Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7/15.3YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: RECURSO CONTENCIOSO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
DEVER DE OBEDIÊNCIA
DEVER DE URBANIDADE
ACORDO ORTOGRÁFICO
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTENCIOSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
ORGANIZAÇÃO JUDICIARIA - ESTATUTOS PROFISSIONAIS / MAGISTRADOS JUDICIAIS.
Doutrina:
- Ettore Morone, Impiego Publico,Novissimo Digesto Italiano, III,Unione Tipografico, Editore Torinense, p. 275.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 203.º, 217.º, N.º1.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 4.º.

Sumário :

I - O CSM tem competência disciplinar, mas não dirige a função jurisdicional exercida pelos juízes, não estando estes subordinados a ordens ou instruções do CSM no exercício da actividade de julgar (cf art. 4.º do EMJ e art. 203.º da CRP).
II - Circunscrevendo-se, no caso em apreço, o âmbito da função jurisdicional à solicitação do relatório social actualizado do arguido à DGRS. Extravasa-se o âmbito dessa função, quando se impõe a não adopção de acordo ortográfico na elaboração desse relatório. O objecto da prossecução processual (relatório com vista à aplicação de um cúmulo) nada tinha a ver com as normas e princípios constitucionais concernentes ao uso de acordo ortográfico.
III - Os juízes têm independência para interpretar a CRP e a lei; mas nem tudo o que possam escrever nos autos constitui necessariamente aplicação do direito. Sobre o manto da função jurisdicional não podem estar incluídas posições pessoais estranhas ao objecto do processo, por isso se conclui que a concreta actuação do recorrente não se insere no âmbito da função jurisdicional.
IV - O CSM não é um órgão hierárquico, inexistindo portanto qualquer elo de dependência funcional no que tange ao exercício da actividade jurisdicional, mas sendo o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está legitimado a dar orientações genéricas em termos de gestão e organização do serviço dos tribunais, as quais têm que ser acatadas pelos juízes.
V - Aos juízes é devida efectiva obediência à deliberação do CSM de 23-04-2012, segundo a qual os mesmos “não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar”, sendo certo que se tem por líquido que a expressão “intervenientes processuais” assume um sentido amplo, abrangendo não só os sujeitos processuais (ou as partes), como todos os demais que a qualquer título intervêm no processo.
VI - O juiz ao impor à DGRS a elaboração do relatório social do arguido sem adopção de acordo ortográfico, violou o dever de obediência.
VII - O dever de correcção não é só compaginável quando existe um carácter ofensivo da honra ou dignidade.
VIII - As expressões utilizadas pelo recorrente como “desconhecimento das leis que nos regem” como também “incapacidade de leitura”, são excessivas, desnecessárias e nada têm a ver com a finalidade visada com o despacho, questionando a capacidade profissional e intelectual da visada –, tendo por isso de se ter como violado o dever de correcção, na medida em que este tem que ser aferido como um dever objectivo correlacionado com a necessidade e proporcionalidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça

1- AA, Juiz ..., notificado da deliberação do Conselho Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM), de 11 de Novembro de 2014, que decidiu aplicar-lhe a pena disciplinar de advertência registada, veio dela interpor recurso contencioso com os seguintes fundamentos:

- Pela deliberação impugnada foi decidido aplicar ao Recorrente a pena de advertência registada, pela violação dos deveres de obediência e correcção.

- A decisão consubstanciou-se nos factos já constantes da Acusação.

- O Recorrente, embora a respeite, discorda da apreciação feita pela douta deliberação impugnada, na medida em que considera não se verificar o tipo objectivo do ilícito, designadamente por se tratar de questão jurisdicional da competência reservada aos tribunais.


2 - Para tanto e em síntese alegou que
- Vem o Recorrente condenado por “violação (…) dos deveres de obediência e correcção, p. e p. pelos artigos 82º, 85º, nº 1 a) e nº 4, parte final e 91º do EMJ, artigos 3º, nº 2, alíneas f) e h) e nºs 8 e 10º do EDTEFP, aprovado pela Lei 58/2008 de 09/09”.
- Considera, assim, a Acusação que o Recorrente violou, ao actuar como actuou, o princípio da independência dos juízes (artigo 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – EMJ), o dever de prossecução do interesse público [artigo 3º, nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas - EDTFP], o dever de obediência [artigo 3º, nº 2, alínea f), do EDTFP] e o dever de correcção [artigo 3º, nº 2, alínea h), do EDTFP].
- Salvo o devido respeito, porém, nenhuma das apontadas violações se verifica.
- Quanto à alegada violação do princípio da independência dos juízes, o Recorrente agiu, precisamente, sob a sua égide, de acordo com a interpretação que fez das normas e princípios mencionados no seu despacho proferido no âmbito do processo nº 384/12.8PATVD, transcrito no ponto 16 da douta Acusação.
- Na verdade, tendo em conta que o artigo 4º do EMJ define o princípio da independência como o princípio segundo o qual os magistrados julgam “apenas segundo a Constituição e a lei, não estando sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso pelos tribunais superiores”, não poderá considerar-se que o (suposto) incumprimento da douta deliberação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) de 23.04.2012 violou esse dever.
- Por outro lado, é este mesmo princípio que não admite que os magistrados estejam vinculados pelo dever de obediência, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea f), do EDTFP, para os trabalhadores que exercem funções públicas.
- Nesse sentido, diz o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.12.2012, proferido no âmbito do processo nº 75/12.0YFLSB, disponível em www.dgsi.pt, que “como reverso da independência dos juízes, não há relação de hierarquia por parte do CSM em relação à actividade jurisdicional dos juízes, não estando estes subordinados ao poder de direcção do CSM em matéria jurisdicional. Enquanto os órgãos da administração pública têm uma supremacia hierárquica em relação aos seus agentes e funcionários, que se manifesta num poder de direcção da actividade e numa competência disciplinar (e no correspondente dever de obediência dos agentes administrativos), o CSM tem apenas competência disciplinar, mas não dirige a função jurisdicional exercida pelos juízes. Estes não estão subordinados a ordens ou instruções do CSM no exercício da actividade de julgar”.
- Ora, no caso, como se disse, tratando-se de um despacho proferido no exercício da actividade jurisdicional do Recorrente, não se vislumbra de que forma estaria o Recorrente vinculado ao cumprimento da douta deliberação do CSM já referida.    
- Na verdade, o que aqui ora releva é que a apreciação em causa da douta deliberação impugnada consubstancia uma verdadeira apreciação da interpretação da lei feita pelo Recorrente.         
- Porém, repete-se, o controlo da sua actuação nesta matéria reveste natureza jurisdicional, não sindicável pelo CSM, estando por essa razão subtraída às atribuições estritamente administrativas desta entidade.
- Na verdade, refere o artigo 203º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
- Por sua vez, tal preceito constitucional é concretizado pelo artigo 4º do EMJ que estatui “[o]s magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.”
- Refere ainda o artigo 5º do já mencionado Estatuto, sob a epígrafe “Irresponsabilidade”, que “[o]s magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões”, sendo que apenas nos casos especialmente previstos na lei podem ser sujeitos a responsabilidade civil, criminal e disciplinar.
- Ou seja, as decisões dos Magistrados Judiciais, nomeadamente a aplicação e interpretação do direito, apenas estão sujeitas ao escrutínio dos tribunais superiores, estando, por isso, afastadas da análise disciplinar de qualquer superior hierárquico.
- Assim, no caso em apreço, estamos perante uma apreciação, em sede disciplinar, da interpretação do direito feita pelo Recorrente, o que é inadmissível, salvo o devido respeito, face aos preceitos constitucionais e legais já citados.
- Carece, por isso, o CSM de legitimidade para, sob o prisma da apreciação da responsabilidade disciplinar, conhecer do mérito daqueles despachos.
- Assim sendo, a apreciação dos factos relatados não se insere na competência do CSM, que, nos termos do artigo 217º da CRP, inclui a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar, o que determina, no caso em apreço a nulidade da douta deliberação ora impugnada, que desde já se requer seja declarada.
- Sendo, por essa razão, inconstitucional a interpretação contrária a este entendimento, violadora daquele artigo 217º da CRP, salvo o devido respeito, feita pela douta deliberação impugnada.
- No mesmo sentido, aliás, foi o relatório final do inquérito, que propôs o arquivamento dos presentes autos, no âmbito do qual se referiu que “concorde-se ou não com os fundamentos que invoca para sustentar a inconstitucionalidade, por se tratar de matéria de natureza jurisdicional, não cabe no âmbito dos presentes autos de inquérito, apreciar o mérito da referida decisão. Trata-se de despachos judiciais, proferidos no âmbito de processos pendentes dos quais, por ter recusado a aplicação das normas constantes da aludida Resolução nº 8/2011, cabia recurso, obrigatório para o Ministério Público, para o Tribunal Constitucional (artigo 280º, nº 1, alínea a), da C.R.P.)” – cfr. fls. 329 e 330 dos autos.
- Ainda que assim não se entenda, isto é, ainda que se entenda que o ora Recorrente se encontrava vinculado ao cumprimento da douta deliberação do CSM de 23.04.2012, hipótese que apenas se coloca para efeitos meramente argumentativos e sem conceder, sempre se dirá que, efectivamente, o Recorrente não colocou em causa o cumprimento da referida douta deliberação.
- Na verdade, tendo em conta que a referida douta deliberação, como se refere no ponto 21 da douta Acusação, deliberou que “(…) os Exm.ºs Juízes não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar” e tendo em conta que a Direcção Geral dos Serviços Prisionais (DGSP), que elabora os relatórios sociais, a solicitação do magistrado titular do processo, não se enquadra nesta categoria, não existiu, no caso, violação da mesma. Neste sentido, foi, igualmente, o relatório final do inquérito que considerou que “[a] citada deliberação do C.S.M. ainda que possa ter pretendido ter um alcance mais alargado, refere-se apenas aos “intervenientes processuais”.  Deixa de fora, ainda que possa ter pretendido ter um alcance mais abrangente, as entidades que colaboram com o Tribunal, designadamente a DGRSP. Não pode, pois, concluir-se que o Exmo. Juiz tenha violado o dever de obediência à referida deliberação do C.S.M.” – cfr. fls. 329 dos autos.
- Vem o Relatório Final, a este propósito, e justificando a alteração da posição tomada em sede de Relatório de inquérito, considerar que «reanalisando o teor da deliberação do Plenário do C.S.M. de 23-04-2012, tendo em conta não só o seu teor, mas também o contexto e os motivos que a determinaram o seu sentido e alcance é mais abrangente do que aquele que numa interpretação que admito ter sido excessivamente restritiva da expressão “intervenientes processuais” constante da segunda parte da dita deliberação, na altura lhe atribui. Revendo, nessa parte, a posição inicial temos como mais adequada e plausível a interpretação de que a dita deliberação, além de ter clarificado que não podia indicar ou dar instruções aos Srs. Juízes sobre a observância ou não do Acordo Ortográfico, veio esclarecer que os Srs. Juízes também não podiam indicar ou impor a quem tenha intervenção nos processos que tramitam, independentemente da qualidade em que o façam, quais as normas ortográficas a aplicar”.
- Ora, não só tal interpretação não tem correspondência com a letra do despacho (que decidiu que “…os Exmo.ºs Juízes não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar”) como não é expectável que o CSM, na qualidade de órgão de natureza jurisdicional, composto por Juízes e personalidades do mundo jurídico, façam uso de uma determinada expressão, sem que a mesma se reporte ao seu conceito jurídico, mas antes a um uso mais abrangente.
- Quanto à alegada violação do dever de prossecução do interesse público, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea a), do EDTFP, não se vislumbra – sequer vem concretizado no douto Relatório Final, que se impunha nos termos e para os efeitos do artigo 117º, nº 1, do EMJ – como é que o mesmo possa ter sido posto em causa.
- Sendo certo que o Recorrente sempre se pautou pelo seu cumprimento e foi precisamente este interesse público que o moveu ao proferir os despachos que proferiu, com vista à defesa da legalidade, da Constituição e do património da Língua Portuguesa.
- Finalmente, quanto à alegada violação do dever de correcção, previsto no artigo 3º, nº 2, alínea h), do EDTFP, e que “consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos”, de acordo com o nº 10 do referido artigo 3º, apesar de se individualizar o segmento que se entende ter ferido tal dever, salvo o devido respeito, não se considera que o mesmo possa ter sido posto em causa, ainda mais quando, como já referido, se trataram de despachos proferidos no âmbito jurisdicional.
- Nesse sentido, e dada a sua relevância, há que ter em conta a argumentação do voto de vencida da Senhora Conselheira, a Senhora Dra. BB, no âmbito do qual se fez a seguinte declaração de voto:
“Salvaguardando o elevadíssimo respeito devido pela tese que fez vencimento, considero que os despachos que estão na origem do sancionamento disciplinar do Senhor Juiz, relativos a processos de presos, correspondem a despachos de prossecução processual. Reconheço que tais despachos, no que toca à rejeição do uso de acordo ortográfico pelos órgãos da administração, recorrem a uma linguagem indesejável, mas envolvem uma concreta interpretação normativa que lhes confere um conteúdo jurisdicional. Nos dois processos em causa, o Senhor Juiz solicitou à DGRS a elaboração de relatórios sociais, com a menção de que os mesmos deveriam ser elaborados em português, sem erros ortográficos, sob pena de não serem pagos, chegando, num deles, a devolver àquela entidade o relatório social enviado para cumprimento do despacho proferido.
Entendo que tais despachos têm um conteúdo jurisdicional, por serem praticados pelo tribunal para decidir questões jurídica relativas a casos concretos de acordo com as normas de direito pré-existentes, com o fim específico da realização do direito e da justiça, através de um processo intelectual subordinado àquelas normas (acórdão do Tribunal Constitucional nº 171/1992, de 6 de Maio de 1992, in www.tribunalconstitucional.pt). Nessa medida, não encontrando neles uma clara violação dos deveres de correcção e de desobediência, atenta a sua natureza materialmente jurisdicional, voto o arquivamento dos autos.”.
- Adiantar-se-á, no entanto, que, no entendimento do Recorrente, o despacho em causa, directo e conciso, como é aliás seu apanágio, não foi proferido com o intuito de faltar ao respeito aos seus destinatários ou a quem quer que seja, mas apenas de expressar, de forma clara, o seu entendimento das normas e princípios constitucionais no que respeita ao uso do acordo ortográfico.
- Em suma, face ao exposto, não se encontra verificado o tipo objectivo de ilícito de qualquer uma das infracções disciplinares de que o Recorrente vem condenado, deve, em consequência, e em nosso entendimento, a presente deliberação impugnada ser anulada para os devidos e legais efeitos.

