Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1530/15.5T8STS-C.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ABUSO DO DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO / MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 662.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-10-2012, PROCESSO N.º 660/04.3TBPTM.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 6131/12.7TBMTS-A.P1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 31-05-2001, PROCESSO N.º 0130717, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Cumpre o disposto no art. 662.º do CPC, o acórdão da Relação que procede a audição das declarações e dos depoimentos gravados indicados pelos recorrentes como fundamentadores da alteração da decisão da matéria de facto, e procede a análise crítica da mesma prova, embora em parte recorrendo a transcrição da análise crítica levada a cabo pela 1.ª instância, mas acrescentando uma análise crítica própria detalhada e completa em que valoriza ou desvaloriza o referido conteúdo de cada um dos meios de prova, de acordo com as circunstâncias apuradas.

II - Tendo os autores fundamentado o pedido de impugnação da resolução de negócio dos agora insolventes, em benefício da massa insolvente, apenas no não preenchimento dos pressupostos legais formais e substanciais de que depende a resolução e sendo julgada a ação improcedente por se verificarem aqueles pressupostos, nada obsta a que apenas na apelação dos autores seja levantada a questão do abuso do direito de reso1ução por parte da massa insolvente.

III - Tendo a Relação na decisão da ape1ação se recusado a apreciar esse abuso do direito com o pretexto de que se trata de questão nova não colocada ou apreciada na 1.ª instância, há que revogar essa decisão para que a Relação aprecie essa questão, que é do conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e marido BB intentaram a presente ação de processo comum contra a Massa Insolvente de CC e de DD,

Pedindo que seja julgada procedente a ação de impugnação de resolução e seja declarado válido e eficaz o negócio jurídico celebrado com os insolventes e que seja declarada a ineficácia do ato de resolução do contrato de compra e venda do prédio urbano sito na Rua ..., 578, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da União de freguesias de ..., ..., ... e ....

Para tanto alegam, em síntese e no essencial, que eram credores dos insolventes; que estes tiveram necessidade de obter um financiamento de € 150.000,00 junto do EE e que para que tal financiamento fosse aprovado o banco exigiu hipoteca do imóvel objeto da resolução e que os autores assumissem a qualidade de fiadores, ao que os autores anuíram face à relação familiar e de confiança que os ligava aos insolventes; que posteriormente se arrependeram e entregaram à insolvente mulher a quantia de € 50.000,00 para liquidar parte do empréstimo contraído e ser cancelada a fiança; que ficaram convencidos de tal situação até abril de 2013, data em que tiveram conhecimento que se mantinham como fiadores, ao serem interpelados pelo EE para pagamento de prestações que estavam em dívida; que em agosto de 2014 os insolventes deixaram de cumprir em definitivo as obrigações que assumiram junto do banco e os autores foram interpelados ao pagamento na qualidade de fiadores; que, em consequência, iniciaram negociações com o banco com vista ao pagamento da dívida; que a melhor solução foi a de adquirirem o imóvel e assumirem o crédito junto do banco, que ascendia a € 253.358,00, sendo que os insolventes já lhes deviam a quantia de € 110.000,00. Assim, os Autores liquidaram ao banco a quantia de € 78.358,00 e contraíram mútuo com hipoteca no valor de € 175.000,00. Mais alegam que o valor comercial do imóvel, face ao seu estado de degradação, era de € 250.000,00; que com a venda os insolventes diminuíram o seu passivo e que, à data do negócio, os Autores desconheciam a situação económica dos insolventes.

Mais alegam que a comunicação de resolução padece de falta de alegação de factos concretos quanto à existência de má-fé e quanto à prejudicialidade do negócio, alegando que adquiriram validamente o imóvel, tudo como melhor consta da petição inicial, que se dá por reproduzida.

Terminam por requerer a intervenção de terceiro da entidade bancária.

Regularmente citada, a massa insolvente apresentou contestação com dedução de incidente do valor da ação, com defesa por impugnação onde alega, também em síntese e no essencial, que mantém todo o teor da comunicação de resolução, que as partes no negócio agiram com má-fé, alegando factos suscetíveis de o demonstrar, com o intuito de afastar o bem da massa, tudo como melhor consta do articulado de contestação, que se dá por reproduzido.

