Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
208/08.0TBPNH.C2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: PROPRIETÁRIO
ARRENDATÁRIO
DEVER DE VIGILÂNCIA
DEVER DE DILIGÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, V, reimpressão, 1981, 308, 309, 363.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 367 e 368; Noções Fundamentais de Direito Civil, II, 3ª edição, segundo as Lições de Pires de Lima, 1955, 4; RLJ, Ano 114º, 40 e ss., em anotação ao Acórdão do STJ, de 26-3-1980.
- Calvão da Silva, CJ, Ano XX (1995), T1, 12.
- Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 235 e 236
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, reimpressão, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 95, 385, 606 e 607; “Código Civil” Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 495.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 229, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 229.
- Santos Justo, Direitos Reais, 2007, 226.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 486.º, 487.º, N.ºS 1 E 2, 493.º, N.º1, 1038.º, 1043.º, 1044.º, 1305.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º2, 635.º, N.ºS 2, 3, 4 E 5.
D.L. N.º 310/2002, DE 18 DE DEZEMBRO: - ARTIGOS 42.º, N.º1, 44.º, 45.º, N.º1, 46.º, 56.º.
LEI N.º 173/99, DE 21 DE SETEMBRO, COM AS ALTERAÇÕES SUBSEQUENTES: - ARTIGO 18.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 512/06, DE 29-9-2006, DR, 2.ª SÉRIE, DE 23-2-2007.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30-1-1981, BMJ Nº 303º, 223.
-DE 10-10-2006, P.º N.º 05B870; DE 3-2-2005, P.º N.º 06A2582; DE 4-6-1976, BMJ N.º 258, 180.
Sumário :
I - O objecto inicial do recurso define-se com o ato da sua interposição e o seu objecto final com as conclusões da alegação do recorrente, sendo irrelevante o que consta das conclusões da alegação, quando tendam a ampliar o objecto do recurso, definido no requerimento de interposição, mas já sendo relevante o que das mesmas conste quando visem o fim oposto, isto é, a restrição, no sentido de excluir ainda decisões que haviam sido especificadas como integrando o seu objeto.

II - O tribunal não pode conceder mais ao recorrente do que ele solicita no recurso interposto, por força do princípio do dispositivo, tal como a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão recorrida, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus.

III - O dever de abstenção do proprietário traduz-se na obrigação de exercer o seu direito, “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, e o dever de prevenção do perigo, de conteúdo positivo, na obrigação do mesmo ou da pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo, de adotar as medidas adequadas para evitar o perigo criado pela sua própria atuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem, isto é, para prevenir os danos com ela relacionados.

IV - A norma administrativa que impõe a obrigatoriedade do resguardo ou da cobertura eficaz de poços determina a ilicitude, em função da finalidade da tutela da ofensa de direitos particulares alheios das pessoas não sofrerem quedas desastrosas dentro deles, sendo que o afogamento verificado dentro do mesmo se situa, no âmbito dos interesses privados que a mesma visa proteger.

V - A pessoa, desde logo, o proprietário, que tem em seu poder, à sua guarda, uma coisa, móvel ou imóvel, está obrigada a vigiá-la, devendo tomar as providências necessárias para evitar a lesão.

VI - Ainda que o proprietário tenha deixado de exercer qualquer utilização no prédio, há mais de trinta anos, tal consiste ainda numa forma de usar a propriedade, cujo direito se não extingue pelo não uso, dada a característica intrínseca da perpetuidade do direito de propriedade, não sendo, aliás, a renúncia uma causa de extinção da propriedade, que é própria dos direitos sobre coisa alheia.

VII - O arrendatário tem, igualmente, o dever de vigiar a coisa, enquanto se mantiver ligado à mesma pela relação contratual estabelecida com o titular do bem, presumindo-se a culpa de quem tem a obrigação de vigiar coisa susceptível de provocar danos, ou seja, de quem possui a coisa, por si ou em nome de outrem, desde que possa exercer sobre ela um controlo físico, com o encargo de a vigiar, de forma a providenciar que o dano seja evitado, tomando as medidas adequadas.

VIII - Sendo princípio-regra o de que o risco inerente ao direito de propriedade corre, por conta do locador e não do locatário, eventuais deteriorações do arrendado, provocadas pela utilização prudente do imóvel, geradoras da necessidade de realização de obras, por parte do senhorio, são da responsabilidade deste e não do locatário, não obstante a coisa ter ficado à sua guarda.

IX - Ao manter aberto e, sem protecção ou resguardo, um poço, situado em terreno de sua propriedade, numa zona rural em que era praticado o regime de caça livre, o proprietário criou, objectivamente, uma situação de perigo manifesto para quem o utilizasse, nomeadamente, para fins cinegéticos, legalmente, permitidos, em especial, num contexto de total dissimulação, determinada pela intensidade da vegetação que o recobria e lhe retirava a visibilidade, que lhe impunha o dever jurídico de tomar todas as precauções necessárias par que ninguém nele se precipitasse.

X - Ao não adotar quaisquer precauções destinadas a evitar “quedas desastrosas a pessoas e animais”, o proprietário do prédio omitiu aquele dever de prevenção do perigo e agiu com culpa, pois que não adotou a diligência necessária para obstar a um resultado que era, perfeitamente, previsível.

XI - Havendo terminado, há dezanove anos, com efectiva restituição do arrendado ao senhorio, o contrato de arrendamento de um prédio, onde o locatário havia construído um poço, mantendo-o aquele aberto, sem qualquer protecção de cobertura, durante cerca de um ano e dez meses, após o início da vigência da lei que determinou a obrigatoriedade da realização de “…resguardo ou cobertura eficaz de poços, fendas e outras irregularidades existentes em quaisquer terrenos”, inexiste fundamento legal, atendendo à materialidade que ficou demonstrada, para condenar o locatário no pagamento da obrigação de indemnização à vítima mortal, por afogamento, em consequência de queda no seu interior, por falta dos respetivos pressupostos da responsabilidade civil.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:



AA e BB, residentes na Rua ..., nº ..., ..., ..., propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra a “CC”, com sede em ..., concelho de ..., e “DD- ..., SA”, com sede na Rua ..., nº ...º dto, Lisboa, pedindo que, na sua procedência, as rés sejam condenadas, solidariamente, a pagar aos autores a quantia global de €416.859,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, em consequência da morte de seu marido e pai, respetivamente, sobrevinda por força da queda no interior de um poço, a céu aberto, existente num terreno, afeto ao regime de caça livre, propriedade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”.
Os autores alegam, para tanto, e, em síntese, que, no dia 7 de Novembro de 2004, GG foi caçar, para ..., numa zona que incluía um terreno, propriedade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, denominado “...”, tendo o mesmo sido encontrado pelos companheiros, no dia seguinte, no interior de um poço, cheio de água, com uma profundidade de cerca de oito metros, envolto em vegetação e tapado por um manto de fetos, que não se encontrava vedado ou equipado com qualquer cobertura eficaz, mas antes encoberto pela vegetação e, dificilmente, detetável a olho nu.
A morte do GG deveu-se a asfixia, por afogamento, por ter caído no poço, propriedade da “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, que, em violação do disposto pelo artigo 42º, nº1, do DL 310/2002, de 18 de Dezembro, não se encontrava tapado.
O referido poço havia, anteriormente, estado afeto à exploração mineira, até 1982 ou 1984, sendo um anexo da mina de urânio para bombear água, mas que, aquando da entrega do terreno, não foi fechado com placa sólida.
A exploração de urânio, na referida mina, estava, inicialmente, a cargo da “EE- EE”, seguindo-se-lhe, depois, a FF, que foi integrada na ré DD, actualmente, responsável pelas jazidas minerais.
Porém, prosseguem os autores, não tendo ocorrido o encerramento da exploração mineira, ou não tendo o mesmo homologação da tutela ministerial, a exploração mineira continua ainda a pertencer, actualmente, à ré DD, integrando-se em área incluída no projecto para medidas de recuperação ambiental, nos termos do DL nº 198-A/2001, de 6 de Julho, lançado no ano de 2007.
A isto acresce que, se a ré DD tivesse implementado o atempado encerramento, com recuperação ambiental da zona onde se situava o poço, não teria ocorrido o acidente, que, assim, é imputável aquela.
Não obstante, nem a ré proprietária, nem a ré, entidade mineira, impediram que aí se pudesse empreender o regime de caça livre, a primeira sabendo que a entrega da propriedade não fora, devidamente, homologada, e a segunda por ter entregue o terreno, sem o devido tratamento a que estava obrigada, sendo, portanto, ambas responsáveis pelo facto ocorrido, incluindo pelo ressarcimento dos danos peticionados.
Na contestação, a ré “CC” conclui pela sua ilegitimidade e, a não se entender assim, pela improcedência da acção, no que a si respeita, reconhecendo ser proprietária do terreno em causa, mas que, desde 1965 e até à presente data, deixou de ter o seu uso, bem como deixou de exercer qualquer utilização no prédio, dado que o mesmo sempre serviu para a exploração mineira de urânio, através de contrato celebrado com a, então, EE, segundo refere, actual DD.
Assim, nunca exerceu sobre o prédio qualquer acto próprio de proprietário e, mesmo depois do fim da exploração mineira, não tomou posse direta sobre o imóvel, dado que nunca existiu o acto de encerramento homologado pela tutela, continuando a exploração mineira a pertencer à entidade mineira, actualmente, a DD, sendo esta a entidade responsável pelas jazidas minerais, dado que aceitou todos os ativos e passivos da FF, com os correspondentes direitos e obrigações.
Acrescenta ainda que, independentemente de ter ou não havido ato de homologação, a FF deveria ter procedido à aplicação de todas as medidas de higiene e segurança, nomeadamente, com vedação e sinalização de toda a área e, no caso dos poços, fecho das suas bocas, sendo sempre tal tratamento da responsabilidade do explorador, sendo certo, por outro lado, que os atuais membros da “CC”, sucedendo àqueles que, inicialmente, cederam a exploração do terreno, desconheciam a presença do poço e sempre estariam convencidos de que, a existir um poço, o mesmo teria sido, convenientemente, tapado, pela entidade mineira responsável.
Por seu turno, a ré “DD, SA”, na sua contestação, impugna os valores peticionados e conclui pela improcedência da acção, no que a si concerne, sustentando, em síntese, não ter qualquer responsabilidade pelo sucedido, desde logo, porque os terrenos arrendados pela ex-EE à “CC” não abrangem o local onde se situa o poço, não se situando, sequer, este no prédio rústico que foi arrendado.
Mas, ainda que assim fosse, nunca a DD teria qualquer responsabilidade, na medida em que, quando a ex-EE cessou a exploração mineira subterrânea, passando as suas actividades a resumir-se à lixiviação estática, a céu aberto e em velhos desmontes da antiga mina, a FF prosseguiu, em 1977, apenas com estas actividades, que cessaram, total e definitivamente, no ano de 1982, não tendo o poço sido aberto por nenhuma delas.
Refere ainda que, após 1982, a FF procedeu aos trabalhos de segurança necessários antes do encerramento das minas e que a área arrendada foi restituída, em 1984, à “CC”, tendo esta declarado aceitar o imóvel, na situação em que se encontrava, sendo certo que, ao contrário do referido pelos autores, a extinta FF não carecia de homologação ministerial para a aprovação do plano de fecho da mina.
Por outro lado, alega que o poço em causa não era um anexo mineiro e ainda que, de uma ou outra forma, nunca a DD, por via de sucessão, poderia ser responsável pelo acidente ocorrido nos autos, dado que nunca foi integrada na FF e, à data em que foi efetuada a transmissão dos activos e passivos (2005), a FF não era, sequer, responsável pela exploração mineira, sendo que as concessões de exploração mineira caducam com a extinção das concessionárias.
Alega, também, que, apenas, depois de ter sido regulamentada a recuperação ambiental das áreas mineiras degradadas, com o DL nº 198-A/2001, serviço público que foi atribuída à “Exmin, S.A”, hoje pertença da DD, não lhe podem ser assacados ou imputados quaisquer danos, dado que se limita a recuperar zonas mineiras por cuja exploração não foi responsável.
A sentença julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu a ré “CC” dos pedidos contra si deduzidos pelos autores AA e BB, e a ré “DD, …, S.A” dos pedidos contra si deduzidos pelos autores, AA e BB”.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação “concedido parcial provimento ao recurso interposto, julgando, por decorrência, a acção parcialmente procedente, em consequência do que se condenam as rés, “Junta …. ou CC” com sede em … e “DD- …, S.A”, com sede na Rua …, nº... dto, Lisboa, a pagar solidariamente aos AA. a quantia global apurada e explicitada, em decorrência do pedido formulado e da prova produzida, de €249.280,00 (duzentos e quarenta e nove mil e duzentos e oitenta euros)”.
Do acórdão da Relação de ..., as rés interpuseram agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, mantendo-se a decisão proferida em 1ª instância, formulando as seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem:
     A RÉ CC:
1ª - Os AA., embora façam referência no objeto do recurso a todo o teor da decisão recorrida, perscrutando a sequência das suas alegações resulta de forma clara e inequívoca que as suas alegações excluem a parte da Douta Sentença que absolveu a R. CC do pedido formulado;
2ª - Os AA. aceitaram o conteúdo da decisão que lhes foi aplicada e apresentaram os respetivos argumentos o que face a tal circunstancialismo e dado que o objeto do recurso não beliscava em nada a pretensão e alegação apresentada pela R. BB, conformando-se com a decisão e com o teor do recurso apresentado e não contra-alegou;
3ª - O objeto do recurso tinha como limites a absolvição da R. CC e condenação da R. DD, com a exclusão da R. CC que havia sido já absolvida e cujas alegações de recurso, nessa parte, não a contraditaram;
4ª - No caso em análise resulta claro e inequívoco que as conclusões formuladas pelos AA. Recorrentes não padecem de deficiência, antes pelo contrário nas conclusões, tal como nas próprias alegações de recurso, o que os AA. pretenderam foi excluir do objeto do recurso a responsabilidade da R. CC;
5ª - As transcrições, quase inexistentes, da sentença na parte que dizem respeito à R. CC, e que constam das alegações de recurso têm um carater instrumental e demonstrativo da contradição existente na decisão proferida, e não a natureza de verdadeiras conclusões em sentido técnico-jurídico;
6ª - Não estamos perante duas decisões distintas, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença lhe for desfavorável;
7ª - Os AA, ao pedirem a condenação solidária das rés a pagar aos autores a quantia global de 416.859,00€ colocaram ao tribunal duas questões ou pretensões, tudo se passando como se houvessem formulado dois pedidos distintos: a condenação da R. CC a pagar-lhes a quantia global de 416.859,00€ e a condenação da R. DD a pagar-lhes a mesma quantia (em termos solidários). E não como entendeu o Acórdão recorrido que assenta no fundamento de que existiu apenas uma decisão na sentença a qual tem por objeto a decisão que julgou a ação improcedente e em consequência absolveu ambos os RR;
8ª - Os apelantes restringiram na parte conclusiva da alegação o objeto inicial do recurso à parte decisória relativa à absolvição da R. DD do pedido. Assim, impõe-se a restrição para reapreciação pelo Tribunal ad quem apenas à responsabilidade da R. DD, é o que resulta do conjunto das conclusões e da alegação dos apelantes;
9ª - Os apelantes omitiram, nas conclusões, arguir a ilegalidade do decidido quanto á R. CC, pelo que a pronúncia sobre a responsabilidade desta será indevida (artigos 635º, n.º 4 e 615-, n.º 1, alínea d) do Código do Processo Civil);
10ª - Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões das alegações do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente, excluídas dessas conclusões, têm de se considerar definitivamente decididas e arrumadas não podendo delas conhecer-se em recurso (vide ACS STJ de 18.03.1966, de 4.2.1976, de 2.12.1982 de 16.10.1986, em BMJ, respetivamente, 255-391,258-180, 322-315 e 360-354);
11ª - O elencar das conclusões, nenhuma se referindo em concreto à R. CC, apenas ali constam para evidenciar na tese dos apelantes e o juízo contraditório de que a douta sentença recorrida proferida em 1ª instância padecia e não como puras conclusões que delimitem o âmbito de recurso e que o raciocínio que conduziu á absolvição da R. CC plasmado na douta sentença não foi o mesmo que conduziu à absolvição da R. DD e que no seu entender deveria aquela ser condenada; n) Sem prescindir, e ainda que por mera hipótese o decidido no Douto Acórdão proferido fosse julgado procedente, sempre a alegada responsabilidade da R. CC deveria assentar numa direta correlação entre a prova produzida e a matéria dada como provada, sendo certo que nem uma, nem outra, estabelecem qualquer correlação direta que fundamente e justifique uma eventual responsabilidade da R. CC nos autos, aliás, como resulta do voto vencido sempre para se apurar uma eventual responsabilidade da R. CC se imporia que se ampliasse a base instrutória tendo em conta o que foi alegado na contestação de forma a apurar o conhecimento desta sobre a existência ou não de um poço e caso em negativo se existia a obrigação ou o dever de o conhecer;
12ª - Face ao exposto deverá o Douto Acórdão deve ser revogado por violação dos artigos 635º, n.° 4 e 639º-A. n.º 1 do Código do Processo Civil, padecendo de nulidade nos termos do artigo 615º. Nº 4 do Código do Processo Civil.
       A RÉ “DD, SA”:
1ª – Á luz da matéria de facto apurada e assente não pode ser assacada à ora recorrente, no que tange ao acidente dos autos, qualquer responsabilidade;
2ª – No âmbito do nº 1 do artigo 493 do Código Civil, porque a DD nem antes, nem à data do acidente, em 7/11/2004, tinha ou teve qualquer posse, detenção ou qualquer outro tipo de poder de facto sobre a parcela de terreno em que existia o poço de água onde se deu o acidente;
3ª - No enquadramento do n° 2 do mesmo preceito legal, porque a recorrente logrou elidir a presunção de culpa que recaía sobre a extinta FF, demonstrando que esta, antes do encerramento da exploração mineira, adoptou as precauções e efectuou os trabalhos de segurança tidos por necessários;
4ª - E, designadamente, procedeu á sinalização e vedação com arame de todos os poços de água de cuja existência tinha conhecimento, que existiam nos terrenos
"alugados" (melhor, arrendados), a fim de evitar a queda de pessoas e animais;