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3- Cumprido o art. 174º do EMJ, na resposta o CSM, pugnou pela improcedência do recurso interposto, nos seguintes termos em síntese:
- Salvo o devido respeito, o Recorrente, com estes argumentos, mais não pretende que obnubilar a sua responsabilidade disciplinar.
- Assim, quanto ao 1.° argumento, começamos por notar que a questão colocada na apontada Deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23 de Abril de 2012 não era a de saber a língua a empregar nos actos processuais.
- Do que se tratava era saber se nos tribunais devia ser exigido que os actos processuais, necessariamente praticados na língua portuguesa, por força da lei, estivessem redigidos segundo as regras ortográficas anteriores ao denominado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa ou segundo as decorrentes de tal instrumento.
- Partia-se, portanto, do insofismável pressuposto de que os textos não deixavam de estar na língua portuguesa por, na representação gráfica das palavras que os compunham, terem sido observadas umas ou outras das referidas regras, pelo que havia apenas que saber quais as regras a observar.
- Afinal, a língua portuguesa é um património imaterial partilhado por vários povos espalhados pelo Mundo - existe inclusive a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), composta por nove países independentes (Angola, Brasil, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe) que têm o português como língua oficial.
- Delimitada a questão objecto da sobredita Deliberação, temos como inequívoco que a mesma não respeitava a um qualquer conflito de interesses que devesse ser resolvido de acordo com normas pré-determinadas.
- Não respeitava sequer à tramitação de processos judiciais.
-Como tal, não se inseria naquilo que é o núcleo da função jurisdicional - o dizer o direito do caso concreto, administrando a justiça em nome do Povo (cf. art. 202º da Constituição da República).
- Situava-se a montante dele, num aspecto organizativo e gestionário dos Tribunais, em relação ao qual o Conselho Superior da Magistratura tem, por força da Constituição da República e da Lei, um poder de superintendência que lhe permite definir, através de deliberação do seu Plenário, a linha de actuação a seguir.
- A independência dos juízes, designadamente na sua vertente interna, não é molestada pelo facto do nosso sistema constitucional conferir ao Conselho Superior da Magistratura, como órgão compósito de salvaguarda institucional dos juízes e da sua independência (art. 217), o papel maior na gestão dos Tribunais.
- Em verdade, sem prejuízo da subsistência da garantia de independência, os juízes estão submetidos a um dever de obediência institucional no que respeita ao exercício da competência constitucionalmente deferida ao CSM, a significar que estão vinculados às regras gestionárias emitidas pelo CSM.
- O dever de obediência, elencado entre os deveres gerais, consiste em acatar e cumprir ordens dos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e com a forma legal (art. 3.°/2, f), e 8), do EDTEFP, vigente ao tempo dos factos).
- Transposto este dever para os magistrados judiciais, temos que o CSM não integra o conceito estrito de superior hierárquico mas, sendo o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está legitimado a dar orientações genéricas em termos de gestão e organização do serviço dos tribunais - e apenas nestas -, as quais têm de ser, muito naturalmente, acatadas pelo juízes.
- Neste sentido, a inobservância da referida Deliberação, tomada no exercício das competências de gestão do CSM, configura uma violação do dever de obediência, porque, afinal, sem prejuízo da manutenção da garantia de independência, os juízes estão submetidos a um dever de obediência institucional em tudo o que se prende com o exercício das competências constitucionalmente deferidas ao CSM.
- Em função da matéria de facto adquirida, podemos afirmar que, nos aludidos despachos de 5 de Março e de 30 de Setembro de 2013, o Recorrente indicou à DGRS as regras ortográficas que deviam ser seguidas por esta entidade na elaboração dos relatórios sociais destinados aos mencionados processos comuns números 399/l1.3JDLSB e 168/05.0GDTVD.
- Na tese recursiva, essa tomada de posição não configura desobediência à aludida Deliberação, que era do conhecimento do Recorrente, uma vez que, afirma, a DGRS não se enquadra na categoria de interveniente processual.
- Infelizmente, o Recorrente não diz o que entende por interveniente processual, o que nos impede de compreender o substrato da afirmação que faz.
- Ora, desde logo notamos que a Deliberação utilizou o conceito num sentido amplo e não num sentido técnico, querendo com isso abranger não só os sujeitos processuais -ou partes, na terminologia processual civil -, como também todos os que participam a qualquer título no processo.
- Entre estes incluem-se, por exemplo, os peritos e as testemunhas.
- Incluem-se também as entidades que colaboram com os tribunais, como é o caso da DGRS, entidade à qual cabe, nos termos da lei, a elaboração dos relatórios sociais relativos aos arguidos em processo penal.
- É com a elaboração desses relatórios e sua subsequente junção aos processos para que, com base neles, os magistrados judiciais possam tomar conhecimento do percurso de vida dos arguidos e das respectivas condições sociais e económicas, que a. DGRS participa (rectius, intervém) na administração da justiça, assumindo assim a qualidade de interveniente processual.
- Acaso se entendesse que a Deliberação empregou o conceito de intervenientes processuais num sentido técnico, então ter-se-ia de considerar, numa interpretação estritamente literal, que a mesma excluiu do seu âmbito de aplicação os sujeitos processuais - que são algo mais que um mero interveniente no processo - e não os ... intervenientes processuais.
- Assim sendo, não se compreendem as dúvidas do Recorrente quanto à qualificação da DGRS como interveniente processual .
- Se dúvidas de interpretação restassem ao Recorrente, havia remédio para elas: um pedido de esclarecimento ao Conselho Superior da Magistratura.
- Passando agora ao dever de correcção, recordamos que a tese do Recorrente, aqui estribada na declaração de voto da Exma. Sra. Vogal do Conselho Superior da Magistratura Juíza ... BB, é no sentido de que o despacho de 30 de Setembro de 2013 configura um despacho de prossecução processual e, como tal, foi proferido no exercício do poder jurisdicional, o que o coloca a salvo de qualquer censura disciplinar por infracção ao dever de correcção.
- Acrescenta o Recorrente que o despacho não foi proferido com o intuito de faltar ao respeito à respectiva destinatária, mas de expressar o entendimento do Recorrente quanto às normas e princípios constitucionais no que respeita ao uso do Acordo Ortográfico.
- Em primeiro lugar cumpre dizer que, mesmo a admitir-se que o despacho em causa configura um acto jurisdicional - o que já vimos não é correcto -, aquilo que está em causa na parte relativa à violação do dever de correcção não é o conteúdo da decisão do Recorrente nem a fundamentação dela.
- O que está em causa nesta parte são os termos empregues pelo Recorrente nesse despacho.
- Não se discute aqui se o Recorrente tinha ou não razão em indeferir o referido pedido, mas o tratamento que deu a quem lhe pediu a aclaração de um anterior despacho.
- E isto não está coberto pelo manto da jurisdicionalidade.
- Caso contrário, teríamos de admitir que o juiz que aproveitasse as suas sentenças - que são o produto mais relevante do poder judicial - para injuriar as partes ou os seus mandatários não poderia nunca ser sancionado pelo Conselho Superior da Magistratura por infringir o dever de correcção, pois tal conflituaria com a independência do poder judicial.
- Os juízes estão sujeitos, para além dos deveres especialmente previstos no respectivo Estatuto, também aos deveres gerais que impendem sobre a generalidade dos funcionários e agentes do Estado (arts. 32 e 131 do EMJ), entre os quais se encontra o dever de correcção, o qual consiste, na definição legal, “em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos” (art. 3.º,1, h), e 10 do EDTEFP).
- Seguindo a lição de Maria Fernanda Neves (O Direito Disciplinar da Função Pública, II, Lisboa: FDUL, 2007, ps. 215 e ss.), diremos que o dever de correcção é o dever do trabalhador se relacionar, no exercício das suas funções, com os titulares dos órgãos que corporizam o empregador, outros trabalhadores e terceiros com urbanidade e respeito.
- Não se trata da mera observância das regras da boa educação próprias do relacionamento social.
- Tratando-se de um dever funcional é na perspectiva funcional que tem que ser analisado.
- Concretamente, reclama no exercício funcional: i) trato correcto, isto é, cordialidade, atenção e objectividade no atendimento e prestação de serviços aos cidadãos, utentes ou destinatários da actividade administrativa; ii) objectividade e colaboração entre trabalhadores com um mesmo empregador e com um mesmo enquadramento finalístico-institucional; iii) bem assim essa mesma objectividade, colaboração e deferência adequada às relações hierárquicas ou não paritárias.
- O dever de correcção postula também a adopção de "comportamento conforme à dignidade das próprias funções" ou actividade funcional do trabalhador e o seu posicionamento na organização.
- Ora, no caso vertente, resultou provado que o Recorrente não só imputou à técnica da DGRS o “desconhecimento das leis que nos regem”, como também uma “incapacidade de leitura”.
- Com isto assumiu uma posição de sobranceria e menorizou a referida coordenadora.
- E tudo porque ela se atreveu a pedir-lhe que esclarecesse o conteúdo do seu anterior despacho ...
- Para indeferir o pedido de aclaração e vincar o seu entendimento, “de forma clara”, o Recorrente não necessitava de se dirigir naqueles termos à coordenadora da DGRS. - Actuando com urbanidade e com cortesia, poderia (melhor, deveria) tê-lo feito dizendo que o despacho cuja aclaração fora requerida era perfeitamente inteligível, justificando de forma directa e concisa.
- Não necessitava de imputar as dúvidas que lhe foram colocadas pela destinatária a uma suposta ignorância ou incapacidade de compreensão da parte dela.
- A finalizar, uma nota para referimos que a alegação do Recorrente a propósito da violação do dever de prossecução do interesse público é inócua.
- Como se pode concluir pela leitura da deliberação impugnada, o recorrente foi sancionado nos termos da proposta apresentada no relatório final do Exmo. Sr Inspector Judicial que interveio como instrutor.
- Nessa proposta, concluiu-se que os factos têm a relevância disciplinar que lhes foi atribuída na respectiva parte IV., na qual se afirmou que com eles o Recorrente violou os deveres de obediência e correcção.
- Não se concluiu ter ele incorrido também em infracção ao dever de prossecução do interesse público.
- Concluímos que a deliberação impugnada não violou qualquer um dos preceitos legais referidos pelo Recorrente.

