Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
572/19.6T8OLH.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FALTA DE CONTESTAÇÃO
REVELIA
EFEITO COMINATÓRIO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Quando se consideram confessados os factos, por falta de contestação, a causa é julgada “conforme for de direito” (n.º 2, in fine, do art. 567.º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno.

II - O efeito cominatório semi-pleno, decorrente da situação de revelia operante, apenas determina que se devam ter por confessados os factos que tenham sido efectivamente alegados pelo demandante, os quais se podem revelar insuficientes, no momento da subsunção, tendo em vista a procedência do pedido.

III - Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art. 30.º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa.

IV - Sendo um dos requisitos da responsabilidade civil a violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), é necessário que quem pede que lhe seja paga uma indemnização demonstre ser titular do direito violado, sob pena de se concluir que carece de legitimidade (substantiva) para o efeito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I



AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €49.652,83, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em resumo, que:

Era possuidor, no ano de 2017, de um imóvel sito em ….. e o Réu era possuidor e proprietário de um canídeo, de grande porte, que se encontrava à solta e sem protecção, tendo, em 14-09-2017, 17-09-2017, 22-09-2017 e 29-09-2017, entrado na casa em posse do Autor, tendo ali provocado diversos prejuízos, em bens que discrimina e nos montantes que indica, no valor global de €49.652,83.

Regularmente citado, o Réu não contestou, pelo que, por despacho datado de 27-09-2919, foram considerados confessados os factos articulados pelo Autor na petição inicial.

Foi, na sequência, proferida sentença, na qual se julgou a acção procedente e se condenou o Réu BB a pagar ao Autor a quantia de € 49.652,00, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Réu para o Tribunal da Relação …..., onde foi proferido acórdão que revogou a sentença e julgou a acção improcedente.

Inconformado, desta vez, o Autor recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«1. O Autor intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Réu peticionando o pagamento da quantia de 49.652,83€ acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

2. Regularmente citado, o Réu não contestou, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer forma no processo.

3. Por despacho datado de 27-09-2019 o tribunal de 1.ª instância considerou confessados os factos articulados pelo Autor na petição inicial (artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

4. Por sentença datada de 31-01-2020 o tribunal de 1.ª instância julgou a presente acção provada e procedente e, em consequência, condenou o Réu BB a pagar ao Autor a quantia de 49.652,00€ acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.

5. Inconformado com a sentença proferida em 1.ª instância o Réu apresentou recurso para o Venerando Tribunal da Relação ….

6. Por acórdão datado de 22-10-2020 foi o recurso julgado totalmente procedente e revogou-se a sentença recorrida substituindo a mesma nos seguintes termos: “julga-se improcedente, por não provada, a presente acção, absolvendo-se o Réu do pedido”.

7. O Autor, ora Recorrente não se conforma com o acórdão de que ora se recorre porquanto o Réu regularmente citado não contestou, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer forma no processo.

8. E por despacho datado de 27-09-2019 o tribunal de 1.ª instância considerou confessados os factos articulados pelo Autor na petição inicial (artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

9. Tendo tal decisão já transitado em julgado, motivo pelo qual andou mal o tribunal “a quo” ao julgar improcedente por não provada a presente acção por não provada.

10. Estamos assim perante duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, o que põe em causa a segurança e a estabilidade que se visa obter com as decisões jurídicas transitadas em julgado.

11. Termos em que deverá o acórdão recorrido ser revogado por se encontrar em contradição com outra decisão que transitou em julgado em primeiro lugar (despacho datado de 27-09-2019).

12. Ao que acresce que o acórdão recorrido ao revogar a sentença recorrida e ao substituir a mesma por “julga-se improcedente por não provada a presente acção” viola ainda o disposto no artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que dispõe que se o Réu não contestar, tendo sido regularmente citado consideram-se confessados os factos articulados pelo Autos, factos esses que não poderão ser dados como não provados.

13. Por outro lado e sem prescindir, o Autor ora Recorrente não se conforma com o acórdão recorrido que afirma que perante a factualidade dada como provada inexistem quaisquer factos que permitam atribuir ao Autor legitimidade para requerer o pedido de indemnização formulado nos autos.

14. O que viola desde logo o conceito de legitimidade e o disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil que consagra que o Autor é parte legitima quando tem interesse directo em demandar.

