Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
127/21.5YRCBR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: EXTRADIÇÃO
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS PELO ESTADO REQUERENTE
PENA DE PRISÃO PERPÉTUA
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
IN DUBIO PRO REO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/ M.D.E.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Nos termos da al. a) do art. 3.º da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961, de que Portugal e a República Popular da China são parte, as funções das missões diplomáticas consistem, nomeadamente, em “representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador”, razão pela qual quaisquer garantias prestadas pela embaixada daquele país vinculam necessariamente o Estado Chinês. Ora, decorrendo tal vinculação de instrumento de direito internacional, não carecia a mesma de ser expressamente invocada nas notas produzidas pela embaixada da República Popular da China.
II - E dúvidas também não cabem quanto à validade da garantia prestada pelo Estado Chinês de que à recorrente não será aplicada pena de prisão perpétua.
Na verdade, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50.º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base em decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de a recorrente ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua.
III - Não havendo motivo para questionar a validade da garantia de não aplicação da prisão perpétua à recorrente, prestada através de nota verbal da Embaixada da República Popular da China, dúvidas também não há de que a mesma vincula o Estado Chinês. Estamos perante uma declaração formal, cujo conteúdo se deve presumir verdadeiro e que, para todos os efeitos, corresponde a um compromisso solene que o Estado Chinês assume perante o Estado Português, compromisso esse que, nos termos dos elementos transmitidos, está em condições formais e substanciais de cumprir, e tanto basta, como bastou, para que o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça considerasse admissível a extradição da recorrente.
IV - Sobre a possibilidade de à recorrente vir a ser aplicada uma pena de prisão de duração indefinida, diremos que, ainda que seja certo que o art. 192.º do Código Penal da República Popular da China não prevê no seu corpo um limite máximo para a duração da pena de prisão que não a prisão perpétua, estabelecendo apenas o limite mínimo de dez anos de prisão, aquele primeiro limite tem que se ir buscar ao art. 45.º do mesmo diploma legal, que dispõe que, “a não ser que os artigos 50 e 69 da presente Lei estabeleçam de diferente modo, o termo de uma pena de prisão com termo fixo não pode ser menos de seis meses e não mais de quinze anos”, significando isto que a recorrente, a ser condenada pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão entre um limite mínimo de dez anos e um máximo de quinze anos.
Sendo certo que a garantia prestada pelo Estado Chinês não menciona o limite máximo de quinze anos para a pena de prisão em que a recorrente pode vir a ser condenada, não menos certo é que não tinha que o mencionar, uma vez que tal limite não resulta de uma condição aceite pelo Estado Chinês, mas da sua própria lei penal.
V - Em resumo, o Estado Chinês prestou garantia válida e incondicional de que à recorrente não será «imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição» e de que a mesma não será condenada a pena de prisão perpétua, resultando da conjugação dos art. 192.º e 45.º do Código Penal da República Popular da China que a mesma, a ser condenada pelos factos que fundamentaram o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão cujo limite máximo não poderá ser superior a quinze anos.
VI - A instabilidade/ruptura familiar provocada pela Extradição da recorrente para China, não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 6.º, al. f) da LCJ e/ou artigo 4.º, al. b), do Tratado, na medida em que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável. A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à acção da justiça.
VII - A interferência no direito à vida familiar da requerente provocada pela autorização da Extradição afigura-se justificada e não é manifestamente arbitrária ou desproporcionada, e, nessa medida, não é violadora de qualquer preceito constitucional e/ou do artigo 8.º da CEDH, inexistindo fundamento ponderoso para recusa facultativa nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da LCJ e artigo 4.º, al. b), do Tratado.
VIII - Quanto à violação do princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP, por não aplicação do art. 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional), diremos, desde já, carecer de qualquer sentido a invocação do disposto pelo art. 135.º da Lei 23/2007, de 04 de julho, uma vez que este normativo se aplica apenas relativamente à expulsão do território nacional de quem se encontrar numa das situações previstas pelo art. 134.º do mesmo diploma legal, o que, manifestamente, não é o caso da recorrente. Com efeito, os fins e propósitos do processo de extradição são distintos da decisão da expulsão e, nessa medida, não é convocável nessa sede (extradição) o regime do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04.07
IX - Concluindo-se que os fins/propósitos/interesses são distintos em ambos os processos (expulsão e extradição), não se impõe apreciar a questão da violação do princípio da igualdade convocada pela recorrente, na medida em que não se defendeu o argumentado pela recorrente que se estava perante duas situações iguais com tratamento desigual.
X - No caso presente, não faz qualquer sentido a invocada violação do princípio in dubio pro reo, uma vez que a decisão recorrida autorizou a extradição da recorrente para a República Popular da China para efeitos de procedimento penal pelo crime de “obtenção de fundos por meios fraudulentos”, previsto e punível pelo artigo 192.º da Lei Criminal da República Popular da China, fundamentando devidamente a decisão da matéria de facto, que mostra uma apreciação e valoração da prova feita de forma racional, lógica, plausível e de harmonia com as regras da experiência comum, pelo que, de modo algum, se pode concluir que aquela mesma prova gera factos incertos, ou que o tribunal se deparou com um qualquer estado de dúvida razoável sobre a factualidade dada como provada, susceptível de afastar a valoração efectuada quando à autorização da recorrente para a República Popular da China.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 127/21.5YRCBR

Extradição

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação ... promoveu, nos termos do artigo 50.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, o cumprimento do pedido de extradição da cidadã chinesa AA - casada, nascida em .../.../1978, na província de ..., titular do passaporte chinês n.º ..., emitido em ... a 21 de março de 2017, válido até 21 de março de 2027, residente na Rua ... (atualmente na Quinta..., ...), em ..., Portugal, apresentado pela República Popular da China para efeitos de procedimento criminal relativo à indiciada prática de um crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, praticado de outubro de 2013 a agosto de 2018, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua.