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4- Cumprido o art. 176º do EMJ nas alegações,
-o Recorrente pugna pela procedência do recurso, e a
-entidade Recorrida, pela respectiva improcedência, o mesmo acontecendo com o Ministério Público, que conclui pela manutenção da deliberação posta em crise.

A Digna Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser mantida a deliberação recorrida e, consequentemente, improcedente o recurso. 

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5- Fundamentação de facto:
- Por deliberação do CSM datada de 23 de Abril de 2012 foi determinado que «não podem os Exmos. Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar».
- No processo comum (colectivo) n.º 399/11.3JDLSB foi proferido pelo Recorrente despacho a sugerir data para a realização de audiência de cúmulo jurídico e ainda que fosse pedido relatório social actualizado do arguido à DGRSP.
- Junto o referido relatório aos autos, o Recorrente proferiu despacho datado de 30-09-2013, com cópia junta a folhas 189 a 195 dos autos de inquérito nos termos seguintes:
 “ Nos presentes autos foi junto pela DGRSP um relatório social para cúmulo jurídico eivado de erros ortográficos.
A Língua a utilizar nos actos a praticar em Portugal é o Português e não uma mescla resultante de uma resolução denominada acordo ortográfico”.
- Defendendo e fundamentando, nos termos constantes do referido despacho de 30-09-2013, que várias normas do Acordo Ortográfico enfermam de inconstitucionalidade material e que as normas constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, são orgânica e materialmente inconstitucionais, concluiu nos seguintes termos:
“Padecendo várias normas do AO de inconstitucionalidade material, tal como as normas da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, para além de não existir obrigação de obediência, existe, ao invés, o dever de desobediência por parte das entidades públicas (órgãos políticos e jurisdicionais), residindo no ordenamento jurídico português duas regras implícitas que conferem a todas as autoridades judiciais e administrativas:
i) O poder de declarar a nulidade de actos inconstitucionais (sob pena de incorrerem em responsabilidade civil),
ii) A consequente competência para decidirem "contra legem".
Neste termos e tendo o exposto presente:
a) Devolva o relatório remetido;
b) Notifique a DGRSP para apresentar até ao dia de amanhã um relatório sem erros ortográficos;
c) Informe a Sr. a Escrivã que não deverá proceder ao pagamento do relatório até o mesmo ser apresentado e escrito em Português”.
- Por despacho datado de 02-09-2013, proferido no processo comum (colectivo) n.º 399/11.3JDLSB, do 10 Juízo do Tribunal Judicial de ..., indicou o dia 01.10.2013 .
-A DGRS apresentou, através de oficio datado de 1-10-2013- relatório, nos termos determinados no despacho de 30-09-2013.
- Na sessão da audiência realizada a 15.102013, após alegações, foi designado o dia 22.10.2013, para leitura do acórdão, data em que foi lido e depositado.
- No processo comum (singular) n.º 168/05.0GDTVD, do... Juízo do Tribunal Judicial de ..., por despacho de 5-03-2013, o Recorrente designou audiência de cúmulo para o dia 16.04.2013.
- Além da designação de data para a audiência consta ainda do referido despacho:
“Solicite à DGRS a realização de relatório social. Uma vez que este é pago faça expressa menção de que o mesmo deverá ser escrito em Português, sem erros ortográficos, e que este Tribunal não procederá ao pagamento da peça caso a mesma não se mostre em conformidade com a Língua do país”.
- Através de ofício datado de 14.03.2013, subscrito pela Coordenadora da equipa da DGRS “Pinhal Litoral”, com cópia junta a fls. 230 dos presentes autos de inquérito, foi solicitada a aclaração do aludido despacho de 05-03-2013, alegando dificuldade em compreender o sentido e alcance do mesmo.
- Aberta conclusão após a junção do referido ofício, em 22-03-2013 o Recorrente proferiu despacho com o seguinte teor:
“Não compete aos Tribunais estar a ensinar Leis aos serviços do Estado. É de presumir que a DGRS tenha um serviço jurídico e se não o tiver o Ministério da Justiça tem-no de certeza.
Contudo, o pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração. Se se tivesse lido o que se deixou escrito, facilmente se teria chegado à conclusão que o que se quer é que o relatório a produzir seja escrito em Português. Não se menciona nada do que foi feito pela DGRS.
O documento ser escrito em Português é uma exigência legal nos termos do artº 139º nº1 do CPC.
A Língua Portuguesa não é a resultante de um tal “acordo ortográfico" que o Governo quis impor aos seus serviços. Efectivamente, o acordo ortográfico da Língua Portuguesa foi aprovado pela Resolução da Assembleia da Republica nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº43/91, ambos de 23 de Agosto. Considerando os pressupostos constantes da aludida resolução da Assembleia da República resulta inequívoco que no actual estádio de adesão dos demais Estados intervenientes, este não tem vigência plena e obrigatória.
Pela resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR. Ia série, n° 17 de 25.01), o Governo determinou que a partir de 1 Janeiro de 2012 o Governo e todos os serviços e organismos e entidades sujeitos a poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do acordo ortográfico da Língua Portuguesa (. . .) em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos ou comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer forma de modificação.
Esta Resolução só vincula, como é óbvio, o Governo e aqueles que dele dependem, o que não inclui os Tribunais.
Nestes, nos Tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário.
Assim sendo, estando a DGRS a prestar um serviço aos Tribunais e para mais cobrando-se do mesmo, estabelecendo uma relação de prestação de serviços, este Tribunal, enquanto entidade pagante, quer que os documentos presentes o sejam nos termos legais e não de acordo com determinações governamentais.
Notifique”.
- Através de ofício datado de 12-04-2013 a DGRS reenviou o solicitado relatório, nos termos determinados nos aludidos despachos de 5 e 22-03-2013.
- No processo Comum (Júri) n.º 384/12.8PATVD, do ... Juízo de ..., em 05-04-2013 o Dr. AA proferiu despacho com o seguinte teor:
“Uma vez que o processo de selecção de jurados ainda não se mostra finalizado e não é ainda possível prever uma data para a sua conclusão, por ora, não designarei data para realização de julgamento.
Contudo, sugiro que seja, de imediato, pedida a realização de relatórios sociais à DGRS a concluir no prazo de 45 dias a contar da data da recepção dos mesmos por aquela entidade. Mais sugiro seja a DGRS advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa, nos termos do artº 139º do CPC, e sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR Iª série, nº 17 de 25.01), a qual apenas vincula o Governo e não os Tribunais .
- O Relatório, sobre o arguido DD, elaborado pela DGRS nos termos determinados no aludido despacho, datado de 23-05-2013, foi junto aos autos em 24-05-2013
- O Relatório sobre a arguida CC, elaborado pela DGRS, nos termos determinados, foi remetido ao Tribunal de ... através de ofício datado de 18-07-2013.
- Na Sessão do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, realizada em 05-11-2013, apreciado o expediente remetido pelo Exmo, Chefe de Gabinete de Sua Excelência a Ministra da Justiça, bem como o expediente recebido da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente aos sobreditos despachos judiciais e a sua conflitualidade com a utilização da grafia decorrente da utilização do acordo ortográfico, proferidos pelo Exrno. Juiz de Círculo do Tribunal de ..., ora Recorrente, foi deliberado instaurar inquérito.
- Na sessão do Conselho Plenário Extraordinário do C.S.M., realizada em 25-02-2014, foi tomada a seguinte deliberação no âmbito do inquérito realizado ao Recorrente, o qual culminou com a proposta de arquivamento dos autos por banda do Exmo. Sr. Inspector Judicial:
«Apreciada a proposta de deliberação do Exm Sr. Inspector judicial, juiz ...Dr. ..., nos autos de inquérito em que é visado o Exm Sr. juiz... de .... Dr. AA, foi deliberado proceder a votação, tendo-se obtido a seguinte votação:
• A favor do arquivamento proposto, 3 (três) votos, dos Exms Srs., Drª BB, Prof. Doutor ... e Dr. ...;
• A favor da conversão dos autos em processo disciplinar, 10 (dez) votos, dos Exmo.s Srs., Presidente, Vice-Presidente, Prof. Doutor ..., Dr. ..., Dr ..., Dr. ..., Dra. ..., Dr. ..., Dr. ... e a Dra. ....
Atenta a votação foi deliberado não concordar com a proposta constante do relatório e converter os presentes autos em processo disciplinar, uma vez que a matéria em causa é susceptível de integrar infracção disciplinar.
A Exma. Sra. Dra. BB, proferiu a seguinte declaração de voto: “Não obstante discordar da matriz usada na prolação dos despachos em causa, considero que a interpretação que o Senhor Juiz evoca para a rejeição do novo acordo ortográfico com o assacar de uma inconstitucionalidade, quiçá discutível, enferma numa natureza jurisdicional, insindicável por este C.S.M.
Voto, pois, o arquivamento proposto pelo Senhor Inspector.”
- Na sessão do Conselho Plenário do CSM., realizada em 11-11-2014, no âmbito do processo disciplinar instaurado contra o aqui Recorrente, foi tomada a deliberação do seguinte teor:
«Foi deliberado por maioria, com o voto de vencida da Exma. Sra. Dra. BB, concordar com o teor da proposta de pena formulada pelo Exmo. Sr. Inspector Judicial, Juiz Desembargador Dr. ..., que aqui se dá por integralmente reproduzida, nos autos de processo disciplinar em que é arguido o Exmo. Sr. Juiz de Direito Dr. AA. e em consequência aplicar a este Exmo. Sr. Juiz de Direito a pena de
" Advertência registada"
A Exma. Sra. Dra. BB, proferiu a seguinte declaração de voto: "Salvaguardando o elevadíssimo respeito devido pela tese que fez vencimento, considero que os despachos que estão na origem do sancionamento disciplinar do Senhor Juiz, relativos a processos de presos, correspondem a despachos de prossecução processual. Reconhece que tais despachos, no que toca à rejeição do uso do acordo ortográfico pelos órgãos da administração, recorrem a uma linguagem indesejável, mas envolvem uma concreta interpretação normativa que lhes confere um conteúdo jurisdicional. Nos dois processos em causa, o Senhor Juiz solicitou à DGRS a elaboração de relatórios sociais, com a menção de que o mesmos deveriam ser elaborados em português, sem erros ortográficos, sob pena de não serem pagos, chegando, num deles, a devolver àquela entidade o relatório social enviado para cumprimento do despacho proferido.  
Entendo que tais despachos têm um conteúdo jurisdicional, por serem praticados pelo tribunal para decidir questões jurídicas relativas a casos concretos de acordo com as normas de direito pré-existentes, com o fim específico da realização do direito e da justiça, através de um processo intelectual subordinado àquelas normas (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 171/1992, de 6 de Maio de 1992, in www.tribunalconstituciorial.pt). Nessa medida, não encontrando neles uma clara violação dos deveres de correcção e de desobediência, atenta a sua natureza materialmente jurisdicional, voto o arquivamento dos autos.».
- O processo de inquérito que correu pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa sob o nº21/13.3TRLSB, instaurado na sequência da denúncia apresentada pelo Exº Director-Geral da DGRSP contra o Recorrente foi arquivado por despacho de 22 de Janeiro de 2014.