5ª - Acresce que - decisivamente - não se provou que a extinta FF tenha aberto, construído ou utilizado sequer o poço em questão, existente antes da exploração
mineira por aquela desenvolvida;

6ª - Por tudo isso, é indiscutível - objectiva e subjectivamente - que as medidas
adoptadas pela ex-FF corresponderam não só aos deveres de diligência de um bom
pai de família, em face das circunstâncias do caso (artigo 487° n° 2 do C. Civil), mas
também aos procedimentos e normas técnicas que orientavam a actividade mineira à
época e às normais legais então vigentes;

7ª - Admitindo que a presunção de culpa da FF se pudesse fundar, ainda, na violação de um dever geral de prevenção de perigo, as providências tomadas pela ex-FF revelam-se perfeitamente adequadas a evitar os danos previsíveis em função desse princípio, no que toca a todos os bens e equipamentos por ela conhecidos ou registados, pelo que não é passível do juízo de censura ético-jurídico que exprime a culpa;
8ª - Desconhecendo a ex-FF o poço, não poderia a recorrente conhecer também a sua existência, nem pode aplicar-se-lhe o princípio do "ubi commoda, ibi incommoda", que corresponderia, na prática, a condená-la com base numa responsabilidade objectiva (e nâo de culpa presumida);
9ª - Tanto mais que a recorrente nunca poderia ser considerada sucessora da FF, quer porque nunca deteve o terreno ou beneficiou dele ou das suas utilidades;
10ª - Quer porque a ex- FF desenvolvia a sua actividade de exploração de urânio ao abrigo não de contrato, mas de afectação legal de bens do domínio público, que constituía um exclusivo legal (artigo 11° 1 do Decreto-Lei n° 376/90), insusceptível de transmissão contratual (ou legal, por inexistência de norma nesse sentido);
11ª - A título meramente subsidiário, acrescenta-se, quanto a danos futuros, que os recorridos, porque terceiros, só poderiam reclamá-los ao abrigo do artigo 495° n° 3 do Código Civil e liquidá-los em execução de sentença.
12ª - O douto Acórdão recorrido violou, por errada aplicação, os artigos 483°, 487° n° 2, 493° n°s 1 e 2 e 495° n° 3, todos do Código Civil.
Nas suas contra-alegações, os autores defendem a manutenção do douto acórdão recorrido, nele se louvando, integralmente.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do Novo Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. A autópsia médico-legal realizada concluiu que a morte de GG foi devida a asfixia mecânica, com intromissão de água nas vias aéreas, ou seja, afogamento - A).
2. O terreno onde se situava o poço era, à data dos factos, propriedade da “CC” - B).
3. Desde 1965, até esta data, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” deixou de ter uso, bem como deixou de exercer qualquer utilização, no prédio referido em B) - C).
4. Por despacho proferido pelos serviços do Ministério Público, junto do Tribunal Judicial de ..., no âmbito do processo de Inquérito com o NUIPC nº... TBPNH, em 24.11.2007, foi arquivado o inquérito instaurado, na sequência do óbito, referido em A) - cfr. doc. de fls. 236 a 250 - D).
5. Os membros da Comissão ... desconheciam a existência do poço, a quantidade e tipo de estruturas que existiam no terreno - E).
6. No dia 7 de Novembro de 2004, GG deslocou-se à localidade de ... – ..., onde chegou, por volta das 6:45 da manhã, para se dedicar à caça - 1º.
7. Titular da carta de caçador nº … e de licença de caça nº …, caçava, habitualmente, com a arma de caça, marca “…”, nº …, calibre …, de um cano e carregamento automático, a que corresponde o Livrete de Manifesto de Armas nº M …º.
8. Terá iniciado a prática da caça, por volta das 7:00 da manhã, com um grupo de amigos, sendo habitual caçarem nessa zona de ... – ... - 3º.
9. Zona que incluía um terreno, propriedade da Comissão ... ou CC, denominado “...”, sito na freguesia … - 4º.
10. Tal terreno estava afecto ao regime de caça livre - 5º.
11. Pelas 9:15 do dia referido em 1., os companheiros de caça de GG, que o acompanhavam, deram pela sua falta - 6º.
12. Após terem levado a cabo uma busca, sem resultado, deram conhecimento do seu desaparecimento à GNR de ..., que compareceu no local com elementos dos Bombeiros Voluntários de ... e um cão pisteiro, encetando, de imediato, buscas - 7º.
13. Cerca das 8:50 do dia seguinte, e reiniciadas as buscas, foi encontrada, na referida “...”, uma arma de caça, de marca “…”, nº …, calibre 12, carregada com um cartucho pronto a disparar e dois no carregador, caída por cima e dissimulada por um manto de fetos - 8º.
14. Na referida “...”, ao lado da arma, existia um poço, envolto em vegetação, com uma profundidade de cerca de 8 metros e uma abertura cilíndrica, à superfície, com cerca de um metro de largura - 9º.
15. Tal poço não se encontrava equipado com resguardo ou cobertura, nem com qualquer outro dispositivo de protecção contra a queda de pessoas - 10º.
16. A vegetação, referida em 9., tornava a abertura do poço, situada ao nível do solo, imperceptível - 11º.
17. O poço estava camuflado por uma manta de fetos, dificilmente, detectável a olho nu - 12º.
18. Apresentando uma construção em abóbada - 13º.
19. O poço encontrava-se cheio de água, até cerca de um metro da sua extremidade superior - 14º.
20. Água onde boiava um boné camuflado e um tordo morto - 15º.
21. Retirada a água do interior do poço, verificou-se que, no fundo, se encontrava o corpo, sem vida, de GG - 16º.
22. GG faleceu, no dia 7 de Novembro de 2004 - 17º.
23. A factualidade, referida em A), foi resultado de GG ter caído ao poço - 18º.
24. O terreno onde se situava o poço havia servido para exploração mineira de urânio, até 1982 ou 1984 - 19º.
25. O referido poço foi utilizado, pelo menos, temporariamente, pela mina de urânio para captar e bombear água - 20º.
26. A mina usada para explorar urânio, no terreno referido em 19., estava, inicialmente, a cargo da EE – EE, seguindo-se-lhe, depois, a FF – …, EP - 21º.
27. A FF foi extinta, sendo o registo do encerramento da liquidação de 29/09/2005, e tendo, por escritura lavrada em 09/09/2005, pelo qual findou a sua liquidação, efectuado a transmissão global do seu património, activo e passivo residual, para a ré DD – …, S.A. - 22º.
28. Já ocorreu a declaração de restituição do terreno aos proprietários - 24º.
29. O poço situa-se no mesmo prédio do poço da mina e serviu, pelo menos, temporariamente, para os fins referidos na resposta dada ao facto 20º - 26º.
30. As entidades, referidas na resposta dada ao facto 21º, confiaram que todos os poços tinham sido, convenientemente, tapados - 27º.
31. GG, à data do acidente, era um marido e pai extremoso, que amava e tinha amor pelos autores - 31º.
32. E, também, pelos autores era amado, acarinhado, amparado e estimado - 32º.
33. Com o acidente e consequente trauma com o desaparecimento da vítima, os autores sofreram um profundo abalo psíquico e grande angústia vivencial - 33º.
34. Nunca mais os autores foram as mesmas pessoas alegres, felizes e bem com a vida, como até aí todos conheciam - 34º.
35. Tendo sofrido pelo seu desaparecimento e durante o acompanhamento do processo de busca e posterior reconhecimento da vítima - 35º.
36. O falecido era a pessoa onde os autores encontravam o apoio, equilíbrio e, sobretudo, a segurança - 36º.
37. O agregado familiar da vítima era muito unido, sendo muito grande o grau de afeição existente entre os autores e a vítima - 37º.
38. A vítima era uma pessoa alegre e divertida e com grande espírito de camaradagem e amizade por quem o rodeava – família e amigos - 38º.
39. GG era um homem saudável, sem qualquer problema conhecido de saúde - 39º.
40. Desde o dia em que teve conhecimento do desaparecimento de GG, nas circunstâncias descritas, e da sua morte, e nas semanas seguintes, a autora, praticamente, não comia, dormia, chorando, frequentemente - 40º.
41. O impacto da situação trágica que passou a ter de ouvir e ver nos meios de comunicação social – jornal e televisões – mais avivavam a memória do pesadelo em que se encontrava - 41º.
42. A autora, desde, então, tornou-se uma pessoa triste, pouco sociável e sem gosto pela vida, deixando, inclusive, de conviver com amigos comuns, recusando-se a falar do acidente - 42º.
43. Tornou-se difícil, também, para a autora viver na mesma residência onde sempre vivera com o GG, com recordações constantes - 43º.
44. Também, o autor sofreu, amargamente, com a perda de GG, seu companheiro e amigo, e sofre ainda, amargamente, com tal morte - 44º.
45. O falecido ajudava e contribuía, de forma decisiva, para a economia do lar, apoiando a educação do autor - 45º.
46. O traumatismo que sofreram, ao serem confrontados com a morte de GG, deixará sequelas difíceis de apagar - 46º.
47. Para a vítima, também, foi doloroso morrer desta forma - 47º.
48. O falecido era muito saudável, trabalhador e vivia em perfeita harmonia com a família - 48º.
49. E gostaria de acompanhar os autores e seus descendentes - 49º.
50. Em consequência da morte de GG, foram suportadas pelos autores as despesas de funeral, no montante de 1280,00 € - 51º.
51. Os autores despenderam, em transportes a ..., ao Mº Pº, ao Advogado e, agora, ao julgamento quantias não, concretamente, apuradas, mas não inferiores a 1000,00 € - 52º.
52. O falecido destinava todo o seu rendimento para a família, para si e para os encargos - 53º.
