Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14/14.3T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: DIREITO DE HABITAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
USUÁRIO
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PROPRIETÁRIOS
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DOS AUTORES. PARCIALMENTE CONCEDIDA A REVISTA DOS RÉUS
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS COISAS / USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO / USO E HABITAÇÃO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 1982, volume I, pág. 404 ; R.L.J, 120.º, p. 151;
- Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, p. 242 e ss.;
- Guilherme de Oliveira, “Notas sobre a Lei n.º 23/2010, de 30-08, Alteração à Lei das Uniões de Facto” in Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 7, n.º 14, Jul/Dez de 2010, p. 140;
- José António de França Pitão, Uniões de Facto e Economia Comum, Almedina, Coimbra, 2011, p. 210 e União de Facto no Direito Português, Regimes Avulsos, Economia Comum, Quid Juris, Lisboa, 2017, p. 234;
- José António França Pitão, União de Facto no Direito Português, Regimes Avulsos, Economia Comum, Quid Juris, Lisboa, 2017, p. 232 e 238;
- Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 2007, p. 425.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 60 e ss. ; Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, p. 528 e ss.;
- Rute Teixeira Pedro, “Breves Reflexões sobre a protecção do unido de facto quanto à casa de morada de família propriedade do companheiro falecido”, Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 309 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º 2 E 1484.º E SS..
PROTECÇÃO DAS UNIÕES DE FACTO, APROVADO PELA LEI N.º 7/2001, DE 11-05.
LEI N.º 23/2010, DE 30-08.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-01-2014, PROCESSO N.º 7244/04.4TBCSC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-11-2015, PROCESSO N.º 10824/06.0TBCSC.L1.S1;
- DE 28-11-2017, PROCESSO N.º 7397/15.6T8LSB.L1.S1.
Sumário :

I - O direito real de habitação, constituído por determinação legal com a morte do membro da união de facto proprietário da casa, é um direito de carácter temporário, sujeito ao regime previsto nos artigos 1484.º e ss., do Código Civil, extinguindo-se por caducidade uma vez atingido o seu prazo.

II – Extinto o direito real de habitação, pelo decurso do prazo de cinco anos, que se havia constituído na titularidade da ré ao abrigo da Lei n.º 7/2001, de 11-05 e em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30-08, não pode este novo regime ser aplicável ao abrigo do artigo 12.º, n.º2, do Código Civil, porque cessada a situação jurídica que o justificava.

III – A permanência da Ré no imóvel por tolerância dos respectivos proprietários não impede a extinção do direito real menor em questão nem tem a virtualidade de o fazer renascer.

IV – Nas situações em que o usuário se encontre a consumir todos os frutos ou a ocupar todo o prédio, o regime das suas obrigações é o do usufruto em função das mesmas razões que justificam que o usufrutuário responda pelos impostos,

V - Tendo a Ré mantido na sua titularidade o direito real de habitação sobre o imóvel, que ocupou na sua totalidade, desde 17-08-2005 até 17-08-2010, impende sobre a mesma a obrigação de suportar o IMI relativo aos anos de 2005 (dado que em 31 de Dezembro desse ano já era titular do mencionado direito), de 2006, de 2007, de 2008 e de 2009, independentemente de o mencionado direito se mostrar ou não inscrito, a seu favor, na matriz.

VI - O direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegitimamente encontra respaldo no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.

VI – A utilização não autorizada e gratuita do imóvel pela Ré após a extinção do direito real de habitação consubstancia uma vantagem patrimonial, ainda que sob a forma de poupança de despesa, com expressão económica no valor locativo do imóvel provado nos autos, enriquecimento obtido com meios ou instrumentos pertencentes a outrem (os autores proprietários).

Decisão Texto Integral:
Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. AA, BB e CC propuseram (em 02-09-2014) acção declarativa contra DD, pedindo que lhes seja reconhecido o direito de propriedade exclusivo sobre imóvel que identificam e a Ré condenada:

a) a restituir-lhes o referido imóvel;

- a pagar-lhes os seguintes montantes:
1. €4.327,76, acrescidos de juros, à taxa legal, contados desde Julho de 2012 até integral pagamento, referente ao montante liquidado em regularização dos processos de execução fiscal que foram instaurados por dívidas de IMI referentes aos anos de 2005 a 2011;
2. €2.754,70, acrescidos de juros, à taxa legal, contados desde Abril de 2014 até integral pagamento, referente a contribuições de condomínio que liquidaram reportadas aos períodos de Novembro de 2010 a Abril de 2014;  ;
b) no pagamento do IMI imputado ao imóvel desde a data da citação para a presente acção até à entrega do imóvel;
c) no pagamento das contribuições ao condomínio devidas pela fracção em causa, desde a data da citação para a presente acção até à entrega do imóvel;
d) no pagamento de €800,00 mensais (a título de indemnização ou de acordo com as regras do enriquecimento sem causa) desde a data da citação para a presente acção até à efectiva devolução do imóvel pela ocupação ilegítima que dele vem fazendo seja;
e) a relacionar o actual recheio da casa, mencionando o que lhe pertence e o que pertenceu ao pai dos Autores, abstendo-se de remover do local estes últimos.

Alegaram para o efeito e fundamentalmente:

- serem proprietários do imóvel, que foi habitado pelo pai dos Autores AA e CC, até ao seu falecimento, ocorrido em 17-08-2005; o qual vivia em união de facto com a Ré;

- ter a Ré, após o óbito do companheiro, continuado a habitar o imóvel, fazendo-o, até 17-08-2010, ao abrigo do direito real de habitação; após tal data e até Abril de 2014, por permissão dos Autores, a título gratuito e sem convenção de prazo, até que lhe fosse exigida a respectiva restituição;

- terem acordado com a Ré que durante o comodato esta se responsabilizaria pelo pagamento das despesas referentes ao imóvel, nomeadamente IMI e contribuições ao condomínio;

- terem, em 30-04-2014, comunicado à Ré a extinção do contrato de comodato informando-a de que deveria proceder à devolução do imóvel até 1 de Julho de 2014;

- ter a Ré recusado entregar o imóvel permanecendo neste sem proceder ao pagamento de qualquer quantia, nomeadamente as despesas inerentes ao mesmo (IMI e condomínio);

- terem realizado os pagamentos referentes às despesas com condomínio, bem como às dívidas às Finanças no âmbito de vários processos de execução fiscal, após terem tido conhecimento de penhora sobre o imóvel a favor da Fazenda Nacional por conta de IMI em dívida.

            Invocando que o valor da renda mensal de fracção idêntica em espaço, estado de conservação e localização não é inferior a €800,00 mensais, concluem no sentido da procedência da acção com condenação da Ré nos pedidos contra si deduzidos.

2. Após citação a Ré contestou defendendo-se por impugnação e por excepção invocando, além do mais, a ilegitimidade dos Autores para peticionarem parte das quantias relativas a IMI e de condomínio por não serem os únicos proprietários do imóvel; prescrição do direito a serem ressarcidos pelo pagamento das quantias relativas a IMI no que respeita às prestações de 2005 até Abril de 2011 e pelo pagamento das quantias relativas a condomínio no que respeita às contribuições de 2010 até Agosto de 2011.

Deduziu reconvenção pedindo:

a) que lhe seja reconhecido o direito de residir no imóvel por constituição do direito de usufruto a seu favor ou, subsidiariamente, com direito de habitação a seu favor ao abrigo do regime da união de facto por morte de EE;

b) condenação dos Autores a pagar-lhe indemnização:

1. a título de danos não patrimoniais, a quantia de €3.000,00, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, desde a sentença condenatória até integral pagamento;

2. a título de danos patrimoniais, a quantia, a liquidar oportunamente, em montante igual ao que a Ré vier a ser condenada a pagar aos Autores nos presentes autos, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, desde a sentença condenatória até integral pagamento;

Subsidiariamente,

- ordenada a compensação do alegado crédito dos Autores sobre a Ré com o seu crédito sobre aqueles relativo ao montante de €3.000,00 por danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação da contestação até integral pagamento.

3. Em resposta os Autores pronunciam-se no sentido da improcedência do pedido reconvencional.

4. Admitido liminarmente o pedido reconvencional e fixado valor à causa, foi proferido saneador tendo sido julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade e de prescrição invocadas pela Ré.

Foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova – fls. 140/143.

5. Realizado julgamento foi proferida sentença (em 16-12-2016) que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores AA e CC sobre o imóvel, condenando a Ré a restitui-lo imediatamente e a abster-se de remover os bens nele existentes pertencentes a EE., absolvendo-a do demais peticionado.

           Julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide relativamente ao pedido atinente à relação de bens e totalmente improcedente o pedido reconvencional com a consequente absolvição dos Autores do pedido.

6. Ré e Autores apelaram da sentença, tendo o tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão (de 21-12-2017), julgado parcialmente procedentes ambos os recursos decidindo nos seguintes termos:

           - Julgar parcialmente procedente a acção, condenando a Ré:

a) a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel;

b) a pagar aos Autores €3.344,46, a título de IMI, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;

c)a pagar o montante relativo ao IMI  desde a data da citação até ao momento em que cesse a sua fruição do mesmo;

d) a pagar aos Autores €350,00 por cada mês decorrido desde a data da citação até à data em que cesse a utilização da casa.

- julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional, condenando os Autores a:

a) a reconhecerem o direito real de habitação da Ré relativamente ao imóvel até 17 de Agosto de 2031.

7. Deste acórdão Autores e Ré recorrem de revista.

7.1 Visando a revogação do acórdão na parte em que reconhece à Ré um direito real de habitação, substituindo-o pela sentença reconhecendo a extinção desse direito com condenação da Ré a devolver-lhes o imóvel, os Autores formularam as seguintes conclusões (transcrição):

A) Os recorrentes não concordam, nem se conformam, com a parte da decisão que os condena a reconhecer um direito real de habitação da Ré sobre o imóvel identificado nos autos.