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6-Fundamentação de direito :

As questões a resolver são as seguintes:

A. Função jurisdicional.

B. Dever de obediência.

C. Dever de correcção.

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A- Função jurisdicional

Não temos dúvidas que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) tem competência disciplinar, mas não dirige a função jurisdicional exercida pelos juízes. Estes não estão subordinados a ordens ou instruções do CSM no exercício da actividade de julgar.

É o que resulta do artigo 4º do EMJ que «Os magistrados julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas em sede de recurso.».

Este normativo não é mais do que a expressão do princípio da independência dos Tribunais consagrado no artigo 203º da CRP, sendo certo que o CSM é, nos termos desta mesma Lei Fundamental o órgão a quem incumbe «A nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar(...) nos termos da Lei.», nº1 do artigo 217º.

E é neste ponto ,o exercício da actividade de julgar, que radica o cerne  da questão sobre a qual  nos debruçamos.

 Na verdade, reportando-nos á situação em apreço, a função jurisdicional circunscreve-se, no âmbito da prossecução processual, tão só à solicitação do relatório social actualizado do arguido à DGRSP. Extravasa-se o âmbito dessa função, quando se impõe a adopção ou não do acordo ortográfico na elaboração desse inquérito. É o próprio recorrente que afirma que expressou o seu entendimento no que respeita ao uso do acordo ortográfico, sendo certo que na situação em apreço o objecto da prossecução processual (relatório com vista á aplicação de um cúmulo) nada tinha a ver com as normas e princípios constitucionais concernentes ao uso do acordo ortográfico. Não é o facto de se tecerem reflexões jurídicas ou mencionarem-se normativos que transfigura um qualquer acto num acto jurisdicional. Os juízes têm independência para interpretar a Constituição e a lei; mas nem tudo o que possam escrever nos autos constitui necessariamente “aplicação do Direito”.

Por isso existem certos actos que estão excluídos da “esfera de protecção” dos princípios da independência e da irresponsabilidade dos juízes pelas suas decisões.

Sobre o manto da função jurisdicional não podem estar incluídas posições pessoais estranhas ao objecto do processo.

A independência garantida à função jurisdicional não significa que no exercício dessa função, os actos dos magistrados, mesmo os respeitantes à condução do processo, estejam isentos a controle disciplinar.([1])

O princípio fundamental da independência decisória do juiz não é afectada pelo facto de a sua actividade processual ser sindicada pelo órgãos que está constitucionalmente cometida a gestão e disciplina da magistratura judicial.([2])

Deste modo conclui-se que a concreta actuação do recorrente não se insere no âmbito da função jurisdicional.

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B- Dever de obediência

Assentes neste ponto, debruçando-nos agora sobre o dever de obediência, temos como certo que o CSM não é um órgão hierárquico, inexistindo portanto qualquer elo de dependência funcional no que tange ao exercício da actividade jurisdicional.

Mas no caso, como sublinhamos, não se trata de “actividade jurisdicional” por isso importa apreciar se era devida ou não obediência.

Estamos de acordo com o recorrido quando defende que CSM não integra o conceito estrito de superior hierárquico, mas sendo o órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está legitimado a dar orientações genéricas em termos de gestão e organização do serviço dos tribunais - e apenas nestas - as quais têm de ser, muito naturalmente, acatadas pelo juízes.

Aos juízes é devida, pois, efectiva obediência à deliberação de 23 de Abril de 2012, segundo a qual os mesmos “não podem indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar”, sendo certo que se tem por líquido (até por maioria de razão) que a expressão “intervenientes processuais” assume aqui um sentido amplo, abrangendo não só os sujeitos processuais (ou as partes), como todos os demais que a qualquer título intervêm no processo, como é o caso das testemunhas, peritos e entidades (públicas ou privadas) que colaboram com os tribunais.

A prevalecer a tese do recorrente a actividade do CSM ficaria esvaziada de conteúdo.

A referida deliberação é clara e concisa não suscitando qualquer tipo de dúvidas. Como tal e no circunstancialismo referido consideramos que o recorrente violou o dever de obediência.

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C- Dever de correcção

Debruçando-nos agora sobre o dever de correcção temos como certo que o mesmo não é só compaginável quando existe um carácter ofensivo da honra ou dignidade.

Consideramos também que a utilização de afirmações, desnecessárias e injustificadas que nada têm a ver com a finalidade subjacente, como é o caso, só por si, podem não consubstanciar a violação deste dever.

Não temos dúvidas, também, que estamos perante a utilização de uma linguagem, de um estilo, que se deve evitar, indesejável.

Mas também não temos dúvidas que foi violado o dever de correcção, na medida em que este tem que ser aferido como um dever objectivo correlacionado com a necessidade e proporcionalidade.

Com as expressões que utilizou(“desconhecimento das leis que nos regem”, como também uma “incapacidade de leitura”.) que, sublinhe-se são excessivas, desnecessárias e nada têm a ver com a finalidade visada com o despacho, questionando  a capacidade profissional e intelectual  da visada, o recorrente violou o dever de correcção.

Além do mais, como sublinha o recorrido ,o dever de correcção postula também “comportamento conforme á dignidade das próprias funções “ ou actividade funcional do trabalhador e o seu posicionamento na organização (Ettore Morone,  Impiego Publico,Novissimo Digesto Italiano, III,Unione Tipografico, Editore Torinense ,pag. 275).

11-DECISÃO:


Nesta conformidade, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto.
Custas a cargo do recorrente, conforme art. 527.º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil, com taxa de justiça que se fixa em 6 Ucs, nos termos do disposto na Tabela l-A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, e art. 7.º, nº 1 deste mesmo diploma, sendo o valor da presente acção de 30.000,01€, atento o disposto no art. 34.º, nº 2 do CPTA.
Notifique.

João Trindade (relator)
Santos Cabral (com declaração que junto)
Mário Belo Morgado
Souto Moura
Granja da Fonseca
Ana Paula Boularot (Relatora vencida nos termos da declaração de voto que junto)
Martins de Sousa (Voto vencido nos termos da declaração em anexo)
Sebastião Póvoas (Vencido nos termos da declaração de voto que junto)

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[1] - Ac. proferido em 27.9.2001 no Processo 2246/00
[2] -Ac. 18-10-12- Processo 24712

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Confirmaria a decisão sancionatória aplicada pelo Conselho Superior da Magistratura com fundamento na violação do dever de obediência.
No que concerne ao dever de correcção entendo que os factos considerados provados, sendo passíveis de crítica, não atingem o patamar de ilicitude disciplinar necessário para serem considerados como infracção do mesmo tipo.

Santos Cabral

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Não acompanho a tese que faz vencimento, nos termos da fundamentação que elaborei e fazia parte integrante do meu projecto e que infra deixo reproduzida.

Acrescento apenas, ex abundanti e s.d.r.o.c., que o Acórdão que faz vencimento não cura das razões apresentadas pelo Recorrente e que constituem os seus fundamentos de recurso, tendo-se limitado a enunciar em termos meramente teóricos, fora do contexto factual que rodeou a ocorrência que deu origem ao procedimento disciplinar, as infracções do dever de obediência e de correcção que foram imputadas àquele e pelas quais veio a ser sancionado.

Assim.

1.Introito: a vexata quaestio.

Antes de entrar na apreciação das questões postas em sede de argumentário recursivo, façamos um pequeno périplo sobre os eventos que deram origem aos presentes autos.

Conforme deflui da factualidade dada por adquirida, o CSM por deliberação tomada em 23 de Abril de 2012 foi determinado que «não podem os Exmos. Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar».