Foi apreciado o incidente de valor e fixado à ação o valor de € 175.000,00.

CC e mulher DD, insolventes, intentaram, por apenso ao processo de insolvência, ação de processo comum contra Massa Insolvente de CC e DD, pedindo:

- Seja julgada procedente a ação de impugnação de resolução e seja declarado válido e eficaz o negócio jurídico celebrado com os adquirentes  AA e BB e que seja declarada a ineficácia do ato de resolução do contrato de compra e venda do prédio urbano sito na Rua ..., 578, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da União de freguesias de ..., ..., ... e ....

Para tanto alegam, em síntese e no essencial, que eram devedores dos adquirentes; que tiveram necessidade de obter um financiamento de € 150.000,00 junto do EE e que para que tal financiamento fosse aprovado o banco exigiu hipoteca do imóvel em causa nos autos e a prestação de fiança por terceiros; que os adquirentes assumiram tal qualidade face à relação familiar e de confiança que os ligava aos insolventes; que posteriormente se arrependeram e entregaram à insolvente mulher a quantia de € 50.000,00 para liquidar parte do empréstimo contraído e ser cancelada a fiança; que ficaram convencidos de tal situação até abril de 2013, data em que tiveram conhecimento que se mantinham como fiadores, ao serem interpelados pelo EE para pagamento de prestações que estavam em dívida; que em março de 2013 haviam pedido mais um empréstimo aos adquirentes no montante de € 30.000,00; que em agosto de 2014 deixaram de cumprir em definitivo as obrigações que assumiram junto do banco e os fiadores foram interpelados ao pagamento; que, em consequência, iniciaram negociações com o banco com vista ao pagamento da dívida; que a melhor solução foi a de AA e BB adquirirem o imóvel e assumirem o crédito junto do banco, que ascendia  a € 253.358,00, sendo que os insolventes já lhes deviam a quantia de € 110.000,00. Assim, os adquirentes liquidaram ao banco a quantia de € 78.358,00 e contraíram mútuo com hipoteca no valor de € 175.000,00. Mais alegam que com a venda diminuíram o seu passivo e que, à data do negócio, os adquirentes desconheciam a situação económica dos insolventes.

Mais alegam que a comunicação de resolução padece de falta de alegação de factos concretos quanto à existência de má-fé e quanto à prejudicialidade do negócio, alegando que adquiriram validamente o imóvel, tudo como melhor consta da petição inicial, que se dá por reproduzida.

Terminam por requerer a intervenção de terceiro da entidade bancária.

Regularmente citada, a massa insolvente apresentou contestação com dedução de incidente do valor da ação, com defesa por impugnação onde alega, também em síntese e no essencial, que mantém todo o teor da comunicação de resolução, que as partes no negócio agiram com má-fé, alegando factos suscetíveis de o demonstrar, com o intuito de afastar o bem da massa, tudo como melhor consta do articulado de contestação, que se dá por reproduzido.

Foi apreciado o incidente de valor e fixado à ação o valor de € 175.000,00.

Considerando-se que a ré era a mesma em ambos as ações; que em ambas a causa de pedir é consubstanciada pelos mesmos factos, ou seja, resolução do mesmo negócio jurídico e que a decisão a proferir em ambas depende da prova do mesmo circunstancialismo fático e que a não apensação podia ter efeitos perversos uma vez que poderia dar origem a decisões incompatíveis entre si, determinou-se a notificação das partes nos termos do artigo 267º do Código de Processo Civil, para se pronunciarem quanto à possibilidade de apensação dos apensos, ao que as mesmas anuíram, tendo sido determinada a apensação de ambas as ações nos presentes autos.

Por despacho proferido a 10.11.2016 foi indeferido o incidente de intervenção provocada requerido.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador nos termos do disposto nos artigos 591º, 595º e 596º, todos do Código de Processo Civil ex vi artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, onde foi apreciada e decidida a exceção invocada pelas partes, tendo sido julgada improcedente; foi identificado o objeto do litígio; fixados factos assentes e estabelecidos os temas de prova.