Invoca o Ministério Público que a extraditanda é procurada pelas autoridades judiciárias da República Popular da China – Procuradoria Popular ..., por ter promovido publicamente, como representante legal da sociedade S..., produtos financeiros de private equity junto de pessoas, pelo telefone e de viva voz, em conluio com outros, usando como chamariz um elevado rendimento de 7,5% a 16%, assim tendo logrado receber ilegalmente 2,098 biliões de CNY de um conjunto de pessoas não especificadas, mas superior a 414, que utilizou para a compra de imóveis e para consumo pessoal, causando o não pagamento de 612 milhões de CNY, o que à taxa de câmbio atual equivale à quantia de cerca de 79 milhões de euros.

A arguida foi detida na cidade de ... a 19.4.2021, ouvida no Tribunal da Relação a 20.4.2021, no âmbito do processo de validação de detenção n.º 61/..., da 4ª..., apenso, confirmada a detenção, que posteriormente foi substituída pelas medidas de coação de apresentações periódicas e proibição de se ausentar para o estrangeiro.

*

2. Após a prolação de despacho liminar, procedeu-se à audição da extraditanda, nos termos previstos no artigo 54.º da referida Lei n.º 144/99, tendo a mesma manifestado a sua oposição ao pedido de extradição formulado pela República Popular da China, e não tendo renunciado ao princípio da especialidade.

Foi-lhe aplicada a medida de coação de apresentações periódicas.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 55.º do citado diploma legal, veio a requerida deduzir oposição ao pedido de extradição, invocando, para o efeito, fundamentos que enunciou da seguinte forma:

a) Nulidade dos autos por inexistência do Despacho do Sr. Secretário de Estado;

b) Invalidade da garantia apresentada pela Embaixada Chinesa por não estar completa a Nota nº 27;

c) Insuficiência da Garantia por não incluir a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Popular;

d) Insuficiência e falta de clareza na vinculação do Ministério dos Negócios Estrangeiros;

e) Insuficiência e falta de clareza no texto da “Garantia”, suscitando dúvidas se a garantia foi efetivamente prestada;

f) Razões humanitárias relacionadas com a situação da Extraditanda e de sua Família; e

g) Erros factuais constantes da matéria que fundamenta o pedido de extradição.

*

3. A requerida juntou prova documental e requereu a inquirição de testemunhas.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas.

Nas alegações finais que apresentaram, o Ministério Público e a extraditanda reafirmaram as posições antes assumidas.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência e após, foi proferido em 19 de janeiro de 2022, o acórdão do Tribunal da Relação ..., que decidiu autorizar a extradição de AA para a República Popular da China para efeitos de procedimento penal pelo crime de “obtenção de fundos por meios fraudulentos”, previsto e punível pelo artigo 192º da Lei Criminal da República Popular da China.

*

É deste acórdão que a requerida AA, interpõe recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua fundamentação nos seguintes termos:

A. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores da 5.ª secção criminal do Tribunal da Relação ..., no dia 19 de Janeiro de 2022, nos termos do qual se determinou a extradição da Recorrente para a República Popular da China.

B. O presente processo é caracterizado por circunstâncias específicas que o distinguem de outros, que jamais podem ser ignoradas (como parece ter sido pelo Tribunal a quo): trata-se de um pedido de extradição de uma esposa e mãe, da qual dependem dos 4 membros do seu agregado familiar, nomeadamente o seu marido doente e de si dependente e os seus dois filhos ainda bebés nascidos em Portugal.

C. Circunstâncias pessoais e familiares desconsideradas pelo tribunal recorrido que poderiam, nos termos das várias leis aplicáveis, consubstanciar causa de recusa da extradição.

D. E paralelamente uma mulher que não foi sujeita a qualquer julgamento ou sentença, pelo que para todos os efeitos, e de acordo, com a nossa Constituição, presumida inocente, em respeito ao princípio do in dubio pro reo, plasmado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

E. O douto acórdão recorrido enferma de erros de julgamento de direito e a sua consequente revogação, revela-se manifestamente necessária para a apreciação de uma questão de importância fundamental, tanto pela sua relevância jurídica, como clara e necessariamente para uma melhor aplicação do direito.

F. Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação dos Artigo 6º, al. A) e f) e 18º nº 2 da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto, do artigo 4.º, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre a Extradição, do Artigoº 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), artigo 135º n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho e artigos 1º, 13 nº 1, 32º nº 2 e 33º n.º 4, 67º a 70º da Constituição da República Portuguesa.

G. Pois que, entendemos que a interpretação das referidas normas só poderia conduzir a outro desfecho decisório – o da não autorização da extradição.

H. Do pedido de extradição consta expressamente que a pretensão do Estado requerente se dirige à prossecução da acção penal contra a Recorrente pela prática do crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, praticado de outubro de 2013 a agosto de 2018, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua.