Por diversas vezes – pelo menos três – o Recorrente através de despachos prolatados nos processos respectivos, alegando, além do mais, a inconstitucionalidade da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR. I série, nº 17 de 25.01) que determinou que a partir de 1 Janeiro de 2012 o Governo e todos os serviços e organismos e entidades sujeitos a poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do acordo ortográfico da Língua Portuguesa, ordenou à DGRS que redigisse os relatórios que lhe foram solicitados na língua portuguesa, sem recurso ao apontado acordo, tendo o Recorrente na sequência de aclaração que lhe foi pedida pela Coordenadora da equipa da DGRS “Pinhal Litoral”, alegando dificuldade em compreender o sentido e alcance do mesmo, proferido o seguinte despacho:
“Não compete aos Tribunais estar a ensinar Leis aos serviços do Estado. É de presumir que a DGRS tenha um serviço jurídico e se não o tiver o Ministério da Justiça tem-no de certeza.
Contudo, o pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração. Se se tivesse lido o que se deixou escrito, facilmente se teria chegado à conclusão que o que se quer é que o relatório a produzir seja escrito em Português. Não se menciona nada do que foi feito pela DGRS.
O documento ser escrito em Português é uma exigência legal nos termos do artº 139º nº1 do CPC.
A Língua Portuguesa não é a resultante de um tal “acordo ortográfico" que o Governo quis impor aos seus serviços. Efectivamente, o acordo ortográfico da Língua Portuguesa foi aprovado pela Resolução da Assembleia da Republica nº 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº43/91, ambos de 23 de Agosto. Considerando os pressupostos constantes da aludida resolução da Assembleia da República resulta inequívoco que no actual estádio de adesão dos demais Estados intervenientes, este não tem vigência plena e obrigatória.
Pela resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (in DR. Ia série, n° 17 de 25.01), o Governo determinou que a partir de 1 Janeiro de 2012 o Governo e todos os serviços e organismos e entidades sujeitos a poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo aplicam a grafia do acordo ortográfico da Língua Portuguesa (...) em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos ou comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer forma de modificação.
Esta Resolução só vincula, como é óbvio, o Governo e aqueles que dele dependem, o que não inclui os Tribunais.
Nestes, nos Tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário.
Assim sendo, estando a DGRS a prestar um serviço aos Tribunais e para mais cobrando-se do mesmo, estabelecendo uma relação de prestação de serviços, este Tribunal, enquanto entidade pagante, quer que os documentos presentes o sejam nos termos legais e não de acordo com determinações governamentais.
Notifique”

Não obstante os pedidos de aclaração, após a recepção dos despachos cujo texto se deixou transcrito, a DGRS cumpriu o que lhe ordenado foi, tendo os relatórios sido apresentados sem recurso ao acordo ortográfico.

Contudo, as situações apontadas foram objecto de relato à DGPJ, a qual emitiu parecer sobre a aplicação do acordo ortográfico, bem como em participar as ocorrências ao Gabinete da Ministra da Justiça, o qual, por seu turno, comunicou ao CSM, órgão este que achou por bem abrir inquérito à actuação do Exº Sr Juiz de Direito, aqui Recorrente, inquérito esse que mereceu, numa primeira abordagem, a proposta de arquivamento por parte do Exº Sr Inspector Judicial, por este ter entendido que os despachos em causa foram proferidos no âmbito da actividade jurisdicional, estando por isso fora do âmbito da acção disciplinar do CSM, proposta essa que, por maioria, não mereceu aprovação do Plenário, tendo sido ordenada a conversão do inquérito em processo disciplinar.

Quer dizer, o CSM ao proceder à apontada convolação do processo de inquérito em processo disciplinar, entendeu que a actuação do Recorrente transcendeu a vertente jurisdicional, entrando na disciplinar e por violação de deveres funcionais, sendo que os factos que conduziram numa primeira fase – a de inquérito – ao parecer de arquivamento por se não verificarem quaisquer elementos consubstanciadores de infracção disciplinar, conduzem o mesmo Sr Inspector, agora neste procedimento, à conclusão que o Recorrente violou os deveres de obediência e de correcção, propondo em consequência uma pena de advertência registada, objecto da deliberação impugnada.

Quid inde?

1.1.Da violação do principio da independência.

Resulta do disposto no artigo 82º do EMJ que «Constituem infracção disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.».

Estes deveres, para fins disciplinares, são os deveres específicos que impendem sobre a categoria profissional dos magistrados judiciais, sendo que, a par destes encontramos ainda todos os outros deveres genéricos que obrigam todo e qualquer servidor público, v.g. o de correcção e de respeito (também convocados para a decisão impugnada) que se encontram abstractamente prevenidos nas várias alíneas do artigo 3º, nº2 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro.

Preceitua o apontado normativo, sob a epígrafe «Infracção disciplinar», no que à economia deste recurso concerne, que:
«1 — Considera -se infracção disciplinar o comportamento do trabalhador, por acção ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce.
2 — São deveres gerais dos trabalhadores:
a) O dever de prossecução do interesse público;
(…)
f) O dever de obediência;
(…)
h) O dever de correcção;
(…)
3 — O dever de prossecução do interesse público consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.(…)».

Nesta senda, chamo a terreno o preceituado no artigo 9º, nº1 do NCPCivil onde se consagra o dever de recíproca correcção o qual impõe que «Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade.».

Insurge-se o Recorrente contra a deliberação recorrida na parte em que aí se entendeu que foi violado o principio da independência ao não se acatar a deliberação do CSM de 23 de Abril de 2012 («não podem os Exmos. Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar»).

Decorre do artigo 4º do EMJ que «Os magistrados julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas em sede de recurso.».

Este normativo não é mais do que a expressão do princípio da independência dos Tribunais consagrado no artigo 203º da CRP, sendo certo que o CSM é, nos termos desta mesma Lei Fundamental, o órgão a quem incumbe «A nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar(...) nos termos da Lei.», nº1 do artigo 217º.

O Conselho Plenário do CSM, é constituído pelo Presidente e todos os membros do Conselho, sendo da sua competência, entre outras, nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a acção disciplinar e, em geral, praticar todos os actos de idêntica natureza respeitante aos magistrados judiciais colocados no Supremo Tribunal de Justiça (Juízes Conselheiros) e nos Tribunais das Relações (Juízes Desembargadores).

Trata-se de um órgão de gestão e funcionamento, com autonomia administrativa e financeira, Lei 36/2007, de 14 de Agosto.

Cabe no âmbito dos poderes de gestão e funcionamento dos tribunais, a emissão de coordenadas para o melhor andamento dos serviços, contudo, não cabe naqueles mesmos poderes a emissão de ordens/ e/ou regulamentos/provimentos, que visem dar orientações especificas quanto ao exercício da actividade jurisdicional, sob pena de entrarmos na emissão de «ordens» expressas, contrárias aos normativos constitucionais aplicáveis, quer aos princípios básicos que norteiam a actividade judicial, quer quanto aos princípios reguladores da função do CSM.

Aqui chegada, posso concluir que a deliberação do CSM datada de 23 de Abril de 2012 onde se afirmou que «não podem os Exmos. Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar», trata-se apenas de uma mera orientação/recomendação, destituída de qualquer suporte injuntivo, aliás porque sempre se lhe falhava a legitimidade para tal, não obstante o bom senso impusesse que assim se agisse, sem que houvesse qualquer necessidade de um enunciado desse jaez.

Todavia, o Recorrente «ignorou» aquele postulado, não só porque entendeu que as razões legislativas que estavam por detrás – resolução do Conselho de Ministros – não seriam conformes à Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucional qualquer interpretação que levasse à aplicação do novo acordo ortográfico, como também entendeu que aquela deliberação apenas se destinava às partes e não a quaisquer outros operadores judiciários, maxime, acidentais, como no caso aconteceu com a DGRS, chamada a apresentar relatórios sociais no âmbito de processos criminais, tendo sido advertidos os serviços que tais relatórios deveriam ser apresentados em português sem recurso ao acordo ortográfico.

Por aqui não se vislumbra que tenha havido por parte do Recorrente a violação do princípio da independência: entendeu que a resolução do Conselho de Ministros não tinha aplicação no que tange à imposição do acordo nos casos em análise, assim o declarou, bem como a sua inconstitucionalidade, tendo a DGRS sido notificada e na sequência de tal notificação, vieram a ser apresentados novos relatórios em conformidade com o decidido; entendeu, igualmente, que o CSM ao elaborar a sobredita recomendação, estava apenas a dirigir-se aos intervenientes processuais – partes (veja-se que como decorre dos procedimentos instaurados o Exº Inspector fez consignar que o Recorrente «conhecedor da dita deliberação (…) não tem recusado as peças processuais apresentadas pelas partes e intervenientes nos processos cíveis, nem aos arguidos, demandantes cíveis e assistentes nos processos penais, redigidas de acordo com as regras decorrentes do «Acordo Ortográfico».») - e não a todo e qualquer interlocutor acessório, meramente acidental, como lhe era licito pressupor e decidiu em conformidade, acatando a mesma naqueles precisos casos, mas desconsiderando-a noutros, embora, justificando esta opção.

Quer dizer, aquela entidade conformou-se com as decisões tomadas pelo Recorrente, não se insurgiu contra as mesmas, como poderia e deveria ter feito já que se tratava de um «terceiro atingido», nos termos do nº2 do artigo 631º do NCPCivil, aplicável por força do artigo 4º do CPPenal, não obstante e subsequentemente, pela pena do Exº Director-Geral, tenha sido apresentada queixa crime contra o Recorrente por prática de crimes de coacção sobre funcionário, abuso de poder e denegação de justiça, queixa essa que mereceu despacho de arquivamento por inexistência de indícios suficientes e inverificação dos elementos constitutivos daqueles tipos legais de crime.

Embora não seja decisivo este argumento, para a questão que me ocupa, é um elemento coadjuvante para a sustentação da opinião que vimos a delinear, a qual nos conduz a uma situação de irresponsabilidade do Recorrente pelos actos resultantes da sua actividade decisória, como deflui do normativo inserto no artigo 5º, nº1 do EMJ, a não ser que se estivesse perante a hipótese delineada no seu nº2 quando aí se estipula que «Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar.».

1.1.2. Da violação do dever de obediência.

No que tange à imputada violação do dever de obediência aludido no artigo 3º, nº2, alínea f) do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro, aplicam-se com as necessárias aplicações, mutatis mutandis, as considerações supra efectuadas.