B) A sucessão dos regimes da união de facto não foi alvo de normas transitórias que regulassem a sua sucessão no tempo, pelo que segue a regra geral do art.º 12º do CC., que consagra o principio da irretroatividade da lei,

C) A aplicação da nova lei ao conteúdo das situações jurídicas existentes à data da sua entrada em vigor deve salvaguardar os efeitos jurídicos já produzidos.

D) O entendimento da Relação de Lisboa não reflete a aplicação da nova lei a uma realidade jurídica pré-existente. Ao contrário, permite a criação de um novo direito formado com a entrada em vigor da nova lei, uma vez que nesta data não subsistia nenhuma situação jurídica à qual a nova lei se pudesse aplicar. O direito da Ré estava já extinto.

E) Ou seja, entre 17 de agosto e 4 de setembro de 2010 os Autores adquiriram a propriedade plena sobre o imóvel e, segundo a decisão recorrida, em 4 de setembro de 2010 é criado na esfera jurídica da Ré um novo direito real de habitação.

F) Ignora a teoria do facto passado consagrada no 12º CC, que exclui da aplicação da nova lei os efeitos já produzidos, nomeadamente a formação na esfera jurídica dos Autores da propriedade plena e a extinção do direito real de habitação a favor da Ré.

G) Quando o art.º 12º n.º 2 CC vem permitir a aplicação da nova lei a realidades jurídicas anteriores à sua publicação, requer que a situação jurídica alvo da nova lei subsista à data da sua entrada em vigor. No caso em análise esta estava já extinta.

H) Após a extinção do direito da Ré, os Autores permitiram que esta permanecesse no imóvel a título gratuito. Fizeram-no porque existiam relações pessoais que o justificavam. Nada nos autos permite concluir que anuência dos Autores na permanência da Ré significou a aceitação de um prolongamento do direito real de habitação a seu favor. A faculdade de permitir o uso da coisa por terceiros insere-se no leque de poderes dos proprietários, sem que tal signifique o consentimento em nova oneração da sua propriedade.

I) Nenhum dos regimes da união de facto que se foram sucedendo no tempo exige dos proprietários qualquer tipo de interpelação para que se verifique o termo do direito real de habitação. A lei é clara: este extingue-se após o decurso do prazo previsto, sejam os cinco anos ou o período idêntico ao da duração da união.

J) O acórdão recorrido, quando impõe aos Autores o ónus de exigir a imediata devolução do imóvel e a consequente desocupação do mesmo pela Ré, acrescenta um ónus sobre os proprietários que o legislador não previu.

K) Ac. S.T.J. no proc. n.º 1267/10.1TBCBR.C1.S1. de 17/10/2013 analisa uma situação de facto próxima da dos presentes autos, mas em que o direito real de habitação do membro sobrevivo ainda vigorava à data da entrada em vigor da nova lei. Consagra o entendimento de que o novo regime não altera o conteúdo do direito real de habitação criado antes da sua entrada em vigor e que a sua aplicação a situações jurídicas pré-existentes deverá sempre respeitar os direitos adquiridos antes da sua vigência. Direitos adquiridos esses onde se inclui o direito de propriedade plena adquirido pelos Autores ainda durante o quadro legal anterior.

L) Por todas as razões acima descritas deverá proceder-se à alteração da decisão de condenar os Autores a reconhecer à Ré um direito real de habitação, substituindo-a por decisão proferida pela primeira instância, reconhecendo a extinção do direito da Ré e condenando-a a devolver a fracção aos Autores.”.

7.2 A Ré insurge-se quanto ao acórdão relativamente ao segmento decisória que a condenou no pagamento dos montantes relativos às prestações de IMI desde 2005 até 2010 e no quantitativo mensal, desde a citação até cessar a utilização da casa. Formulou para o efeito as seguintes conclusões (transcrição):

“A. O Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa enferma de vícios de julgamento, pelo que deve ser parcialmente revogado, nos termos que seguidamente se indicam.

B. O Acórdão recorrido julgou bem a questão relativa ao direito de propriedade dos Autores, bem como a questão relativa ao direito da Ré a residir no Imóvel até 2031, por via do direito que lhe assiste ao abrigo do regime da União de Facto por morte de EE. Por esta razão, estas matérias não serão objeto do presente recurso.

C. O Tribunal da Relação de Lisboa, ao ter condenado a Ré a pagar aos Autores o IMI relativo à fração, liquidado desde 2005 até que cesse a fruição da fração, julgou mal, razão pela qual vem a Ré interpor o presente recurso, pedindo nesta parte a sua revogação.

D. O Tribunal da Relação de Lisboa, ao ter condenado a Ré a pagar aos Autores um quantitativo mensal, desde a citação até que cesse a fruição da fração, julgou mal, razão pela qual vem a Ré interpor o presente recurso, pedindo nesta parte a sua revogação.

            E. EE faleceu em agosto de 2005, pelo que o direito real de habitação a favor da Ré/Recorrente acima referido apenas após esta data se constituiu porque emerge daquele facto.

F. Não existe fundamento legal que permita sustentar a imputação da prestação de IMI relativa ao ano de 2005 à Ré/Recorrente, não existindo fundamento para qualquer sub-rogação dos Autores/Recorridos, nomeadamente porque à data a Ré/Recorrente não beneficiava de qualquer direito real de habitação sobre o Imóvel.

G. O Acórdão recorrido deverá ser revogado nesta parte, por manifesta falta de fundamento legal.

H. Caso assim não se entenda, deverá, pelo menos, ser esta obrigação reduzida na proporção do direito que em agosto daquele ano nasceu na esfera jurídica da Ré (remanescendo 5 meses em 12 meses).  

I. No que respeita às prestações de IMI que se reportam ao período que vai desde a morte de EE até ao ano de 2010 – período durante o qual indiscutivelmente assistiu à Ré um direito real de habitação sobre o imóvel – não existe igualmente fundamento que sustente a sua condenação no pagamento das mesmas.

J. Não resulta do regime do direito real de habitação, nem do artigo 1489.º, n.º 1, do Código Civil, a obrigação da Ré de suportar o IMI relativo à fração. Senão vejamos.

K. O artigo 1489.º tem como epígrafe “Obrigações inerentes ao uso e à habitação” e prevê que se o usuário ocupar todo o edifício, ficam a seu cargo os impostos, como se fosse usufrutuário.

L. A Ré não é proprietária nem usufrutuária da fração e não pode responder nessa qualidade, nunca tendo recebido os avisos para pagamento de IMI por não estar inscrita junto da administração tributária como sujeito passivo deste imposto.

M. Resultou provado nos Autos que (pontos 26, 27 e 28 da matéria provada, indicado a fls. _ do Acórdão recorrido),

“26 - Após a morte de EE, a Ré continuou a residir na casa, sem qualquer oposição, pacificamente e à vista de todos. 

27 – Até Abril de 2014 os AA. nunca reclamaram o imóvel e FF nunca o fez.

28 – E nunca levantaram qualquer entrave a esta situação, nem reclamaram da Ré o pagamento de qualquer contraprestação pela sua permanência no imóvel.”

N. A Ré, não sendo proprietária nem usufrutuária da fração, apenas poderia ser chamada a pagar aquelas quantias a título indemnizatório, com fundamento em responsabilidade extra-contratual que os Autores/Recorridos e/ou a mãe destes, GG, reclamassem da Ré/Recorrente, o que não sucedeu.

O. Decorridos três anos sobre a data em que o IMI liquidado relativo aos anos de 2005 a 2010 poderia ser devido pela Ré sem ninguém dela reclamar esse pagamento, teremos que o direito de indemnização com fundamento na responsabilidade extracontratual está prescrito (artigo 498.º, n. 1 e n.º 2, do Código Civil), prescrição que foi invocada pela Ré e que aqui expressamente se reitera. 

P. Nessa medida, deverá ser julgada verificada a prescrição desse direito indemnizatório e deverá a decisão ser revogada nesta parte, absolvendo a Ré do pedido formulado pelos Autores/Recorridos a este respeito (IMI de 2005 a 2010), bem como deverá ser revogada a decisão na parte em que que condena a Ré no pagamento dos juros vencidos e vincendos sobre as referidas prestações de IMI.

Q. Adicionalmente, o Acórdão recorrido fez uma errada aplicação do direito ao ter condenado a Ré no pagamento aos Autores da quantia de € 350,00 por cada mês decorrido desde a data da citação para a presente ação até à data em que cesse a utilização da casa pela Autora e enferma de manifesta contradição com os fundamentos da decisão na parte em que reconhece à Ré um direito real de habitação relativo à fração, com fundamento no regime da união de facto.

R. Uma vez reconhecido à Ré/Recorrente o direito a residir na casa até 2031 com fundamento no regime da União de Facto conforme tão bem se argumentou no Acórdão recorrido, inexiste qualquer motivo que possa fundamentar o pagamento pela Ré aos Autores da quantia acima referida.

S. A Ré permanece na casa como titular de um direito real de habitação periódica, tendo o Acórdão recorrido reconhecido esse direito à Ré até 2031 sobre a totalidade da fração, sem qualquer restrição.

T. Para sustentar o reconhecimento deste direito e esta condenação, o Tribunal recorrido valora, entre outros elementos, o facto de o exercício, pela Ré, do seu direito real de habitação ter decorrido durante 5 anos e de, após esse período, o direito da Ré ter continuado imperturbado, sem qualquer oposição dos proprietários da casa, durante 4 anos.

U. O Acórdão recorrido reconhece que houve aceitação tácita por parte dos proprietários da casa em relação ao uso da mesma por parte da Ré, o que constitui uma verdadeira prorrogação do prazo do exercício do direito desta.

V. Carece de fundamento a condenação no pagamento de uma indemnização à luz do instituto do enriquecimento sem causa, pois não estão verificados os respetivos pressupostos.