53. Os autores dependiam, em grande parte, dos rendimentos que o falecido auferia na sua actividade profissional - 54º.
54. O falecido, à data da sua morte, tinha a categoria profissional de Encarregado, na firma “HH Lda”, auferindo, em média, um vencimento ilíquido de, aproximadamente, 1150,00 €, e líquido de, aproximadamente, €870,00 - 55º.
55. Tendo rendimentos, por vezes, superiores, por efectuar variável número de horas de turno e perfazendo um rendimento anual de 19.000,00 € - 56º.
56. Enquanto o rendimento da autora atingia o valor de 9.000,00 € - 57º.
57. A área arrendada pela ex-FF foi restituída à Comissão da CC, em 31 de Janeiro de 1984 - 58º.
58. O poço, referido nas respostas dadas aos factos 9 a 16 da base instrutória, não foi aberto pela “FF- …, S.A”, mas já existia, anteriormente, no tempo da EE - 59º e 60º, ora aditados.
59. A FF, após o termo da exploração da mina, em 1982, procedeu aos trabalhos de segurança necessários antes do encerramento das minas, nas instalações afectas à exploração - instalações contidas na Área Industrial e os trabalhos Mineiros Subterrâneos e de Superfície - 61º.
60. Para os efeitos aludidos na resposta dada ao facto 61. da base instrutória, a FF procedeu aos trabalhos de selagem da boca do poço da mina subterrânea com uma placa de betão armado - 62º, ora aditado.
61. E ao enchimento das zonas de exploração, a céu aberto - 63º, ora aditado.
62. E à cobertura, com tela plástica, das eiras onde se procedera à lixiviação do minério - 64º, ora aditado.
63. A FF procedeu à sinalização e vedação com arame de todos os poços cuja existência tinha conhecimento, que existiam nos terremos alugados, a fim de evitar a queda de pessoas e animais - 66º, ora aditado.
64. O falecido era marido da autora AA e pai do autor BB (documentos de fls. 281 a 286, ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº3, do Código de Processo Civil).
65. O prédio onde se situava o poço, referido em C) dos Factos Assentes, encontra-se inscrito, na Repartição de Finanças de ..., sob o artigo nº ... ARV, da freguesia ..., com uma área de 8,651500 ha (documento de fls. 287, ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº3, do Código de Processo Civil).
66. À data da sua morte, o falecido tinha 42 anos (documento de fls. 281, ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil).
                                                              *
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da pronúncia indevida do acórdão recorrido quanto à ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”.
II – A questão da responsabilidade civil das rés.
I. DA PRONÚNCIA INDEVIDA DO ACÓRDÃO
Alega a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” que os autores restringiram, na parte conclusiva da alegação da apelação, o objeto inicial do recurso, quanto ao segmento decisório relativo à absolvição da ré “DD- ..., SA” do pedido, pelo que a pronúncia sobre a responsabilidade daquela é indevida, o que constitui a nulidade do acórdão, contemplada pelo artigo 615º, nº 4, com referência aos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, todos do CPC.
Coloca, assim, em causa a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” a extensão do objecto da apelação interposta pelos autores, uma vez que, no seu entendimento, não foi abordada, nas respetivas conclusões das suas alegações, a matéria da responsabilidade civil daquela.
Diz, portanto, esta ré que o acórdão é nulo, por conhecer de questão que não podia apreciar, em virtude de os autores, na apelação, terem restringido o objecto do recurso à questão da responsabilidade da co-ré “DD- ..., SA”.
Dispõe o artigo 635º, do CPC, no seu nº 2, que “se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre”, abrangendo, porém, o recurso tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente, na falta de especificação deste, porquanto o mesmo “nas conclusões da alegação, pode…restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso”, em conformidade com os nºs 3 e 4, do normativo legal em apreço.
Importa, pois, determinar se os autores, nas conclusões da apelação, restringiram o objecto inicial do recurso, de modo a afastar, definitiva e inexoravelmente, a apreciação da responsabilidade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”.
O recorrente pode, desde logo, no requerimento de interposição do recurso, limitar o correspondente objecto, como resulta do já transcrito nº 2, do artigo 635º, do CPC, ou, então, restringi-lo, num momento derradeiro, ou seja, nas conclusões das alegações, segundo resulta do seu nº 4.
Assim sendo, o objecto inicial do recurso define-se com o ato da sua interposição e o respetivo objecto final obtém-se com as conclusões da alegação do recorrente, mas aqui, expressa ou tacitamente, através da declaração de que só se impugna certa parte do julgado, ou pelo simples facto de, apenas, se atacar a solução dada a determinadas questões.
De todo o modo, sendo o objecto do recurso restringido no requerimento de interposição, as conclusões das alegações têm de respeitar a limitação operada, mas podem aumentá-la, no sentido de excluir ainda decisões que haviam especificado como integrando o seu objecto, ou seja, é irrelevante o que constar das conclusões da alegação, quando tendam a ampliar o objecto do recurso, mas já é relevante quando visem o fim oposto, isto é, a restrição[2].
Aliás, não é no corpo das alegações que se pode restringir o objecto do recurso, mas nas suas conclusões, pelo que se nas alegações o recorrente deixa de referir-se a uma parte desfavorável da decisão, mas nas conclusões a submete à consideração do tribunal «ad quem», inexiste restrição, mantendo-se o objecto inicial do recurso e, assim, interposto recurso amplo, se nas conclusões das alegações não se pede que a decisão recorrida seja modificada ou revogada quanto a certa parte, o objecto inicial do recurso fica, implicitamente, limitado aos pontos versados nas conclusões[3].
É que se a delimitação objetiva do recurso, com a restrição do mesmo, é feita no requerimento de interposição, ocorre logo o trânsito em julgado da parte ou partes da decisão de que o vencido não recorreu, ao passo que, na situação em que o amplo objecto inicial do recurso é restringido nas conclusões da alegação, restrição que nem sequer importa que seja realizada, expressamente, a delimitação objetiva do recurso já se efetua, através das conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer senão das questões nelas compreendidas[4].
Efetivamente, o artigo 635º, nº 4, do CPC, permite ao impugnante de uma sentença, de entre as questões resolvidas na decisão de que recorre, excluir algumas da reapreciação pelo tribunal «ad quem», não obstante terem sido decididas em sentido que lhe foi desfavorável, e que, assim, se consideram, definitivamente, julgadas, desde que excedam os limites do preceituado pelo artigo 608º, nº 2, porquanto o tribunal não pode conceder mais ao recorrente do que ele solicita no recurso interposto, por força do princípio do dispositivo, tal como a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável para o recorrente do que a decisão impugnada, por força do princípio da proibição da «reformatio in pejus», com assento no artigo 635º, nº 5, ambos do CPC.
Nas conclusões das alegações da apelação, os autores, sem nunca mencionarem, explicitamente, qualquer comportamento imputável à ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, por acção ou omissão, quer no âmbito da alteração da decisão sobre a matéria de facto, quer ao nível da matéria de direito, concretizam que “salvo o devido respeito a Recorrente não pode conformar-se com a sentença recorrida, pois entende que esta não fez a devida aplicação do direito aos factos considerados provados e que deveriam ter sido considerados provados como acima se demonstrou [31]” e “pelo exposto a sentença recorrida ao concluir como o fez violou por errada interpretação e aplicação os n.ºs 2 e 3 do artº 607º do C.P.C. e os artigos 493º nº 2 do C.C., violando igualmente os artigos 337º nº 1, 339º nº 1, 483º, 484º nº 1 e 2 do C.C.” [32] e “assim como o art. 730º nº 1 do C.P.C.” [33], afirmando, por fim, que «Em suma deve, em conformidade com o mui douto suprimento de V. Exas. ser concedido inteiro provimento ao presente recurso, ser a douta sentença ora recorrida revogada, e ser a ação considerada procedente condenando em consequências as RR. Fábrica da Igreja e DD nos pedidos contra si deduzidos pelos Autores, AA e BB com todas as consequências» [34].
Então, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” não apresentou contra-alegações, em relação ao recurso de apelação, a defender, designadamente, a posição que agora sustenta, neste seu recurso de revista.
O acórdão recorrido defende que “se nas conclusões da alegação não vêm reflectidas todas as questões suscitadas ao longo da alegação, não se deve fazer derivar daqui, de forma imediata, a intenção do recorrente de excluir do âmbito do recurso as questões não levadas às conclusões”, isto é, continua, “quando a decisão recorrida contiver decisões distintas, o objecto do recurso pode ser expressamente restringido pelo recorrente no requerimento de interposição; todavia, na falta de especificação (e só nela, não na hipótese da sua manutenção e desenvolvimento assumido), entende-se que o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva for desfavorável ao recorrente”.
