, expectativas essas reforçadas pela qualificação profissional do a. Por via do curso de formação que frequentava, entende-se ser de reduzir esse valor para o montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros);

21ª- perfazendo o dano patrimonial para o A. decorrente da total afectação da sua capacidade de ganho € 203.500,00 (duzentos e três mil e quinhentos euros), montante que se entende ser de atribuir a esse título em substituição dos valores díspares fixados em ia instância e no acórdão recorrido, respectivamente, de € 247.802,10 (duzentos e quarenta e sete mil oitocentos e dois euros e dez cêntimos) e de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros);

22ª - à fixação de tal montante não pode ser indiferente o facto de o a. Não só estar, por forma absoluta e permanente, incapaz para o seu trabalho, como encontrar-se em situação de total incapacidade para todo e qualquer trabalho;

23ª- e, consequentemente, impedido também de nas horas vagas executar biscastes e outras tarefas, por exemplo agrícolas, como é usual na zona onde o A. reside, com os consequentes proveitos;

24ª- a título de indemnização por danos não patrimoniais passados, presentes e futuros, para o A. AA decorrentes do sinistro dos autos foi arbitrada, em 1ª instância, a indemnização de € 200.000,00 (duzentos mil euros), a qual foi reduzida no acórdão recorrido para a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), que se reputa manifestamente insuficiente;

25ª- a este propósito há que salientar os factos apurados após audiência de discussão e julgamento que se transcrevem no ponto V-n° 2 das presentes alegações e se dão aqui por integralmente reproduzidos;

26ª- tais factos justificam seja, pelo mínimo, arbitrada a favor do A. e a pagar pela ré indemnização por danos não patrimoniais de montante não inferior a € 200.000,00 (duzentos mil euros), tal como foi entendido e decretado na sentença de 1ª instância, a cuja fundamentação se adere;

27ª- a cegueira total do A. adquirida, de forma súbita, aos 44 anos de idade, significa que o mesmo não nasceu e viveu os primeiros anos de vida conformado com essa inevitabilidade originária, nem foi adquirindo ao longo dos anos preparação para viver conformado a sua cegueira, sendo, aliás, tal cegueira, súbita e totalmente imprevisível, agravada pelas limitações que o a. Passou a apresentar nos movimentos e força de pressão do membro activo (ombro, cotovelo e punho direitos), que o impedem de segurar com firmeza quaisquer objectos que tenha de manusear, maxime, um simples copo com água, que frequentemente deixa cair;

28ª- assim não decidindo a sentença recorrida violou o disposto nos preceitos acima citados e ainda o disposto nos artigos 483°-n° 1, 496º-n° 1,562° e 564°, do Código Civil.

Termos em que,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a sentença recorrida por acórdão deste Colendo Supremo Tribunal que decrete a condenação da ré recorrida BB - Companhia de Seguros, S.A. no pagamento ao A. Recorrente da indemnização de:

A) € 203.500,00 (duzentos e três mil e quinhentos euros), por danos patrimoniais decorrentes da afectação total e permanente da sua capacidade de ganho;

B) € 200.000,00 (duzentos mil euros), por danos não patrimoniais,

No mais se mantendo o que foi decretado, designadamente, no tocante aos juros moratórios devidos».

           

      Na alegação que apresentou a ré BB suscitou, no essencial e em resumo, as seguintes questões:

a) nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia;

b) condenação da ré em montante superior ao valor do pedido;

c) valor da indemnização para ressarcimento do dano patrimonial futuro;

d) formulação da condenação da ré quanto ao valor a pagar a instituição onde o autor será internado.


As partes apresentaram contra-alegações.

       Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

          De facto:

          Vêm provados os seguintes factos:

 1 - No dia 10 de Novembro de 2011, pelas 20h45 m, já de noite, na E.M. nº579/Rua Central, na localidade de Valadares, verificou-se um acidente de viação que consistiu no atropelamento do peão AA pelo veículo ligeiro de mercadorias, de caixa aberta, de marca e modelo Bedford KBD 27 Y, de matrícula PB-...-..., propriedade de CC.

2 - A cabina do referido veículo era de cor branca.

3 - O veículo de matrícula PB-...-... era na circunstância conduzido sob a direcção efectiva do seu proprietário em serviço de recolha de sucata do seu comércio, com o esclarecimento de que na altura do atropelamento o autor não conseguiu ver quem era o condutor da carrinha.