I. Se sujeita a julgamento, será possível que à Recorrente venha a ser imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição. Consequência não admissível à luz do nosso ordenamento jurídico.

J. Não podemos partilhar da confiança do Tribunal a quo para legitimar a aplicação do disposto no artigo 6.º com as garantias prestadas pela representação diplomática da República Popular da China.

K. Até porque umas notas verbais que fazem parte integrante dos autos, a n.º 27, não tem validade formal, uma vez que não tem aposta a fórmula protocolar diplomática.

L. O que levanta sérias dúvidas quanto à subscrição, respeito e, acima de tudo, sua vinculação por parte da República Popular da China ao conteúdo que estas emanam.

M. Resulta um dever de cuidado manifesto porquanto se o incumprimento pelas regras estatuídas se manifesta logo à partida com as notas verbais, como será possível a Portugal impor o respeito e um regular cumprimento das garantias agora prestadas?

N. Em sentido inverso do Acórdão, inexiste qualquer garantia séria e válida do cumprimento, por parte da República Popular da China, de uma pena, a ser aplicada, até 15 anos.

O. O crime imputado à Recorrente poderá, eventualmente, ser punido com pena de prisão perpétua, consequência essa que não pode de todo afastada, porquanto há circunstâncias/elementos desconhecidos, nomeadamente as empresas revestirem natureza púbica ou privada, entre outras, poderão levar a aplicação de pena diversa e mais gravosa das garantias agora prestadas.

P. Não está provado, porque nem julgamento se iniciou, existindo apenas uma acusação, a que título são imputados os factos à Recorrente – se como autora, se como cúmplice e se seria uma mera funcionária.

Q. As autoridades chinesas, ao invés de elencarem todas as normas abstratamente aplicáveis ao caso, escolheram o artigo 192.º da Lei Penal da República Popular da China, cuja moldura penal inclui a prisão perpétua abstratamente aplicável,

R. Isto apesar de acordo com a nota n.º 24 e também na informação prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros consideram que não será de aplicar pena superior a 15 anos,

S. Contudo é forte convicção da Recorrente que esta comunicação visa apenas integrar as condições para a admissibilidade da Extradição para que depois, uma vez extraditada a requerente se lhe perca o rasto e o cumprimento dessa moldura penal.

T. Assim, não cuidaram de elencar todas as normas e factos mais gravosos, uma vez em julgamento, que possam em abstrato ser aplicadas ao caso e por isso, por agravarem a medida da pena obstassem à Extradição.

U. Neste sentido, a violação dos Direitos do Homem, e a real possibilidade de ser aplicada uma pena de prisão perpétua por força das débeis garantias prestadas pelo Estado Requerente, tem de se revelar suficiente para preencher a causa de recusa da extradição prevista no art.º 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que aqui não aconteceu.

V. Também neste sentido, e ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em 31 de Janeiro de 2007, deveria ter sido rejeitada a autorização da extradição, pura e simples, em conformidade com o plasmado no artigo 3º, do qual resulta a recusa de extradição como um imperativo.

W. A concessão de extradição sem apresentação de garantia é, ademais, uma ilegalidade, que expressamente se invocou, e não foi atendida, mas não só, ela consubstancia a prática de uma Inconstitucionalidade por violação do artigo 33.º n.º 4 da CRP, que faz depender a concessão da extradição da apresentação de garantia pelo estado requerente da não aplicação de uma pena de prisão perpétua ou de duração indefinida,

X. Garantia essa que não foi nos autos de extradição valida e/ou legalmente prestada, por insuficiente motivação.

Y. Pelo que, outra deveria ser a submissão dos factos ao direito e daí o tribunal a quo faz uma errada e incorreta interpretação das normas aqui elencadas sendo que delas deveria ter resultado uma interpretação diametralmente díspar conforme abundantemente se discorreu supra, violando-se de forma grosseira o disposto no artigo 6.º, al. a) e f) da Lei n.º 144/99 e no artigo 33.º n.º 4 CRP.

Z. Contextualizando, também no caso vertente e objeto deste recurso inexiste esse princípio de confiança mútua porquanto não há uma garantia sólida e válida prestada pela República Popular da China, existe apenas um formalismo em que se expressa a aplicação de uma pena de prisão de 10/15 anos. Sem se conhecer de toda a factualidade que poderá produzir alterações na aplicação da pena, possibilitando a aplicação da pena de prisão perpétua – Princípio esse violador das normas constitucionais já identificadas bem como da lei 144/99 e do referido Tratado celebrado e que rege a presente situação.

AA. O Tribunal fez uma errada interpretação do disposto no artigo 4.º, al. b), do Tratado sobre Extradição celebrado entre os dois Países, do art.º 8.º da CEDH no art.º 13.º da CRP e no art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto.

BB. Pois que, para o Tribunal a quo, o cumprimento ou não da salvaguarda dos direitos do Homem é aferido única e exclusivamente pela existência de instrumentos nacionais e internacionais aprovados pela China ou em que esta é parte, conduzindo a uma aplicação e autorização de forma automática da extradição.

CC. O circunstancialismo que rodeia a extradição da Recorrente não pode de forma alguma desconsiderado. A extradição da Recorrente equivaleria sim à quebra do vínculo familiar e ao necessário acolhimento dos filhos numa instituição. Senão, vejamos:

DD. A recorrente reside em Portugal desde Agosto de 2018 com o seu marido, BB, e plenamente integrada no nosso país, do ponto de vista social e familiar.