W. A Ré não beneficia de uma vantagem sem causa justificativa, porque a causa justificativa é precisamente o direito real de habitação que lhe assiste e lhe foi legalmente reconhecido, o qual incide sobre a totalidade da fração. 

X. Adicionalmente, não houve um enriquecimento da Ré / Recorrente à custa de outrem, muito menos sem causa justificativa: a Ré exerce um direito que lhe assiste, que vem exercendo a vista de todos, pacificamente e sem oposição, o que – como resultou provado nos Autos e vem invocado expressamente na própria decisão recorrida – consubstancia uma prorrogação do prazo de exercício do direito por parte da Ré.

Y. Neste contexto, nenhuma obrigação impende sobre a Ré de pagar a mencionada quantia aos Autores, devendo a decisão ser revogada nesta parte.

Z. A propriedade integral da fração, para o período que nesta sede releva – desde a citação – pertence aos Autores e pelo o direito real de habitação pertence à Ré/Recorrente e os filhos daquele não têm qualquer legitimidade para receber da Ré qualquer quantia pela utilização de ½ da fração, muito menos a título de enriquecimento sem causa.

AA. A condenação no pagamento do referido quantitativo mensal contende, igualmente, com a condenação da Ré a pagar aos Autores os montantes relativos ao IMI do período de 2011 até cessar a ocupação da fração.

BB. A condenação no pagamento do IMI desde a data da citação até cessar a fruição do imóvel pressupõe que a Ré use plenamente o mesmo.

CC. No caso, a dupla condenação – no pagamento do IMI e no pagamento de uma quantia a título de enriquecimento sem causa pela ocupação de ½ da fração – representam uma sobrecarga da Ré e um ganho dos Autores sem qualquer justificação e incompatível entre si.

DD. A aceitar-se esta solução – o que apenas por hipótese de raciocínio se concede – teria que considerar-se que o montante a pagar a título de enriquecimento sem causa consumiria o IMI na proporção, sob pena de a Ré estar a pagar em dobro: pagar por usufruir e pagar os custos de uma fruição plena que afinal não lhe assistiria, ou melhor, só lhe assistiria se por ela pagasse. É uma duplicação que torna os fundamentos destes segmentos da decisão inconsistentes e incompatíveis entre si.

EE. Também por esta razão, deve a decisão ser revogada nesta parte, absolvendo-se a Ré do pedido de pagamento de uma quantia pelo exercício válido de um direito – que lhe é conferido por lei e reconhecido pela decisão recorrida – o de habitar a fração ao abrigo de um direito real de habitação até 2031.”.     

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:


ð Recurso dos Autores: extinção do direito real de habitação e seus efeitos
ð Recurso da Ré:   1.obrigação da Ré pagar os montantes    despendidos a título de IMI e respectivos juros;
2. obrigação da Ré pagar quantitativo mensal pela ocupação do imóvel.
1.1 Os factos provados

1. Mostra-se inscrita no registo predial a aquisição a favor dos AA. AA, casado com BB, no regime da comunhão de adquiridos, e CC, na proporção de '/2 cada um, da fracção autónoma, designada pela letra M do prédio urbano sito na Rua …, n.° 2, …. ..., descrito na 2a C.R. Predial de ... sob o n.° … da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias de ... e ... sob o artigo …, antigo artigo ... da extinta freguesia de ..., por partilha por óbito de HH e por doação de FF.

2. HH faleceu em 17 de Agosto de 2005, no estado de casado, mas separado de pessoas e bens de II.

3. O imóvel foi habitado por HH até ao seu falecimento.

4. Com HH vivia a Ré, DD, como se de marido e mulher se tratasse.

5. Desde 17 de Agosto de 2005 que a Ré habita em exclusividade a totalidade da fracção em causa.

6. De 17 de Agosto de 2010 e até Abril de 2014 os Autores AA e CC permitiram que a Ré continuasse a habitar o imóvel, a título gratuito.

7. Em dia não concretamente apurado do mês de Abril de 2014 o primeiro autor contactou telefonicamente a Ré no sentido de lhe exigir a devolução do imóvel no prazo de dois meses.

8. A Ré não devolveu a casa.

9. Sobre 1/2 do imóvel identificado em 1 foi registada penhora (de 04/04/2012) a favor da Fazenda Nacional no valor de 3.941,02€, no âmbito da execução fiscal n.° ..., por conta de IMI em dívida.

10. Por dívidas decorrentes de IMI relativo ao imóvel supra identificado corriam os processos de execução fiscal abaixo descriminados:
ü ..., instaurado em 22/05/2006; quantia exequenda 291,90 € acrescida de juros de mora de 98,78 € e custas de 107,25 €; referente à 1ª prestação de IMI de 2005. Total em dívida: 497,93 €;
ü ..., instaurado em 25/10/2006; quantia exequenda 291,90 € acrescida de juros de mora de 98,78 € e custas de 7,25 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2005. Total em dívida:397,93€;
ü ..., instaurado em 20/05/2007; quantia exequenda 291,90 € acrescida de juros de mora de 98,78 € e custas de 7,25 €; referente à 1ª prestação de IMI de 2006; Total em dívida: 397,93€;
ü ..., instaurado em 29/10/2007; quantia exequenda 291,90 € acrescida de juros de mora de 98,78 € e custas de 7,25 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2006; Total em dívida:397,93 €;
ü ..., instaurado em 03/06/2008; quantia exequenda 262,71 € acrescida de juros de mora de 88,98 € e custas de 6,73 €; referente à 1ª prestação de IMI de 2007; Total em dívida: 358,42 €;
ü ..., instaurado em 31/10/2008; quantia exequenda 262,71 € acrescida de juros de mora de 88,98 € e custas de 6,73 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2007; Total em dívida:358,42 €;
ü ..., instaurado em 29/05/2009; quantia exequenda 227,14 € acrescida de juros de mora de 67,81 € e custas de 6,11 E; referente à 1ª prestação de IMI de 2008; Total em dívida:301,06€.
ü ..., instaurado em 01/11/2009; quantia exequenda 227,13 € acrescida de juros de mora de 56,46 € e custas de 31,61 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2008; Total em dívida: 315,20€;
ü ..., instaurado em 26/05/2010; quantia exequenda 227,14 € acrescida de juros de mora de 40,57 € e custas de 6,11 €; referente à lª prestação de IMI de 2009; Total em dívida: 273,82€;
ü ..., instaurado em 24/10/2010; quantia exequenda 227,13 € acrescida de juros de mora de 29,22 € e custas de 6,11 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2009; Total em dívida: 262,46 €;
ü ..., instaurado em 24/05/2011; quantia exequenda 227,14 € acrescida de juros de mora à data de 17,65 € e custas de 6,11 €; referente à 1ª prestação de IMI de 2010; Total em dívida: 250,90 €;
ü ..., instaurado em 24/11/2011; quantia exequenda 227,13 € acrescida de juros de mora à data de 10,87 € e custas de 19,10 €; referente à 2ª prestação de IMI de 2010; Total em dívida: 257,10€;
ü ..., instaurado em 25/05/2012; quantia exequenda 227,14 acrescida de juros de mora à data de 2,86 € e custas de 21,20 €; referente à lª prestação de IMI de 2011; Total em dívida: 251,00 €.

11. Perante o risco de perder o referido imóvel que se encontrava já penhorado, em 11 de Julho de 2012, procederam os Autores AA e CC ao pagamento de 3.812,00 € referentes às dívidas objecto das execuções fiscais ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ....

12. Em 22/10/2012 pagaram os Autores AA e CC o montante de 260,75 € relativos à execução ....

13. E em 30/10/2012 pagaram os Autores AA e CC o montante de 255,01 € relativos à execução ....

14. Em data não apurada do primeiro trimestre do ano de 2014 o primeiro autor foi contactado pelo administrador do condomínio onde se localiza a fracção acima referida, Sr. JJ, reclamando este o pagamento das comparticipações devidas ao condomínio relativas ao período compreendido entre Novembro de 2010 e Abril de 2014 acrescido de um prémio de seguro obrigatório, perfazendo o total de 2.754,70 C.

15.No dia 17 de Abril de 2014 os Autores AA e CC pagaram o referido montante de 2.754,70 e .

16. A Ré nunca reembolsou os Autores dos valores acima referidos.

17. A fracção acima identificada tem (de origem) 6 assoalhadas (duas delas, entretanto, unidas), três casas de banho, encontra-se em bom estado de conservação, e situa-se a cerca de 15 minutos do centro de Lisboa.

18. O valor da renda mensal de fracção idêntica em espaço, estado de conservação e localização é de € 600-800,00 € mensais.

19. O primeiro Autor não tem casa própria e habita com a sua família numa fracção emprestada pela sua mãe e padrasto a título de favor.

20. O seu agregado familiar inclui a sua esposa, BB, um filho menor, fruto de uma relação anterior, que janta e dorme na casa paterna várias vezes ao longo da semana; e outro filho menor, fruto de outra relação, que visita e dorme na casa paterna esporadicamente.

21. A Ré viveu com EE, como se marido e mulher fossem, durante 26 anos, na fracção identificada em 1, pacificamente, à vista de todos, sem qualquer interferência da comproprietária inscrita no registo.

22. E sem que esta tivesse deles reclamado o pagamento de qualquer quantia ou contribuição, a título de renda, custos, encargos ou qualquer outro.

23. EE foi acometido de uma doença súbita em meados de 2005, que determinou a sua morte imediata.

24. EE havia estado doente uns anos antes, em data não concretamente apurada, situação que determinou o seu internamento e a realização de uma intervenção cirúrgica à próstata.

25. Nessa altura, EE receava que algo sério lhe acontecesse em virtude da intervenção cirúrgica.

26. Após a morte de EE, a Ré continuou a residir na casa, sem qualquer oposição, pacificamente e à vista de todos.

27. Até Abril de 2014 os AA. nunca reclamaram o imóvel e FF nunca o fez.

28. E nunca levantaram qualquer entrave a esta situação, nem reclamaram da Ré o pagamento de qualquer contraprestação pela sua permanência no Imóvel.