Sempre acrescento, aliás na esteira do que porfiado vem pelo Recorrente, que não sendo o CSM um órgão hierárquico, inexistindo portanto qualquer elo de dependência funcional no que tange ao exercício da actividade jurisdicional, nunca se poderia ter como «incumprimento de ordem legitima», o não acatamento, justificado e fundamentado, da deliberação do CSM que recomendou a aceitação por parte dos Senhores Juízes das peças processuais sem qualquer imposição do uso ou não uso do acordo ortográfico, «(…) não são raras as normas ainda deparadas no nosso ordenamento jurídico que fazem atribuir a entidades integradas na Administração poderes decisórios em questões em que em causa estão conflitos de interesses ou litígios respeitantes a relações jurídico-privadas, determinando-se que essas entidades tomarão tais decisões em conformidade com a lei e sem que, para tanto, fiquem sujeitas a quaisquer ordens ou instruções. Contudo, reservando a Lei Básica aos tribunais o exercício da função jurisdicional, entendida, para o que ora releva, no sentido atrás tentado explanar, não poderão ser perspectivados como tais órgãos de soberania aqueloutros órgãos ou entidades da Administração a quem a lei ordinária cometa poderes decisórios para a resolução de relações jurídico-privadas, ainda que comande que eles, nessa resolução, actuem sem sujeição a quem quer que seja que não a lei. Na verdade, um diferente entendimento só seria possível se a Constituição partisse de uma óptica segundo a qual os tribunais seriam definidos por um mero critério funcional e nada mais, a respeito destes órgãos, dispusesse.(…), cfr Ac TC 71/1992, de 6 de Maio de 1992 (Relator Bravo Serra); no mesmo sentido Ac TC 71/1984 de 4 de Julho de 1984 (Relator Nunes da Cruz), in dgsi.pt.

Aliás, veja-se a este propósito que a deliberação em causa inserta na acta 9/2012 do CSM, correspondente ao ponto 3.2 da sessão plenária, é do seguinte teor:
«(…) Ponto nº 3.2 – procº 2012-192/D1 e 1999-1253/D
I – Apreciado o expediente apresentado pela Presidência do Conselho de Ministros, relativamente ao Novo Acordo Ortográfico – Publicações em Diário da República, bem como do expediente remetido pelo Exmo. Conselheiro do CSM, Dr. .... -----------------------------------------------------------------
II – Apreciada a informação elaborada pelo Exmº. Adjunto do Gabinete de Apoio,Juiz de Direito, Dr. ..., relativamente ao Projecto Piloto da Actualização para Office 2007 e novo Acordo Ortográfico.
III – Apreciado o expediente apresentado pelo Exmº. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Juiz Desembargador, Dr. ..., e pela Exmª.
Juíza Presidente da Comarca do Alentejo Litoral, Drª. ..., relativamente ao Projecto Piloto da Actualização para Office 2007 e novo Acordo Ortográfico. ---
Depois de discutido, foi deliberado, informar os Exmºs Exponentes, que o Conselho Superior da Magistratura não pode indicar aos Exmºs Juízes a forma em que as peças deverão ser publicadas, sendo que as mesmas deverão ser publicadas conforme forem elaboradas. -------------------------------------------------------------------------------
Mais foi deliberado que não podem os Exmºs Srs. Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar.(…)», in www.csm.pt.

Por um lado o CSM delibera que não pode indicar a forma em as peças deverão ser publicadas e, por outro, delibera que os Magistrados não podem indicar aos intervenientes processuais qual a ortografia a adoptar…o que no mínimo é contraditório para a tese que ora nos apresenta: se o Recorrido, CSM, entende, como parece entender que não pode indicar aos Juízes a forma em que as peças podem ser publicadas, se com o acordo se sem o acordo, também não se poderá entender o mais deliberado como uma ordem, mas apenas uma mera indicação procedimental.

Além do mais, a sobredita recomendação, injuntiva segundo o Recorrido, nem sequer foi objecto de qualquer circular por banda daquele órgão o que sempre se imporia para sustentar o carácter de «ordem» preconizado, cfr circulares de 2012 do CSM, in www.csm.pt, de onde deflui que a única circular que sobreveio do Plenário de 23 de Abril de 2012 onde se tomou aquela deliberação, foi a constante do seu ponto 3.5. do seguinte teor:
«Circular n.º 8/2012 - Deliberação do Plenário Ordinário do CSM, de 23.04.2012
Proc.98-645/D- S.T.J.
Na sessão do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 23.04.2012, foi tomada a seguinte deliberação: «Recomendar aos Exmos. Srs. Juízes, genericamente, de preservarem as pessoas convocadas para actos judiciais, de incómodos que vão para além do estritamente necessário.»
Lisboa, 18 de Maio de 2012
O Juiz Secretário, ...».

Não se vislumbra, pois, a violação de um qualquer dever geral de obediência por banda do Recorrente, susceptível de integrar procedimento disciplinar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5º, nº2, do EMJ.

1.1.3. Da violação do dever de correcção.

No que se reporta à violação do dever de correcção, aludido no artigo 3º, nº2, alínea h) e 10 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas, Lei 58/2008 de 9 de Setembro, no qual se prevê que os funcionários e agentes do Estado devem tratar com respeito os seus utentes, bem como os demais trabalhadores e superiores hierárquicos, consistente no tratamento menos correcto, ou incorrecto, por parte do Recorrente, da técnica da DGRS, quando em despacho se lhe dirigiu sic dizendo o seguinte, além do mais «Contudo, o pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração.».

Na tese do Recorrido, com tal trecho o Recorrente teria assumido «uma posição de sobranceria e menorizou a referida coordenadora (…) Actuando com urbanidade e com cortesia, poderia (melhor deveria) tê-lo feito dizendo que o despacho cuja aclaração foi fora requerida era perfeitamente inteligível, justificando de forma directa e concisa. Não necessitava de imputar as dúvidas que lhe foram colocadas pela destinatária a uma suposta ignorância ou incapacidade de compreensão da parte dela.».

Em termos meramente objectivos, isolando a frase do Recorrente que deu azo à deliberação recorrida, do seu demais contexto - «Contudo, o pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração.» - a mesma aparece-nos com um tom agressivo («indesejável» no dizer da vogal que votou vencida a deliberação), mas que se não poderá considerar como ofensiva e ou incorrecta.

Aliás, veja-se a dificuldade da entidade Recorrida em qualificar o comportamento do Recorrente, o qual no seu dizer assumiu uma posição sobranceira (?) e menorizou (?) a coordenadora, sendo certo que na sua tese, se o Recorrente tivesse assumido uma postura «urbana» (cortês, polido, afável, na definição encontrada no Dicionário Enciclopédico Koogan, Larousse Selecções) e «cortês» (gentil, polido, delicado afável, urbano, l.c.), teria conseguido melhor os seus objectivos.

Todavia, o facto de o Recorrente ter escrito, desajeitadamente, que mais do que um desconhecimento das leis, o pedido de aclaração só se justificaria pela incapacidade de leitura do seu requerente, a expressão assim empregue não equivale, sem mais, a uma ofensa e/ou incorrecção e/ou descortesia e/ou falta de urbanidade, mas antes inserida no que tantas vezes apelidamos «o calor da lide», desculpável e que desvaloriza toda e qualquer observação mais assertiva, quer entre as partes, quer entre estas e o Tribunal e, por maioria de razão quando efectuadas em despachos judiciais, sendo comum a referência efectuada ao desconhecimento da Lei, não consistindo esta expressão, a se, em qualquer sobranceria, nem tão pouco se poderá dizer que se quer desdenhar, ou amachucar outrem se no meio de uma decisão, devidamente estruturada e fundamentada, se acrescentar que só se compreende o que requerido foi devido à incapacidade de leitura de quem requereu…não é bonito, mas não se pode dizer, sem mais, que foi incorrecto, no sentido de se ter querido ofender alguém antes se expressou uma posição jurídica de uma forma mais contundente, «(…) Não existe entre nós um Código Ético ou Deontológico dos Juízes, nem cremos que seja necessário, pois o mínimo ético exigível para o cabal cumprimento das nossas funções encontra-se no interior de cada um e inexistem normas ou regras de conduta morais, as quais são por natureza incoercíveis, que possam transformar uma pérfida natureza humana. Não existem Homens perfeitos, logo não existem Juízes perfeitos, embora cada um de nós, na vivência do nosso Destino, deverá tentar adaptar-se às circunstâncias, isto é, ao conjunto das regras socialmente instituídas, adaptando o seu comportamento tendo em atenção o escopo a prosseguir e os valores que representa. A nossa vivência enquanto Juízes deverá pautar-se por uma dialéctica constante entre o que parece ser, o que é, o que deve ser e o que os outros esperam de nós.(…)», cfr Ana Paula Boularot in A Ética, Os Direitos E Os Deveres Dos Juízes, Boletim Informativo, ASSJP, Informação E Debate, II série nº6, Novembro 1999, 31/36.

Por outro lado, essa posição assim expressa foi-o a coberto de um despacho judicial, insindicável, por via disciplinar pelo CSM, como bem se constatou no voto de vencido aposto à deliberação em impugnação.

2. Do pedido formulado pelo Recorrente.

Conclui o Recorrente que não se encontrando verificado o tipo objectivo de ilícito de qualquer uma das infracções disciplinares pelas quais vem condenado, deve, em consequência ser anulada deliberação impugnada.

Dispõe o artigo 50º, nº1 do CPTA que «A impugnação de um acto administrativo tem por objecto a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência desse acto.».

Estando em causa um acto administrativo traduzido na deliberação do CSM, aplica-se o regime geral da anulabilidade do acto prevenida no artigo 163º e seguintes do NCPA, aplicável in casu por força do artigo 8º do DL 4/2015 de 7 de Janeiro, porquanto se não verifica qualquer materialidade que importe a nulidade do mesmo, cfr artigo 161º do mesmo diploma.

São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas para cuja violação a Lei não preveja aqueloutra sanção, sendo assim uma consequência residual dos actos administrativos praticados ao arrepio de disposições legais para as quais não esteja prevista outra cominação de, vg, inexistência ou nulidade, cfr Ac desta secção contencioso de 19 de Setembro de 2007, Proc 1021/05 (Relatora Maria Laura Leonardo), in SASTJ, site do STJ.

Conforme resulta da deliberação impugnada, foi o Recorrente cominado com uma pena de advertência registada, por se ter constado a infracção do dever de obediência e de correcção, isto é, apurou-se em sede de processo disciplinar a consumação voluntária de factos que agrediram deveres, cfr Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar, 5ª Edição, 33/46; Vítor Faveiro, A Infracção Disciplinar, in Cadernos de Técnica Fiscal, 113, 59/60.

Daqui decorre que o objecto da infracção disciplinar consiste na prática de um ou mais factos consubstanciadores de ofensa de quaisquer dos deveres funcionais específicos e /ou gerais, sendo no(s) facto(s) que incide o elemento essencial, sem cuja existência inexiste a infracção.

Ao direito disciplinar sancionatório, não obstante se não identifique com o direito penal, onde pontifica o princípio da tipicidade expressa no brocardo nullum crimen nulla poena sine lege, uma vez que naquele ramo de direito estamos perante tipos mais abertos, onde a analogia é permitida como elemento integrador das várias previsões legais, veja-se a amplitude da definição de infracção disciplinar decorrente do artigo 82º do EMJ a qual aponta para um conceito aberto de todos os «factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos seus deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções», cfr Teresa Beleza, in Direito Penal, 1º Volume, 2ª edição, FDUL, 1985, 73; neste mesmo sentido e inter alia os Ac desta secção de contencioso de 9 de Fevereiro de 2012, Proc 3/12.YFLSB (Relator Manuel Braz) e de 26 de Fevereiro de 2014 (Relator Álvaro Rodrigues), in www.dgsi.pt.