EE. A Recorrente, conforme resultou provado, é esposa e mãe, da qual dependem o seu marido gravemente doente, com patologia degenerativa e os seus 3 filhos, 2 gémeos com 3 anos e o seu filho mais velho com uns frágeis 14 anos de idade, com todas as responsabilidades que daí advêm.

FF. Ao contrário da Douta Interpretação do Tribunal a quo extradição da Recorrente implica a exposição desta família a uma situação absolutamente vulnerável e de risco, violadora em toda a sua plenitude do direito à vida privada e familiar, e do previsto no art.º 8.º da CEDH.

GG. “Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.”

HH. Os artigos 67º (“Família”), 69º (“Infância”) e 70º (“Juventude”) plasmados na Constituição da República Portuguesa (CRP) determinam que a família “como elemento fundamental da sociedade” tem direito a proteção e à “efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.

II. A extradição que se pretende ser imposta à Recorrente pelo Tribunal a quo contende de forma grosseira com este princípio porquanto o afastamento incerto e dramático da Recorrente do seu seio familiar, pautado pela séria incerteza do seu regresso, em nada se coaduna com o plasmado nos princípios basilares do nosso Estado de direito.

JJ. Concretizar tal extradição, não pode ser de forma alguma entendido como respeitador da realização pessoal dos membros do agregado familiar, nos termos invocados pela Constituição.

KK. “a progenitora era quem desempenhava as funções de cuidadora e, atendendo à ausência de figura materna, pelo motivo de se encontrar detida no estabelecimento prisional ..., e atendendo às dificuldades do progenitor em conciliar as rotinas domésticas com os cuidados às crianças uma vez que se trata de duas crianças com dois anos de idade e que exigem atenção permanente de um adulto, esta EMAT diligenciou pela integração das crianças CC e DD em equipamento escolar.”

LL. Se restassem dúvidas sobre o papel fundamental e pilar da Recorrente no seio da sua família, todas elas são dissolvidas com este relatório social elaborado durante a sua ausência.

Apenas esta circunstância fez com que resultasse necessária a entrega dos menores a uma instituição.

MM. Também o filho jovem EE, adolescente, “o jovem está bem integrado, sendo um aluno empenhado com bom rendimento escolar e comportamento exemplar com toda a comunidade educativa.” Fruto da educação que recebe no seu seio familiar, não só na pessoa da Recorrente, mas considerado como um e no seu todo. Esta família/ agregado familiar, e conforme ficou provado, novamente no citado relatório social, “não tem retaguarda familiar”.

NN. Sendo no seu conjunto uma família funcional e equilibrada, não se pode entender em sentido diverso ao da profunda perturbação que a extradição acarretaria para o seio daquela família que passaria a ser perfeitamente disfuncional e desprotegida nessa mesma qualidade.

OO. A realização pessoal dos membros deste agregado familiar estaria completamente destruída, contrariando de forma manifesta e violenta o plasmado nos referidos artigos da nossa Constituição, e que, por isso mesmo, regem a situação em análise.

PP. Bem como a garantia à infância e à juventude plasmados nos artigos 69º e 70º porquanto as crianças CC e DD e o jovem EE teriam a sua infância e juventude, valores protegidos constitucionalmente, respetivamente, inegavelmente comprometidas.

QQ. Nunca olvidando, nem podendo de forma alguma desconsiderar, que ficou provado pelo Tribunal a Quo, ora Recorrido sobre as condições sócio familiares da Recorrente.

RR. Não pode ser este circunstancialismo analisado em sentido favorável aqueles princípios, mas sim manifestamente violadores do mesmo.

SS. Ainda neste sentido, os interesses aqui conflituantes - a tutela da família e o interesse do Estado – carecem de séria ponderação uma vez que sempre deverão serão balizados por ponderação e razoabilidade, proporcionais ao fim visado, quando o que está em causa é a ingerência na vida privada e familiar e privada de um cidadão, nas circunstâncias já descritas.

A interpretação das normas nunca poderá ser feita por forma a aplicar e autorizar de forma automática a extradição de um cidadão em situação familiar tão vulnerável e frágil.

TT. Conforme se disse, e também aqui se sublinha, este caso reclama de forma imperiosa a aplicação da cláusula humanitária prevista no art.º 4.º, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição e no art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 – o que o Tribunal A quo rejeitou.

UU. Temos aqui patente o basilar Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana, previsto no art.º 1.º da nossa Constituição, nas suas várias vertentes, que faz imperar, nesta situação em concreto, a necessidade de aplicar a denegação facultativa da cooperação internacional e, bem assim, a não autorização da extradição.

VV. Para aplicação da cláusula humanitária tem que ser feito pelo Estado requerido um juízo de probabilidade sobre a gravidade das consequências que podem resultar do pedido e da consequente autorização, designadamente dos actos que se produzam na esfera pessoal do extraditando, ainda que afectem terceiros.

WW. É diferente a Recorrente invocar que a sua extradição contenderá com os direitos e esfera jurídica de um qualquer terceiro e invocar que violará os direitos dos seus filhos menores, dependentes, e de tenra idade. E mais uma vez se diga, dois deles com nacionalidade portuguesa e aqui residentes.