29. A determinado momento o Autor AA contactou a Ré a respeito dos custos inerentes ao Imóvel.

30. A R. pagou € 500,00 (quinhentos euros) directamente ao condomínio do Edifício onde se insere o Imóvel, por conta da contribuição devida pelo Imóvel.

31.A Ré é artista de profissão.

32.      A R. aufere quantia não concretamente apurada, a título de reforma, e suporta encargos fiscais e outros, em montante não apurado.

33. A saúde da Ré encontra-se debilitada, necessitando de cuidados médicos.

34. Quando possível, a Ré realiza alguns trabalhos como artista.

35. No início de 2014, tendo recebido informação dos Autores de que havia condomínio em dívida relativo ao imóvel, a Ré dirigiu-se ao Administrador do Condomínio propondo um plano de pagamento, que não foi aceite.

36. Confrontada com o contacto do Autor AA, mencionado em 7 supra, enviou aos AA. uma carta em 30 de Julho de 2014, com o teor de fls. 87, que se dá aqui por reproduzido.

37. A Ré não dispõe de casa própria onde possa residir.

38. Tem um filho que reside no Reino Unido.

39. A R. está preocupada e ansiosa com as consequências da presente acção, nomeadamente quanto à questão de habitar a casa.
1.2  Os factos não provados

a) Os AA. AA e CC e a Ré acordaram que a Ré continuasse a residir na fracção após 17 de Agosto de 2010, sem convenção de prazo, até que aqueles lhe viessem exigir a respectiva restituição.

b) Acordaram os referidos Autores e a Ré que, enquanto durasse esse acordo, continuaria a cargo desta última o pagamento das despesas referentes ao imóvel, nomeadamente IMI e contribuições ao condomínio.

c) O telefonema mencionando em 7 ocorreu no dia 30 de Abril, na presença e com a concordância do Autor CC - provando-se outrossim o que consta desse item.

d) Os AA. tiveram conhecimento da penhora referida em 9 supra em Junho de 2012.

e) A Ré nunca alertou os proprietários do imóvel para o facto de o IMI não ser pago.

f) O pagamento referido em 11 supra ocorreu em 31/07/2012 — provando-se outrossim o que consta desse item.

g) A Ré, contactada pelos AA., disse que não tinha dinheiro para proceder ao pagamento dos valores referidos em 10 supra.

h) Na sequência do contacto referido no item 14 supra, no dia 26 de Março, na presença e com a concordância do autor CC, o primeiro autor telefonou à Ré insurgindo-se pela existência daquela divida e pelo facto da mesma não ter sido comunicada a si ou ao seu irmão, e exigiu o seu pagamento com a maior brevidade possível.

i) Mais uma vez, a ré respondeu que não tinha dinheiro para pagar tal montante.

j) O primeiro Autor, com a concordância do autor CC, transmitiu à Ré que, caso não pagasse, teria que sair do imóvel e restituí-lo aos proprietários.

k) A Ré comprometeu-se a contactar o administrador do condomínio até dia 30 de Março de 2014, no sentido de com ele acertar uma forma de pagamento da divida, evitando o recurso a uma acção judicial contra os autores para cobrança da mesma.

1) Decorridas cerca de três semanas sem noticias, o primeiro Autor voltou a contactar o Administrador do condomínio que manifestou grande relutância em acordar com a ré qualquer forma de pagamento faseado da divida por não ter confiança no seu cumprimento,

m) Acrescentou ainda que a ultima conversa sobre este assunto que teria tido com a Ré ocorreu numa ocasião em que se cruzaram no elevador em que esta lhe perguntou apenas se os autores tinham já pago a divida.

n) A fracção tem arrecadação, uma área coberta de cerca de 150 m2, e situa-se na zona nobre de ....

o) O filho mais novo do A. AA dorme em casa deste em fins -de -semana alternados.

p) A fração emprestada ao A. AA tem como destino a venda ou o arrendamento e deverá ser devolvida pelo primeiro Autor com a maior brevidade.

q) Aquando da separação do casal EE e FF, e por efeito da divisão de bens entre ambos realizado, o imóvel foi atribuído exclusivamente a EE.

r) FF encarregou um advogado de concretizar este acordo no registo, o que não chegou a efetivar-se.

s) EE sempre agiu como único proprietário da totalidade do imóvel.

t) Actuação que era pública e acompanhada regularmente por FF, sem qualquer oposição, limitação ou reclamação.

u) Neste pressuposto, EE sempre manifestou a vontade de atribuir à Ré direito sobre o imóvel de modo a assegurar que ela ali permaneceria mesmo após a sua morte,

v) E até mesmo a intenção mais concreta de sobre o imóvel constituir usufruto a favor da Ré.

w) O que fez em diversas ocasiões, na presença de familiares e amigos próximos, nos quais se incluem os agora Autores.

x) Tal devia-se, entre outros motivos, ao facto de durante os longos vinte e seis anos que viveram em união de facto, ser a Ré quem aportava fundos ao casal para sustentar a vida de ambos, pois EE tinha dificuldades, por via da sua profissão, em aceder a um rendimento consistente com as necessidades financeiras de uma vida familiar.

y) Também por isso EE entendia ser seu dever contribuir para a estabilidade da Ré caso a morte dele ocorresse primeiro que a morte desta.

z) EE não teve oportunidade de formalizar este seu intento.

aa) Quando esteve doente e foi sujeito a intervenção cirúrgica, em meados de 2004, na presença de familiares e amigos próximos, EE manifestou a intenção de constituir um usufruto sobre o Imóvel a favor da Ré ou de, por alguma forma, permitir que o Imóvel lhe fosse atribuído para que esta aí permanecesse após a sua morte.

bb) Para esse efeito e antes mesmo de ser hospitalizado, dirigiu ao seu filho AA —advogado e Autor — uma carta onde exprimia esta sua vontade.

cc) Essa carta foi entregue por EE ao seu filho AA, ora A., na casa que aquele partilhava com a Ré, à frente de familiares, acompanhada da especial menção da sua intenção e preocupação, no sentido de que, caso lhe acontecesse alguma coisa, confiava ao A. AA a regulação de uma situação, fosse usufruto ou outra, que conferisse à Ré o direito a residir na casa de família de ambos até à morte desta.

dd) O A. AA — conhecedor da intenção de seu Pai e da carta que este lhe havia dirigido — encetou os procedimentos tendentes à constituição do citado usufruto, em consonância com a vontade manifestada por seu pai.

ee) O A. AA, na sua qualidade de advogado, encarregou-se de conduzir o processo de forma a constituir o direito de usufruto, tendo, para o efeito, solicitado à Ré que esta reunisse um conjunto de documentação que entendia ser necessária para este fim.

ff) A Ré recolheu toda essa documentação e entregou-a em mão no escritório do Autor AA para que este desse seguimento ao processo.

gg) Quando por diversas vezes foi interpelado pela Ré ou pelo filho desta sobre a constituição do usufruto, o Autor AA confirmava sempre que estava a tratar do assunto.

hh) A determinada altura o A. AA manifestou à Ré que estaria com algumas dificuldades financeiras e que, por essa razão, necessitava da colaboração da Ré para suportar alguns custos relativos ao imóvel, nomeadamente relativos a IMI e a condomínio.

ii) A Ré nunca recebeu diretamente quaisquer comunicações ou avisos para pagamentos de IMI ou condomínio, as quais eram dirigidas ao titular do Imóvel.

jj) Apenas ficou a saber da existência de montantes em pagamento quando o Autor AA lhe dirigiu pontualmente pedidos de ajuda.

kk) A Ré entregou ao Autor AA € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) em dinheiro para ajudar a satisfazer o pedido que aquele lhe dirigiu relativo ao pagamento de IMI em dívida, em 2012.

ll) A R. aufere, em resultado de um somatório de três prestações de reforma, a quantia de € 1.890,36 mensais — provando-se, outrossim, o que consta do item 32 supra.

mm) A Ré, em sede de liquidação de IRS, tinha a pagar cerca de € 2.000,00 (dois mil euros) de imposto no fecho de cada ano fiscal.

nn) A Ré tem que efetuar pagamentos de prestações por dívidas à Administração Fiscal, decorrentes de anos de maior dificuldade em que a Ré não pôde cumprir com todas as suas obrigações.

oo) A Ré paga mensalmente cerca de € 230,00 (duzentos e trinta euros) em prestações de acordos vigentes com a Administração fiscal.

pp) A isto acresce uma outra dívida pendente à administração fiscal, que nesta data ascende a € 2.217,38 (dois mil duzentos e dezassete euros e trinta e oito cêntimos),

qq) Bem como um pagamento mensal de cerca de € 270,00 (duzentos e setenta euros) no âmbito de um financiamento contraído com a Caixa Geral de Depósitos.

rr) Feitos os devidos pagamentos, a Ré fica com uma disponibilidade mensal de apenas € 1.390,00 (mil trezentos e noventa euros) para a sua vida quotidiana.

ss) Dos quais tem que reservar o montante adequado ao pagamento da citada liquidação de IRS anual de cerca de € 2.000,00 (dois mil euros).

tt) A R. tinha à data da contestação 79 anos de idade.

uu) O pagamento das quotas do condomínio não foi possível porque o administrador disse ter instruções dos proprietários do imóvel para não aceitar da Ré qualquer pagamento, por esta não ser proprietária do mesmo.

vv) Depois do telefonema do A. AA mencionado em 7 supra, a R. foi surpreendida com uma visita do Autor CC, que já dentro de sua casa começou a tirar fotografias do seu interior, informando a Ré de que se destinavam a entregar a uma imobiliária para pôr o imóvel à venda.

ww) Nessa visita, o Autor CC referiu verbalmente à Ré que, caso pretendesse continuar na casa, deveria pagar uma renda mensal de € 800,00 (oitocentos euros) a começar no mês seguinte.

xx) A R. não tem família directa nas proximidades que a possa acolher.

yy) Uma filha da R. reside na ....

zz) O Imóvel que não foi objeto de quaisquer obras de manutenção nos últimos 40 anos.

aaa) A promessa de constituição de usufruto, acrescida do facto de a sua permanência no Imóvel nunca ter sido contestada, criou na Ré a convicção de que o seu direito em ali habitar estava amplamente consolidado.

bbb) Os Autores optaram por protelar a constituição do usufruto, anunciando reiteradamente que estava em curso o inerente processo constitutivo, assim criando na R. a convicção de que o direito a habitar o imóvel estava acautelado.

ccc) A R. vive na angústia de ter que abandonar a sua casa de 34 anos aos 79 anos de idade, tem vivido uma ansiedade extrema, por não saber o que será do seu futuro e se terá casa onde residir nos tempos próximos — provando-se, outrossim, o que consta do item 39 supra.

ddd) A Ré sofreu um extremo desgosto com a actuação dos Autores que são pessoas por quem a Ré nutre um extremo apreço.

eee) Esta actuação dos Autores — que consigo viveram uma parte importante da sua vida — trouxe-lhe uma tristeza profunda e uma desilusão por não poder neles depositar confiança.