15. Sobre o Réu, recaía o dever de vigilância do cão, pois era o seu proprietário, e tendo em conta que este, quando solto, entrou por diversas vezes na casa do Autor, e provocou danos, o Réu responde pelos danos provocados, pois que não logrou provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua.

16. O Réu com a confissão dos fatos, não logrou afastar a presunção de culpa, pelo que deverá responder nos termos do artigo 493.º/1 do Código Civil.

17. Sendo certo que subsumindo-se os factos dados como provados ao direito resulta que o Réu é responsável pelos danos que o cão causou ao Autor, obrigando-se a indemnizar o Autor na quantia que este alegou, o Réu não contestou e foi dada como provada de que foi o seu prejuízo – 49.652,83€.

18. Termos em que e face ao supra exposto deverá o acórdão recorrido ser revogado por violação do artigo 30.º e do artigo 567.º n.º 1 do Código de Processo Civil e consequentemente deverá ser mantida a decisão proferida em 1.ª instância, condenando-se o Réu no pagamento ao Autor da quantia de 49.652,83€.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. Dar provimento ao presente recurso e revogar o acórdão recorrido e consequentemente ser mantida a sentença proferida em 1.ª instância condenando-se o Réu no pagamento ao Autor da quantia de 49.652,83€ a título de indemnização, assim se fazendo Justiça!»

Contra-alegou o R./Recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.


*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões a apreciar, in casu, as de saber se o acórdão recorrido entrou, no que concerne à matéria de facto, em contradição com o despacho que declarou confessados os factos alegados pelo Autor; se violou o conceito de legitimidade previsto no art. 30º do CPC e se, vista a presunção de culpa que impende sobre o Réu e dados os factos provados, estariam reunidas as condições para, subsumindo esses factos ao direito, condená-lo na indemnização peticionada.

II


No Acórdão recorrido, consideraram-se provados os seguintes factos:

«1) O Autor foi possuidor no ano de 2017 de um imóvel sito em …..

2) O Réu era possuidor e proprietário de um canídeo que se tratava de um animal de grande porte, que pese ser um animal dócil era porém brincalhão, encontrava-se à solta e sem proteção e gostava de companhia humana e vendo-se abandonado entrou no interior da casa do Autor quer pela porta quer pelas janelas abertas nos dias 14/09/2017, 17/9/2017, 22/09/2019 e 29/9/2017,

3) tendo roído as mobílias, partes das tapeçarias e outros bens e foi partindo algumas peças, o no interior da casa em posse do Autor, provocando danos nos seguintes bens, cujos valores são indicados:

a) 2 unidades sofá de angulo Estilo …. (adquiríveis em ….), com o valor por unidade de 1499.00 Euros, o que totaliza o valor de 2.998.00E:

b) 1 unidade sofá … 3 lugares Linha …… Ref. …… com o valor de 16.110,00Euros;

c) 2 Unidades Poltrona Linha …. com o valor por unidade de 2.910,00€, o que totaliza o valor de 5.820,00€;

d) 2 unidades Candeeiro Linha …. com o valor por unidade 3.970,00€. o que totaliza o valor de 7.940,00€;

e) 2 Unidades Tapeçaria Persa Tecida manualmente, 1 da Linha … Ref.:….. com o valor de 1.521.00 Euros e 1 de medidas especiais LINHA … Ref.:…. com o valor de 22.900.00E, o que totaliza 24.421,00€;

f) 2 Unidades Tapete Branco-Creme Linha ….., 1 composto por duas peças com o valor de 570.00€ e 1 de peça única com valor de 285,00€ euros. ambos de pelo sintético tamanho médio total de 855,00€;

g) 4 Conjuntos da Excecional marca de Cristais …. num total de 20.400.00€;

h) 1 unidade ….. ref. :…. com o valor de 5.700.00€;

i) 14 unidades …. Ref.:…..;

j) 14 unidades ….. Ref.:…. com o valor de 4.970.00€:

k) 14 unidades ….. Ref.: …… com o valor de 2.660,00€.