XX. O Tribunal A quo não atentou como devia ao disposto no artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que determina que não podem ser expulsos do país cidadãos estrangeiros que tenham efetivamente a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa a residir em Portugal.

YY. O eventual tratamento desigual destas figuras configura uma grosseira e flagrante violação Princípio Da Igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP. O diferente tratamento dos processos supra resultaria numa irracional e perfeita incongruência pois que, na prática, traduzir-se-ia, a título de exemplo, na não expulsão de território nacional de um cidadão que tenha cometido um crime grave e, em sentido completamente oposto mas, e mais uma vez se diga, à luz da protecção dos mesmos interesses subjacentes aos dois procedimentos, na extradição de um cidadão que tenha cometido um crime de menor gravidade no Estado que requeira a extradição.

ZZ. Feita uma análise casuística ao crime pelo qual se pretende a extradição da Recorrente, conclui-se que se trata de um crime económica e não de um crime enquadrado no conceito de criminalidade grave.

AAA. Assim, dúvidas não restam de que a aplicação do instituto da extradição aos presentes autos e a sua consequente autorização viola manifestamente o direito à família e o direito dos menores, à proteção da e em família, plasmados nos arts. 36.º, n.º 6 e 67.º a 70.º da CRP, os princípios constitucionais da Igualdade e Dignidade – artigos 1º e 13º, que orientam o nosso Estado de Direito bem como a protecção conferida pelo artigo 135º n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho.

BBB. In casu, e atenta a posição do Tribunal da Relação ..., perante a desproteção do Princípio In Dubio Pro Reo pois que o Tribunal do estado Requerido corrobora o desrespeito por este soberano princípio.

CCC. Pois que, ao bastar-se com as Notas Diplomáticas de uma condenação a pena de prisão até 15 anos, sem que o julgamento tenha sequer iniciado, está ab initio também a presumir a sua culpabilidade.

DDD. O in dubio pro reo é assim entendido no sentido de se tratar de uma imposição dirigida ao Tribunal, impondo o tratamento favorável ao arguido enquanto os factos contra si acusados não forem provados e a condenação transitar em julgado. Da mesma forma que, em caso do dúvida sobre os factos, o julgador encontra-se vinculado a este mesmo princípio tendo de decidir sempre em sentido favorável ao arguido, o que aqui não aconteceu – vejamos neste sentido o artigo 32º nº2 da Constituição Portuguesa.

EEE. Estando também neste âmbito, o acórdão do Douto Tribunal recorrido ferido de substância legal e constitucional, manifestando-se violador dos mais basilares princípios orientadores do nosso Estado de Direito, por força da sua errada interpretação das supracitadas normas.

FFF. Pelo que a Recorrente só poderá ser considerada Inocente pelo Tribunal A quo porque em Portugal não se condenada, nem delimitada a pena de prisão sem julgamento prévio.

GGG. E nesse sentido, não estarem preenchidos os requisitos para a Extradição.

HHH. Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação do art.

Assim face ao exposto,

Nestes termos, requer-se a V. Exas. que se dignem conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, determinem a revogação do acórdão do Tribunal da Relação ..., assim rejeitando a extradição da ora Recorrente para a República Popular da China.

*

 O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. A extraditanda AA interpôs recurso para o STJ do acórdão do Tribunal da Relação ..., de 19 de janeiro de 2022, que, no âmbito de um Pedido de Extradição formulado pelas Autoridades da RP da China, decretou a entrega desta sua nacional para efeitos de procedimento penal pelo crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, previsto e punido pelo art.º 192º da Lei Criminal daquele país.

2. Pretende a recorrente a revogação do mencionado acórdão, alegando, em síntese, que:

2.1 Não obstante constar expressamente do pedido que a extradição é apenas para efeitos de procedimento pelo crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, «será possível que à recorrente venha a ser imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição», uma vez que as notas verbais através das quais as Autoridades da RP da China prestaram as necessárias garantias ao Estado Português «não tem validade formal, uma vez que não têm aposta a fórmula protocolar diplomática»;

2.2 Apesar das Autoridades da RP da China terem declarado que não lhe será aplicada pena de prisão superior a quinze anos, «é forte convicção da recorrente que esta comunicação visa apenas integrar as condições para a admissibilidade da extradição para que, depois, uma vez extraditada a requerente se lhe perca o rasto e o cumprimento da moldura penal», afirmando ser «real a possibilidade de ser aplicada uma pena de prisão perpétua por força das débeis garantias prestadas»;

2.3 A entrega da recorrente às Autoridades da RP da China seria expor a sua família, constituída pelo seu marido e três filhos menores, a uma situação «absolutamente vulnerável e de risco, violadora em toda a plenitude do direito à vida privada e familiar, e do previsto no art.º 8º da CEDH»;

2.4 O princípio da igualdade impõe que a extraditanda deva beneficiar da proibição de expulsão de nacionais estrangeiros que tenham a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa a residir em Portugal, prevista pelo art.º 135º.1, al. c), da Lei 23/2007, de 4 de julho;

3. Conclui a suas conclusões alegando que o douto acórdão recorrido violou os art.ºs 6º, al. a) e f), e 188º.2 da Lei 144/99, de 31 de agosto, o art.º 4º, al. b), do Tratado entre a República Portuguesa e República Popular da China sobre Extradição, de 31 de janeiro de 2007, o artº 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os art.ºs 1º, 13º, 15º, 32º, 33º.4, e 67º a 70º da CRP, e o art.º 135º.1 da Lei 23/2007, de 04 de julho.