2. O direito

Recurso dos Autores

2.1 Da extinção do direito real de habitação

            Através da presente acção visam os Autores o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel identificado nos autos[1] e a restituição do mesmo pela Ré por carecer de título para aí continuar a habitar.

Mostra-se incontroverso no processo quer o reconhecimento do direito de propriedade dos Autores AA e CC sobre a identificada fracção, quer o facto de a Ré ter vivido em união de facto com HH, pai dos Autores, durante 26 anos e até ao falecimento deste, ocorrido em …-2005.

Igualmente resulta pacífico ter a Ré beneficiado do direito real de habitação sobre o imóvel uma vez que este constituiu a casa de morada comum da união de facto com o falecido AA EE.

A questão pois que permanece controvertida e que foi objecto de decisões divergentes por parte das instâncias reporta-se à duração do direito real de habitação da Ré e às consequências da alteração legislativa operada pela Lei n.º 23/2010, de 30-08, no referido direito.

Com efeito, em dissonância do entendimento da 1.ª instância, que considerou que o direito real de habitação de que a Ré beneficiou pelo prazo de cinco anos, se extinguiu em 17-08-2010, aplicando à situação a versão inicial da Lei n.º 7/2001, de 11-05, a Relação concluiu que o direito da Ré apenas se extinguirá em 17-08-2031 por ter duração, não de cinco anos, mas igual à da união de facto (26 anos), nos termos da Lei n.º 23/2010, de 30-08.  

O acórdão recorrido alicerçou a aplicabilidade da nova Lei (artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 23/2010, de 30-08) no regime que resulta do artigo 12.º, n.º2, 2ª parte, do Código Civil, fazendo relevar para o efeito a circunstância de o exercício do direito real de habitação da Ré ter subsistido no momento em que aquela lei entrou em vigor. Assim, a decisão sob censura inconsiderou a circunstância de o prazo de cinco anos do direito real de habitação da Ré, previsto pela lei anterior, se ter completado antes da entrada em vigor da lei nova, fazendo acento tónico para a subsistência do mesmo no facto dos Autores não se terem oposto à permanência da Ré no imóvel, mantendo imperturbada a situação jurídica da Ré.

Insurgem-se os Autores contra este posicionamento defendendo a inaplicabilidade da nova Lei em respeito ao princípio da irretroactividade da lei ínsito no artigo 12.º, n.º1, do Código Civil.

Invocam a seguinte ordem de argumentos:

- o direito da Ré já se encontrava extinto à data da entrada em vigor da lei nova pelo decurso do respectivo prazo de cinco anos;

- os regimes da união de facto que se sucederam no tempo não previram normas transitórias;

- não subsistindo qualquer situação jurídica à data da entrada em vigor da nova lei, não podia esta ser aplicada sob pena de violação do princípio da não retroactividade;

- a lei não exige qualquer interpelação do proprietário para que se verifique o termo do direito real de habitação em causa, o qual ocorre pelo decurso do respectivo prazo;

- a permissão de conceder a terceiro o uso gratuito de imóvel constitui uma faculdade inserida no leque de poderes dos proprietários, que, no caso, não teve por efeito prolongar um direito que se extinguiu, nem significou consentimento de uma nova oneração do direito de que são titulares.

Desde já se adianta que lhes assiste razão.

Vejamos.

2.1.1 Fruto do aumento de formas diversas de organização familiar, o nosso ordenamento jurídico tem vindo progressivamente a reconhecer diversos efeitos jurídicos à relação daqueles que vivem em união de facto.

Surgiu, assim, primeiramente, a Lei n.º 135/1999, de 28-08, que adoptou medidas de protecção da união de facto, seguindo-se-lhe a Lei n.º 7/2001, de 11-03 (que revogou a primeira) e, por fim, a Lei n.º 23/2010, de 30-08 (que alterou a segunda).

A evolução dos efeitos reconhecidos à união de facto, conforme transparece da sequência dos diplomas legais que a regulam, redundou, sem dúvida, na ampliação e reforço da eficácia jurídica dessas relações factuais caracterizadas pela comunhão de vida e vivência análogas à comunhão conjugal. Todavia, continua a acolher-se, neste domínio, uma protecção fragmentária e especialmente dirigida a cenários de crise em que as debilidades dos seus membros se concretizam ou manifestam com mais intensidade. É, então, nesses momentos que se torna necessária a ingerência jurídica através de «soluções de tipo «assistencial» [2].

Retira-se dos regimes que se foram sucedendo no tempo que embora se reconheça a quem vive em união de facto um conjunto de direitos semelhantes ao dos cônjuges, entende-se, também, que o espaço de não institucionalização que caracteriza a união de facto não deve ser posto em causa.

Certo é que, sendo a união de facto, no essencial, uma coabitação com comunhão de vida, um dos domínios em que o legislador, desde cedo, sentiu necessidade de intervir foi precisamente na protecção da casa de morada do casal, dado que, embora os membros da união de facto habitem a mesma casa, normalmente a titularidade do direito sobre ela – propriedade ou arrendamento – pertence apenas a um deles, causando uma situação de desprotecção total em caso de ruptura ou de cessação da união de facto, seja por separação do casal em vida, seja por morte de um deles.

Previa, assim, o artigo 3.º, da Lei n.º 7/2001, de 11-05, como já sucedia no regime pretérito (cf. artigo 3.º da revogada Lei n.º 135/99, de 28-08) o direito a Protecção da casa de morada de família nos termos da presente lei (alínea a)).

Concretizando essa protecção, dispunha, o artigo 4.º, n.º 1, da citada Lei n.º 7/2001 que Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a mesma, e, no mesmo prazo, direito de preferência na sua venda.

A este direito real de habitação (já conferido pela Lei n.º 135/99 e que, com a Lei n.º 7/2001, foi apenas alvo de pequenas alterações) subjaz a necessidade de colmatar a desprotecção decorrente da circunstância de o membro sobrevivo da união de facto não ser herdeiro do membro falecido dessa união e sendo este o proprietário da casa de morada comum, em caso de óbito, aquele ficaria totalmente desprotegido. Nessa medida e por não ser conveniente equipar, em termos sucessórios, a união de facto ao casamento, o legislador quis encontrar uma solução de equilíbrio conferindo o aludido direito real de habitação pelo prazo de cinco anos, contado do óbito, período de tempo tido por suficiente para não introduzir uma mudança brusca na vida do unido de facto sobrevivo[3].

Ao invés do que sucedeu com a Lei n.º 7/2001 (que apenas introduziu pequenas alterações no regime que já se mostrava consagrado desde 1999), a Lei n.º 23/2010, de 30-08, veio alterar mais profundamente o quadro normativo em matéria de protecção da casa de morada de família, reforçando a tutela conferida ao unido de facto sobrevivo quando o seu companheiro fosse proprietário da casa de morada comum.

Assim, passou a estatuir no artigo 5.º:

1 - Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da cada de morada de família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.

2 - No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união.

3 - Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo.

4 - Excepcionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar os prazos previstos nos números anteriores considerando, designadamente, cuidados dispensados pelo membro sobrevivo à pessoa do falecido ou a familiares deste, e a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa.

5 - Os direitos previstos nos números anteriores caducam se o interessado não habitar a casa por mais de um ano, salvo se a falta de habitação for devida a motivo de força maior.

6 - O direito real de habitação previsto no n.º 1 não é conferido ao membro sobrevivo se este tiver casa própria na área do respectivo concelho da casa de morada da família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes.

7 - Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respectivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações.

8 - No caso previsto no número anterior, na falta de acordo sobre as condições do contrato, o tribunal pode fixá-las, ouvidos os interessados.

9 - O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título.

10 - Em caso de morte do membro da união de facto arrendatário da casa de morada da família, o membro sobrevivo beneficia da protecção prevista no artigo 1106.º do Código Civil.

Da análise dos regimes legais resulta que o direito real de habitação sobre a casa de morada comum conferido ao membro sobrevivo da união de facto tinha, de acordo com a versão inicial da Lei n.º 7/2001, de 11-05, a duração de cinco anos, fixada para todas as situações. Porém, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30-08, tal direito passou a não estar sujeito a esse prazo, surgindo agora o período de cinco anos apenas e tão só como prazo mínimo de duração do direito, que pode vigorar por muitos mais anos (tantos quantos tiver durado a união de facto), tutelando-se, dessa forma, mais eficazmente a continuidade do lar em que os membros da união de facto viveram[4] .