4 - Seguindo carregado de sucata que o respectivo condutor fora carregar.

5 - Sendo o proprietário do veículo de matrícula PB-...-... quem custeava as despesas inerentes á sua utilização e funcionamento – v.g. combustível, seguro, imposto de circulação, assistência oficinal, pneus.

6 - A faixa de rodagem da Rua Central dispunha de uma largura total de 5,15 metros,

7 - Dividida igualmente em duas sub-faixas de rodagem servindo o trânsito em sentidos contrários de marcha.

8 - Essas sub-faixas de rodagem de sentidos contrários de marcha apresentavam-se delimitadas entre si por linhas longitudinais descontínuas M2 demarcadas a branco no eixo médio da via.

9 - No local do acidente e respectivas imediações, a Rua Central desenvolvia-se em recta, com pelo menos 50 metros, marginada por uma ribanceira, mato e culturas do lado direito da via e algumas casas de habitação do lado esquerdo, atento o sentido Baião/Stº. Marinha.

10 - Encontrando-se o local dotado de iluminação pública que estava ligada, com o esclarecimento de que a iluminação é insuficiente, estando situado um poste de iluminação a 11,25 metros do local embate.

11 - A referida Rua Central não dispunha de bermas ou passeios marginando a faixa de rodagem.

12 - Atento o sentido de marcha Santa Marinha do Zêzere – Baião, a faixa de rodagem da Rua Central era marginada do lado esquerdo por um talude de terra que descia até aos terrenos adjacentes situados a um nível inferior.

13 - Na circunstância, o ora A. AA seguiu a pé pela Rua Central, caminhando no sentido Santa Marinha do Zêzere-Baião, longitudinalmente em relação á via, junto ao limite do lado esquerdo da faixa de rodagem.

14 - Por seu lado, o veículo de matrícula PB-...-... transitava, na ocasião, pela Rua Central, no sentido de marcha Baião-Santa Marinha do Zêzere, pela sub-faixa de rodagem do respectivo lado direito,

15 - Seguindo com a lateral direita do veículo junto ao limite da faixa de rodagem do respectivo lado direito.

16 - O condutor do veículo de matrícula PB-...-... seguia desatento,

17 - Não se tendo apercebido da presença do peão caminhando em sentido contrário,

18 - Vindo a colhê-lo com o canto dianteiro direito do veículo de matrícula PB-...-..., com o esclarecimento de que o aludido veículo também embateu no Autor com o seu espelho retrovisor do lado dianteiro direito,

19 - Projectando-o para o talude que do lado direito marginava a faixa de rodagem da Rua Central, atento o sentido de marcha Baião-Santa Marinha do Zêzere,

20 - Prosseguindo a sua marcha sem se deter, nem prestar assistência ao sinistrado.

21 – [1]

22 - Com referência à data do sinistro referido em 1), a responsabilidade civil perante terceiros inerente á circulação do veículo de matrícula PB-...-... encontrava-se transferida para a 1ª Ré Companhia de Seguros BB, S.A., mediante contrato de seguro, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº75….

23 - Em resultado directo e necessário do descrito acidente ficou o A. AA gravemente ferido,

24 - Tendo sido transportado de ambulância para o Centro Hospitalar do ..., E.P.E.,

25 - Tendo-lhe sido diagnosticadas as seguintes lesões:

 Fractura cominutiva da cabeça umeral e da diáfise proximal do úmero direito;

 Traumatismo crânio-encefálico;

 Traumatismo torácico, sendo visível contusão da parede torácica á direita,

26 - Ficando o A. internado.

27 - No decurso do internamento, a situação do A. complicou-se por “traqueobronquite aguda por haemophilus/influenza multisenssível”.

28 - A qual foi tratada pelo Serviço de Medicina Interna com antibioterapia dirigida.

29 - Entretanto, o A. apresentava queixas de franca diminuição da acuidade visual,

30 - Tendo sido observado pelos Serviços de Oftalmologia e de Neurologia.

31 - Ao tempo do sinistro, o A. padecia de retinopatia diabética não proliferativa, moderada, com maculopatia fotocoagulada e nervite óptica de longa evolução.