Nos termos do disposto no artigo 547º do Código de Processo Civil – a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem  -, e em adequação do processado posterior, foi determinada a notificação das partes, não só para os efeitos do disposto no artigo 593º/3 mas também para, querendo, alterarem os respetivos requerimentos probatórios, nos termos do artigo 598º/1.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que julgou as ações de impugnação de resolução totalmente improcedentes, e, em consequência, absolveu a ré do pedido, declarando-se válida a resolução do contrato de compra e venda prédio urbano sito na Rua ..., 578, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da União de freguesias de ..., ..., ... e ....

Os autores AA e marido BB, adquirentes, por um lado,  e CC e mulher DD, insolventes, por outro, apelaram, tendo as apelações sido julgadas improcedentes.

Mais uma vez inconformados, vieram os autores AA e marido BB interpor a presente revista, tendo formulado alegações onde formulam conclusões que, por falta de concisão, não serão aqui transcritas.

Da análise daquelas resulta que os recorrentes, para conhecer neste recurso, levantam as seguintes questões:

a) O tribunal recorrido não cumpriu o estatuído no art. 662º, nº 1, não auscultando realmente a prova cuja reapreciação lhe foi requerida?

b) O acórdão recorrido errou ao considerar que o abuso do direito de resolução não podia ali ser apreciado ?

c) Se tal se não aceitar, o acórdão omitiu a pronúncia sobre aquele instituto, pelo que é nulo ?

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1-, o objeto dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já acima vimos as concretas questões que os aqui recorrentes levantam como objeto deste recurso.

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por apurada e que é a seguinte:

  1.       Por carta datada de 17 de junho de 2015, registada, com aviso de receção, recebida pelos autores CC e DD a 22.06.2015, o Sr. Administrador da Insolvência, comunicou que resolvia em benefício da massa insolvente, com efeitos retroativos, o negócio celebrado a 24 de outubro de 2014 (Documento nº 1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).

2.         Da comunicação efetuada constam os seguintes fundamentos:

a.        a petição inicial do processo de insolvência deu entrada no tribunal em 04.05.2015;

b.         o negócio foi celebrado em 24.10.2014;

c.        os adquirentes, sendo irmã e cunhados dos insolventes tinham conhecimento da situação de insolvência;

 d.       o ato é prejudicial à massa: o imóvel foi vendido por preço inferior ao preço real; a contrapartida é volátil e não foi encontrada e apreendida; a contrapartida não existiu.

3.         O negócio objeto de resolução foi o negócio celebrado entre os insolventes e AA e BB, referente à compra e venda do prédio urbano sito na Rua ..., 578, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., e inscrito na matriz urbana sob o artigo ..., da União de Freguesias de ..., ..., ... e ..., o qual era a habitação própria e permanente dos insolventes. (escritura pública junta como documento nº 3 junto com  a petição inicial, que se dá por reproduzido)

4.        Por documento intitulado de contrato de arrendamento com prazo certo, datado de 01 de novembro de 2014, consta que AA e BB dão de arrendamento aos insolventes o prédio descrito em 3. dos factos assentes aos insolventes, pela renda mensal de € 300,00. (Documento nº 2 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

5.         AA e BB, haviam-se constituído fiadores e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pelos insolventes em contrato de mútuo pelos mesmos outorgado em 26.01.2012, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia, dando o seu acordo a quaisquer modificações de taxa de juro e alterações de prazo, bem como mudança de regime de crédito que fossem convencionadas entre o Banco e os mutuários, assumindo manter a fiança constituída plenamente em vigor enquanto subsistisse qualquer dívida de capital, ou despesas contraída por qualquer forma e imputável aos insolventes. (Documento nº 4 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).

 6.       Os insolventes declararam prometer vender a AA e BB o referido imóvel, por escritura pública de 24 de Setembro de 2014, mais tendo declarado os outorgantes que os insolventes eram devedores da quantia de € 110.000,00 e que consideram esse montante liquidado, passando esse valor a ser considerado como a primeira prestação para a compra e venda (Documento nº 12 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

7.         Para aquisição do imóvel AA e BB solicitaram ao EE, S.A. um empréstimo no valor de € 175.000,00 e para garantia do referido empréstimo constituíram a favor daquela instituição bancária hipoteca sobre o imóvel.