Seja à luz de um regime ou de outro, o que importa reter é que se trata de um direito real menor, de carácter temporário, limitado pelo fim (posto que tem como medida as necessidades do seu titular e respectiva família), estando sujeito ao regime previsto nos artigos 1484.º e ss., do Código Civil, designadamente no que concerne à sua extensão, constituição e formas de extinção[5].

E, de facto, constituindo-se e extinguindo-se os direitos de uso e habitação pelos mesmos modos que o usufruto, dúvidas não restam de que os mesmos se podem constituir por disposição de lei (tal como sucede por força do regime da união de facto que se vem analisando), extinguindo-se, além do mais, quando chegado o termo do prazo pelo qual foram conferidos (artigos 1440.º, e 1476.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, do Código Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 1485.º do mesmo Código).

Assim, o direito real de habitação constitui-se por determinação legal (e, portanto, sem necessidade de reconhecimento judicial) com a morte do membro da união de facto proprietário da casa, extinguindo-se por caducidade uma vez atingido o seu prazo – seja ele o prazo fixo de cinco anos ou o prazo igual ao da duração da união[6]

2.1.2 Tendo em conta a diversidade dos regimes instituídos pela Lei n.º 7/2001 e pela Lei nº 23/2010 (que alterou, sublinhe-se, a primeira no que se reporta à duração do direito real de habitação do membro sobrevivo da união de facto), cabe determinar qual delas se mostra aplicável ao caso sob apreciação. Para tal efeito e dado que a Lei nº 23/2010 não contém quaisquer disposições transitórias especiais, a solução há-de ser encontrada nas normas gerais que regem a aplicação da lei no tempo.

Dispõe o n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil que A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

Acrescenta, por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito que Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Como já salientado, o n.º 1 do referido preceito consagra o princípio geral da não retroactividade das leis, no sentido de que a lei só se aplica para o futuro. E mesmo que se aplique para o passado – eficácia retroactiva – presume-se que há a intenção de respeitar os efeitos jurídicos já produzidos[7].

Todavia o n.º 2 da citada norma ressalva as situações em que esteja em causa o conteúdo de relações jurídicas relativamente às quais seja indiferente o facto que lhes deu origem, caso em que a lei nova já lhes será aplicável sempre que subsistam quando da entrada em vigor desta.

Nestas situações, denominadas de execução duradoura (por contraposição às de execução instantânea) e segundo Inocêncio Galvão Telles, a sua permanência no tempo justificava a aplicação da lei nova por forma a poder estabelecer-se o equilíbrio entre os interesses em jogo, melhor realizando o ideal da segurança e da justiça, não se cometendo, nessa medida, o pecado jurídico da retroactividade[8].

Por conseguinte, quando uma lei nova passa a disciplinar para o futuro de forma diversa o conteúdo de certo direito ou de certa relação jurídica, abstraindo do seu facto gerador, ter-se-á de entender que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor, a menos que a própria lei contenha uma disposição especial de direito transitório[9].

No caso, conforme já realçado, a lei nova não contém qualquer disposição transitória.

Decorre dos factos apurados (pontos n.ºs 2, 3, 4, 5, 6 e 21 dos factos provados) que o imóvel em causa nos autos foi habitado por HH até ao seu falecimento (ocorrido em 17-08-2005), sendo que até essa data e durante 26 anos a Ré viveu nesse imóvel com o referido EE em condições análogas às de cônjuges. Após o falecimento daquele a Ré continuou a habitar a fracção, agora em exclusividade, tendo os Autores AA e CC, a partir de 17-08-2010 e até Abril de 2014, permitido que a Ré continuasse a habitar o imóvel, a título gratuito.

Perante tal factualidade e compaginando-a com a natureza e regime do direito real de habitação nos termos acima expendidos, evidencia-se que, em 17-08-2005, na data do falecimento de EE, encontrando-se em vigor a Lei n.º 7/2001, de 11-05, constituiu-se na titularidade da Ré o direito real de habitação sobre a fracção em causa nos autos (que era a casa de morada comum do casal unido de facto) pelo prazo de cinco anos (prazo contado do óbito do referido membro da união de facto) o que significa que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, da Lei então vigente, a Ré beneficiaria desse direito até 17-08-2010.

Conforme salientado, a duração do direito real de habitação veio a ser alterada, nos termos supra expostos, pela Lei n.º 23/2010, de 30-08.

Todavia, quando a lei nova entrou em vigor[10], em 04-09-2010, já o direito real de habitação sobre a casa de morada comum de que a Ré havia beneficiado (pelo prazo de cinco anos contado desde o óbito de HH) se mostrava extinto, pelo decurso do prazo, desde 17-08-2010.

Consequentemente, não subsistindo tal direito à data da entrada em vigor da lei nova, não pode, naturalmente, esta ser aplicável a um direito já então inexistente[11].

Contrariamente ao considerado no acórdão recorrido, o facto de a Ré ter continuado a residir no imóvel depois de 17-08-2010 e de, até Abril de 2014, os Autores terem permitido a sua permanência no imóvel, a título gratuito, em nada altera a situação uma vez que tal factualidade não tem a virtualidade de fazer renascer um direito extinto pelo decurso do prazo pelo qual foi conferido[12].

Verifica-se pois que a situação de facto mantida por tolerância dos proprietários do imóvel não impede a extinção (nem faz ressurgir) do direito real menor em questão, carecendo de cabimento legal o entendimento sufragado no acórdão recorrido no sentido de que tal tolerância fáctica fez “prorrogar o prazo do exercício desse direito”, o qual, de resto e tal como resulta expressamente do disposto nos artigos. 1485.º, e 1293.º, alínea b), do Código Civil, nem sequer é susceptível de ser adquirido por usucapião.

Consequentemente, a solução encontrada no acórdão recorrido no sentido de estar em causa uma “situação jurídica” que subsistia à data da entrada em vigor da lei nova não encontra respaldo na lei[13].

Extinto o direito real de habitação da Ré sobre o imóvel no domínio da lei anterior e não lhe sendo, por isso, aplicável a lei n.º 23/2010, não dispondo aquela de título válido para aí continuar a habitar, impõe-se-lhe o dever de restituir o imóvel aos Autores CC e AA, proprietários do mesmo (cfr. artigo 1311.º, do Código Civil).

Procedem, por isso, as conclusões das alegações.

Recurso da Ré

2.2 Da obrigação de pagar os montantes despendidos a título de IMI e respectivos juros

Entendeu o acórdão recorrido a este respeito impender sobre a Ré a obrigação de suportar os custos a título de IMI. Invocou para o efeito os artigos 1489.º, n.º 1, do Código Civil e 8.º, n.º 3, do Código de Imposto Municipal sobre Imóveis, sustentando que não faria sentido que a mesma usufruísse das vantagens de habitar a fracção cuja propriedade pertence aos Autores e serem estes a suportar tais custos.

Nesse pressuposto concluiu que tendo os Autores procedido ao pagamento das aludidas quantias devidas a título de IMI, que eram já objecto de execuções fiscais, ficaram sub-rogados nos direitos do credor nos termos do artigo 592.º, do Código Civil, ainda que apenas na parte relativa ao imposto (que perfaz o montante total de € 3.344,46 a reembolsar pela Ré), tendo excluído a obrigação de restituição dos juros e as custas dos processos por não haver prova de que aquela tenha sido notificada para pagar o IMI; como tal, considerou o aresto que não lhe poderia ser assacada responsabilidade pela mora no respectivo pagamento e pela consequente instauração das execuções fiscais.

Rebela-se a Ré quanto a esta decisão fundada na seguinte ordem de argumentos:

- não poder se responsabilizada pelo pagamento do IMI referente ao ano de 2005 (ou ver a sua responsabilidade reduzida na proporção do direito que em Agosto de 2005 nasceu na sua esfera jurídica - 5 em 12 meses) por não ter beneficiado de qualquer direito real de habitação sobre o imóvel até Agosto de 2005 (data do óbito de EE);

- enquanto titular de um direito real de habitação não lhe poderem ser devidas as prestações de IMI desde Agosto de 2005 por tal obrigação não resultar do disposto no artigo 1489.º do CC.

Sustentando que apenas poderia ser chamada a pagar essas quantias a título indemnizatório com fundamento na responsabilidade extracontratual, invoca a tal título a prescrição do direito dos Autores nos termos do artigo 498.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, por não terem reclamado esse pagamento até à propositura da acção.

Conclui dizendo que, verificada a inexigibilidade do direito, deve ser igualmente revogada a decisão recorrida na parte em que a condenou a pagar os juros de mora desde a citação até integral pagamento.

2.2.1 No que toca à excepção de prescrição que neste âmbito a Ré vem reiterar, cabe realçar que a mesma foi expressamente conhecida e julgada improcedente no despacho saneador (proferido em 17-04-2015) o qual, não tendo sido objecto de recurso, transitou em julgado, não podendo este tribunal voltar a apreciar tal questão nesta sede (artigos 595.º, n.º 1, alínea b), 619.º, n.º 1, do CPC).

Importa, por conseguinte, apreciar apenas a questão de saber se recai sobre a Ré a obrigação de reembolsar os Autores dos montantes por eles pagos a título de IMI e juros desde a citação.

Dispõe o artigo 1489.º, n.º 1, do Código Civil, que Se o usuário consumir todos os frutos do prédio ou ocupar todo o edifício, ficam a seu cargo as reparações ordinárias, as despesas de administração e os impostos e encargos anuais, como se fosse usufrutuário.

Decorre, por sua vez, do artigo 8.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, que o imposto é devido pelo usufrutuário que, em 31 de Dezembro do ano a que o imposto respeitar, figure ou deva figurar na matriz ou, na falta de inscrição, quem em tal data tenha a posse do prédio.

A mesma regra resulta do artigo 1474.º do Código Civil, que rege para o usufruto, aí se prevendo que a responsabilidade pelo pagamento do imposto recai sobre quem for titular do usufruto no momento do vencimento.