32 - Examinado, em face das queixas de diminuição acentuada da acuidade visual, o A. apresentava edema e palidez papilar bilateral e exotropia no olho esquerdo.

33 - A diminuição significativa da acuidade visual e o modo como aconteceu, não é compatível com o problema primário ocular que se verificava já ao tempo do sinistro,

34 - Sendo os sintomas verificados de exotropia e edema e palidez pupilar reveladores de problema neurológico pós-traumático derivado do acidente sofrido.

35 - Examinado o A. pelo Serviço de Oftalmologia dois meses após o acidente, verificava-se já que o A. deixou de ver de ambos os olhos, apenas tendo percepção de vultos.

36 - O A. que já era portador de moderada dificuldade visual de lenta evolução secundária a retinopatia diabética, por motivo do traumatismo crâneo-encefálico sofrido no acidente dos autos ficou em situação de amaurose bilateral.

37 - O A. por virtude do acidente ficou, desse modo, cego de ambos os olhos.

38 - Não sendo de admitir a possibilidade de melhoria desse estado.

39 -O perfil de instalação desse défice visual tem clara relação temporal com o traumatismo sofrido no acidente.

40 - Durante o internamento hospitalar foi o A. submetido, no dia 03/12/2011, pelo Serviço de Ortopedia, a intervenção cirúrgica consistente em osteotaxia com fixador externo da fractura cominutiva da cabeça umeral e da diáfise proximal do úmero á direita.

41 - Seguiram-se cuidados de pensos e limpeza e desinfecção das feridas, analgésicos, antibioterapia e profilaxia antitrombótica acompanhadas de vigilância de alterações neurocirulatórias,

42 - Tendo o A. melhorado e tido alta hospitalar no dia 07/12/2011,

43 - Sendo dadas as seguintes indicações :

 voltar á consulta dentro de 4 semanas;

 fazer pensos no Centro de Saúde;

 retirar pontos 12 dias após a cirurgia;

 analgesia, antibioterapia e profilaxia antitrombótica;

 retomar a medicação prévia ao internamento;

 vigiar alterações neurocirluatórias;

 manter suspensão braquial.

44 - O A. deslocou-se a consulta de ortopedia no referido Hospital no dia 11/01/2012, apresentando-se “sem queixas relevantes relativamente á fractura, com os orifícios dos pinos do fixador sem complicações, com mobilidade articular presente ao nível do ombro, com o cotovelo e mão sem queixas relevantes, sem evidência de défices na extensão dos dedos, embora com menor força de preensão”.

45 - O exame radiológico então efectuado ao membro superior direito revelou manutenção do alinhamento da redução das fracturas.

46 - Em virtude das lesões sofridas no acidente, ficou o A. definitivamente portador de sequelas permanentes (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 87%), determinantes de uma incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual de calceteiro e qualquer outra na área da construção civil, podendo estar capaz de realizar actividade noutras áreas profissionais se receber formação profissional adequada.

47 - O A. era trabalhador da construção civil com a categoria de trolha.

48 - Auferindo por dia de trabalho cerca de €35,00 (trinta e cinco euros), salário esse corrente na zona para trabalhadores com a categoria profissional do A.

49 - Ao tempo do sinistro, o A. encontrava-se, no entanto, desempregado.

50 - Frequentando um curso de formação profissional como calceteiro.

51 - O A. AA nasceu em 5 de Novembro de 1967, tendo, ao tempo do sinistro, 44 anos de idade,

52 - Sendo anteriormente ao acidente um homem alegre e trabalhador,

53 -Tendo aproveitado a situação de desemprego em que se encontrava para se qualificar profissionalmente, pois pretendia voltar a trabalhar. 

54 - Actualmente o Autor encontra-se dependente da ajuda de terceira pessoa para realizar as actividades diárias normais, podendo no futuro diminuir tal dependência se receber formação adequada, nomeadamente aprendendo Braile ou adquirindo um cão guia, que com auxilio de bengala lhe permita adaptar-se à actual condição de invisual e tornar-se mais autónomo na execução das tarefas diárias.

55 - Caso não tenha formação adequada para superar a sua actual dependência de terceira pessoa, será aconselhável o seu internamento num lar que reúna condições para acompanhamento de invisuais.

56 - Em caso de internamento numa instituição que reúna condições para invisuais o seu custo mensal é de 1.350,00€ a que acresce a jóia de inscrição no montante de € 2.000,00, as despesas com medicação, acompanhamentos ao hospital e outras, no total de cerca de € 2.000,00 mensais.