l) 1 unidade serviço Chá da marca ……. de estilo antigo 12 chávenas com prato, bule de chá, bule de leite e açucareiro, com avaliação a data atual de valor de 3200,00€;

m) 1 unidade escultura de Porcelana LINHA …. de …. com o valor estimado de 600.00Euros;

n) 4 unidades cortinados da loja …. com o valor unidade de 150.00, o que totaliza o valor de 600,00€;

o) 1 unidade Tela de Autor pintura acrílica e óleo em painel de madeira, imagem da Rainha Santa Isabel de Portugal, com aplicações a bronze e marquesitas. medidas 2.20mx1.2m, com o valor atribuído de 9.000,00€;

p) 4 unidades Almofada ….. LINHA …. 70x70 valor unidade de 19.99 E, que totaliza 79.96€;

q) 4 unidades Almofada …. LINHA …. 70x70 valor unidade de 19.99 E, o que totaliza 79.96€;

r) 4 unidades Almofada …… LINHA ….. 55x55 valor unidade de 14.99 E; o que totaliza 59.96€;

s) 4 unidades Almofada …. LINHA …. 45x65 valor unidade de 14.99 E. o que totaliza 59.96€;

t) 1 unidade conjunto sofás e mesa …. LINHA ….. Ref.:….. com o valor de 169,00€;

u) 1 Unidade Estátua Nossa Senhora Del Rossio em Talha de Prata com medida de 65cm de Altura de valor estimado em 1.600.00€;

v) 1 unidade Piscina desmontável … Redonda em tela azul quadriculada com o valor de 250,00€;

w) 3 Unidades Reparação janelas de madeira e isolamentos com o valor de 480,00€;

x) 1 Unidade Reparação de tubagens de água interior/exterior habitação, com remoção de acento de chão, parede e madeira e reposição com o valor estimado de 1.200,00€;

y) Reparação de jardim da habitação, flores, catos, agaves, vasos de barro, e turfas com o valor de 2.700,00€;

z) 1 Unidade LCD … … 140cm com o valor de 1.699,99€;

aa) 1 unidade Telemóvel … cor …. com o Valor de 789.99€;

bb) 1 Unidade Casaco …. em couro … com Gola … Loja … com o valor de 1.200,00€.

4) Danos visíveis nos bens que compunham a casa e os destroços provocados pelo canídeo.

5) Danos que foram comunicados ao Réu, que foi convidado a visitar a habitação para ver os estragos do seu canídeo.

6) De todas as ocorrências foram chamadas as autoridades nomeadamente a GNR de … e de GNR de …, que fotografaram.

7) Foi ainda o Autor nomeado fiel depositário do animal pela G.N.R. até à chegada do dono.

8) Apesar do Autor gostar muito de animais a verdade é que os danos foram avultados e verificados pela avaliadora,

9) tendo inclusive apresentado queixa-crime na altura no posto da G.N.R. de …. esperando que fosse atendido o valor dos bens e efetuada avaliação aos bens assim como verificado o seu estado.

10) O Autor terminou vendendo em feiras de antiguidades os bens, roídos pelo animal, que a seguir se descrevem:

a) 1 unidade sofá … 3 lugares Linha ….. Ref. …. com o valor de 16.110,00Euros;

b) Unidades Poltrona Linha … com o valor pro unidade de 2.910,00E, o que totaliza o valor de 5.820,00€;

c) unidades Candeeiro Linha ….. com o valor por unidade 3.970,00€, o que totaliza o valor de 7.940.00 €;

d) 4 Conjuntos da Excecional marca de Cristais … num total de 20.400,00€: — 1 unidade …. ref. :…. com o valor de 5.700.00€;

e) 14 unidades …. Ref.:…..; - 14 unidades …. Ref.:…. com o valor de 4.970.00€;

f) 14 unidades …. Ref.: ….. com o valor de 2.660,00€;

g) 1 Unidade Estátua Nossa Senhora Del Rossio em Talha de Prata com medida de 65cm de Altura de valor estimado em 1.600.00€:

h) 1 unidade Telemóvel … cor … com o Valor de 789.99€.

11) Remanesce o prejuízo de 49.652.83€.

12) Numa das vezes que o cão ali entrou o Autor fechou o mesmo chamando o dono ora Réu.

13) Sendo que o mesmo dizia não querer saber de nada e que fechassem a janela.