Resulta pois que, contrariamente ao que se encontra previsto em outros ordenamentos jurídicos[14], o legislador nacional, elegendo como critério para aferir da responsabilidade pelo pagamento do imposto o da titularidade do direito ou o da posse do imóvel no momento do vencimento daquele entendeu não se justificar qualquer divisão ou proporção[15].

Verificando-se que esta regra se mostra transponível para o direito de uso e habitação atento o que nesse sentido estatuem os artigos. 1489.º, n.º 1 e 1490.º do Código Civil, forçoso é concluir que não assiste razão à Ré quando defende que não é responsável pelo pagamento do IMI relativo aos primeiros meses do ano de 2005 e muito menos quando sustenta que, não sendo usufrutuária, não tem de suportar qualquer pagamento de IMI.

Com efeito, quando no artigo 1489.º, n.º 1, do Código Civil, se preceitua que ficam a cargo do usuário os impostos e encargos anuais como fosse usufrutuário, não se está, naturalmente, a querer dizer que aquele tem de ter esta última qualidade, posto que para o direito de usufruto já rege o artigo 1474.º, do Código Civil, e este direito não se confunde com o direito de habitação.

O que, na verdade, se prevê no normativo em questão é que se o usuário consumir todos os frutos ou ocupar todo o prédio, o regime das suas obrigações é o do usufruto em função das mesmas razões que justificam que o usufrutuário responda pelos impostos nos apontados termos.

Aliás, é esta a solução que decorre cristalinamente do artigo 1490.º, do Código Civil, ao mandar aplicar aos direitos de uso e habitação o que se dispõe quanto ao usufruto, quando conciliável com a sua natureza[16].

Consequentemente, tendo a Ré mantido na sua titularidade o direito real de habitação sobre o imóvel, que ocupou na sua totalidade, desde 17-08-2005 até 17-08-2010, impende sobre a mesma a obrigação de suportar o IMI relativo aos anos de 2005 (dado que em 31 de Dezembro desse ano já era titular do mencionado direito), de 2006, de 2007, de 2008 e de 2009, independentemente de o mencionado direito se mostrar ou não inscrito, a seu favor, na matriz[17].

Assim sendo, tendo-se presente a factualidade provada sob os ponto n.ºs 9 a 11, tal como concluído no acórdão recorrido, mostra-se legítimo o direito de sub-rogação que os Autores visam exercer através da presente acção relativamente aos pagamentos de IMI, encontrando-se a Ré adstrita a reembolsar aqueles nos termos do artigo 592.º, n.º 1, in fine, do Código Civil, limitada, de acordo com o supra exposto, ao IMI dos anos de 2005 a 2009, no montante total de € 2.601,56, ao qual acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Procedem assim, parcialmente, as conclusões da revista na parte concernente ao IMI do ano de 2010 e dos anos subsequentes, soçobrando quanto ao restante.

2.3 Da obrigação da Ré pagar quantitativo mensal pela ocupação do imóvel:

Rebela-se a Ré contra o segmento do acórdão recorrido que a condenou a pagar aos Autores, a título de indemnização pela utilização do imóvel e até esta cessar, a quantia mensal de 350,00 €.

Tal condenação mostra-se alicerçada no instituto do enriquecimento sem causa tendo o acórdão recorrido entendido que, ocupando a Ré a casa na sua totalidade e encontrando fundamento o seu direito real de habitação (dado que a protecção da união de facto só se aplica à parte da casa que pertencia ao falecido, comproprietário juntamente com GG, em partes iguais) apenas em relação a ½ do imóvel em questão, ocorre um enriquecimento injustificado da sua parte à custa do outro comproprietário e/ou dos seus sucessores do imóvel.

Discorda a Ré sustentando que ao lhe ser reconhecido um direito real de habitação sobre o imóvel com fundamento no regime da união de facto não se verificam os pressupostos do enriquecimento sem causa uma vez que a causa justificativa para a sua vantagem reside, precisamente, no facto de lhe assistir esse direito sobre a totalidade do imóvel e não apenas sobre uma parte do mesmo.

2.3.1 Na sequência do posicionamento assumido ao conhecer do recurso dos Autores (o direito real de habitação de que a Ré beneficiou ao abrigo do regime da união de facto mostra-se extinto desde 17-08-2010), evidencia-se que a permanência da Ré no imóvel carece de causa, pelo menos, desde Abril de 2014 (data até à qual os autores permitiram que a mesma aí continuasse a habitar a título gratuito – cf. ponto 6. dos factos provados).

Partilhamos o entendimento daqueles que defendem que o direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegitimamente pode encontrar respaldo no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.

No caso, impondo-se a este tribunal acatar o concluído pela 1ª instância quanto à inexistência de prejuízo susceptível de fundar a obrigação de indemnizar com base em responsabilidade civil, não fica excluída a possibilidade de a situação assumir cabimento no instituto do enriquecimento sem causa desde que verificados os respectivos pressupostos.

O enriquecimento sem causa, enquanto fonte autónoma de obrigações, encontra-se previsto no artigo 473, n.º1, do Código Civil, onde se dispõe: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

De acordo com o referido preceito, constituem pressupostos (cumulativos) do instituto: existência de um enriquecimento; que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem; ausência de causa justificativa.

O enriquecimento traduz-se na vantagem ou valorização de ordem patrimonial, podendo ser alcançado por várias formas (aumento do activo, diminuição do passivo, poupança de despesas).

Quanto à ausência de causa justificativa, não definindo a lei o conceito de causa do enriquecimento, há que ter em conta o estatuído no n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil, segundo o qual “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou[18].

Embora tendo presente que a noção de causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte,[19] é possível formular uma linha directriz quanto à noção de enriquecimento injusto. Assim e conforme refere Antunes Varela, o enriquecimento é injusto porque, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro[20].              

É sobre o autor que impende o ónus de alegar e demonstrar a falta de causa do enriquecimento enquanto requisito do direito à restituição, não bastando para o efeito que se não prove a existência de uma causa de atribuição patrimonial.

Se a delimitação dos conceitos de enriquecimento e de ausência de causa justificativa não tem suscitado especial controvérsia na doutrina e na jurisprudência, a determinação do sentido de obtenção do enriquecimento à custa de outrem, entendido enquanto exigência de empobrecimento, não é pacífica.

Independentemente das concepções doutrinais que pretendem explicar o instituto em referência, é possível afirmar que, tradicionalmente, o empobrecimento como requisito do enriquecimento sem causa é identificado com o conceito de diminuição patrimonial (dano em sentido próprio[21]).

Nesta concepção, o enriquecimento de alguém era causal de uma desvantagem patrimonial de outrem, pelo que se impunha a demonstração da deslocação patrimonial, ou seja, a exigência da prova da efectiva diminuição patrimonial como elemento indispensável da obrigação de restituição.

Nas situações de uso e fruição de bens alheios o entendimento da deslocação patrimonial em sentido estrito reconduzindo, na prática, à inaplicabilidade do instituto, passou a ser entendido com um alcance paralelo ao do lucro cessante exigindo-se, como requisito da obrigação de restituição, a verificação de uma “ausência de ganho” na esfera do empobrecido.

Ainda assim tal concepção era limitativa pois que não poderia abranger todas as situações que urgia contemplar, designadamente as denominadas de enriquecimento por intervenção e enriquecimento por prestação, sendo que, ao socorrer-se da noção de dano (na modalidade de lucro cessante) do domínio da responsabilidade civil, determinava o esvaziamento do conteúdo do instituto, desvirtuando a sua própria função.

A evolução da doutrina e da jurisprudência apontaram, por isso e necessariamente, para a omissão do dano do âmbito do enriquecimento sem causa na medida em que a sua finalidade tem por relevo central reprimir o enriquecimento injustificado e não o de compensar danos sofridos[22] .

Assim, o requisito legal à custa de outrem não pode assumir o conceito de diminuição patrimonial, ainda que sob a forma de lucro cessante, enquanto exigência de um empobrecimento causal ao enriquecimento, antes deverá ser definido, conforme refere Menezes Leitão, como a imputação do enriquecimento à esfera de outra pessoa, sendo essa imputação que justifica que alguém tenha de restituir o enriquecimento que se gerou no seu património[23].

Uma vez que tal imputação pode resultar de diversas formas, não está em causa um conceito unitário, tendo configuração e relevância diversas nas várias categorias de enriquecimento sem causa, podendo mesmo ser dispensado no enriquecimento por prestação (...) não se podendo continuar a apresentá-lo como um pressuposto unitário deste instituto (...) o que leva a reconhecer que é precisamente o conceito de enriquecimento o facto aglutinador deste instituto.[24]            

Nesta mesma linha de pensamento se insere o entendimento defendido por Antunes Varela ao reportar-se às situações de uso e fruição de direitos reais, designadamente ao caso de permanência ilegítima em casa alheia, levando-o a concluir que Tudo quanto estes bens sejam capazes de render ou produzir pertence, em princípio (...) ao respectivo titular. A pessoa que, intrometendo-se nos bens jurídicos alheios, consegue vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular do respectivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos donde a vantagem procede[25].

Por conseguinte, há que interpretar o conceito legal enriquecimento à custa de outrem com o alcance de vantagem patrimonial (reservada ao titular do direito segundo o conteúdo da destinação desse direito) obtida com meios ou instrumentos pertencentes a outrem.

2.3.2 Na situação dos autos, na sequência do concluído, a ocupação do imóvel pela Ré mostra-se ilegítima, pelo menos desde Abril de 2014, sendo que a utilização não autorizada e gratuita que a mesma dele faz consubstancia uma vantagem patrimonial, ainda que sob a forma de poupança de despesa, com expressão económica demonstrada nos autos (valor locativo do imóvel de 600€/800€ mensais - ponto n.º18 da matéria de facto provada).

Encontra-se pois provado o enriquecimento da Ré.