57 - O A. é divorciado, tem 2 filhos, que não querem saber dele, contando com o apoio da sobrinha e cunhado.

58 - À data do acidente o A. vivia num anexo no exterior da casa da sobrinha e depois passou a viver na casa do cunhado, devido à necessidade de receber assistência.

59 - Mais necessita o A.- que de um momento para o outro ficou cego – de fazer aprendizagem necessária à sua nova condição de invisual.

60 - Com os inerentes dispêndios em inscrições escolares, propinas, material escolar equipamentos para invisuais, despesas de transportes, estadia e alimentação aquando da frequência de tais cursos, aquisição de um cão treinado para apoio a invisuais (um “cão-guia”), respectivos acessórios, alimentação e tratamentos veterinários,

61 - Essencial á melhoria das condições de vida do A.

62 - O A. viveu e vive com extrema preocupação e angústia a evolução da sua situação clínica,

63 - Manifestando tristeza e revolta em face da situação em que se encontra,

64 - Vivendo em total incerteza quanto ao seu futuro.

65 - O A. sofreu dores intensas e persistentes, com o esclarecimento de que o quantum doloris é fixável no grau 7/7,

66 - Quer se mantêm e reavivam em situação de esforço e aquando das alterações climatéricas.

67 - E tem manifestações de choro, revolta e desespero.

68 - Em transportes para os tratamentos o A. gastou, pelo menos, €175.


      De direito:

Nas conclusões dos recursos, que delimitam prima facie o seu objecto, vêm suscitadas as seguintes questões:

1. Pela ré BB, SA:

a) nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;

b) condenação da ré em montante superior ao valor do pedido;

c) valor da indemnização para ressarcimento do dano patrimonial futuro;

d) formulação da condenação da ré quanto ao valor a pagar a instituição onde o autor será internado;

2. Pelo autor AA:

 e) valores das indemnizações para ressarcimento do dano patrimonial futuro e dos danos não patrimoniais.


      Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

A recorrente afirma nas conclusões do recurso resultar do acórdão recorrido que este não se pronunciou sobre a questão do limite a ter em conta para a indemnização global a suportar, e, nas alegações do recurso, que o douto acórdão não se pronunciou sobre questão que enunciou no n.º 84 das suas conclusões de recurso de apelação.

A questão a decidir, resultante do cotejo das conclusões e das alegações do recurso de apelação consistia em saber se a sentença, ao condenar em parte líquida e em parte ilíquida, devia ter estabelecido como limite máximo o valor indicado para a causa – € 600.000,00 – sob pena de, no entender da recorrente, se violar o princípio do dispositivo.

A não pronúncia sobre tal questão, a ter ocorrido, configuraria uma nulidade do acórdão por consubstanciar a violação do comando que impõe ao julgador a resolução de todas as questões que lhe sejam submetidas para apreciação (na acção ou no recurso), salvo as prejudicadas pela solução dada a outras, artigos 615º nº 1 al. d) e 608º nº 2, ambos do Código de Processo Civil.

Analisando o acórdão recorrido, descobre-se que sobre o tema em causa o seguinte trecho contém pronúncia expressa sobre o tema: “Por outro lado, sendo expressamente feito pelo A. este pedido de condenação – pagamento da quantia necessária ao internamento numa instituição – tal condenação não vai além do pedido, antes faz parte do pedido e, por isso, não se mostra violado o art.609º, nº2 do CPC, improcedendo nesta parte, as conclusões da alegação da Recorrente”.

Dito de outro modo, o Tribunal da Relação entendeu que se o autor tinha formulado expressamente um pedido de condenação numa quantia de € 2.000,00 mensais pelo internamento futuro em instituição, a procedência desse pedido não contendia com o princípio do dispositivo (artigo 609.º, n.º2, do Código de Processo Civil), antes se continha dentro dele.

O acerto ou desacerto deste entendimento constitui questão de mérito a apreciar ulteriormente, mas não integra a invocada causa de nulidade do acórdão recorrido, que improcede.


Condenação da ré em montante superior ao pedido.

A ré BB argumenta que o limite máximo da condenação, em parte líquida e em parte ilíquida, deve ser os € 600.000,00 indicados pelo autor como valor do pedido, em conformidade com a previsão do artigo 609.º, n.ºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil.