Improcede, pois, este segmento das conclusões da revista da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”.
                  II. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS RÉS
II. 1. Alega ainda a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” que, na hipótese de não colher a tese da pronúncia indevida, suscitada em I., sempre a alegada responsabilidade civil daquela deveria assentar numa direta correlação entre a prova produzida e a matéria dada como provada, sendo certo que, nem uma, nem outra, estabelecem qualquer correlação direta que fundamente e justifique uma eventual responsabilidade da mesma, impondo-se antes a ampliação da base instrutória, tendo em conta o que foi alegado na contestação, de forma a apurar o seu conhecimento sobre a presença ou não de um poço e, em caso negativo, se existia ou não a obrigação de o conhecer.
Por seu turno, a ré DD alega que não exerceu qualquer posse, detenção ou qualquer outro tipo de poder de facto sobre a parcela de terreno onde existia o poço de água, de cuja existência não teve conhecimento, como o não teve a ex-FF, não podendo ser considerada sucessora desta, e, portanto, ser responsabilizada, com base no disposto pelo artigo 483º, nº 1, do Código Civil (CC), mas, também, pelo respetivo nº 2, porque elidiu a presunção de culpa que recaía sobre a extinta FF, demonstrando que esta, antes do encerramento da exploração mineira, adotou as precauções e efectuou os trabalhos de segurança tidos por necessários e, designadamente, procedeu à sinalização e vedação com arame de todos os poços de água de cuja existência tinha conhecimento e que existiam nos terrenos arrendados, a fim de evitar a queda de pessoas e animais, não sendo passível do juízo de censura ético-jurídico que exprime a culpa, mesmo a fundar-se na presunção de culpa da FF, pela violação de um dever geral de prevenção de perigo, sendo certo que se não provou que a extinta FF tenha aberto, construído ou utilizado sequer o poço em questão, existente antes da exploração mineira por aquela desenvolvida, além de que esta desenvolvia a sua actividade de exploração de urânio, não ao abrigo de contrato, mas antes de afetação legal de bens do domínio público, que constituía um exclusivo legal, de acordo com o disposto pelo artigo 11°, nº 1, do DL n° 376/90, insusceptível de transmissão, contratual ou legal, por inexistência de norma nesse sentido.
A título, meramente, subsidiário, acrescenta a ré DD, quanto a danos futuros, que os autores, porque terceiros, só poderiam reclamá-los, ao abrigo do preceituado pelo artigo 495°, n° 3, do CC, e liquidá-los, em execução de sentença.
II. 2. Regressando à matéria de facto que ficou demonstrada, impõe-se registar que, no passado dia 7 de Novembro de 2004, GG iniciou a prática da caça, por volta das 7,00 h, na localidade de ..., concelho de ..., onde era habitual caçar, num terreno afecto ao regime de caça livre, propriedade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, denominado “...”.
Porém, cerca das 8,50 h, do dia seguinte, foi o seu corpo encontrado, sem vida, no fundo de um poço, com uma profundidade de cerca de 8 metros e uma abertura cilíndrica, à superfície, com cerca de um metro de largura, que não se achava equipado com resguardo ou cobertura, nem com qualquer outro dispositivo de protecção contra a queda de pessoas.
A vegetação que envolvia o poço e o contornava tornava a sua abertura, situada ao nível do solo, impercetível, pois que se achava camuflado, por uma manta de fetos, dificilmente, detectável, a olho nu.
O poço apresentava uma construção em abóbada, encontrando-se cheio de água, até cerca de um metro da sua extremidade superior.
GG faleceu, no dia 7 de Novembro de 2004, em resultado de asfixia mecânica, com intromissão de água nas vias aéreas, ou seja, do afogamento, proveniente da sua queda no poço.
O terreno onde o poço se situava era, à data dos factos, propriedade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, mas, desde 1965, até à mencionada data do falecimento do GG, aquela ré deixou de ter o seu uso, bem como de exercer qualquer utilização no prédio onde o mesmo se localizava, desconhecendo os seus membros a existência do poço, a quantidade e o tipo de estruturas que existiam no terreno.
De facto, o terreno havia servido para a exploração mineira de urânio, até 1982, e o referido poço foi utilizado, pelo menos, temporariamente, pela mina de urânio existente no terreno para captar e bombear água, inicialmente, por parte da “EE – EE”, e, em seguida, pela “FF – …, EP”.
Mas, com a extinção e liquidação da “FF – …, EP”, por escritura lavrada, em 9 de Setembro de 2005, efetuou-se a transmissão global do seu património, activo e passivo residual, para a ré “DD – …, SA”.
O poço onde ocorreu o afogamento da vítima situa-se, no mesmo prédio do poço da mina, e serviu, pelo menos, temporariamente, para captar e bombear água.
A “EE – EE” e a “FF – …, EP” confiaram que todos os poços tinham sido, convenientemente, tapados.
A área arrendada pela ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” foi-lhe restituída pela ex-FF, em 31 de Janeiro de 1984.
O poço onde foi encontrado, sem vida, o GG não foi aberto pela “FF-…, S.A”, mas já existia, anteriormente, no tempo da EE.
A FF, após o termo da exploração da mina, em 1982, e antes do encerramento das minas, procedeu aos trabalhos de segurança necessários, nas instalações afetas à exploração, contidas na área industrial, e aos trabalhos mineiros, subterrâneos e de superfície.
Após o termo da exploração da mina, em 1982, e antes do seu encerramento, a FF procedeu aos trabalhos de segurança necessários, nomeadamente, aos trabalhos de selagem da boca do poço da mina subterrânea, com uma placa de betão armado, ao enchimento das zonas de exploração, a céu aberto, à cobertura com tela plástica das eiras onde se procedera à lixiviação do minério, e bem assim como à sinalização e vedação com arame de todos os poços cuja existência, nos terrenos alugados, tinha conhecimento, a fim de evitar a queda de pessoas e animais.
Assim sendo, o poço onde a infeliz vítima caiu e foi encontrado afogado, situava-se num terreno, propriedade da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, mas que esta, desde 1965, deixara de ter o seu uso, bem como de exercer qualquer utilização no prédio onde o mesmo se localizava, desconhecendo os seus membros a existência do poço, a quantidade e o tipo de estruturas que se situavam no terreno, em virtude de, naquela data, o ter arrendado à “EE – EE”, para os fins da exploração mineira de urânio, sendo o poço utilizado, pelo menos, temporariamente, pela mina de urânio existente no terreno, para captar e bombear água, até 1982, inicialmente, por parte da aludida “EE – EE”, e, em seguida, pela “FF – …, EP”.
O poço não foi aberto pela “FF- …, SA”, porque já existia, anteriormente, no tempo da EE.
A área arrendada pela ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” à “EE – EE”, foi restituída pela FF aquela, em 31 de Janeiro de 1984.
A extinção e liquidação da “FF – …, EP”, com a consequente transmissão global do seu património, activo e passivo residual, para a ré “DD – …, SA”, teve lugar, através de escritura, lavrada em 9 de Setembro de 2005.
A “EE – EE” e a “FF – …, EP” confiaram que todos os poços tinham sido, convenientemente, tapados.
II. 3. Dispõe o artigo 483º, do CC, no seu nº 1, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, sendo certo que, segundo o respetivo nº 2, “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
O caráter anti-jurídico ou ilícito do facto imputado às rés, em sede de responsabilidade civil extracontratual, na vertente da violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como sustentáculo do direito à indemnização reclamado pelos autores, encontra-se no artigo 42º, nº 1, do DL nº 310/2002, de 18 de Dezembro, com início de vigência a 1 de Janeiro de 2003, por força do respetivo artigo 56º, ao preceituar que “é obrigatório o resguardo ou a cobertura eficaz de poços, fendas e outras irregularidades existentes em quaisquer terrenos e susceptíveis de originar quedas desastrosas a pessoas e animais”, acrescentando o artigo 44º, do diploma legal em causa, que se “considera […] cobertura ou resguardo eficaz, para efeitos do presente diploma, qualquer placa que, obstruindo completamente a escavação, ofereça resistência a uma sobrecarga de 100 kg/m2, [nº 1], devendo “o resguardo… ser constituído pelo levantamento das paredes do poço ou cavidade até à altura mínima de 80 cm de superfície do solo ou por outra construção que, circundando a escavação, obedeça àquele requisito, contanto que, em qualquer caso, suporte uma força de 100 kg” [nº2].
Esta vertente da ilicitude pressupõe que a tutela dos interesses privados figure, de facto, entre os fins da norma violada, e não seja um mero reflexo da proteção dos interesses colectivos, e ainda que o dano se tenha registado no círculo de interesse privados que a lei visa tutelar[5].
Por outro lado, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, sendo ao lesado, salvo havendo presunção legal de culpa, que incumbe provar a culpa do autor da lesão, em conformidade com o estipulado pelo artigo 487º, nºs 1 e 2, do CC.