No que se refere ao requisito do enriquecimento à custa de outrem, sabendo-se que o seu alcance não se identifica necessariamente com a noção de empobrecimento, no sentido de desvantagem patrimonial há também que concluir pela sua verificação.

Com efeito, na sequência do posicionamento assumido no que se reporta à interpretação do conceito legal à custa de outrem, estando em causa a utilização de um bem alheio, propriedade dos Autores AA e CC, não obstante não ter sido apurada nos autos uma diminuição do património destes ou mesmo uma privação de aumento do respectivo património através da rentabilização do imóvel em causa, há que considerar que a vantagem patrimonial da Ré foi obtida à custa do proprietário do imóvel, neste caso, dos referidos Autores.

Conclui-se pois que ocorreu por parte da Ré uma vantagem patrimonial (decorrente do uso e fruição do imóvel que, segundo o conteúdo da destinação do direito de propriedade, estava reservada aos Autores proprietários do imóvel) obtida com meios ou instrumentos pertencentes a outrem, ou seja, à custa destes.

Tal vantagem patrimonial decorrente do uso feito pela Ré tem expressão pecuniária tendo em conta o valor locativo demonstrado nos autos - 600€-800€ mensais[26].

E se é certo que a expressão valorativa de tal vantagem deveria ser encontrada no ponto médio dos valores apurados, uma vez que os Autores se conformaram, quanto ao montante indemnizatório[27] fixado no acórdão recorrida (tendo sido apenas a Ré que contra o mesmo se insurgiu), não pode agora a decisão a proferir neste âmbito mostrar-se mais desfavorável (à Recorrente) do que a decisão recorrida, como impõe a proibição de reformatio in pejus plasmada no artigo 635.º, n.º 5, do CPC.

De acordo pois com esta limitação há que fixar a obrigação de restituir da Ré no valor mensal de € 350,00 (correspondente ao seu enriquecimento) que será devido desde a citação até à restituição aos Autores da fracção autónoma identificada nos autos.

Consequentemente, ainda que por fundamento não de todo coincidente, cabe manter, no que assume cabimento, a decisão recorrida, improcedendo, nesta parte e em conformidade, as conclusões da revista.

           

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista dos Autores e parcialmente procedente a revista da Ré.
Consequentemente:
a) revoga-se o acórdão recorrido:
1. quanto ao segmento decisório em que condenou os Autores a reconhecerem o direito real de habitação da Ré sobre o imóvel até 17-08-2031, repristinando, nessa parte, a sentença proferida, julgando, por isso, improcedente o pedido reconvencional dele absolvendo os Autores e condenando a Ré a restituir imediatamente o identificado imóvel;
2. quanto ao segmento decisório em que a condenou a Ré no pagamento do IMI referente à fracção relativo aos anos de 2010 e subsequentes até que cesse a fruição daquela, absolvendo a Ré do pedido em conformidade;
b) alterar o acórdão condenando a Ré:
1. a pagar aos Autores o montante de €2.601,56 (dois mil seiscentos e um euro e cinquenta e seis cêntimos), acrescido dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, referente às quantias de IMI dos anos de 2005 a 2009;
2. no pagamento aos Autores da quantia de €350,00 (trezentos e cinquenta euros) por cada mês decorrido desde a data da citação para a presente acção até à data da restituição do imóvel aos Autores.
Custas da acção pelos Autores e Ré na proporção do respectivo decaimento.
Custas do recurso pelos Autores (1/3) e pela Ré (2/3).


Lisboa, 23 de Maio de 2019

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

_____________________
[1] Fracção autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao … do prédio urbano sito na Rua ..., n.º …, em ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias de ... e … sob o artigo ….º, correspondente ao antigo artigo ….º da extinta freguesia de ....
[2] Rute Teixeira Pedro, “Breves Reflexões sobre a protecção do unido de facto quanto à casa de morada de família propriedade do companheiro falecido”, Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 309 e ss; no mesmo sentido, Guilherme de Oliveira, “Notas sobre a Lei n.º 23/2010, de 30-08, Alteração à Lei das Uniões de Factoin Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 7, n.º 14, Jul/Dez de 2010, p. 140.
[3] Cfr. exposição de motivos do regime jurídico da união de facto (Projecto de Lei n.º 527/VII, Diário da Assembleia da República, II Série – A, n.º 54, pp. 1176 e 1177) e José António França Pitão, União de Facto no Direito Português, Regimes Avulsos, Economia Comum, Quid Juris, Lisboa, 2017, p. 232.
[4] Neste sentido, Guilherme de Oliveira, obra citada, p. 145.
[5] Cfr. José António de França Pitão, Uniões de Facto e Economia Comum, Almedina, Coimbra, 2011, p. 210 e União de Facto no Direito Português, Regimes Avulsos, Economia Comum, Quid Juris, Lisboa, 2017, p. 234; e Rute Teixeira Pedro, obra citada, p. 319.
[6] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 2007, p. 425.
[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 60 e ss
[8] Introdução ao estudo do direito, volume 1, 5ª tiragem, Lisboa, 1993, p. 220.
[9] Cf. Antunes Varela, R.L.J, 120.º, p. 151.
[10] Artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11-11.
[11] Entendimento sufragado por este tribunal em situações similares cfr. Acórdão de 14-01-2014, Processo n.º 7244/04.4TBCSC.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[12] Repare-se que, aplicando-se ao direito de uso e habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à sua natureza, tal significa que findo esse direito, o usuário fique obrigado a restituir a coisa ao proprietário (artigo 1483.º, do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1490.º, do mesmo Código).

E compreende-se que assim seja, porquanto, como sublinham a este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, desaparecendo o direito menor a propriedade deixa de estar por ele limitada e recupera, imediatamente, ipso iure, a sua plenitude, devendo por isso regressar ao titular da coisa o uso e fruição desta. A lei não se limita a permitir ao proprietário a recuperação da posse, com a consequente obrigação negativa para o usuário, antes impõe a este uma obrigação positiva de entrega (obra citada, pp. 544, 552 e 553).

[13] Diferente seria se, à semelhança dos casos apreciados pelo STJ nos acórdãos de 17-11-2015 (revista n.º 10824/06.0TBCSC.L1.S1) e de 28-11-2017 (Revista n.º 7397/15.6T8LSB.L1.S1), o prazo de cinco anos previsto na lei antiga (Lei n.º 7/2001, de 11-05) estivesse ainda em curso quando, em 04-09-2010, entrou em vigor a lei nova (Lei n.º 23/2010, de 30-08), caso em que, efectivamente, seria esta última a aplicável, por força do disposto no artigo 297.º, n.º 2, do Código Civil.

Ensina, a esse propósito, Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, p. 242 e ss.), que a norma constante do artigo 297.º, n.º 2, do Código Civil, não passa de uma aplicação directa dos critérios gerais de direito transitório. Com efeito, tendo o decurso global do prazo o valor de um facto constitutivo (ou extintivo) de um direito ou situação jurídica, se tal prazo ainda não se achava em curso no momento de início de vigência da lei nova é porque tal situação jurídica ainda não se achava constituída (ou extinta) nesse momento. Logo cabe à lei nova a competência para determinar os requisitos de constituição dessa situação jurídica.

O mesmo é dizer que a aplicação da lei nova pressupõe que o prazo ainda não se tenha iniciado ou que, tendo-se iniciado, se encontre ainda em curso quando a lei nova entra em vigor, posto que só nesse caso se pode concluir que a situação jurídica ainda não se mostrava extinta nesse momento.
[14] Cfr. o artigo 1008.º, do Código Italiano que manda repartir os impostos pro rata temporis entre o proprietário pleno e o usufrutuário, relativamente ao ano em que começa e ao ano em que cessa o usufruto,
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, p. 528 e ss
[16] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, obra citada., pp. 423 e 424. Note-se que tal solução tem sido defendida pela doutrina no sentido de impender sobre o membro sobrevivo da união de facto o dever de liquidar o IMI correspondente ao período de duração do seu direito (cfr José António França Pitão, União de Facto no Direito Português, Regimes Avulsos, Economia Comum, Quid Juris, Lisboa, 2017, p. 238).
[17] Relativamente ao IMI relativo ao ano de 2010 e aos anos subsequentes, tendo em conta a extinção do dito direito real de habitação em 17-08-2010, deixou de haver fundamento para a responsabilizar pelo pagamento do imposto na medida em que à data de 31 de Dezembro de 2010 nenhum direito existia já na sua titularidade.
[18] Enumeração não taxativa de situações que determinam a obrigação de restituir.  
[19] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 1982, volume I, pág. 404.
[20] Obra citada, pág. 408
[21] Contudo o conceito de dano é diverso do entendido no âmbito da responsabilidade civil, pois que nesta sede o mesmo corresponde à “frustração de uma utilidade que era objecto da tutela jurídica, devendo a indemnização ser estabelecida através da reconstituição dessa utilidade (artigo 562.º, do Código Civil) ou mediante a alteração da situação patrimonial actual do lesado para a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil). No âmbito do enriquecimento sem causa, pelo contrário, o empobrecimento era tradicionalmente entendido como a perda resultante da deslocação de um bem entre dois patrimónios, sendo assim determinável mediante critérios distintos dos que vigoravam para a responsabilidade civil, cuja aplicação estava excluída, mesmo por analogia” – O enriquecimento sem causa no direito civil, Menezes Leitão, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 176, pág. 864.    
[22] Menezes Leitão, obra citada, p. 876.
[23] Obra citada, p. 876.
[24]Menezes Leitão, obra citada, pp. 876/877.
[25] Obra citada, p. 414.
[26] Imóvel com 6 assoalhadas, que se encontra em bom estado de conservação e se situa a cerca de 15 minutos de Lisboa – ponto n.º 17. dos factos provados).
[27] Ainda que com diverso fundamento não totalmente coincidente porquanto apenas reportado a ½ do imóvel tendo subjacente o direito real de habitação da Ré quanto ao restante ½ do imóvel.