A questão é simples, porque parte do equívoco de que o autor indicou o valor de € 600.000,00 como sendo o valor do pedido, o que não é exacto.

De facto, esse valor aparece na petição inicial como sendo o valor da causa, o que se infere, inequivocamente, da referência no final da petição inicial a “valor: € 600.000,00 (seiscentos mil euros) ”.

Sucede que valor do pedido e valor da causa são realidades diferentes.

Quanto ao pedido, as partes – autor e reconvinte – são livres de formular o que bem entendam e o tribunal não tem liberdade para o corrigir, ultrapassar ou modificar, por força do princípio do dispositivo sob pena de ser nula a decisão (artigos 609º nº 1 e 615º nº 1 al. e) do Código de Processo Civil).

Quanto ao valor da causa, as partes não são livres de indicar o valor que bem entendam, antes o devem conformar com as normas processuais que o regulam – arts. 296.º e sgs. do Código de Processo Civil –, e o tribunal tem liberdade (vinculada) para, na violação dessas normas (com reflexo tributário e com reflexo recursivo), o corrigir, como decorre do disposto no artigo 306º nº 1 do Código de Processo Civil.

Qual é então a relação entre o valor da causa e o do pedido?

A relação é de conexão subordinada.

De conexão, porque o valor da causa é uma expressão económica do pedido (citado artigo 296º nº 1).

De subordinação, porque o valor da causa deve subordinar-se ao pedido, na perspectiva de que este deve ser expressão daquele, sob pena de correcção judiciária.

A subordinação não é nunca do pedido ao valor da causa: se o valor da causa não é expressão do pedido, será o valor da causa, e não o pedido, que deverá ser corrigido.

Donde, quando na acção o autor formulou vários pedidos e indicou como valor da acção € 600.000,00, o princípio do dispositivo impunha, tão-somente, ao tribunal que, na procedência total ou parcial dos pedidos, se movesse dentro do que havia sido concretamente peticionado.

Determinação que o tribunal observou.

Limitar os pedidos formulados ao valor da causa seria confundir duas realidades processualmente distintas.

Corolário do que fica dito é a aceitação do cenário, por ora hipotético, de a soma final das quantias líquidas e das quantias ilíquidas e futuras a suportar pela ré poder perfazer total superior aos indicados € 600.000,00, sem que tal traduza violação do princípio do pedido/dispositivo.


Reformulação da condenação da ré quanto ao valor a pagar a instituição onde o autor será internado.

É entendimento da ré que a condenação no pagamento de € 2.000,00 mensais a instituição onde o autor venha a ser internado, a partir do momento em que este lho comunique, deverá ser alterada por forma a pagar apenas, dentro daquele limite, o valor mensal concretamente cobrado e desde que o autor comprove a pendência do internamento.

Pensamos que tem, em parte, razão.

Quanto à primeira pretensão, constitui princípio inultrapassável da responsabilidade civil extracontratual e da obrigação de indemnização conexa, que o dever de indemnizar deve circunscrever-se ao prejuízo efectivamente causado (artigo 564º nº 1 do Código Civil), sem prejuízo de se atender aos danos futuros (nº 2 do citado artigo 564º).

Tendo ficado provado que o autor se encontra dependente da ajuda de terceira pessoa para realizar as actividades diárias normais, podendo no futuro tal dependência diminuir se receber formação adequada ou, não a recebendo, ser internado em instituição que reúna condições para invisuais, cujo custo mensal, acrescido de despesas com medicação, acompanhamentos ao hospital e outras, ascenderá a um total de cerca de € 2.000,00 mensais (pontos de facto 54. a 56.), há que ponderar a possibilidade de o preço mensal dos serviços de internamento ficar aquém desse tecto máximo e, em consequência, a ré ter apenas de pagar quantia de montante inferior, evitando-se o enriquecimento injustificado daquela instituição.

Impõe-se, tendo por fim evitar esta situação de enriquecimento ilegítimo, alterar o segmento condenatório em causa como segue:

A condenação da recorrente a pagar à instituição onde o A. se encontre internado, até ao dia 5 de cada mês, a título vitalício, a quantia mensal facturada pelo internamento, até ao limite de € 2.000,00 mensais, montante anualmente actualizado (…)”.

