Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4413
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GIL ROQUE
Descritores: PROTECÇÃO DA NATUREZA
PROTECÇÃO DOS ANIMAIS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Nº do Documento: SJ200703150044137
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A prática desportiva de tiro com chumbo aos pombos em voo, apesar de se proceder ao arranque prévio das penas da cauda e só depois serem lançados em voo, a morte ou a lesão física que resulta dos tiros que se lhe seguem, não envolve sofrimento cruel nem prolongado.
2. O tiro aos pombos em voo, constitui uma modalidade desportiva, com longa tradição cultural em Portugal, regulada pela Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça, com estatuto de utilidade pública desportiva e, não se enquadra na proibição prevista pelo artigo 1.º , n.ºs 1 e 3 alínea e) da Lei n.º 92/95 de 12 de Setembro, nem por qualquer outra disposição legal.
3. A Lei n.º 92/95 de 12/09, tem em vista proteger os animais contra violências cruéis ou desumanas, que não se verificam com o tiro aos pombos em voo, por essa prática, não caracterizar crueldade ou desumanidade e se justificar por existir reconhecida tradição cultural enraizada numa grande camada do povo português, não estando por isso abrangida na referida previsão legal. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I - RELATÓRIO:
1- A Sociedade Protectora dos Animais intentou, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário (n.o 2117/04, 3.ª secção, 2.ª Vara), contra o Clube de Tiro de ... e a Federação Portuguesa ..., pedindo que fosse declarada ilícita a actividade destes Réus, consistente na prática de tiro a animais, maxime a pombos, e que, por consequência, fossem os mesmos condenados a absterem-se de realizar os concursos de tiro aos pombos que estavam marcados para os dias 26, 27 e 28 de Março de 2004, e, bem assim, a absterem-se de realizar estas provas em quaisquer outras datas.
Alegou, para tanto, e em síntese, que:
- é uma associação zoófila, cujos estatutos foram aprovados pelo alvará n.° 23/949, de 13 de Junho de 1949;
- tem como fins, entre outros, impedir e reprimir tudo quanto represente crueldade contra animais e assegurar o respeito pelos seus direitos;
- tem conhecimento de que os Réus organizaram concursos de tiro com chumbo e utilização de alvos vivos;
- os Réus promoveram, nas instalações do Clube de Tiro de ....., um torneio de tiro aos pombos, que teve lugar em 7 e 8 de Fevereiro de 2004;
- iriam levar a cabo, nas instalações do Clube de Tiro de ...., um torneio de tiro aos pombos nos dias 26, 27 e 28 de Março do corrente ano de 2004, provas que integram a Taça de Portugal de 2004;
- porém, tais provas só não se realizaram porque foi interposto um procedimento cautelar, com vista a impedir a sua realização, e que foi julgado procedente.
- entende que tal prática é claramente violadora do disposto no art. 1.0 da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, que estipula, no seu n.°1, que "são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal";
nos torneios organizados pelos Réus, os pombos são sacrificados, aos milhares, apenas por uma questão de divertimento e gozo dos atiradores e espectadores.
Devidamente citados, os réus vieram contestar, defendendo a legalidade da actividade de tiro ao voo em Portugal, e, portanto, pedindo que a acção seja julgada improcedente, devendo ser absolvidos do pedido.
Proferido o despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborados os quesitos da base instrutória, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, e foi proferida sentença em que, julgando-se a presente acção procedente, se declarou ilícita a actividade dos Réus, consistente na prática de tiro a animais, maxime a pombos, condenando-se os mesmos Réus, a título definitivo, a absterem-se de realizar os concursos de tiro aos pombos que estavam marcados para os dias 26, 27 e 28 de Março de 2004 e, bem assim, a absterem-se de as realizar em quaisquer outras datas.
Apelaram os Réus e na sequência do recurso, foi proferido acórdão que julgando procedente a apelação, revogou a sentença recorrida, declarou lícita a actividade desportiva de tiro ao voo de pombos e absolveu os réus/apelantes do pedido.

2 – Inconformada, recorreu de revista a autora e foram apresentadas alegações e contra-alegações, concluindo a recorrente nas suas do seguinte modo:
- O art. 1º da Lei 92/95 aponta como regra geral a proibição de todas as violências injustificadas contra animais, pelo que o conceito de “necessidade” tem que ser aferido face à” ratio” da própria lei em questão e face ao escopo que ela visa alcançar.
- A necessidade, que se consubstancia na permissão de violar o bem autónomo que é a protecção dos direitos dos animais, implica, antes de mais, que haja uma utilidade válida na protecção de um bem jurídico superior, para o homem ou para a sociedade.
- Na actividade desportiva em apreço, o objectivo é matar os animais, sendo certo que os que não têm esse malfadado destino, acabam por sofrer lesões graves. São raras as vezes que um pombo escapa ileso ou com apenas lesões insignificantes.
- Da penetração do chumbo de espingarda num animal, com as características do pombo, decorrerá directa e consequentemente graves lesões no animal ou a sua morte, encontrando-se assim plenamente preenchida com a prática aqui em crise - e em mais que uma vertente a dimensão material da conduta humana considerada antijurídica pela Lei 92/95, de 12 de Setembro.
- É necessário ponderar se o valor que se pretende salvaguardar com a actividade dos recorridos e que tem como consequência directa a morte de milhares de animais (ponto 4), é superior ao valor subjacente às medidas de protecção animal consubstanciadas na Lei n.º 92/95 – a sua dignidade autónoma enquanto seres vivos.
- Nos concursos de tiro ao voo, não se retira qualquer utilidade pela morte dos pombos, que não seja um acréscimo de dificuldade em termos da perícia do atirador. Os animais servem de mero objecto-alvo, cujas funções são facilmente substituíveis por um número variado de objectos inanimados. A referida utilidade não é passível de atendimento na medida em que manifestamente o valor a atender para a sua violação é inferior ao que subjaz à protecção dos animais.
- Numa prova de tiro está a discutir-se a perícia dos atiradores. É este o objecto de um campeonato ou torneio de tiro, seja a hélices, a alvos vivos ou a pratos. O critério da “necessidade” da morte, graves lesões ou sofrimento cruel e prolongado dos animais tem que ser aferido tendo em conta esta realidade e não outra
- A substituição de animais vivos por alvos artificiais (tiro aos pratos e às hélices) não iria aliás deturpar o desporto que continuaria com mesma eficácia e objectivos, mas com uma pequena grande diferença – a substituição em apreço traduziria uma evolução civilizacional consentânea com os valores dominantes na sociedade portuguesa do século XXI, que de modo algum se sente identificada com uma prática que se traduz em utilizar animais enquanto alvos.
- O facto de a actividade desenvolvida pelo Recorrido ser coordenada por uma pessoa colectiva de interesse público cuja qualidade foi adquirida no ano de 1994, não justifica, só por si, a utilização de animais de voo para o acto. A pessoa colectiva terá de acatar o direito vigente, se porventura lhe proibir esta actividade. Terá de adaptar-se à nova situação jurídica, se esta não lhe permitir o uso de animais de voo, para serem abatidos nos concursos que superintende.
- O texto final da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não ressalva a modalidade em questão no presente recurso e o legislador certamente não a desconhecia.
- Ao retirar a proibição da versão inicial, pretendeu o legislador adoptar uma boa técnica legislativa. Poderia o legislador fazer uma enumeração taxativa e exaustiva do que o ordenamento jurídico considera proibido. Tais enumerações, no entanto, nunca são aconselháveis por falíveis, sendo utilizadas apenas para melhor clarificação da Lei. À altura da elaboração do texto final, o legislador considerou que o art.º1, n.º1, da Lei 92/95 era suficientemente claro
- Enquanto a actividade de tiro ao pombo assenta na manutenção ou desenvolvimento da perícia no manejo de armas de fogo de caça por parte dos concorrentes, no desenvolvimento duma actividade lúdica, nas largadas previstas no regime da caça, a sua finalidade é o acto venatório.
- O suposto paralelismo com a caça, por via das largadas, era defendido pelos recorridos e foi à Base Instrutória (quesito 9) com a seguinte formulação: Existe semelhança total entre a actividade do tiro aos pombos e as chamadas largadas (...). A resposta foi negativa e a Relação não a alterou.
- No caso da pesca desportiva, o peixe é mantido vivo num recipiente com água e devolvido ao rio ou mar logo que o concurso acaba. A actividade, ao contrário, do tiro ao alvo não implica a morte ou sofrimento dos animais. Mesmo no caso da pesca dita amadora, esta tem sempre subjacente a alimentação do Homem. Além de que não existem alternativas mecânicas à pesca desportiva.
- As touradas, por seu lado, têm um longo passado histórico, tendo sido declaradas “práticas nacionais” aquando da ocupação castelhana, e bem assim, actualmente, encontram-se adstritas principalmente às zonas do Ribatejo, do Alentejo e a grande parte da zona Raiana.
- A actividade de tiro aos pombos não encontra qualquer paralelismo com as outras actividades indicadas pelo tribunal a quo. E mesmo que se considerasse haver algumas semelhanças no plano descritivo entre o tiro aos pombos e outras actividades desportivas, a verdade é que não existe uma equivalência normativa das situações.
- Na realidade, no ponto 16 da matéria dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância, pode ler-se claramente: “Nos torneios de tiro aos pombos existem árbitros, sanções aplicadas aos atiradores que não cumprem o regulamento, há atiradores que são eliminados e, no fim das provas, há prémios, como em qualquer competição desportiva. Nada disto se verifica nas largadas que são um acto cinegético.”
- Ao retirar a proibição da versão inicial, pretendeu o legislador adoptar uma boa técnica legislativa. Poderia o legislador fazer uma enumeração taxativa e exaustiva do que o ordenamento jurídico considera proibido. Tais enumerações, no entanto, nunca são aconselháveis por falíveis, sendo utilizadas apenas para melhor clarificação da Lei.
- A actual lei, em detrimento do seu projecto, pelo acima exposto, deixou de consagrar expressamente a proibição de provas de tiro com animais vivos. Isto porque, dada a falta de tradição deste tipo de prática em Portugal (ao contrário do que defendem os Recorridos), as provas com utilização de alvos vivos estarem já incluídas no n.º 1 do vertente artigo.
- A eliminação do n.º 3 da referência às provas de tiro a alvos vivos apenas nos permite concluir que o legislador optou por não proibir expressamente esta actividade. Esta proibição seria, de resto, desnecessária em face da cláusula geral consagrada no n.º 1,do artigo 1º.
- Com a entrada em vigor da Lei 92/95, os animais passaram a ser contemplados numa óptica em que se procura proteger as espécies enquanto tal, visto entender-se que as mesmas são parte essencial do equilíbrio ecológico. Os animais passaram a ser considerados seres vivos que o ordenamento entende serem dignos de protecção, proibindo-se a sua morte e o seu sofrimento desnecessários.
- O Acórdão recorrido vem alterar a resposta dada ao quesito 11º da base instrutória, dando como assente que o tiro aos pombos consta há dezenas de anos dos programas de várias festas populares. Para esse efeito, socorre-se do artigo 514º e 712º /2, ambos do CPC.
- Sendo este recurso de revista, o recorrente pode sempre alegar a violação da lei de processo , “ex vi” do previsto na artigo 722º/1 do CPC. Por outro lado, mesmo no âmbito de um recurso de Revista, e atendendo à necessidade absoluta de respeitar o princípio do contraditório, o recorrente pode, em sede de impugnação da alegada notoriedade, pôr em causa a notoriedade do facto, quer quanto à geração do conhecimento, quer quanto à sua generalidade, o que aqui se deixa expressamente exarado.
-Ora olhando objectivamente para as longas conclusões das alegações dos então recorrentes e ora recorridos no recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, verifica-se que na conclusão 35º apenas se refere entre parênteses “cassete 3, lados A e B”. No entanto, o artigo 690-A/2 do CPC diz-nos que incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, “indicar os depoimentos em que se funda nos termos do disposto no nº2 do artigo 522º-C, isto é, o início e termo da gravação de cada depoimento. Este ónus foi incumprido pelos Recorridos nas suas alegações.
- O acórdão da Relação não rejeitou o recurso sobre a matéria de facto, fazendo tábua rasa do disposto nos artigos 690-A/2 e do disposto no nº2 do artigo 522º-C, violando expressamente a lei de processo.
- Conforme se pode verificar das transcrições dos depoimentos das testemunhas indicadas pela ora Recorrente, um deles inclusivamente o próprio Secretário –Geral de uma Federação de Caçadores, afirmaram cabalmente não terem conhecimento de qualquer festa popular com tiro a alvos vivos, pelo que resulta claro que o Tribunal “a quo” bem andou ao dar como não provado o quesito 11 da base instrutória
- Ora, a simples antiguidade de uma modalidade não é requisito suficiente para fazer dela uma actividade tradicional, no tempo presente. Isto porque, apesar de antiga, a prática nunca conseguiu adesão por parte da comunidade, ou porque, devido à evolução das mentalidades, a sociedade a abandonou.
- Em Portugal onde as únicas tradições, se é que se pode utilizar validamente este termo, são a caça e as touradas à portuguesa, o legislador entendeu por bem apenas excepcionar estas duas modalidades, alegadamente susceptíveis de fazerem parte do património cultural nacional.
- Não existe em Portugal qualquer tradição que justifique o tiro aos pombos, tratando-se até de uma actividade bastante restrita, sob o ponto de vista da sua adesão social.
Deverá a actividade de tiro aos pombos ser considerada ilícita, revogando-se a decisão recorrida.

3 - Responderam os recorridos, rematando as alegações em síntese com as conclusões:
- No ordenamento jurídico português os animais são coisas, nomeadamente coisas móveis, nos termos dos art°s. 202 nº 1 e 205° nº 1 do Código Civil, como é confirmado pelo teor do artº 212, nº 3 do CC.
- A atribuição do direito à vida aos animais não poderia ser operada através de meios legislativos ordinários, mas apenas por meio de alterações constitucionais implicando uma revisão total da sistemática constitucional.
- E se os animais tivessem direito à integridade pessoal ou física (art°. 70°. Do CC), qualquer violação de tal pretenso direito só seria lícita em caso de legítima defesa, ou em qualquer outro caso de exclusão de ilicitude o que seria um absurdo jurídico consistente em aplicar aos animais figuras jurídicas aplicáveis ao Homem, como é o caso do direito subjectivo, que tem subjacente a autonomia que o caracteriza e que falta ao animal.
- A protecção dos animais nunca foi, nem nunca poderia ter sido, operada através da atribuição de direitos aos mesmos, pelo que falar de “direitos dos animais” não passa de uma enormidade jurídica.
- No tiro ao voo ou aos pombos ocorre a morte dos animais imediatamente ou muito rapidamente e sem sofrimento donde o sofrimento quase nunca ter lugar, muito menos de uma forma cruel no sentido empregue pela Lei nº 92/95.
- Assim, por um lado, em vez de "sofrimento" e "lesão", a versão final da lei aprovada exige o "sofrimento prolongado e cruel" e "graves lesões", num claro sentido de reprovar apenas os casos mais extremos de maus tratos e revelando, de tal modo, uma muito menor exigência do que o projecto de lei nº530/VI.
- A vontade do legislador, foi a de manter a licitude da actividade do tiro aos pombos.
- No plano teleológico, dada a finalidade da Lei 92/95, a palavra "necessidade" não pode ser interpretada em sentido puramente económico, impondo-se, por ser a única solução respeitadora da teleologia da lei, uma conveniente articulação e ponderação de valores jurídicos, tutelados a diversos níveis, de modo a que eventuais excepções sejam permitidas pelo facto de a protecção dos animais dever ceder a outros valores hierarquicamente superiores, o que só é possível através da analogia.
- Se analisarmos as excepções expressamente previstas à Lei nº 92/95 verificamos que todas elas se fundam em princípios gerais do ordenamento jurídico português, com consagração constitucional, no caso das touradas, caça e arte equestre os artigos 9°. alínea d), 73 e 78 da C.R.P. e, no caso da alínea f) do nº. 3 do artº. 1 da Lei nº. 92/95, o nº. 4 do art°. 73°, da C.R.P.
- As excepções referidas na conclusão anterior derivam do princípio geral do ordenamento jurídico português de "defesa do património cultural", o qual permite inclusive restrições à liberdade de aquisição como sucede por exemplo num leilão quando o Estado exerce um direito de preferência obrigatório, "erga omnes", na aquisição de bens enquadráveis no conceito de "património cultural".
- Os diplomas legislativos disciplinadores da arte equestre, das touradas, da caça e da investigação científica não contêm normas excepcionais insusceptíveis de aplicação analógica, no sentido do artigo 11° do CC.
- Mais do que "extensão analógica", existe total semelhança entre a actividade do tiro ao voo ou aos pombos e as denominadas largadas, efectuadas durante todo o ano nos denominados "campos de treino de caça" ao abrigo dos artºs. 2° alínea I) da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei nº173/99 de 21 de Setembro) e 20º, alínea s) e 51° do respectivo Regulamento (Dec-Lei nº.227-B/2000 de 15 de Setembro).
- A defesa do "património cultural" é o único requisito ou fundamento constante em todas excepções consagradas de forma expressa na Lei nº 92/95 pelo que há que operar uma extensão analógica do conceito de “necessidade” referido na lei, extensão analógica essa que é a única conforme à ratio legis, sendo a finalidade da lei, para além da protecção dos animais, manter aquelas actividades que se enquadrem no valor jurídico fundamental que constitui o património cultural, incluindo as respectivas tradições.
- Acresce que a actividade do tiro ao voo não é substituível pelo tiro aos pratos, hélices ou qualquer outro, dadas as suas características próprias e autónomas, que dela fazem uma modalidade de tiro insubstituível por qualquer outra.
- No quadro legal do exposto na conclusão anterior não teria sentido que o legislador, que não pode desconhecer quais são os parceiros credenciados do Estado, no sector desportivo ou outro, depois de ter expressamente previsto a proibição daquela modalidade tivesse remetido para princípios genéricos do nº1 do artº lº da Lei 92/95 a regulamentação, em termos negativos, dessa mesma actividade.
- O Recorrido, nas suas alegações de Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, deu cumprimento ao disposto no artigo 690-A do CPC de forma a possibilitar àquele Tribunal o reexame da matéria de facto, o que foi feito sendo a mesma alterada.
Deverá ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido e ser julgado com intervenção do plenário das secções cíveis, o que se requer ao Venerando Juiz Conselheiro Presidente do STJ, uniformizando-se a jurisprudência no sentido de ser determinado que é lícita a actividade do tiro ao voo ou aos pombos no nosso País face à lei vigente.

- Corridos os vistos, cabe apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos:
A matéria de factos dada como provada nas instâncias é a seguinte:
1. A Autora é uma associação zoófila e tem como fins, entre outros, impedir e reprimir tudo quanto represente crueldade contra os animais e assegurar o respeito pelos seus direitos.
2. Os Réus, Clube de Tiro de... e Federação Portuguesa de Tiro com ..., organizam concursos de tiro com chumbo, com utilização de alvos vivos, nomeadamente um torneio de tiro aos pombos.
3. Em 7 e 8 de Fevereiro de 2004, os Réus levaram a cabo provas de tiro a alvos vivos, nas instalações do Clube de Tiro de .....
4. Provas essas que deram origem à morte de milhares de animais.
5. Os pombos utilizados nessas provas são especificamente comprados para esse efeito.
6. Tais animais são abatidos nas instalações do Clube de Tiro de.....
7. Aos pombos, antes de serem postos em liberdade, são-lhes arrancadas as penas da cauda.
8. Finalmente, os animais são mortos a tiro, cabendo a cada participante cerca de 15 pombos, e, no caso de empate, mais 10 pombos a abater.
9. Na sequência desta actividade, os animais morrem ou ficam feridos.
10. O transporte dos animais para os torneios de tiro é feito em jaulas, arejadas, não cobertas ou com taipais laterais, iguais às que servem para transportar pombos-correios para as provas respectivas.
11. Os animais não são alimentados durante o transporte, dado que este demora menos de três horas. Após a chegada ao clube, são colocados em pombais onde são alimentados.
12. As penas que são arrancadas da cauda dos pombos, são-no no momento em que são colocados nas caixas, já no decorrer da prova.
13. Tal tarefa é realizada por pessoal do campo, com experiência nessa tarefa;
14. O arranque das penas da cauda é feito com o propósito de tornar o voo dos pombos irregular.
15. Se algum pombo atingido não morre do tiro é, imediatamente, abatido por membros da organização, por meio da quebra das vértebras cervicais.
16. Nos torneios de tiro aos pombos existem árbitros, sanções aplicadas aos atiradores que não cumprem o regulamento, há atiradores que são eliminados e, no fim das provas, há prémios, como em qualquer competição desportiva. Nada disto se verifica nas “largadas” que são um acto cinegético.
17.A destreza dos atiradores pode também ser testada através de outros meios, nomeadamente, o fosso olímpico e as hélices, embora neste caso falte o factor da imprevisibilidade que caracteriza o movimento dos pombos.

B) Direito:
O objecto do recurso está balizado pelas conclusões que o recorrente tira das extensas alegações, como se dispõe nos artº 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 4, do Cód. Proc.Civil.
Apesar da recorrente ter tirado das alegações 54 conclusões, todas elas enquadram uma única questão que consiste em apurar e decidir se é legal ou não a modalidade de tiro aos pombos, ou em voo, com alvos vivos.
Na apreciação do recurso consideraremos, para além das conclusões que espelham a discordância do acórdão recorrido, o conteúdo deste e as alegações dos recorridos, sendo por isso necessário ter em consideração os seguintes aspectos:
- os factos assentes no acórdão recorrido e as disposições que lhe são aplicáveis;
- a interpretação e integração do art.º 1.º, n.1 da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, face à situação gizada nos autos e,
- o enquadramento da situação objecto de recurso, tendo em consideração os factos provados e a lei.

Vejamos cada um desses aspectos:

1 – A recorrente manifesta a sua discordância da decisão da matéria de facto pela Relação no acórdão recorrido, através das 38 ª à 49.ª conclusões, pondo em causa o modo como foram elaboradas as conclusões apresentadas na Relação pelo recorrido, entendendo que não foi dado correcto cumprimento ao disposto no artigo 690º-A do CPC e que por isso teria havido violação da lei processual pelo tribunal recorrido.

Vejamos lhe assiste razão:
Da análise das conclusões apresentadas pelas apelantes no Tribunal da Relação, verifica-se que nelas referem que face aos depoimentos constantes da “cassete 3, lados A e B” , as respostas dadas à matéria de facto no tribunal da 1.ª instância não se mostram em conformidade com a provava produzida, designadamente nos assinalados na cassete que indicaram.
É verdade que não referem o número das rotações onde se inicia e o termo da gravação de cada depoimento. Mas essa exigência referida no n.º2 do art.º 522.º-C do CPC, tem em vista a elaboração da acto do julgamento e por isso se diz que, “deve ser assinalado na acta o início e o termo de cada depoimento, informação ou esclarecimento”.
Embora no n.º2 do art.º 690-A do CPC, se determine que o recorrente deve indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos da referida disposição legal, não se entende que tenha de indicar as rotações sendo suficiente referir apenas os lados e o número da cassete ou cassetes, onde se encontram registados os depoimentos cuja apreciação é posta em causa.
As referências feitas pelos nas conclusões das alegações dos apelantes no Tribunal da relação, são suficientes para que os juízes deste localizem, como efectivamente localizaram os depoimentos postos em causa.
Não havia assim motivo para que o recurso não fosse aceite e por isso foi admitido o recurso.
Não houve assim, violação da lei adjectiva nem violação da lei e, a este Tribunal não cabe apreciar eventuais erros na apreciação das provas nem na fixação dos factos materiais da causa, uma vez que não se situa no âmbito do recurso de revista, como decorre do disposto no art.º 722.º n.º2 do CPC.
Improcedem assim as conclusões que a recorrente tira das alegações no que se refere à sua discordância do acórdão recorrido relativa à parte da decisão sobre matéria de facto.

Passando à análise da matéria assente, dela resulta que a recorrente é uma associação zoófila e tem como fins, entre outros, impedir e reprimir tudo quanto represente crueldade contra os animais e assegurar o respeito pelos seus direitos e os recorridos, Clube de Tiro de .... e Federação Portuguesa de ..., organizam concursos de tiro com chumbo, com utilização de alvos vivos.
Em 7 e 8 de Fevereiro de 2004, os recorridos levaram a cabo provas de tiro a alvos vivos, nas instalações do Clube de Tiro de ...., onde morreram milhares de pombos.
Antes da prova, são-lhes arrancadas as penas da cauda e são colocados em caixas, já no decurso da prova. O arranque das penas da cauda é feito com o propósito de tornar o voo dos pombos irregular e consequentemente dificultar a pontaria aos concorrentes.
Se algum pombo atingido não morre do tiro é, imediatamente, abatido por membros da organização, por meio da quebra das vértebras cervicais.
A par dos concursos de tiro aos pombos em voo, existem para aferir a destreza dos atiradores, o tiro aos pratos e a hélices, modalidades a que falta, como reconhece a recorrente, o factor da imprevisibilidade que caracteriza o movimento dos pombos.

2 – Sendo esta a matéria de facto assente com interesse para a apreciação do objecto do recurso, cabe agora fazer o seu enquadramento na lei aplicável.
Começa a recorrente por sustentar, logo na primeira das conclusões que tira das alegações, que o art. 1º, n.º1, da Lei n.º 92/95 de 12/09, aponta como regra geral a proibição de todas as violências injustificadas contra animais, pelo que o conceito de “necessidade” tem que ser aferido face à “ratio” da própria lei em questão e face ao escopo que ela visa alcançar.
Antes de entrarmos na interpretação da referida disposição legal, é indispensável a sua conjugação com as disposições que dela se aproximam, designadamente com os preceitos constitucionais e lei ordinária que regula as actividades desportivas afins em que também são mortos animais, ou infligidas sofrimento prolongado ou graves lesões a outros animais, desde longa data e que como os pombos, merecem protecção, mas são aceites como lícitas.
Na apreciação desta questão, recorda-se que uma das tarefas fundamentais do Estado é, não apenas defender a natureza e o ambiente e preservar os recursos naturais, mas também proteger e valorizar o património cultural do povo português (alínea e) do art.º 9.º da Constituição da República Portuguesa).
Assim, na interpretação que adiante se procurará fazer da Lei n.º 92/95 de 9 de Setembro, designadamente do seu art.º 1.º, n.º1, não se poderá deixar de se considerar que, para além dos valores constitucionalmente previstos, que à data da publicação e entrada em vigor desta lei vigorava a Lei n.º 30/86 de 27/08, que regia o exercício da caça e estabelecia, no seu artigo 30.º n.º1, que as associações e os clubes de caçadores e de canicultores podiam ser autorizados a instalar e manter campos de treino destinados à prática , durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente a de exercício de tiro e de treino de cães de caça, nos termos em que viesse a ser regulamentado. No n.º 2 da mesma disposição legal, estabelecia-se que nos campos de treino de caça somente eram autorizadas as largadas e o abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro (1) .
A referida lei da caça foi depois regulamentada pelo Dec-Lei n.º 311/87 de 10/08, onde ficou definido que era permitida a caça em cativeiro, pela sua utilização em campos de treino de caça, mediante autorização da Direcção-Geral das Florestas, ouvida a Direcção-Geral da Pecuária sobre os aspectos sanitários (art.º 79.º n.ºs 1 e 2).
A Direcção-Geral das florestas podia constituir ou autorizar a instalação de campos de treino de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, durante todo o ano, nomeadamente o exercício de tiro com armas de fogo, arco ou besta, cetraria e treino de cães de caça, em termos a regulamentar por portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação (art.º80.º).
Também a Portaria n.º 816-B/87 de 30/09 estabelecia que a Direcção-Geral das Florestas, podia autorizar às associações, sociedades ou clubes de caçadores e de canicultores legalmente existentes, a requerimento deles, a instalação de campos de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, designadamente o exercício de tiro com armas de fogo, durante todo o ano e em todos os dias da semana (art.ºs 1.º e 2.º, n.º1).
Esse regime de criação da caça e aves de presa em cativeiro foi mantido pelo novo regulamento da referida Lei, pelos Dec.-Lei n.º 274-A/88 de 3/08, que substituiu o anterior, excepto o acrescentamento de realização de corridas de lebres.
Esse regulamento da lei da caça foi entretanto substituído pelo Dec.-Lei n.º 251/92, de 12/11, que manteve no essencial o regime anterior e veio depois a ser substituído pelo Dec-Lei n.º 136/96 de 14/08, continuando a constar dele o regime relativo à criação de caça em cativeiro e aos campos de treino de caça (art.ºs 87º e 88.º).
Surgiu depois a Lei n.º 179/99 de 21/09 que veio substituir a lei anterior, mantendo no entanto a vigência dos diplomas que a regulamentaram, nomeadamente o preceito que admite a reprodução, criação e detenção de espécies cinegéticas em cativeiro para utilização, além do mais em campos de caça, definidos como áreas destinadas à prática, durante todo o ano, de carácter venatório, nomeadamente o exercício do tiro, do treino de cães de caça e as provas de Santo Humberto, quanto a essas espécies (art.ºs 2.º, alínea l) e 27.º, n.º1).
A par da evolução legislativa no que se refere ao desporto da caça, foi publicada a Lei n.º1/90 de 13/01, que estabelece as bases do sistema desportivo, e que atribui às federações desportivas, embora como entidades de direito privado, a possibilidade de assumirem por via da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, na sua área específica, poderes de regulamentação de disciplina e outros de natureza pública. Esta Lei veio depois a ser regulamentada pelo Dec.-Lei n.º144/93 de 26/04, que contém o regime jurídico das federações desportivas.
Decorre deste diploma a competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes de natureza pública, como a titularidade de direitos especialmente previstos nos art.ºs 7.º e 8.º n.º1.

3 – Verifica-se da análise da evolução legislativa que a morte de animais através de tiro ao voo, é lícita em relação a outras actividades desportivas designadamente à cinegética e não se vê que exista grande diferença, nem se considera, como pretende a recorrente fazer crer que não há semelhança na morte de outros animais, como nas largadas com a morte dos pombos que também ocorre por largada deles embora em locais diversos. Nem se diga que num caso o tiro se destina a desenvolver a perícia do atirador e no outro a desenvolver uma actividade lúdica, porquanto em ambas os casos se desenvolvem as referidas actividades.
Afigura-se-nos bem mais cruel a morte, após a largada de animais cinegéticos que são criados em viveiro para depois serem largados e mortos, sabendo-se que não têm prática de voo, por terem sido criados em cativeiro, e a recorrente não põe em causa que essa actividade não seja lícita, enquanto no caso do tiro aos pombos não se tem em conta que são normalmente criados, em pombais construídos nas grandes herdades ao ar livre em locais quase sempre distantes das povoações e, por isso, rápidos nos seu voo quase com os pombos bravos.

De qualquer modo, como se entendeu no acórdão deste Tribunal de 19/10/2004, os animais na nossa ordem jurídica, continuam a ser coisas móveis (art.ºs 202.º, n.º1 , 205.º, 212.º, n.º3 do CC). Não são titulares de direitos subjectivos, e por isso não faz sentido falar-se em direitos dos animais, dignidade autónoma e direito à integridade física, numa perspectiva humanizada, como resulta das, 2.ª, 12.ª e 22.º conclusões.
Os animais devem ser tratados com carinho e com cuidado, em especial quando vivam perto do homem, sendo muitas vezes até um complemento da sua própria vida. Mas essa situação nada tem a ver com os torneios de tiro aos pombos que já se praticam em Portugal há muitas dezenas de anos.

4 – Posto isto, há que ter em conta que “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade de se lhe infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões” (art.º 1.º n.º1, da Lei 92/95 de 12 de Setembro).
A primeira questão que se deve pôr em relação à interpretação deste preceito legal é saber no que consiste infligir a morte sem necessidade, o sofrimento cruel ou graves lesões a um animal e se no caso do tiro aos pombos se verifica alguma destas situações.
No caso do tiro aos pombos, a segunda parte da asserção não se verifica.
Na verdade, mesmo que o pombo não tenha morte imediata com o tiro, e ainda fique vivo, por o atirador não o ter atingido certeiramente ele é, “imediatamente abatido , por meio de quebra das vértebras cervicais”.
Assim, se as lesões de que foi objecto em consequência do tiro forem graves ele não continua a sofrer cruelmente, uma vez que é morto imediatamente após ter sido ferido, através dum meio rápido, não se tratando por isso de um sofrimento cruel e prolongado.
Por outro lado, pelo facto de lhe terem sido arrancadas previamente algumas penas da cauda, para lhe imprimir maior irregularidade no voo, não se considera que se lhe inflija grande sofrimento, antes lhe permite poder mais facilmente despistar o atirador, uma vez que é precisamente com esse fim que lhe são arrancadas as penas da cauda.

Questão menos simples e que aqui se pretende apurar é se da interpretação da referida disposição legal, com recurso aos elementos extra literais resulta que os concursos de tiro aos pombos são lícitos, e que a lei permite a morte dos milhares de animais, que neles são abatidos.
Entende a recorrente que a expressão “necessidade” contida no referido preceito implica que haja uma utilidade válida na protecção de um bem jurídico superior, para o Homem e para a sociedade e que no seu entender os concursos de tiros aos pombos não justifica a morte dos milhares de pombos que deles resulta.

Tendo-se em consideração o projecto de lei inicial, que esteve na base do preceito legal que se pretende interpretar, com o n.º 107/VI, da autoria do Dr.º António Maria Pereira, que deu depois lugar ao 530/VI, verifica-se do seu confronto que no primeiro projecto a lei se bastava com as expressões “sofrimento” e “lesão” e que o legislador entendeu que estas expressões seriam demasiado abrangentes e substituiu-as pelas expressões, “sofrimento prolongado e cruel” e por “lesão grave”.
Também no que se reporta à alínea j) do nº3 do art.º 1.º , do projecto de lei n.º 530/VI, a expressão que proibia expressamente a organização de provas de tiro a animais vivos foi retirada da versão final (2).
Têm sido diversas a iniciativas parlamentares no sentido de se proceder à alteração da Lei 92/95, designadamente através do projecto apresentado em 22/05/1998, n.º 526/VI, por um grupo de deputados do partido Socialista, no qual se pretendia introduzir no art.º 1.º, n.º3, uma alínea com a seguinte redacção “J) organizar provas de tiro e animais vivos”, que não recolheu a necessária margem de consenso. Na legislatura seguinte, foi também apresentado um projecto no sentido de ser proibido o tiro a alvos vivos, a introduzir através do art.º 5.º , n.º2 alínea c) , que caducou com a queda da VIII legislatura e na IX, foi apresentado novo projecto com o n.º 108/IX, no mesmo sentido de ser proibido o tiro a alvos vivos (3), mas até hoje a lei não foi alterada.
Apesar do entendimento da recorrente, sustentado na 16.ª conclusão, de que a modalidade de tiro aos pombos de tiro de voo é proibido em alguns países da Europa, e embora se reconheça que assim acontece nos referidos países, não o é em Portugal, do mesmo modo que, há outras modalidades desportivas permitidas em Portugal e proibidas em alguns desses países, como é o caso das touradas de morte.

Na verdade, a Assembleia da República tem mantido na lei a referida disposição legal, cuja interpretação vem sendo no sentido da licitude da actividade de tiro aos pombos.
Há que reconhecer que, ao longo de largas dezenas de anos, os torneios e concursos de tiros aos pombos vêm sendo feitos em todo o país, quer se entenda que essa prática deve ser tida como lúdica ou medida da perícia dos concorrentes. A verdade é que se trata de uma actividade que faz parte dos nossos valores culturais, tal como a tourada, a caça nas diversas modalidades e a pesca desportiva, mesmo que não se pratiquem em alguns países da Europa.
De qualquer modo, como atrás se deixou dito, a Constituição Portuguesa impõe a protecção do património cultural. As touradas, a caça, o tiro aos pombos e outras práticas desportivas fazem parte dos costumes ancestrais. São valores que devem ser respeitados e mantidos até que o povo assim o entenda.
Como se refere do referido acórdão deste Tribunal de 18/102004, o fim da Lei n.º 92/95 de 9/09 é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, no confronto de meios e de fins envolvidos em função do homem.
Por outra banda, a existência dos torneios ou concursos é motivo para que os criadores implementem a criação de grandes quantidades de pombos, reproduzindo-se e multiplicando desse modo essa espécie de animais, sem grande sofrimento no seu abate.

5 – Há assim que reconhecer que os torneios ou concursos de tiro aos pombos se tornou numa prática paralela à actividade venatória e piscatória, sendo irrelevante que dela não resulte, pelo menos de forma visível, um contributo para a alimentação do Homem, sendo certo que na prática da caça, nem sempre é seguida com esse fim.
Reconhece-se que embora as touradas, a prática equestre, a caça e a pesca desportiva, todas elas concorrem com a actividade desportiva do torneio com hélice, tiro aos pratos ou alvos vivos, tiro aos pombos, fazem parte do património cultural de Portugal, uma vez que são modalidades que se vêm praticando em algumas festas anuais que se realizam em todo o país com maior incidência no Alentejo.

Por tudo o que e deixa dito, improcedem as conclusões da recorrente reconhecendo-se que a prática desportiva de tiro ao voo de pombos, não se enquadra na proibição prevista pelo n.º1 do art.º 1.º, nem o seu n.º3 alínea e), da Lei n.º92/95 de 12/09, não sendo por isso proibida no nosso ordenamento jurídico.

Improcede assim o recurso, mantendo-se o conteúdo do acórdão recorrido.
A recorrente goza de isenção objectiva do pagamento de custas (art.º 10.º da Lei n.º 92/95 de 12/09).

III- DECISÃO:
Em face de todo o exposto nega-se revista.

Lisboa, 15 de Março de 2007
Gil Roque (Relator)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) - Seguiremos na fundamentação a evolução legislativa indicada no Acórdão de 19/10/2004 deste STJ, não só porque nele se fez uma análise cuidada da legislação sobre a lei da caça e actividade congéneres, mas por uma questão de coerência, uma vez que o Relator e um dos Conselheiros que subscreveram esse acórdão são Conselheiros Adjuntos deste e com ele concordamos.
(2) - Diário da assembleia da Republica de 6/04/1995, pgs. 462 e segs.
(3) - Diário da assembleia da República , II Série A- n.º24 de 13 de Julho de 2002.