No caso sujeito, como supra se deixou enunciado, não se vislumbra a prática pelo Recorrente de factos integradores da violação quer de deveres especiais, quer dos deveres gerais funcionais que sobre si impendiam e impendem, nomeadamente os de obediência e correcção que lhe foram imputados e pelos quais veio o mesmo a ser condenado pela deliberação em crise, com uma pena de advertência registada.

Isto vale por dizer que, na nossa função verificadora de que a solução encontrada pelo órgão da administração obedeceu ou não às exigências externas da ordem jurídica, e, constatando-se que ao Recorrente foram imputadas infracções disciplinares inexistentes, porquanto aquele não violou qualquer dever de obediência ao CSM, nem tão pouco violou o dever de correcção para com os serviços da DGRS, estando a actuação originadora do processo disciplinar que lhe foi instaurado acobertada por um despacho judicial, que aliás foi cumprido pela instituição visada, o qual tem um conteúdo claramente jurisdicional e por isso completamente fora do munus sancionatório daquele mesmo CSM.

As conclusões procederiam, assim, o que levaria à anulação da deliberação impugnada por erro nos pressupostos de direito.

(Ana Paula Boularot, relatora vencida)

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Divirjo da solução encontrada pelas razões que, por uma questão de mera simplificação, remeto para a declaração de voto que da Exma. Desembargadora, Dra.Cecília Agente, manifestando sua discordância face à deliberação do CSM em apreço.
Votaria, por isso, pela sua anulação.

Martins de Sousa

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1

Declaração de voto

Fui vencido pelas razões que passo a expor

1 – Antes do mais entendo curiais algumas considerações sobre a vigência do Acordo Ortográfico de 1990 e sua aplicação nos Tribunais aquando dos factos imputados ao recorrente.

1-1- Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, assinada em 23 de Maio de 1969 e aprovada por Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003, de 29 de Maio de 2003, dispõe no n.º 1 do artigo 24.º que “um tratado entra em vigor nos termos e na data nele previstos ou acordados pelos Estados que tenham participado na negociação.”

Outrossim, o n.º 2 do preceito condiciona a entrada em vigor ao consentimento de vinculação “manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação.”

O Decreto do Presidente da República n.º 46/2003 (DR. I-A de 7 de Agosto de 2003) ratificou aquela Convenção formulando uma reserva ao artigo 66.º que, apenas, se refere ao “procedimento de resolução judicial de arbitragem e de conciliação.”

O chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é um Tratado Internacional, preparado na Academia de Ciências de Lisboa, entre 6 a 12 de Outubro de 1990, com a participação de sete (7) delegações, assinado em Lisboa em 16 de Dezembro de 1990 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, de 4 de Junho (DR I-A n.º 193) -rectificado pela Rectificação n.º 19/91 de 7 de Novembro (DR I-A n.º 256)- e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, de 23 de Agosto.

Porém, embora tendo, sido negociado por sete (7) Estados naquela data só três (3) tinham procedido à ratificação.

Na versão original previa-se que a entrada em vigor também ficasse condicionada à elaboração do “Vocabulário Ortográfico Comum”, inicialmente prevista para 1 de Janeiro de 1994.

Mas, em 17 de Julho de 1998, foi elaborado na Cidade da Praia o Protocolo Modificativo o qual, alterando a redacção dos artigos 2.º e 3.º, suprimiu essa exigência.

Esse Protocolo (o primeiro) veio a ser ratificado pelo Decreto Presidencial n.º 1/2000, de 28 de Janeiro.

De seguida, e na V Conferência de Chefes de Estado e do Governo da CPLP (S. Tomé e Príncipe de 26 e 27 de Julho de 2004), foi adoptado um Segundo Protocolo Modificativo) aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 26 de Julho e, depois, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de Julho).

Este segundo instrumento revogou o artigo 3.º do Acordo Ortográfico que, em sintonia com a Convenção de Viena acima citada, e para além de fixar a data de entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1994, impunha para tal o depósito dos “instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do governo da República Portuguesa”.

Dispôs, então, a entrada em vigor apenas com o “terceiro depósito de instrumento de ratificação”.

Mais tarde, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 antecipou em cinco anos o “prazo de transição” para o sistema educativo e em 4 anos 9 meses e 22 dias para a Administração pública e para o Diário da República (DR. I, n.º 17, de 25 de Janeiro de 2011).

Independentemente de abordar a constitucionalidade e a legalidade desta Resolução, o que só sucintamente cabe na economia destes considerandos, é inquestionável que a mesma não se aplica aos Tribunais mas, apenas, e eventualmente, à Administração Pública (cfr., a propósito de toda esta problemática, e v.g., o Parecer do Mestre Ivo Miguel Barroso – “Inconstitucionalidades orgânicas e formais da Resolução do Conselho de Ministros, que mandou aplicar o «Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa» de 1990, à Administração Pública e a todas as publicações no Diário da República, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo [público, particular e cooperativo] a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades «sui generis» do conversor «Lince» e do «Vocabulário Ortográfico do Português», apud O Direito – 2013 I/II 93-179 e III 439-522).

Concluiu, além do mais, este Ilustre Académico:

“I. O prazo de transição de seis anos, previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de Julho (que procedeu à ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico), constitui, materialmente, uma reserva, ultrapassando a qualificação de uma mera “declaração interpretativa”.

O prazo de transição não serve juridicamente para promover alterações ao Tratado, “a posteriori”, à margem de uma nova convenção internacional firmada entre os Estados.

II. O Governo procedeu ao depósito da ratificação em 13 de Maio de 2009, tendo, todavia, o aviso de tal ratificação sido publicado em 17 de Setembro de 2010 (através do Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 255/2010). Deste modo, o início do prazo de transição começou após a publicação referida, seguida do período supletivo de “vacatio legis” de 5 dias (nos termos da Lei n.º 74/98 (“Lei-formulário”), com alterações posteriores).

Deste modo, o prazo de transição começou em 22 de Setembro de 2010; razão pela qual terminará somente em 22 de Setembro de 2016 (e não em Maio de 2015, completados 6 anos após a data do depósito, diversamente do que tem sido veiculado).”

“… Tanto a norma do n.º 1 como a do n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros contêm normação primária, sendo organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP), pois regulamentam, a título principal, direitos, liberdades e garantias.

Mesmo a Doutrina que admite que um regulamento possa ser fundado numa convenção internacional, sempre ressalva ou exceptua os casos em que haja a reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

A invocação da base habilitante do artigo 199.º, alínea g), da Constituição não procede, pois, para além de não se poder tratar de um regulamento independente, o caso da regulação do “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO) não se subsume aos conceitos indeterminados-tipo, contidos na previsão daquela norma citada, relacionados com o Estado de bem-estar.

O artigo 199.º, alínea d), apenas permite que o Governo exerça poderes de superintendência e tutela em relação à Administração indirecta do Estado; e poderes de tutela em relação à Administração autónoma.

Ora, o n.º 1 da RCM n.º 8/2011 consubstancia uma ordem (ou, noutra terminologia, “directriz”), incluída no poder de direcção, que o Governo-administrador não tem em relação à Administração indirecta e à Administração autónoma.

Assim, afigura-se manifestamente inconstitucional que o n.º 1 da RCM tenha sido “aplicado”, pois o Governo carece de poderes de direcção sobre a Administração indirecta e sobre a Administração autónoma (cfr. art. 199.º, alínea d), “a contrario sensu”); pelo que o n.º 1 da RCM enferma de inconstitucionalidade orgânica (por falta de competência do Governo) e, por esta via, o n.º 1 da RCM é parcialmente inconstitucional (inconstitucionalidade material (por violação do art. 199.º, alínea d)).

Em suma, aquela ordem (ou, noutros termos, directriz) não poderá ser aplicada quer à Administração indirecta, quer à Administração autónoma; mas tão-só (e apenas em teoria) à Administração directa do Estado (cfr. art. 199.º, al. d)).

“As mesmas normas dos números 1 e 3 padecem de inconstitucionalidade formal a duplo título: por incursão na reserva de lei parlamentar (artigo 165.º, n.º 1, alínea b)) e por carência da forma de decreto regulamentar, constitucionalmente exigida para os regulamentos independentes (artigo 112.º, n.º 6, 2.ª parte).

O número 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou “aplicar” o AO aos actos publicados em “Diário da República”, não deveria ter sido “aplicada” a actos jurídico-públicos de órgãos que exercem outras funções jurídicas do Estado diversas da administrativa (a função constituinte e a função jurisdicional).

Salvo o que diz respeito ao artigo 119.º, n.º 1, alínea h), 1.ª parte, da CRP, a antecipação do fim do prazo de transição, nos termos em que foi realizada, pelo n.º 2 da Resolução do Governo, aprovada em Conselho de Ministros, a todos os actos publicados em “Diário da República”, é inconstitucional a título orgânico, formal (devido ao acto não assumir a forma devida) e material (por violar os princípios da separação de poderes (art. 111.º, n.º 1), da independência dos tribunais (art. 203.º, 1.ª parte), da equiordenação entre os órgãos de soberania (cfr. art. 110.º, n.º 1).

Existe também a violação do princípio da reserva de jurisdição (art. 202.º, n.º 1), conjugado umbilicalmente com a inconstitucionalidade orgânica.

Paralelamente, como se disse, existe uma inconstitucionalidade material, derivada da violação do princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1).”

“A CRP não pode ser alterada através de uma lei de revisão constitucional, mediante a consagração de vocábulos estranhos ao Português europeu, seguindo o Acordo Ortográfico, por atentar contra limites materiais de revisão:

i) O princípio da identidade nacional e cultural;

ii) O “direito à Língua Portuguesa”, derivado do artigo 11.º da CRP;

iii) O princípio da independência nacional (devido às remissões para usos e costumes de outros países, para se apurar quais as normas resultantes de algumas disposições do AO, que remetem para o “critério da pronúncia”).”

“O n.º 2 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 abrange ainda os actos da função jurisdicional susceptíveis de serem publicados em “Diário da República”; abrangência essa que se afigura ser organicamente inconstitucional, por usurpação de poderes; e materialmente inconstitucional, devido a ferir os princípios da separação de poderes, da independência dos tribunais e da equiordenação (ou paridade) entre os órgãos de soberania (neste caso, entre Governo e Tribunais).”

“O conversor “Lince” e o “Vocabulário Ortográfico do Português” (VOP) são reconduzíveis a regulamentos administrativos.

O conversor “Lince” e o “Vocabulário Ortográfico do Português”, instituídos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, padecem de inconstitucionalidades várias.

Desde logo, o “Lince” e o e o “Vocabulário Ortográfico do Português” padecem de inconstitucionalidade consequente, uma vez que se fundam na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que, por seu turno, padece de inconstitucionalidade orgânica e formal;

Por outro lado, os mesmos instrumentos, ao interpretarem autenticamente certas normas do Tratado do AO, padecem de inconstitucionalidades orgânica (por falta de competência) e material, por violação do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da CRP.