A isto acresce que, nos termos do prescrito pelo artigo 486º, do CC, “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente de outros requisitos legais, havia, por força de lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o ato omitido”.
Finalmente, a propósito dos danos causados por coisas, preceitua o artigo 493º, nº 1, do CC, que “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
II. 4. Com efeito, a pessoa, desde logo, o proprietário, que tem em seu poder, à sua guarda, uma coisa, móvel ou imóvel, está obrigada a vigiá-la, devendo tomar as providências necessárias para evitar a lesão[6].
Na verdade, resulta do disposto pelo artigo 1305º, do CC, que o direito de propriedade é exercido, “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, em que consiste o dever de abstenção do proprietário, que tem uma obrigação de conteúdo positivo de adotar as medidas adequadas para evitar o perigo criado pela sua própria atuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem, em que se traduz o dever de prevenção do perigo[7].
Por força da supramencionada norma administrativa que impõe a obrigatoriedade do resguardo ou da cobertura eficaz de poços, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” tinha o especial dever de prevenir o perigo resultante da existência do poço, que se situava em terreno da sua propriedade, porquanto o ordenamento jurídico nacional consagra o princípio do dever de prevenção do perigo, segundo o qual a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ele relacionados.
De facto, esta norma tem por finalidade a tutela da ofensa dos direitos particulares alheios das pessoas não sofrerem quedas desastrosas, em poços desprovidos de resguardo ou cobertura eficaz, sendo que o afogamento verificado dentro do poço se situa no âmbito dos interesses privados que a mesma visa proteger.
A responsabilidade civil recai sobre a pessoa que tem à sua guarda a coisa, naturalmente, e, desde logo, o proprietário, mas, também, o arrendatário, que, de igual modo, tem o dever de a vigiar, enquanto se mantiver ligado à mesma pela relação contratual estabelecida com o titular do bem, presumindo-se a culpa de quem tem a obrigação de vigiar coisa susceptível de provocar danos, ou seja, de quem possui a coisa, por si ou em nome de outrem, desde que possa exercer sobre ela um controlo físico, sendo, para o efeito, indiferente que o artigo 45º, nº1, do supracitado DL nº 310/2002, de 18 de Dezembro, fale “naquele que explora ou utiliza, seja a que título for, o prédio onde se encontra o poço”.
E isto porque, sem embargo de se ter demonstrado que a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” deixou de ter o uso do prédio, bem como de exercer qualquer utilização no prédio onde o poço se localizava, desde 1965 até à data do falecimento do GG, tal consiste ainda numa forma de usar a propriedade que se compreende no âmbito do conteúdo do respectivo direito, que não se extingue pelo não uso, dada a característica intrínseca da perpetuidade do direito de propriedade[8], não sendo, aliás, a renúncia uma causa de extinção da propriedade, que é própria dos direitos sobre coisa alheia, ainda que surja, excecionalmente, como uma forma de extinção do direito de compropriedade[9].
Assim, a presunção legal de culpa pressupõe a detenção material da coisa, em nome próprio ou em nome alheio, com o encargo de a vigiar, de forma a que o agente providencie para que o dano seja evitado, tomando as medidas adequadas.
O locatário é, em princípio, responsável pelas deteriorações da coisa locada, não devendo fazer dela uma utilização imprudente, não a aplicando a fim diverso daqueles a que se destina, devendo avisar, imediatamente, o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios da coisa, de acordo com o disposto pelo artigo 1038º, d), c) e h), mas tal não acontecerá se demonstrar que esses factos resultam de causa que lhe não seja imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a sua utilização, atento o prescrito pelo artigo1044º, ambos do CC[10].
Ora, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, locadora do prédio, não resolveu o contrato de arrendamento celebrado com a EE, por eventual violação do mesmo pela locatária, em consequência da abertura do poço.
É que se, em tese, a abertura de um poço no arrendado, pode, hipoteticamente, corresponder a uma deterioração do mesmo pelo locatário, desde que não restitua o arrendado no estado em que o recebeu, de acordo com o estipulado pelo artigo 1043º, não obstante ter ficado à sua guarda, nos termos do preceituado pelo artigo 1038º, ambos do CC, tal não afeta o princípio-regra de que o risco inerente ao direito de propriedade corre por conta do locador e não do locatário.
Deste modo, eventuais deteriorações do locado, provocadas pela utilização prudente do imóvel, como resulta da ausência de reacção da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, perante a conduta da ré DD, geradoras da necessidade de realização de obras, por parte do senhorio, são da responsabilidade deste e não do locatário.
De todo o modo, o contrato de arrendamento, celebrado em 1965, pela ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” com a “EE – EE”, que procedeu à abertura do poço no terreno, terminou em 1982, tendo o mesmo sido restituído aquela, em 31 de Janeiro de 1984, pela “FF – …, EP”, sucessora legal da EE, mais de vinte anos antes da data do infausto acidente mortal a que se reportam os autos.
Deste modo, quando entrou em vigor o DL nº 310/2002, de 18 de Dezembro, que determinou a obrigatoriedade da realização de “…resguardo ou cobertura eficaz de poços, fendas e outras irregularidades existentes em quaisquer terrenos e susceptíveis de originar quedas desastrosas a pessoas e animais”, já o contrato de arrendamento havia terminado, há dezanove anos, com efetiva restituição do arrendado ao senhorio.
Como assim, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” manteve aberto o poço, sem qualquer protecção de cobertura, durante cerca de um ano e dez meses, após o início da vigência do diploma legal que impunha essa obrigatoriedade, na sequência de um longo antecedente período de dezanove anos, em que, razoavelmente, teve muito tempo para se aperceber da situação do prédio, depois da sua restituição, operada no final do contrato de arrendamento.
Ao manter aberto e sem protecção ou resguardo o aludido poço, situado em terreno de sua propriedade, numa zona rural em que era praticado o regime de caça livre, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” criou, objectivamente, uma situação de perigo manifesto para quem utilizasse esse prédio, nomeadamente, para fins cinegéticos, legalmente, permitidos, em especial, num contexto de total dissimulação, determinada pela intensidade da vegetação que o recobria e lhe retirava a visibilidade, e que lhe impunha o dever jurídico de adotar todas as precauções necessárias para que ninguém nele se precipitasse.
Com efeito, se o poço, não obstante desprovido de resguardo e protecção, se mantivesse limpo de vegetação na sua envolvência, seguramente, que o inditoso GG se não teria precipitado, fatidicamente, no seu interior.
Aliás, a lei, então, vigente era, particularmente, exigente nos seus propósitos de segurança, porquanto perspetivava a obrigatoriedade de “resguardo ou cobertura eficaz de poços, fendas e outras irregularidades existentes em quaisquer terrenos e susceptíveis de originar quedas desastrosas a pessoas e animais”.
Ao não adotar quaisquer precauções destinadas a evitar “quedas desastrosas a pessoas e animais”, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” omitiu aquele dever de prevenção do perigo e agiu com culpa, pois que não adotou a diligência necessária para obstar a um resultado que era, perfeitamente, previsível.
Esta obrigatoriedade de resguardo ou cobertura eficaz de poços, a que alude o artigo 42º, nº 1, do DL nº 310/2002, de 18 de Dezembro, fica, todavia, excetuada, segundo o respetivo artigo 46º, na situação de propriedades muradas ou, eficazmente, vedadas, em virtude de se tratar de «terrenos de caça condicionada», por força do preceituado pelo artigo 18º, da Lei da Caça[11].
Porém, a ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...” não invocou esta exceção, na sua contestação, ou, posteriormente, por certo, em virtude de a mesma se não verificar, não se justificando, pois, a ampliação da base instrutória com essa finalidade, como aquela, a propósito de outra factualidade, que não esta, solicita, mas que, de igual modo, não tem fundamento, nem pertinência, na economia do que se vem decidindo.
Inexiste, pois, fundamento legal, atendendo à materialidade que ficou demonstrada, para condenar à ré “DD- …, SA” no pagamento da obrigação de indemnização peticionada, por falta dos respetivos pressupostos da responsabilidade civil, outrotanto não acontecendo, conforme já se expôs, em relação à ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”.
Procedem, assim, as conclusões das alegações da ré “DD- …, SA”, ainda que com fundamentação diversa, mas improcedem as da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, por inexistir a nulidade do acórdão, proveniente de pronúncia indevida, ou a sua invocada ausência de responsabilidade civil, não se mostrando violadas as disposições legais que citou ou outras de que, oficiosamente, cumpra conhecer.