14) Na verdade o Autor que foi criado e nascido naquela zona tendo-se habituado como já sua avó fazia deixar a porta aberta e ainda hoje mantém tal hábito.

15) Porém tendo-se tomado mais cauteloso.

16) Na verdade ao início o cão entrava pela porta e das vezes seguintes por janelas ou esgueirava-se quando se abria a porta.»


III


Defende o Recorrente que, tendo, por despacho datado de 27-09-2019, o Tribunal de 1.ª Instância considerado confessados os factos articulados pelo Autor na petição inicial, nos termos do artigo 567.º, n.º 1, do CPC, e tendo tal decisão já transitado em julgado, andou mal o Tribunal “a quo” ao julgar improcedente por não provada a acção. Assim, estamos perante duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, o que põe em causa a segurança e a estabilidade que se visa obter com as decisões jurídicas transitadas em julgado, razão por que deverá o acórdão recorrido ser revogado, por se encontrar em contradição com outra decisão que transitou em julgado em primeiro lugar.

Vejamos:

É certo que o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, concluiu julgando improcedente, por não provada, a acção. Mas, salvo o devido respeito, do emprego de uma tal fórmula não se pode retirar que se não tenham mantido como provados os factos alegados pelo Autor e dados por confessados no despacho proferido em 27-09-2019.

O Tribunal recorrido reproduziu os factos provados constantes da decisão da 1ª Instância e definiu como questões a apreciar a da invocada nulidade da sentença e a de saber se “os factos dados como provados permitem a concessão do direito pedido pelo Apelado.

O único reparo relativamente à matéria de facto reportou-se ao ponto 11 dos factos provados, no qual se fez constar que “Remanesce o prejuízo de 49.652.83€”, o que o Tribunal da Relação considerou conclusivo, acrescentando que não poderia, por isso, ser levado em conta e citando, a propósito, em nota de rodapé, o Ac. do STJ de 29-04-2015, Rel. Fernandes da Silva, Proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt, no qual se escreveu, entre o mais, que:

«II – A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos.

Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante.

A bondade dessa operação de expurgação, quando realizada pela Relação, é susceptível de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, por constituir matéria de direito.»

A verdade é que o Recorrente não pôs, em concreto e fundadamente, em causa aquele juízo, limitado ao (conclusivo) ponto 11, e não se retira da leitura do acórdão (designadamente pelo uso, a finalizar, de uma fórmula tabelar, ao considerar a acção improcedente) que não tenham sido aceites como provados os factos elencados.

O grande problema abordado no acórdão (fulcral para o resultado a que se chegou) foi o de saber se os factos alegados e confessados chegavam para preencher todos os requisitos de responsabilidade civil, necessários para a condenação do Réu.

Ora, não se pode olvidar que, confessados os factos, a causa é julgada “conforme for de direito” (nº 2, in fine, do art. 567º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 630).

Conforme se exarou no Ac. do STJ de 26-11-2015, Rel. Lopes do Rego, Proc. 7256/10.9TBCSC.L1.S4, publicado em www.dgsi.pt:

«2. O efeito cominatório semi-pleno, decorrente da situação de revelia operante da R./demandada, apenas determina que se devam ter por confessados os factos efectivamente alegados pelo demandante – cabendo ao juiz sindicar da suficiência e concludência jurídica da factualidade assente por confissão ficta, em termos do preenchimento ou não da fattispecie subjacente ao pedido deduzido

Não se verifica, assim, a apontada contradição do acórdão com o teor do dito despacho.

O Recorrente alega, ainda, que não se conforma com o acórdão recorrido que afirma que perante a factualidade dada como provada inexistem quaisquer factos que permitam atribuir ao Autor legitimidade para requerer o pedido de indemnização formulado nos autos, o que entende violar o conceito de legitimidade e o disposto no artigo 30.º no Código de Processo Civil.

Acrescenta que sobre o Réu recaía o dever de vigilância do cão, não tendo, face à confissão dos factos, logrado afastar a presunção de culpa, pelo que deverá responder nos termos do artigo 493.º/1 do Código Civil e, subsumindo-se os factos dados como provados ao direito, resulta que aquele é responsável pelos danos que o cão causou ao Autor, obrigando-se a indemnizá-lo na quantia alegada e que foi dada como provada, como sendo a do seu prejuízo: €49.652,83.