Quanto à segunda pretensão, o facto de a ré pagar directamente à instituição salvaguarda-a do pagamento indevido, visto que o montante dos serviços efectivamente prestados pelo internamento será cobrado mediante a apresentação de factura, não se exigindo – seria, atenta a condição física do autor, desproporcionado/desajustado – o ónus de o autor comprovar mensalmente junto da ré a manutenção do internamento.  

Deve, assim, proceder apenas parcialmente esta questão.


Valor das indemnizações para ressarcimento do dano patrimonial futuro e dos danos não patrimoniais.

A Relação fixou em € 150.000.00 e € 160.000,00 o valor devido pela reparação/compensação, respectivamente, dos danos não patrimoniais e dos danos patrimoniais futuros sofridos pelo autor em consequência do acidente.

O autor defende, porém, que esses valores devem ser elevados para € 200.000,00 e € 203.500,00, respectivamente.

    Por sua vez, a ré BB sustenta que, apesar da gravidade das sequelas sofridas pelo autor, não está provado “que não pode praticamente exercer qualquer profissão” devido a uma incapacidade física que o limite total e absolutamente para uma vida activa, pelo que a indemnização a título de dano patrimonial futuro há-de situar-se no valor de € 150.000,00, que tem por mais justo e equitativo.

       Vejamos.

O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que conhece, por regra, unicamente de matéria de direito (artigo 46.º da Lei da Organização do Sistema de Judiciário e artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, ambos do Código de Processo Civil).

Na determinação daqueles montantes indemnizatórios, o Tribunal da Relação socorreu-se da equidade, em sintonia com o estatuído no artigo 566.º nº 3 do Código Civil, segundo o qual, não podendo ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

O julgamento de acordo com a equidade equivale a um juízo de justiça concreta e não a um juízo de justiça normativa.

Questionar aqueles montantes não traduz, por isso e em rigor, a resolução de uma questão de direito.

Ainda assim, na fixação da indemnização por danos ocorridos em sede de responsabilidade civil extracontratual com recurso à equidade, o princípio da igualdade, constitucionalmente tutelado no artigo 13º nº 1 da Constituição, impõe que as decisões judiciais cumpram os critérios jurisprudenciais generalizadamente adoptados por este Tribunal em casos idênticos que merecem ponderação – artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil.

Pelo que, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos (cfr. neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de 15.09.2016, revista n.º 492/10.0TBBAO.P1.S1 - 7.ª Secção).

Posto isto, relembremos, em síntese discorrida dos factos provados 25 a 67, as sequelas produzidas no autor por força do acidente:

O autor, na data do acidente (10.11.2011), era um homem relativamente jovem (44 anos), alegre, exercia a profissão de trabalhador da construção civil (trolha), embora estivesse desempregado, e frequentava curso de … sendo sua intenção voltar a trabalhar;

Após, e em consequência do acidente, o autor foi internado (até 07.12.2011 – 27 dias) e foi submetido (a 03.12.2011) a intervenção cirúrgica, consistente em osteotaxia com fixador externo de fractura cominutiva da cabeça umeral e diáfise proximal e sofreu lesões físicas gravíssimas – fractura da cabeça umeral e da diáfise, traumatismo crânio- encefálico e traumatismo torácico –, no auge da sua vida activa e da sua capacidade produtiva, que lhe causaram a diminuição total da acuidade visual (“ficou cego de ambos os olhos”), o défice permanente da integridade-física-psíquica de 87% e a incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual e qualquer outra na área da construção civil;

Sofreu dores intensas e persistentes, de grau sete em escala progressiva de sete graus;

Depende actualmente da ajuda de terceira pessoa para realizar as tarefas diárias normais, podendo reduzir a dependência se no futuro receber formação adequada; caso contrário, é aconselhável ser internado num lar;

Vive com extrema preocupação e angústia quanto à evolução da sua situação clínica e futuro, manifesta tristeza e revolta pela situação em que se encontra, tem manifestações de choro, revolta e desespero, tudo num quadro de isolamento social relevante, pois que é divorciado e os filhos não querem saber dele