Todos os diplomas que se basearem na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 padecem de inconstitucionalidade consequente; designadamente os seguintes:

i) Actos da função política, como Resoluções emitidas pela Assembleia da República ou pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas; restantes actos de outros órgãos;

ii) Actos da função jurisdicional, emitidos pelos tribunais.”

1-2- E posso ainda extrair duas conclusões:

– Se o Acordo/Tratado não foi ratificado por todos os Estados que o subscreveram (e não o foi, seguramente, por Angola e Moçambique) não está em vigor na ordem jurídica internacional.

Não vinculando nessa medida o Estado Português, de acordo com o n.º 2 do artigo 8.º (“a contrario”) da Constituição da República.

Referem os Prof.ºs Jorge Miranda e Rui Medeiros (in “Constituição Portuguesa Anotada” I, 2.ª ed. 164):

“– Ainda a respeito do artigo 8.º, n.º 2, observe-se que:

- a alusão do artigo 8.º, n.º 2, a convenções “regularmente ratificadas ou aprovadas” tem de ser conjugada (como se vai ver) com o artigo 277.º, n.º 2;

- no preceito abrangem-se os acordos sob a forma de troca de notas, porque, entre nós estão sujeitos a aprovação;

- a expressão “enquanto vincularem internacionalmente o Estado português significa que a vigência na ordem interna depende da vigência na ordem internacional (as normas internacionais só vigoram no nosso ordenamento depois de começarem a vigorar no ordenamento internacional e cessam de aqui vigorar ou sofrem modificações, na medida em que tal aconteça a nível internacional);

- em contrapartida, a eventual não-vigência de qualquer tratado na ordem interna por preterição dos requisitos constitucionais não impede a vinculação a esse tratado na ordem internacional.”.

Reportando-se ao mesmo n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República escrevem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“CRP Anotada” I, 256):

- “ É importante a frase final do n.º 2, segundo o qual o direito internacional convencional vigora na ordem interna apenas enquanto vincular o Estado Português. Isto quer dizer que as normas de um tratado ou acordo só começam a vigorar na ordem interna no momento em que principiam a vincular internacionalmente o Estado e cessam de vigorar quando deixem de obrigar internacionalmente o Estado. Por isso, as normas de DIP convencional, mesmo após a sua ratificação ou aprovação regulares e a sua publicação no DR, só entram em vigor na ordem interna portuguesa a partir do momento em que comecem a vincular internacionalmente o Estado. Enquanto isso não der, falta o pressuposto essencial da recepção: a existência da própria norma de DIP a ser recebida. De igual modo, quando por qualquer motivo, o tratado ou o acordo deixa de valer ou de ter eficácia na ordem externa (denúncia, caducidade, etc.), cessa também, automaticamente, a vigência das suas normas na ordem interna, sem necessidade de qualquer acto legislativo interno. Ponto questionável é o de saber o que sucede quando as normas convencionais tenham sido «traduzidas» em lei interna.”

Diga-se, por isso, e, desde já, que o M.º Juiz recorrente foi rigoroso , na sua actuação jurisdicional ao procurar arredar a aplicação de um Tratado não vigente.

2- Da matéria de facto que foi dada por assente resulta que o Conselho Superior da Magistratura (entidade recorrida) fez constar da acta n.º 9/2012 de 23/4/12 (Plenário) o seguinte:

“Ponto n.º 3.2 – proc.º 2012 – 192/D1 e 1999-1253D

I- Apreciado o expediente apresentado pela Presidência do Conselho de Ministros, relativamente ao Novo Acordo Ortográfico – Publicações em Diário da República, bem como do expediente remetido pelo Exm.º Conselheiro do CSM Dr. ....

II – Apreciada a informação elaborada pelo Exm.º Adjunto do Gabinete de Apoio, Juiz de Direito, Dr. ..., relativamente ao Projecto Piloto de Actualização para Office 2007 e novo Acordo Ortográfico.

III – Apreciado o expediente apresentado pelo Exm.º Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Juiz Desembargador, Dr. ... e pela Exm.ª Juíza Presidente da Comarca do Alentejo Litoral, Dr.ª ..., relativamente ao Projecto Piloto da Actualização para Office 2007 e novo Acordo Ortográfico.

Depois de discutido, foi deliberado, informar os Exm.ºs Exponentes que o Conselho Superior da Magistratura não pode indicar aos Exm.ºs Juízes a forma em que as peças deverão ser publicadas, sendo que as mesmas deverão ser publicadas conforme forem elaboradas.

Mais foi deliberado que não podem os Exm.ºs Senhores Juízes indicar aos intervenientes processuais quais as normas ortográficas a aplicar.”

2-1- Esta deliberação não foi comunicada/circulada aos Magistrados Judiciais [Pelo menos o signatário dela não teve conhecimento] limitando-se a constar da acta no sitio” do CSM e não nos lugares próprios que, “in casu”, seriam as “janelas” -“avisos” ou “circulares”- que os Juízes consultam.

De outra banda as deliberações acima transcritas surgem, de certo modo, contraditórias e, por isso, susceptíveis de criarem confusão, já que a primeira veda ao CSM a prolação de instruções sobre a “forma” de publicação/publicitação das peças (processuais) enquanto a segunda parece pretender impedir os Magistrados Judiciais de procederem a mera indicação das grafias aos “intervenientes processuais”.

Ou seja, os Juízes são livres de escreverem como entenderem mas ficam-lhes vedadas indicações (ou seja, sugestões) sobre a ortografia a quem intervenha nos processos que dirigem o que propicia que estes tenham uma “dupla grafia”.

2-2- Esta última parte não se caracteriza como “ordem” já que não se trata de um comando, individualmente dirigido, a impor determinada conduta, mas sim de mera instrução com natureza de circular.

Ensina o Prof. Freitas do Amaral (in “Curso de Direito Administrativo”, I, 1989, p. 644) “cumpre não confundir as ordens com as instruções. As ordens traduzem-se em comandos individuais e concretos: através delas o superior determina aos subalternos a adopção de uma determinada conduta específica. (…) As instruções traduzem-se em comandos gerais e abstractos: através dela o superior determina aos subalternos a adopção, para o futuro, de certas condutas sempre que se verifiquem as situações previstas. Denominam-se circulares as instruções transmitidas por escrito e por igual a todos os subalternos.”

Com resulta do exposto esta dogmática tem subjacente uma relação de hierarquia, que aquele Mestre define como “o modelo de organização administrativa constituído por um conjunto de órgãos e agentes com atribuições comuns e competências diferenciadas, ligadas por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direcção e ao subalterno o dever de obediência.” (ob. cit. 1.º, pág. 638), procedendo depois ao “distinguo” entre hierarquia interna (“… modelo de organização interna dos serviços públicos que assenta na diferenciação entre superiores e subalternos.”) e a hierarquia externa (onde existem subalternos “que são, eles também, órgãos com competência externa”). – cfr. ainda, e v. g. Paulo Otero – “Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa”; Marcello Caetano – “Manual de Direito Administrativo”, 10.ª ed., 242 ss, 468 e 708 ss; M. Esteves de Oliveira, “Direito Administrativo” I, 415 ss).

Certo, contudo, que inexiste qualquer relação de hierarquia entre o Juiz, no exercício da sua função soberana de julgar, como Tribunal e o Conselho Superior da Magistratura.

Nos termos do artigo 203.º da Constituição da República “os Tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” e não a quaisquer “ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas pelos tribunais inferiores em via d recurso por tribunais superiores” (Estatuto dos Magistrados Judiciais – artigo 4.º).

O Conselho Superior da Magistratura é um órgão de gestão e disciplina dos Tribunais Judiciais, homólogo ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, quanto aos Tribunais com essa jurisdição (Estatuto dos Magistrados Judiciais – artigos 136 ss).

E não resulta das competências elencadas – ainda que não taxativamente – do artigo 149.º do último diploma citado que o CSM possa dar ordens ou instruções/circulares aos Juízes sobre processos pendentes e despachos ou decisões, ainda que de mero expediente, a aí proferir em tudo o que não tenha a ver com a mera gestão/ ou expediente adjectivo, e só no propósito de contribuir para um melhor funcionamento e prestígio dos Tribunais.

3- Do exposto resulta que não considere que tenha havido violação do dever de obediência por parte do Ilustre Magistrado recorrente, fundamentalmente por três ordens de razões:

– Tratou-se de proferir um despacho num processo, no exercício do seu poder soberano de julgar;

– Se o mesmo se traduzisse na comissão de uma ilegalidade – por desentranhamento (?) de um laudo pericial (v.g. artigo 160.º do Código de Processo Penal) – seria recorrível, pelo M.º P.º ou pelo arguido, o que mais convence da sua natureza jurisdicional.

E então, sim, se o Tribunal Superior determinasse a sua manutenção, tal qual, no processo é que o incumprimento desse aresto traduziria desobediência;

– Finalmente, e no tocante ao dever de obediência, o Estatuto dos Magistrados Judiciais só a ele se refere no artigo 4.º quando trata da independência reportando-se ao acatamento das decisões dos tribunais superiores e em sede de recurso.

No mais, as infracções disciplinares, que são atípicas e cujos conceitos têm de ser densificados surgem esparsas a propósito da medida das penas, sempre em conexão com deveres funcionais (“… actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.”).artº 82º EMJ.

Trata-se, no fundo, de sancionar uma conduta, mais ou menos, atentatória do prestígio e da dignidade da função de Juiz, para o que apontam os artigos 91.º a 95.º daquele diploma.

Concluo, e sem querer ser mais exaustivo. pela inexistência da primeira infracção imputada.

Tanto bastaria para o provimento do recurso, anulando-se a deliberação por erro sobre os pressupostos de direito.

4-“Ex abundantia”, direi ainda que cairá a imputação de ter sido violado o dever de correcção.

Aplicando subsidiariamente o Código de Processo Civil verifica-se que o especial dever de correcção ou urbanidade constante do artigo 9.º, embora, na letra do preceito esteja reportada apenas às relações entre advogados e magistrados, pode estender-se aos contactos verbais ou escritos entre todos os intervenientes no processo.

Mas o n.º 2 da norma exige a utilização de expressões “desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra e do bom nome” ou “do “respeito devido às instituições”.

Nada disso ocorreu.

O texto sancionado que, acentua-se, está ao abrigo da irresponsabilidade do seu subscritor, não excede os limites de uma crítica tantas vezes presente em articulados ou escritos forenses que não surgem epidermicamente sentidos.

A assim não ser os tribunais estariam assoberbados com pedidos de sanções processuais, de litigância cível, criminal ou mesmo em sede de tributação incidental.

Nos termos expostos, daria provimento ao recurso anulando a deliberação posta em crise, sendo que, e no eventualmente omisso, adiro à fundamentação do Projecto de Acórdão oportunamente vencido.

Sebastião Póvoas (Presidente da Secção)