No acórdão recorrido, depois de se enunciarem os requisitos da responsabilidade civil, ponderou-se, entre o mais, o seguinte:

«(…)  independentemente de não ter havido contestação, para que surja o direito do Réu indemnizar o Autor, este tem de alegar na sua Petição Inicial todos os factos inerentes à mencionada obrigação, com exceção daqueles para os quais exista presunção (arts 342.º e 344.º do Código Civil).

Sendo o causador dos danos um animal e tendo resultado dos factos provados que o animal pertencia ao Réu, presume-se a culpa (art. 493.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que apenas quanto aos restantes quatro requisitos incumbe ao Autor a alegação dos factos.

É, assim, verdadeiro que, ao se dar como provados todos os factos constantes da Petição Inicial, tal não significa, por si só, que o Autor verá a sua pretensão concedida.

O Apelante invocou a falta de legitimidade do Autor para requerer a presente indemnização.

Efetivamente para que alguém tenha direito a indemnização tem de ter sofrido a violação de um direito, tem de ter sido lesado no seu direito.

No caso em apreço, em face da matéria dada como assente, resulta que o Autor foi possuidor, no ano de 2017, de um imóvel, sito em …, e que, nesse ano, por quatro vezes, o cão do Réu entrou nesse imóvel causando danos, por ter roído e partido, em mobílias, tapeçarias e noutros bens existentes no interior desse imóvel.

Na realidade, tem direito a receber a indemnização devida pelos danos causados aos bens móveis mencionados no art. 3 dos factos provados, aquele que sofreu com tais danos.

No caso concreto, o Autor não invoca a qualidade de proprietário desses bens móveis, aliás, nem qualquer outro título que justifique o direito a indemnização, pelo que efetivamente não resulta dos factos provados que tenha sido o Autor a sofrer os danos causados nos bens móveis identificados e, a ser assim, nunca o mesmo poderia ser o beneficiário da indemnização devida por tais danos.

Relativamente aos danos sofridos no próprio imóvel (facto 3, alíneas w), x) e y)), o Autor alegou que, à data dos danos, era possuidor desse imóvel.

Ora, para além de possuidor, sem mais, se reportar a um conceito jurídico (art. 1251.º do Código Civil) e nada esclarecer sobre a situação pela qual, em concreto, o Autor detinha, naquela data, aquele imóvel (mera detenção, arrendamento, usufruto, etc), também não se mostram alegados quaisquer outros factos que permitam aferir da legitimidade do Autor para deduzir, também quanto ao imóvel, o correspondente pedido de indemnização civil, designadamente, de que modo foi lesado por tais danos, visto não ser o proprietário do imóvel.

É, assim, correto afirmar que perante a factualidade dada como provada inexistem quaisquer factos que permitam atribuir ao Autor legitimidade para requerer o pedido de indemnização formulado nos autos, competindo a este, e apenas a este, por se arrogar de tal direito, a alegação dos factos respetivos (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil).

Dir-se-á, ainda, que, quanto aos danos, traduzindo-se o facto provado 11) num facto manifestamente conclusivo e, por isso, não podendo ser levando em conta, e inexistindo quaisquer outros factos, quanto aos bens móveis, que permitam aferir do valor do dano, uma vez que apenas se conhece o valor desses bens sem a existência de quaisquer danos, já não o seu valor após terem sido danificados, sempre a presente ação, de igual modo, nessa parte, pereceria.

Nesta conformidade, por não ter resultado dos factos provados a legitimidade do Autor, procede a pretensão do Apelante, dando-se integral procedência ao recurso e, em consequência, deve a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que considere improcedente, por não provada, a ação, absolvendo-se o Réu do pedido.»

O Recorrente alude ao art. 30º do CPC, considerando que foi violado o disposto neste artigo.

O art. 30º do CPC reporta-se à legitimidade enquanto pressuposto processual, que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor (nº 3 desse artigo). Mas a legitimidade que está aqui em jogo é a legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim à procedência ou improcedência da acção, tal como se esclareceu no Ac. do STJ de 29-10-2015, Rel. Orlando Afonso, Proc. 915/09.0TVPRT.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt:

«I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, é de averiguar em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou; já a legitimidade material consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa».»