4. Sucede que a recorrente, perante o STJ, mais não faz do que repetir as questões que oportunamente suscitou perante o Tribunal da Relação ..., todas elas apreciadas de forma exaustiva e doutamente decididas no acórdão recorrido, em nos revemos sem reserva, o que nos dispensaria de quaisquer considerações complementares.

Sem prejuízo, sempre diremos o seguinte:

5. Sobre a alegada falta de validade formal das notas verbais, através das quais as Autoridades da RP da China prestaram as necessárias garantias ao Estado Português, por não terem aposta a fórmula protocolar diplomática, ainda que, como bem se assinala no douto acórdão recorrido, a validade de uma Nota Verbal não esteja dependente da utilização de uma fórmula protocolar de cumprimento, essa fórmula não deixou de ser utilizada na nota nº 27, ainda que logo no seu início e não no fim, como sucede com a nota nº 24. Assim,

6. Contrariamente ao alegado pela recorrente, nenhuma das notas está incompleta, não padecendo de qualquer imperfeição ou vício, ou, pelo menos, de imperfeição ou vício que coloquem em causa o respetivo conteúdo ou validade. Ora,

7. Não havendo motivo para questionar a validade da garantia de não aplicação da prisão perpétua à recorrente, prestada através de nota verbal da Embaixada da República Popular da China, dúvidas também não há de que a mesma vincula o Estado Chinês. Com efeito,

8. Nos termos da al. a) do artº. 3º da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961, de que Portugal e a República Popular da China são parte, as funções das missões diplomáticas consistem, nomeadamente, em “representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador”, razão pela qual quaisquer garantias prestadas pela embaixada daquele país vinculam necessariamente o Estado Chinês. Ora,

9. Decorrendo tal vinculação de instrumento de direito internacional, também não carecia a mesma de ser expressamente invocada nas notas produzidas pela embaixada da República Popular da China.

10. E dúvidas também não cabem quanto à validade da garantia prestada pelo Estado Chinês de que à recorrente não será aplicada pena de prisão perpétua. Com efeito,

11. Como se pode ler na nota nº 24, o Estado Chinês, representado pela sua missão diplomática em Lisboa, declara que, “de acordo com o artigo 50 da Lei da Extradição da República Popular da China e a decisão do Tribunal Supremo do Povo da República Popular da China, no caso da extradição da FF de Portugal para a China, se a FF for condenada por um tribunal chinês pelos factos subjacentes ao pedido de extradição, o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua) em conformidade com a lei” (cfr. a fls. 80, verso).

12. Estamos, pois, perante uma declaração formal, cujo conteúdo se deve presumir verdadeiro e que, para todos os efeitos, corresponde a um compromisso solene que o Estado Chinês assume perante o Estado Português, compromisso esse que, nos termos dos elementos transmitidos, está em condições formais e substanciais de cumprir, e tanto basta, como bastou, para que o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça considerasse admissível a extradição da recorrente.

13. Sobre a possibilidade de à recorrente vir a ser aplicada uma pena de prisão de duração indefinida, diremos que, ainda que seja certo que o artº 192º do Código Penal da República Popular da China não prevê no seu corpo um limite máximo para a duração da pena de prisão que não a prisão perpétua, estabelecendo apenas o limite mínimo de dez anos de prisão, aquele primeiro limite tem que se ir buscar ao artº 45º do mesmo diploma legal, que dispõe que, “a não ser que os artigos 50 e 69 da presente Lei estabeleçam de diferente modo, o termo de uma pena de prisão com termo fixo não pode ser menos de seis meses e não mais de quinze anos”, significando isto que a recorrente, a ser condenada pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão entre um limite mínimo de dez anos e um máximo de quinze anos.

14. Diga-se, aliás, que o próprio Código Penal português conte uma norma de idêntico teor ao da acima mencionada, a saber, o artº 41º, que, em rigor, dispensaria que as normas relativas aos crimes puníveis com penas de prisão até vinte e cinco anos de prisão contivessem a indicação expressa desse limite, uma vez que o mesmo já se encontra imperativamente estabelecido pelo mencionado normativo. Assim,

15. Sendo certo que a garantia prestada pelo Estado Chinês não menciona o limite máximo de quinze anos para a pena prisão em que a recorrente pode vir a ser condenada, não menos certo é que não tinha que o mencionar, uma vez que tal limite não resulta de uma condição aceite pelo Estado Chinês, mas da sua própria lei penal.

16. Em resumo, o Estado Chinês prestou garantia válida e incondicional de que à recorrente não será «imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição» e de que a mesma não será condenada a pena de prisão perpétua, resultando da conjugação dos artºs 192º e 45º do Código Penal da República Popular da China que a mesma, a ser condenada pelos factos que fundamentaram o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão cujo limite máximo não poderá ser superior a quinze anos.

17. Resta, pois, a «convicção» da recorrente de que a garantia prestada pelo Estado Chinês «visa apenas integrar as condições para a admissibilidade da extradição para que, depois, uma vez extraditada a requerente se lhe perca o rasto e o cumprimento da moldura penal», mas que, na falta de factos que a fundamentem, não passa de uma argumentação pueril, completamente inócua para a decisão sobre o mérito da causa.