8.         A petição inicial de apresentação à insolvência deu entrada em juízo em 04.05.2015.

9.         Para a massa apenas foi apreendida uma quota social no valor nominal de € 2.750,00.

10.       Foram rec...dos créditos de valor superior a € 300.000,00.

11.       AA nasceu no dia 24.03.1963 e é filha de FF e GG. (assento de nascimento de fls. 189, que se dá por reproduzido)

12.       DD nasceu no dia ...1966 e é filha de FF e GG. (assento de nascimento de fls. 192, que se dá por reproduzido)

13.      Em Janeiro de 2012, os insolventes CC e DD, tiveram necessidade de contrair um mútuo no valor de € 150.000,00, junto do EE, para fazer face a compromissos financeiros.

14.       Para que tal empréstimo fosse aprovado pelo Banco, este exigiu que fosse prestada fiança, tendo os insolventes solicitado à irmã e cunhado da insolvente DD, para serem fiadores, o que estes aceitaram junto do Banco.

15.       AA e BB acederam prestar fiança no referido mútuo, atenta a relação familiar que os unia aos insolventes, bem como a relação de confiança existente entre ambos.

16.       Em março de 2013 AA e BB foram interpelados pelo EE, para o pagamento de prestações que se encontravam em dívida. (documento de fls. 76 do apenso D que se dá por reproduzido)

17.      Em meados de 2014 os insolventes encontravam-se completamente incapacitados financeiramente para assumirem as suas responsabilidades com o Banco credor.

18.       Pedida a avaliação do imóvel ao EE, o mesmo avaliou-o em € 300.000,00.

19.       Em meados de 2014 a dívida dos insolventes ao banco ascendia a € 253. 358,00.

20.       No dia 24 de Outubro de 2014, AA e BB liquidaram ao EE a quantia de € 78.358,00.

21.      O imóvel foi avaliado em 2014 pelo serviço de finanças competente para efeitos de IMI, sendo-lhe atribuído o valor patrimonial de € 154.694,03.

22.      Em 10 de Setembro de 2014 a Sociedade de Mediação Imobiliária HH avaliou o imóvel em € 250.000,00.

23.       Os insolventes na data do negócio sabiam que tinham constituído obrigações que não conseguiam e não conseguiriam cumprir.

24.       O negócio de compra e venda do imóvel visou retirar o bem do património dos insolventes.

25.      As declarações exaradas na escritura de compra e venda resultam de um acordo entre os outorgantes com vista a retirar o imóvel do património dos insolventes.

 26.      AA e BB sabiam da situação económica em que os insolventes se encontravam.

27.      O negócio em causa ocorreu sem qualquer contrapartida económica para os insolventes.

28.       O imóvel encontrava-se em estado degradado a necessitar de obras de manutenção.

Vejamos agora cada uma das concretas questões acima elencadas como objeto desta revista.

a) Nesta primeira questão defendem os recorrentes que o acórdão  recorrido não reapreciou a matéria de facto, como se lhe determina o disposto no nº 1 do art. 662º.

Facilmente se vê que os recorrentes nenhuma razão têm nesta pretensão. 

O art. 662º, nº 1 estipula que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos  tidos por assentes, a prova  produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Tal como doutamente refere o Conselheiro Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 3ª ed., pág. 266: “ A Relação actua como tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de 1ª instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmo um juízo valorativo de confirmação ou de alteração da decisão recorrida.”

Deve assim, o Tribunal da Relação proceder nos termos do art. 607º, nºs 4 e 5 que prescreve que o juiz deve analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção. O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção  acerca de cada um dos factos.

E foi isto que o acórdão recorrido fez.

Daquele resulta que o Tribunal da Relação procedeu à audição fonética das declarações e dos depoimentos das testemunhas que os recorrentes apontaram como determinantes da alteração pretendida - cfr. fls. 303 dos autos – e logo concluiu pela convicção semelhante àquela a que chegou a 1ª instância. Na análise crítica da prova mostrou-se concordante com aquela a que a 1ª instância chegara, transcrevendo essa análise crítica – conduta esta que lhe era permitido pelo disposto nos arts. 656º e 663º, nº 5.