 O facto de não se ter concluído pela absolvição da instância, mas pela absolvição do pedido, revela que quando, no acórdão, se fala de legitimidade, se visa a legitimidade substantiva.

O problema que se coloca é o da titularidade do direito violado.

Em anotação ao art. 483º do C. Civil, Pires de Lima e Antunes Varela, relativamente à violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), referem que os direitos subjectivos aqui abrangidos são, principalmente, os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais (Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição (reimpressão), Wolters Kluwer/Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 472).

No acórdão impugnado, refere-se que, para que alguém tenha direito a indemnização, tem de ter sofrido a violação de um direito, tem de ter sido lesado no seu direito e, no caso, o A., estando provado que foi possuidor do imóvel onde se encontravam os móveis que foram objecto dos danos, certo é não ter invocado «a qualidade de proprietário desses bens móveis, aliás, nem qualquer outro título que justifique o direito a indemnização, pelo que efetivamente não resulta dos factos provados que tenha sido o Autor a sofrer os danos causados nos bens móveis identificados e, a ser assim, nunca o mesmo poderia ser o beneficiário da indemnização devida por tais danos». E isto para além de, tendo meramente alegado que era, em 2017, possuidor do imóvel, não ter esclarecido a que título nem aduzido outros factos que permitissem «aferir da legitimidade do Autor para deduzir, também quanto ao imóvel, o correspondente pedido de indemnização civil, designadamente, de que modo foi lesado por tais danos».

O Recorrente refere que sobre o R., proprietário do animal, impende a presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 1, do C. Civil (segundo o qual «quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que  (…) os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua») e que não logrou, confessando os factos, afastar essa presunção. Mas não se pronuncia sobre a questão central que levou o Tribunal da Relação a revogar a sentença e a absolver o R. do pedido, ou seja, não rebate os considerandos constantes do acórdão a propósito de não se poder extrair dos factos provados que tenha sido o Autor a sofrer os danos causados nos bens identificados, isto é, que seja o titular do direito violado, de modo a justificar o recebimento de uma indemnização pelos danos causados.

Independentemente  do apuramento dos concretos danos e respectivo valor (o que não coincide, necessariamente, com o do bem em si, a não ser quando haja perda total), não resultando dos factos provados (desde logo, porque não alegados) que os bens afectados sejam pertença do Autor e, portanto, que este seja o lesado, a quem deva ser paga indemnização, a acção teria de improceder, como se decidiu no acórdão impugnado, pois, ainda que tenham sido confessados os factos alegados pelo Autor, a acção deve ser julgada improcedente «quando o acervo factual, sedimentado em consequência da actuação do efeito cominatório semi-pleno, não for bastante para preencher a fattispecie normativa subjacente ao pedido deduzido» (citado Ac. do STJ de 26-11-2015 , relatado por Lopes do Rego).

Improcede a revista.


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Sumário (da responsabilidade do relator)

1. Quando se consideram confessados os factos, por falta de contestação, a causa é julgada “conforme for de direito” (nº 2, in fine, do art. 567º do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da acção, já que há confissão dos factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semi-pleno.

2. O efeito cominatório semi-pleno, decorrente da situação de revelia operante, apenas determina que se devam ter por confessados os factos que tenham sido efectivamente alegados pelo demandante, os quais se podem revelar insuficientes, no momento da subsunção, tendo em vista a procedência do pedido.

3. Há que distinguir a legitimidade enquanto pressuposto processual (art. 30º do CPC), que se afere pelo modo como a relação controvertida é configurada pelo autor, da legitimidade substantiva ou material, que se prende com a titularidade de um direito, respeitando, assim, ao mérito da causa.

4. Sendo um dos requisitos da responsabilidade civil a violação do direito de outrem (uma das modalidades da ilicitude), é necessário que quem pede que lhe seja paga uma indemnização demonstre ser titular do direito violado, sob pena de se concluir que carece de legitimidade (substantiva) para o efeito.


IV


Pelo que se deixou exposto, julga-se improcedente a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

- Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Lisboa, 18-03-2021


Tibério Nunes da Silva

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo dos Santos Geraldes


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº10º-A de 13.03, aditado pelo DL nº 20/20 de 01.05, o relator declara que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Juízes Conselheiros que compõem este colectivo.

Tibério Nunes da Silva (relator)