18. Por último, cumpre-nos pronunciar sobre as razões pessoais e familiares invocadas pela recorrente como fundamento para se opor à extradição. Ora,

19. Sobre uma situação em tudo idêntica à dos autos, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de maio de 2020, proferido no processo 498/18.0YRLSB.S1 (consultável em www.dgsi.pt), nos seguintes termos:

«Dispõe o artigo 4.º, al. b), do Tratado que “A extradição pode ser recusada se: b) A extradição for incompatível com considerações humanitárias em virtude da idade, saúde ou outras condições da pessoa reclamada.”

Em sentido semelhante prevê o artigo 18.º, n.º 2, da LCJ que: “Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de caráter pessoal”.

Tem sido entendimento maioritário da jurisprudência deste STJ, que não se enquadra como motivo de recusa de extradição prevista no artigo 18.º, n.º 2, da LCJ “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de carácter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça.

Veja-se alguns arestos exemplos deste entendimento:

- Acórdão do STJ de 11-01-2018, Proc. N.º 1331/17.6YRLSB.S1 - 3.ª Secção, Manuel Augusto de Matos (relator) [15] “VII - O afastamento do requerente da sua família por virtude da sua extradição não consubstancia - para efeitos do disposto no art. 8.º da CEDH - lesão ou prejuízo grave para o mesmo concretamente de grau superior àquele que aquela medida de cooperação normalmente implica. Por outro lado, não se poderão considerar consequências graves resultantes de outros motivos de carácter pessoal aquelas consequências que são a regra para quem tem família e vai ter de cumprir uma pena de prisão”.

- Acórdão do STJ de 07-01-2016, Proc. Nº J3/15.0YRLSB.S1 - 5.ª Secção, Isabel Pais Martins[16] “VII -É inquestionável que o deferimento do pedido de extradição e o eventual cumprimento de pena na República Federativa do Brasil, no âmbito do processo em que o pedido é formulado, implica uma ruptura do projecto de vida do extraditando em Portugal, com custos no plano pessoal e afectivo e no plano profissional. Só que essa consequência é a consequência normal do afastamento "forçado" do território nacional implicada na extradição. VIII - As consequências graves que o deferimento do pedido possa implicar para a pessoa do visado reclamadas para a denegação facultativa da cooperação internacional, nos termos do n.º 2 do art. 18.° da referida Convenção, não podem ser identificadas com aquelas que são comuns a todos os casos em que os extraditandos vieram a estabelecer o seu núcleo de vida pessoal e familiar no Estado requerido, sob pena de uma generalizada recusa de cooperação, contrária aos ideais afirmados no preâmbulo da Convenção. IX - Perante a gravidade do facto, traduzida, nomeadamente, na condenação, embora ainda não transitada, pela prática de um crime de homicídio terá de reconhecer-se que as consequências da extradição - afastamento do extraditando do território nacional, onde se encontra familiar, social e profissionalmente inserido, com quebra, pelo menos física, dos laços afectivos com a companheira e os filhos – não consubstanciam lesão ou prejuízo de grau superior àquele que aquela forma de cooperação, normalmente, pela sua própria natureza, implica (art. 18.º,n.e 2 da Convenção).

-Acórdão do STJ de 08-08-2014, Proc. n.e 364/14.9URLSB.S1 - 3.ª Secção, Raul Borges (relator)[17] “V - O recorrente alega um conjunto de condições pessoais, que determinam em seu entender a negação da cooperação, nos termos do n.º 2 do art. 18.º da Lei 144/99. Mas, no caso presente não estão em causa consequências ao nível da idade (actualmente o recorrente conta 36 anos de idade), da saúde do requerido, e como refere o acórdão de 19-01-2012, proferido no Proc. 242/11.3YRCBR.S1 - 5.ª, não se poderão considerar consequências graves devido a outros motivos de carácter pessoal aquelas consequências que são inerentes ao processo de extradição, que são a regra para quem tem família e emprego e vai ter que cumprir uma pena de prisão.

-Acórdão de 03-05-2012, Proc. nJ 205/11.9GYRCBR.S2 - 5.ª Secção, Isabel Pais Martins (relatora)[18] “IV - O n.º 2 do art. 18.º da Lei 144/99, de 31-08, ao prever a possibilidade de negação do pedido de extradição quando este possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, faz depender a denegação facultativa da cooperação internacional, não só das mencionadas consequências pessoais mas também de um juízo de ponderação de interesses entre o facto criminoso e aquelas consequências, ponderação em que assume particular relevância o confronto entre a gravidade do facto e a gravidade das consequências da extradição para o visado. Ora, perante a gravidade do facto, traduzida, nomeadamente, na acusação pela prática de 2 crimes de tráfico de estupefacientes, terá de reconhecer-se que as invocadas consequências da extradição - afastamento do extraditando do território nacional, onde se encontra social e profissionalmente inserido, com quebra dos laços afectivos com a companheira e o filho desta - não consubstanciam lesão ou prejuízo de grau superior àquele que aquela forma de cooperação, normalmente, pela sua própria natureza, implica. “

É verdade que no pedido de extradição realizado pela República Popular da China, verifica-se que está em causa o pedido de extradição de ambos os progenitores de 3 crianças, ainda muito pequenas.