Mas o douto acórdão recorrido, após a transcrição da apreciação crítica das provas da 1ª instância, ainda procedeu a uma autónoma e detalhada, mas complementar, apreciação crítica das provas em causa onde analisa a credibilidade das testemunhas, nomeadamente, da testemunha II, realçando a sua ligação aos autores-insolventes de quem é filha, a sua falta de espontaneidade e de conhecimento direto dos factos e desvalorizando a razão de ciência por aquela apontada de “ter acompanhado várias vezes a mãe “.

O acórdão recorrido ainda apreciou criticamente os depoimentos das testemunhas JJ e  KK.

Desta análise crítica da prova, concluiu o acórdão recorrido pela manutenção da factualidade apurada na 1ª instância.

Logo nenhuma violação do apontado preceito do nº 1 do art. 662º se mostra cometida no acórdão recorrido, o que faz  improceder esta pretensão dos recorrentes.

b) Aqui os recorrentes defendem que o acórdão recorrido errou ao considerar que o abuso do direito de resolução não podia ser apreciada naquele acórdão.

Aqui já os recorrentes têm razão, sem qualquer dúvida.

Vejamos melhor.

Tal como resulta do relatório acima elaborado, os autores numa e noutra das petições iniciais fundamentaram o seu direito de impugnação da resolução decretada na falta de verificação dos pressupostos legais, substanciais e formais, da resolução de negócio de insolventes, resolução essa em beneficio da massa insolvente.

A pretensão peticionada foi julgada improcedente na sentença de 1ª instância por se terem verificado os pressupostos legais da referida resolução.

Os autores nas duas petições iniciais apelaram e como fundamentos das apelações, apontaram essencialmente três argumentos:

- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e o decidido;

- Errada decisão da matéria de facto por deficiência na apreciação da prova produzida e

- Abuso do direito de resolução por parte da massa insolvente.

O acórdão recorrido apreciou os dois primeiros fundamentos julgando-os improcedentes.

Já em relação ao terceiro fundamento, o acórdão recorrido disse o seguinte:

Por último, no que concerne à Questão Nova colocada nos recurso relativa ao alegado “  Abuso de Direito de Resolução do Negócio” porque se trata de questão que as partes não colocaram nos articulados e que por isso não foi objecto de apreciação e decisão na sentença recorrida, está vedada a sua apreciação e decisão  por este Tribunal da Relação.

Efectivamente, como é entendimento unânime na jurisprudência, o objecto do recurso é a decisão, ou seja, os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.

Neste sentido pode ler-se no acórdão do S.T.J. de 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719: “vem este Supremo Tribunal decidindo de há muito, constituindo jurisprudência assente e indiscutida, que os recursos visam modificar decisões e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo lícito invocar nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido” [cfr., no mesmo sentido, entre outros, acórdãos de 16.5.72, 13.3.73, 5.2.74, 29.10.74, 7.1.75 e 25.11.75, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 217, pág. 103; 225, pág. 202; 234, pág.267; 240, pág. 223; 243, pág. 194, 251, pág. 122 e 408, pág. 521, respectivamente, e Ac da Relação do Porto, de 31-05-2001, processo nº 0130717, disponível em www.dgsi.pt        

Por conseguinte e dado que o tribunal de recurso não se pode pronunciar sobre questão nova , não pode ser com base nela revogada a sentença recorrida.”

Pese embora o respeito devido pelos autores deste aresto, estamos em discordância com o mesmo.

 Não discordamos da jurisprudência citada no sentido de que, em principio, os recursos visam apenas reapreciar ou modificar as decisões já tomadas e não proceder, ex novo, à apreciação de questões novas, não apreciadas na instância que proferiu a decisão recorrida.

Porém, há uma exceção que tem de ser considerada a esta regra.

É o caso das questões que, por serem do conhecimento oficioso do julgador, este tem de apreciar, mesmo sem que tal lhe haja sido pedido.

O julgador, na elaboração da sentença, nos termos do art. 608º, nº 2 apenas pode conhecer das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Sendo as questões levantadas nas conclusões das alegações dos recorrentes  que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, há que aplicar a este limite a exceção decorrente da ressalva da parte final do nº 2 do art. 608º.

Tal como é pacificamente entendido quer na doutrina quer na jurisprudência, o instituto do abuso de direito é do conhecimento oficioso.