Na vertente patrimonial, o quadro fáctico revelado permite concluir que a capacidade de ganho do autor ficou totalmente afectada, tanto por força da diminuição da produtividade como pelas dificuldades inevitáveis para executar tarefas da sua vida normal, e, em termos de repercussão funcional, em eventual ocupação remunerada compatível com a diminuta capacidade remanescente, sempre o autor, na sua execução, terá de receber formação profissional adequada e empenhar esforços físicos intensamente acrescidos, não podendo ainda desconsiderar-se a diminuição das oportunidades profissionais de que o autor poderia dispor e o esforço acrescido que o relevante grau de incapacidade irá envolver no exercício de qualquer actividade. Ter-se-á em conta, neste contexto, a idade do autor, a esperança média de vida dos homens, o estado de desemprego e, por isso, o valor da retribuição mínima (adequado à profissão em questão), um rendimento anual de catorze meses e, ainda, as baixas taxas de juros bancárias associadas à rentabilização do capital recebido de uma só vez, que já não justificam a redução da indemnização.

Estamos no domínio de um dano futuro com reflexo em considerável período temporal, que dificilmente se exprime por fórmulas aritméticas e antes sai favorecido com o recurso a um juízo de equidade.  


No que tange ao dano não patrimonial, para além das sequelas descritas e que se reiteram, sublinhem-se as ostensivas limitações de que o autor padece na sua vida diária (carecendo de ajuda permanente de 3.ª pessoa), a plêiade de sentimentos experimentados – tristeza, angústia, revolta, apreensão –, que se prolongarão ao longo da vida por associados às lesões com carácter irreversível que sofreu, e a intensidade (de grau máximo) das dores sofridas, tudo confluindo num quadro geral de enorme gravidade, que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a compensar com valores progressivamente mais elevados.


Calculada equitativamente a indemnização, ela deve ainda atender a todas as circunstâncias do caso (artigos 496.º n.º 4 e 494.º do Código Civil), relevando também, para além do que já ficou dito, a culpa do condutor do veículo atropelante, situada acima da média, uma vez que conduziu de forma desatenta, sendo-lhe exigível atenção particular na condução, perante as condições concretas de insuficiência de iluminação no local do atropelamento do autor e de ausência de bermas ou passeios na via.

Por tudo quanto fica dito, na formulação de um juízo de equidade relativo aos montantes que indemnizem o autor do dano patrimonial e não patrimonial sofrido, entendemos que os valores fixados pela Relação, repete-se de € 160.000 e de € 150.000, respectivamente, se mostram adequados à gravidade dos mesmos e à culpa do lesante, mostrando-se ainda conformes com a jurisprudência deste Supremo Tribunal em casos idênticos, não sendo, consequentemente, passíveis de censura.

Ainda quanto à jurisprudência deste Tribunal, fica a mesma retratada no Acórdão de 14.04.2015, Revista n.º 723/10.6TBCHV.P1.S1 - 6. ª Secção, proferido em caso parcialmente idêntico (acidentado com 19 anos de idade, portanto com metade da idade do autor, trolha da construção civil sem apuramento do valor do salário mensal, e que sofreu incapacidade de 87,5%), acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Cvel2015.pdf.


Deverá, por conseguinte, manter-se o acórdão recorrido neste particular.


III. Decisão:

Atento todo o exposto, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em:

a) negar a revista do autor AA;

b) conceder parcialmente revista quanto ao recurso interposto pela ré BB, SA, e alterar o segmento decisório contido na alínea b) do acórdão recorrido, condenando-se esta ré a pagar à instituição onde o autor se encontre internado, até ao dia 5 de cada mês, a título vitalício, a quantia mensal facturada pelo internamento, até ao limite de € 2.000,00 mensais, montante anualmente actualizado, em Janeiro de cada ano, por aplicação do índice de preços no consumidor do continente fixado pelo Instituo Nacional de Estatística para o ano imediatamente anterior, a partir do momento que o autor comunique à ré a instituição onde se encontra internado”, mantendo-se no mais o decidido no acórdão recorrido.

c) As custas serão suportadas por ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento.


Lisboa, 6 de Julho de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro

__________


[1] Por conter apenas matéria de índole conclusiva, eliminou-se este ponto da matéria de facto, cuja redacção era a seguinte:
 “21-Deste modo, o descrito acidente ficou a dever-se ao condutor do veículo de matrícula PB-…-…, por circular com desatenção, imperícia, inconsideração e falta de destreza, em desrespeito pelas regras de trânsito”.