CONCLUSÕES:

I - O objecto inicial do recurso define-se com o ato da sua interposição e o seu objecto final com as conclusões da alegação do recorrente, sendo irrelevante o que consta das conclusões da alegação, quando tendam a ampliar o objecto do recurso, definido no requerimento de interposição, mas já sendo relevante o que das mesmas conste quando visem o fim oposto, isto é, a restrição, no sentido de excluir ainda decisões que haviam sido especificadas como integrando o seu objeto.
II - O tribunal não pode conceder mais ao recorrente do que ele solicita no recurso interposto, por força do princípio do dispositivo, tal como a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão recorrida, por força do princípio da proibição da «reformatio in pejus».
III – O dever de abstenção do proprietário traduz-se na obrigação de exercer o seu direito, “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, e o dever de prevenção do perigo, de conteúdo positivo, na obrigação do mesmo ou da pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo, de adotar as medidas adequadas para evitar o perigo criado pela sua própria atuação, ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem, isto é, para prevenir os danos com ela relacionados.
IV - A norma administrativa que impõe a obrigatoriedade do resguardo ou da cobertura eficaz de poços determina a ilicitude, em função da finalidade da tutela da ofensa de direitos particulares alheios das pessoas não sofrerem quedas desastrosas dentro deles, sendo que o afogamento verificado dentro do mesmo se situa, no âmbito dos interesses privados que a mesma visa proteger.
V - A pessoa, desde logo, o proprietário, que tem em seu poder, à sua guarda, uma coisa, móvel ou imóvel, está obrigada a vigiá-la, devendo tomar as providências necessárias para evitar a lesão.
VI – Ainda que o proprietário tenha deixado de exercer qualquer utilização no prédio, há mais de trinta anos, tal consiste ainda numa forma de usar a propriedade, cujo direito se não extingue pelo não uso, dada a característica intrínseca da perpetuidade do direito de propriedade, não sendo, aliás, a renúncia uma causa de extinção da propriedade, que é própria dos direitos sobre coisa alheia.
VII - O arrendatário tem, igualmente, o dever de vigiar a coisa, enquanto se mantiver ligado à mesma pela relação contratual estabelecida com o titular do bem, presumindo-se a culpa de quem tem a obrigação de vigiar coisa susceptível de provocar danos, ou seja, de quem possui a coisa, por si ou em nome de outrem, desde que possa exercer sobre ela um controlo físico, com o encargo de a vigiar, de forma a providenciar que o dano seja evitado, tomando as medidas adequadas.
VIII - Sendo princípio-regra o de que o risco inerente ao direito de propriedade corre, por conta do locador e não do locatário, eventuais deteriorações do arrendado, provocadas pela utilização prudente do imóvel, geradoras da necessidade de realização de obras, por parte do senhorio, são da responsabilidade deste e não do locatário, não obstante a coisa ter ficado à sua guarda.
IX - Ao manter aberto e, sem protecção ou resguardo, um poço, situado em terreno de sua propriedade, numa zona rural em que era praticado o regime de caça livre, o proprietário criou, objectivamente, uma situação de perigo manifesto para quem o utilizasse, nomeadamente, para fins cinegéticos, legalmente, permitidos, em especial, num contexto de total dissimulação, determinada pela intensidade da vegetação que o recobria e lhe retirava a visibilidade, que lhe impunha o dever jurídico de tomar todas as precauções necessárias par que ninguém nele se precipitasse.
X - Ao não adotar quaisquer precauções destinadas a evitar “quedas desastrosas a pessoas e animais”, o proprietário do prédio omitiu aquele dever de prevenção do perigo e agiu com culpa, pois que não adotou a diligência necessária para obstar a um resultado que era, perfeitamente, previsível.
XI - Havendo terminado, há dezanove anos, com efectiva restituição do arrendado ao senhorio, o contrato de arrendamento de um prédio, onde o locatário havia construído um poço, mantendo-o aquele aberto, sem qualquer protecção de cobertura, durante cerca de um ano e dez meses, após o início da vigência da lei que determinou a obrigatoriedade da realização de “…resguardo ou cobertura eficaz de poços, fendas e outras irregularidades existentes em quaisquer terrenos”, inexiste fundamento legal, atendendo à materialidade que ficou demonstrada, para condenar o locatário no pagamento da obrigação de indemnização à vítima mortal, por afogamento, em consequência de queda no seu interior, por falta dos respetivos pressupostos da responsabilidade civil.