Poderíamos citar um sem número de acórdãos deste Supremo nesse sentido, mas por brevidade, apenas citaremos, como exemplo, o acórdão deste STJ proferido em 18-10-2012, no processo nº 660/04.3TBPTM.E1.S1, contante da base de dados do ITIJ.

Tal como refere aquele acórdão, o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjetivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados.

Este instituto constitui uma forma de anti-juridicidade ou ilicitude pelo que a apreciação do abuso de direito pode ser feita oficiosamente, pois está em causa um princípio de interesse e ordem pública.

Desta forma, mesmo que os apelantes não tivessem levantado a questão do abuso de direito, o Tribunal da Relação podia e devia dele conhecer, se estivessem apurados os respetivos pressupostos legais.

O facto de o tribunal de 1ª instância, na ausência de levantamento da referida questão pelas partes, não ter apreciado o mesmo instituto, apenas significa que aquele tribunal não encontrou reunidos os pressupostos para aquela aplicação na forma positiva, mas essa omissão não preenche qualquer nulidade de missão – cfr. acórdão deste STJ de 1-06-2017, no proc. nº 6131/12.7TBMTS-A.P1.S1.

Mas sendo na apelação levantada a questão do abuso de direito, tinha a Relação de dela conhecer, mesmo que fosse para o rejeitar – confirmando a decisão implícita da 1ª instância -, se entendesse que não estavam preenchidos os respetivos pressupostos legais.

Estava, assim, vedado à Relação recusar-se a conhecer aquele instituto, com o pretexto de não ter aquele sido levantado nem decidido na 1ª instância.

Por isso, terá o Tribunal da Relação do Porto de reformar o acórdão, procedendo ao conhecimento da questão da verificação do abuso de direito alegada, julgando consequentemente o litígio substancial, de acordo com a decisão daquela questão.

Isto decorre do disposto no art. 665º, nº 2, dispositivo este que se não aplica ao Supremo Tribunal de Justiça, atenta a ressalva prevista no art. 679º.

Procede desta forma este fundamento do recurso.

Com a procedência desta questão fica prejudicado o conhecimento da terceira questão levantada pelos recorrentes que fora formulada apenas para o caso de não proceder nenhuma das anteriores.

Pelo exposto, concede-se de forma parcial a presente revista, revogando o acórdão recorrido na parte em que se recusou a conhecer do fundamento das apelações consistente em haver a recorrida massa insolvente incorrido em abuso do direito de resolução, determinando que a Relação do Porto aprecie esse fundamento da apelação e decida, de novo, a seguir, o litigio substantivo de acordo com o sentido dessa decisão.

Custas na revista por recorrentes e recorrida, em partes iguais.

*

Nos termos do art. 663º, nº 7, sumaria-se o acórdão da seguinte forma:

Recurso da Matéria de Facto. Questão Nova. Abuso do Direito.

I. Cumpre o disposto no art. 662º do CPC, o acórdão da Relação que procede à audição das declarações e dos depoimentos gravados indicados pelos recorrentes como fundamentadores da alteração da decisão da matéria de facto, e procede à análise crítica da mesma prova, embora, em parte recorrendo à transcrição da análise crítica levada a cabo pela 1ª instância, mas acrescentando uma análise crítica própria detalhada e completa em que valoriza ou desvaloriza o referido conteúdo de cada um dos meios de prova, de acordo com as circunstâncias apuradas.

II. Tendo os autores fundamentado o pedido de impugnação da resolução de negócio dos agora insolventes, em beneficio da massa insolvente, apenas no não preenchimento dos pressupostos legais formais e substanciais de que depende a resolução e sendo julgada a ação  improcedente por se verificarem aqueles pressupostos, nada obsta a que apenas na apelação dos autores seja levantada a questão do abuso do direito de resolução por parte da massa insolvente.

III. Tendo a Relação na decisão da apelação se recusado a apreciar esse abuso de direito com o pretexto de que se trata de questão nova não colocada ou apreciada na 1ª instância, há que revogar essa decisão para que a Relação aprecie essa questão que é do conhecimento oficioso.   

17-04-2018

João Camilo ( Relator )

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot