Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1774
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PROMITENTE-VENDEDOR
CÔNJUGE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM COMUM
CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
DEPÓSITO DO PREÇO
Nº do Documento: SJ200407010017742
Data do Acordão: 07/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 633/03
Data: 10/30/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I. Se não cumprida a promessa, pode o contraente fiel, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida (art. 830º, nº. 1, do C. Civil).
II. Não tendo o cônjuge mulher assinado o contrato promessa, não assumiu ela, nos termos desse preceito, qualquer obrigação a cuja satisfação o tribunal se possa substituir.
III. Não há, nesta sede, que chamar à colação o disposto nos arts. 1682º-A, nº. 1, a), e 1687º, nº. 1, do C. Civil, pois que se trata de um domínio meramente obrigacional que não da oneração ou alienação de um qualquer direito real sobre imóvel.
IV. Ainda que seja válida a promessa feita por um só dos cônjuges isoladamente de acto que requeira a outorga de ambos, a mesma só vincula, em princípio, o cônjuge que se obrigou, que não também o cônjuge não outorgante.
V. Sendo comum o imóvel objecto do contrato prometido (regime de comunhão geral de bens), não se torna possível obter execução específica da promessa de venda desse prédio, se a Ré mulher não se houver vinculado ao cumprimento da promessa nem houver consentido na alienação.
VI. Se ao obrigado for lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal - nº. 5 do art. 830º do C. Civil.
VII. Não é aceitável transformar-se a consignação em depósito num pressuposto de apreciação do mérito do pedido de execução específica, uma vez que tal prazo é meramente acessório da pretensão de execução específica.
VIII. O prazo estabelecido pelo juiz de 1ª instância para a consignação em depósito conta-se a partir do trânsito em julgado da decisão final que dê ganho de causa ao autor, o que poderá vir a acontecer apenas nos tribunais superiores.
IX. O pedido de fixação de prazo para a efectivação do depósito pode ser espontaneamente deduzido ou solicitado por qualquer das partes ou determinado "ex-officio" pelo juiz do processo, neste último caso perante a susceptibilidade abstracta da invocação da «exceptio non adimpleti contratus».
X. Mesmo o tribunal de recurso pode tomar a iniciativa de mandar baixar os autos à 1ª instância para feitos de efectivação dessa consignação em depósito.
XI. Se não houver sido invocada pelos RR qualquer "exceptio non adimpleti contratus", não tem cabimento a consignação em depósito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Por despacho-saneador sentença de 10-2-02, o Mmo. Juiz da Comarca da Ribeira Grande, julgou improcedente a acção ordinária que por essa comarca foi movida por A contra B e C.
2. Inconformado apelou o A. mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 30-10-03, negou provimento ao recurso.

3. De novo inconformado, desta feita com tal aresto, dele veio o A. recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- O douto acórdão da Relação de Lisboa ao decidir pela improcedência do pedido de execução específica por falta de consentimento da Ré-mulher à venda pelo Réu-marido prometida, viola o disposto nos arts. 1687º, nº. 1 e nº. 2, 1682º-A, nº. 1, alin. a), do C. Civil;
2ª- Ao decidir pela improcedência do pedido de execução específica por falta de consignação em depósito nos termos do art. 830º, nº. 5 do C. Civil, a decisão recorrida errou notoriamente na interpretação do artigo e em causa, devendo em consonância ser revogada;
3ª- Erra ainda o douto acórdão relativamente à quantia a consignar em depósito, uma vez que a quantia ordenada é muito superior à quantia a consignar nos termos do art. 830º, nº. 5, devendo também aqui ser revogada a decisão;
4ª- Ao decidir como decidiu, o douto acórdão do Tribunal da Relação violou o correcto entendimento dos supra indicados preceitos legais.

4. Contra-alegaram os RR sustentando a correcção do julgado formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1ª- a)- O contrato promessa de compra e venda sub judice foi assinado apenas pelo A, ora recorrido, e pelo R., ora recorrente. Pelo que;
b)- Relativamente a esse contrato e às obrigações nele assumidas, a R. é terceira. De resto;
c)- A procuração( cfr. fls. 60-62) outorgada pela Ré a favor do R. data de mais de um ano após a celebração do contrato promessa e dela não constam poderes para ratificar actos anteriores. E;
d)- Quer dessa procuração quer da carta que o mandatário dos RR. enviou ao A. (tão só em nome do R, nela não constando qualquer alusão ou autorização ou confirmação da R mulher no sentido da outorga da escritura) não se retira qualquer consentimento tácito da R. ao aludido contrato de promessa.
2ª- Sendo o imóvel objecto do contrato prometido propriedade comum não pode obter-se execução especifica da promessa de venda desse prédio, se a Ré mulher não se vinculou pelo contrato, nem consente a sua alienação. (Acs. do STJ de 28/6/84, in, BMJ, 338º-449, e 21/3/85 in BMJ, 345º 408);
3ª- Também não aproveita ao recorrente a invocação dos artigos 1682º-A, nº. 1 - a) e 1687º, nº. 1 do CC. De facto, como bem refere o acórdão recorrido, «os mesmos não se aplicam ao contrato promessa celebrado, que não é susceptível de por si consubstanciar nenhum dos efeitos aí previstos, nomeadamente as invocadas oneração ou a constituição de direito de gozo sobre o imóvel»;
4ª- Tendo o autor, ora recorrente, sido notificado para proceder ao depósito do remanescente do preço ainda em dívida (fls. 781vº e 79), não o fez no prazo que lhe foi fixado pelo tribunal - nem recorreu desse despacho - o que nos termos do artigo 830º, nº. 5, do Cód. Civil sempre determinaria a improcedência da acção quanto à execução específica (o que de resto, «sibi imputet»).

5. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar.

6. Âmbito da revista.
Elegeu a Relação como "thema decidenda" as seguintes questões:
- alegada ilegitimidade da R mulher e suas consequências quanto à sorte da instância;
- reflexos da falta de assinatura daquela no contrato promessa sobre o mérito do pedido principal (execução específica) e seu eventual suprimento pelo alegado consentimento da R;
- regime, oportunidade e consequências da falta de consignação em depósito.
No presente recurso não vem porém reeditada a questão do pressuposto processual da legitimidade, centrando-se o objecto da revista apenas nos dois restantes pontos.

7. Reflexos da falta de assinatura da Ré no contrato promessa sobre o mérito do pedido principal (execução específica) e seu eventual suprimento pelo alegado consentimento da R.
Tal como se salientara já no saneador-sentença, a Ré passou uma procuração a favor do R. subscrita em data posterior à da celebração do contrato promessa, não se exarando nela quaisquer poderes de ratificação de actos anteriores.
De resto, a carta que o mandatário dos RR enviou ao A. foi remetida apenas em nome do Réu, nela não se fazendo alusão a uma qualquer autorização/confirmação da Ré-mulher no sentido da outorga da escritura.
O contrato promessa de compra e venda fora, aliás, assinado apenas pelo A. e pelo R. a título individual, apenas vinculando por isso, e em princípio, esses contraentes "uti singuli".
Tal contrato, de natureza obrigacional, perfilar-se-ia, pois, em relação à pessoa da Ré uma verdadeira "res inter alios".
A letra da lei é clara a este propósito: "Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida" (art. 830º, nº. 1, do C. Civil).
Não tendo, assim, a Ré assinado o contrato promessa, não assumiu ela, nos termos desse preceito, qualquer obrigação a cuja satisfação o tribunal se pudesse substituir.
Sustenta o Autor, ora recorrente, que, muito embora a Ré não haja assinado o contrato promessa, a ele aderiu ulteriormente confirmando-o, por essa via se obrigando a cumpri-lo, ou seja a outorgar conjuntamente com seu marido a escritura pública de compra e venda definitiva.
Mas tal asserção - tal como a Relação realça - não é legitimada pelos factos: os concretos termos da falada procuração e da citada missiva.
E não há aqui que chamar à colação o disposto nos arts. 1682º-A, nº. 1, a), e 1687º, nº. 1, do C. Civil apenas invocáveis em sede de oneração ou constituição de direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns ou de estabelecimento comercial próprio ou comum.
Trata-se de um domínio meramente obrigacional que não da oneração ou alienação de um qualquer direito real sobre imóvel.
Não há, deste modo, que falar em confirmação ao menos tácita com o decurso do prazo de anulação do contrato promessa, referido no art. 1687º do C. Civil.
O contrato promessa celebrado pelo A e pelo R - a que se reportam dos autos - é perfeitamente válido e perfeito nos precisos termos em que foi celebrado, obrigando apenas ambos os outorgantes, ainda que ineficaz em relação à Ré mulher. Na realidade, e tal como postula o nº. 2 do art. 410º do C. Civil, a promessa relativa à celebração de um contrato de compara e venda de bens imóveis só poderá valer se constante de documento assinado pela parte que se vincula.
Ainda que seja válida a promessa feita por um só dos cônjuges isoladamente de acto que requeira a outorga de ambos, a mesma só vincula, em princípio, o cônjuge que se obrigou, que não também o cônjuge não outorgante. De resto, com vista à ponderação de uma eventual comunicabilidade da dívida nada foi alegado no sentido do apuramento do proveito comum do casal nos termos e para os efeitos da al. d) do nº. 1 do art. 1691º do C. Civil.
Na esteira da jurisprudência corrente, sendo comum o imóvel objecto do contrato prometido (v.g. sendo cônjuges casados em regime de comunhão geral de bens), não se torna possível obter execução específica da promessa de venda desse prédio, se a Ré mulher não se houver vinculado ao cumprimento da promessa nem consentir na sua alienação - conf., v.g. os Ac. deste Supremo Tribunal de 28-6-84, in BMJ nº. 338, pág. 449, e de 21-3-85, in bidem nº. 345, pág. 408, citados pelo recorrido.
Não é, pois, de responsabilizar a Ré pela não outorga da escritura de alienação do imóvel conjuntamente com o Réu marido, isto é pelo cumprimento da promessa por ele assumida a título individual, não obstante os cônjuges se encontrarem casados segundo o regime da comunhão geral de bens.
E daí que, como o contrato só podia ser celebrado por ambos os cônjuges (art. 1682º, nº. 1, al. a) do C. Civil), sob pena de anulabilidade (art. 1687º do C. Civil), não seja possível ao tribunal suprir a respectiva recusa de outorga através da emissão de uma decisão substitutiva (execução específica).

8. Regime, oportunidade e consequências da falta de consignação em depósito.
A Relação já esclareceu cabalmente a questão do montante a consignar em depósito.
Ele corresponderia à diferença entre o preço da coisa prometida vender e a quantia global já adiantada pelo promitente comprador, adicionando o que foi entregue a título de sinal ou, apenas, como antecipação do pagamento. Como assim, teria incorrido em «lapsus calamis» o despacho do Sr. Juiz, na medida em que não levou em conta a quantia entregue posteriormente ao recorrido pelo recorrente, mais propriamente em 13-9-01, no montante de 4.978,98 €.
E quanto à oportunidade da efectivação do depósito?
Estatui o nº. 5 do art. 830º do C. Civil que "no caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal".
Mas qual o momento em que o depósito deve ser feito?
Escreve a este respeito o Prof. Almeida Costa in "Contrato-Promessa" - Uma Síntese do Regime Vigente", 6ª ed. Revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 56:
"O nº. 5 do art. 830º merece alguma atenção. Com efeito, a excepção do não cumprimento do contrato, não é do conhecimento oficioso. Porém, uma vez deduzida pela contraparte na respectiva contestação, cabe ao tribunal, antes de mais, averiguar se essa excepção se mostra ou não procedente, o que pode exigir a produção de prova na altura própria. Se a excepção proceder, o juiz deverá - mas só na decisão final que decrete a execução específica - tornar esta dependente da consignação em depósito, dentro do prazo que fixe, da contraprestação cuja falta se demonstre. Não se afigura aceitável, na verdade, entender que o legislador tenha pretendido transformar a consignação em depósito num pressuposto de apreciação do mérito do pedido de execução específica. A seguir-se a opinião contrária, correr-se-ia o risco de o tribunal ordenar a consignação em depósito, por admitir que se estava perante um contrato que permitia invocar a excepção de não cumprimento, e o autor ver a acção julgada improcedente pela simples falta dessa consignação, sem que fossem apreciados os fundamentos da execução específica" (sic).
"A referida interpretação do nº. 5 do art. 830º conduz à solução razoável em primeira instância. Mas, se há recurso para a Relação ou para o Supremo? Parece que em qualquer das situações o prazo estabelecido pelo juiz de 1ª instância para a consignação em depósito da contraprestação da parte que pretenda a execução específica do contrato-promessa se conta a partir do trânsito em julgado da decisão final que lhes dê ganho de causa, o que poderá vir a acontecer apenas nos tribunais superiores. O aludido prazo é, sem dúvida, meramente acessório da pretensão de execução específica" (igualmente sic).
No mesmo sentido, veja-se o mesmo autor, in RLJ, ano 129º, pág. 196.
Dentro desta linha vai a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal, para a qual o pedido de fixação de prazo para a efectivação do depósito previsto no nº. 5 do art. 830º do C. Civil pode ser espontaneamente deduzido ou solicitado por qualquer das partes ou determinado "ex-officio" pelo juiz do processo, neste último caso perante a susceptibilidade abstracta da invocação da «exceptio non adimpleti contratus» - conf. v.g. os Acs. de 24-10-94, in CJSTJ, ano II, 1994, Tomo III, pág. 100 e in BMJ nº. 384º e de 29-4-99, in Proc. 77/99 - 2ª Sec, in "Sumários" do STJ, nº. 30, pág. 49. E mesmo o tribunal de recurso pode tomar a iniciativa de mandar baixar os autos à 1ª instância para feitos de efectivação dessa consignação em depósito, pelo requerente da execução específica - conf. Ac. STJ de 16-1-03, in Proc. 4023/02 - 2ª Sec.
Tal norma possui como "ratio essendi" segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol II, págs 105 e ss, "evitar que uma das partes fique impossibilitada de invocar a excepção de não cumprimento. "Sendo o caso de promessa de compra e venda, o tribunal não pode lavrar a sentença da venda sem que o promitente comprador deposite o preço no prazo que lhe for fixado, para não acontecer que o promitente vendedor fique despojado da coisa sem o recebimento simultâneo do preço".
Mas não pode deixar de ter-se por conveniente - acrescentamos nós - não sujeitar o promitente comprador ao depósito do preço num momento em que ainda não se sabe se a sua pretensão é ou não acolhida pelo Tribunal. De resto, no caso «sub-specie» nem sequer havia sido invocada pelos RR qualquer "exceptio non adimpelti contratus» pelo que nem sequer teria cabimento a questionada consignação em depósito.
Não seria pois de conclui pela forma simplista como o fez a 1ª instância - tal como agora os recorridos sustentam - que a não consignação em depósito da quantia a que se reporta o citado nº. 5 do art. 830º do C.Civil acarretaria só por si a "improcedência da acção de execução específica".
O que sucede é que tal questão se mostra agora prejudicada face à impossibilidade de cumprimento definitivo da promessa resultante da não vinculação do cônjuge-mulher aos respectivos termos, tal como acima deixámos dito.

9. Decisão:
Em face do exposto, decidem, ainda que por fundamentação algo diversa:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 1 de Julho de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Ferreira Girão