DECISÃO[12]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, mas, em conceder a revista da ré “DD- …, SA”, e, em consequência, revogando, em parte, o douto acórdão impugnado, absolvem a ré “DD- …, SA” do pedido contra si formulado pelos autores, condenando a ré “CC ou CC” com sede em …, a pagar aos autores a quantia global de €249.280,00 (duzentos e quarenta e nove mil e duzentos e oitenta euros)”, tal como, neste segmento, consta do aludido acórdão.

                                                                  *

Custas da revista, a cargo dos autores e da ré “Fábrica da Igreja Paroquial de ...”, em igual proporção.

                                                         *

Notifique.

Lisboa, 9 de julho de 2015

Helder Roque (Relator)

Gregório Silva Jesus

Martins de Sousa

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[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, 1981, 308 e 309; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 229, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 229.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, 1981, 309 e 363.
[4] Calvão da Silva, CJ, Ano XX (1995), T1, 12; Acórdão do TC nº 512/06, de 29-9-2006, DR, 2ª série, de 23-2-2007; STJ, de 10-10-2006, Pº nº 05B870; STJ, de 3-2-2005, Pº nº 06A2582; STJ, de 4-6-1976, BMJ nº 258, 180.
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 367 e 368.
[6] Antunes Varela, RLJ, Ano 114º, 40 e ss., em anotação ao Acórdão do STJ, de 26-3-1980; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 495.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, reimpressão, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 95.
[8] Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 235 e 236; Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, II, 3ª edição, segundo as Lições de Pires de Lima, 1955, 4; Santos Justo, Direitos Reais, 2007, 226.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, reimpressão, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 385, 606 e 607.
[10] STJ, de 30-1-1981, BMJ nº 303º, 223.
[11] Lei nº 173/99, de 21 de Setembro, com as alterações subsequentes.
[12] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.