Temos como certo que essas circunstâncias apresentam alguma singularidade, porém, não são casos isolados, como decorre dos arestos supre mencionados.

Cumpre referir que nos presentes autos, não se está a autorizar a Extradição da recorrente (mãe), para o cumprimento de uma pena de prisão, mas sim para procedimento criminal. Desconhece-se a que medida de coação vai ser sujeita e, se a final, será condenada numa pena de prisão efectiva, pelo que, se desconhece, em concreto, se a progenitora ficará automaticamente privada da vida familiar com os seus filhos (admitindo que é opção de os progenitores enviar os seus filhos para a China).

Entendemos, deste modo, que a instabilidade/ruptura familiar provocada pela Extradição da Recorrente para China, não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 6.º, al. f) da LCJ e/ou artigo 4.º, al. b), do Tratado, na medida em que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável (ter-se colocado em fuga do País onde cometeu os alegados crimes).

A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à acção da justiça.»

20. Assim, como resulta do aresto vindo de citar, bem como daqueloutro que é citado no douto acórdão recorrido, de 23 de abril de 2020, proferido no processo 498/18.0YRLSB.S1 (consultável em www.dgsi.pt), e corresponde ao sentido maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as razões pessoais e familiares invocadas pela recorrente são insuscetíveis de constituir fundamento de recusa da extradição.

21. Aliás, as dificuldades que a extradição da recorrente para a RP da China acarretarão para a sua família não serão substancialmente diferentes daquelas que teriam que enfrentar se a mesma tivesse que cumprir pena de prisão em Portugal por crime cometido no nosso país.

22. Acresce que, nas palavras do mencionado acórdão de 14 de maio de 2020 do Supremo Tribunal de Justiça, «a entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à acção da justiça».

21. Em qualquer caso, na hipótese de recusa da extradição por razões humanitárias, hipótese que só por mera cautela se equaciona, não poderia dizer-se que bastaria à RP da China pedir ao nosso país a continuação do procedimento criminal para que se obviasse à impunidade da recorrente pelo crime que é suspeita de ter cometido: é que ninguém com um mínimo de conhecimento sobre a realidade judiciária portuguesa poderia acreditar que a investigação de uma fraude financeira de várias centenas de milhões de euros, cometida na RP da China, contra centenas de cidadãos chineses, poderia algum dia chegar a bom porto… aliás, a qualquer porto que fosse! Assim,

22. Em poucas palavras, recusar a extradição da recorrente seria, pura e simplesmente, conceder-lhe a impunidade pelo gravíssimo crime que é suspeita de ter cometido -sendo certo que a natureza do crime, neste particular, não releva para aferir das razões humanitárias, pois que estas não deixariam de poder ser invocadas ainda que o crime imputado à recorrente não fosse económico-financeiro, mas, por exemplo, contra as pessoas ou contra a paz pública, como homicídio ou terrorismo.

23. Cumpre-nos ainda sublinhar que não se estará a autorizar a extradição da recorrente para o cumprimento de uma pena de prisão, mas sim, apenas, para procedimento criminal, desconhecendo-se se, a final, será condenada em pena de prisão efetiva, tendo forçosamente que se admitir que até possa vir a ser absolvida ou que, em caso de condenação, não o seja em prisão efetiva ou que o seja em pena de prisão inferior a dez anos.

24. Finalmente, carece de qualquer sentido a invocação do disposto pelo art.º 135 da Lei 23/2007, de 04 de julho, uma vez que este normativo se aplica apenas relativamente à expulsão do território nacional de quem se encontrar numa das situações previstas pelo art.º 134º do mesmo diploma legal, o que, manifestamente, não é o caso da recorrente. Aliás,

25. Estamos certos que a recorrente não ignora que a Constituição da República Portuguesa e a legislação infraconstitucional admitem a extradição de cidadãos nacionais, residentes em Portugal, em determinadas circunstâncias, o que só reforça o caráter ligeiro da sua argumentação.

Face ao exposto, não constituindo as razões apresentadas pelo recorrente qualquer fundamento para a recusa de cumprimento do Pedido de Extradição e não estando também em causa qualquer vício, quer de natureza substantiva, quer de natureza formal ou adjectiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso, nenhuma censura pode merecer o acórdão recorrido, que concedeu a entrega da recorrente AA, razão porque entendemos que o mesmo deverá ser confirmado, improcedendo assim o seu recurso.

*

3. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

*

II – Fundamentação:

II.1. O acórdão do Tribunal da Relação ... de 19 de janeiro de 2022, quanto à matéria de facto provada, não provada, motivação da matéria de facto e fundamentação de direito, é do seguinte teor (transcrição):

I.

Relatório:

1. O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal promoveu, nos termos do artigo 50.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, o cumprimento do pedido de extradição da cidadã chinesa AA - casada, nascida em .../.../1978, na província

de ..., titular do passaporte chinês n.º ..., emitido em ... a 21 de março de 2017, válido até 21 de março de 2027, residente na Rua ... (atualmente na Quinta..., ...), em ..., Portugal, apresentado pela República Popular da China para efeitos de procedimento criminal relativo à indiciada prática de um crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, praticado de outubro de 2013 a agosto de 2018, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua.

Invoca o Ministério Público que a extraditanda é procurada pelas autoridades judiciárias da República Popular da China – ..., por ter promovido publicamente, como representante legal da sociedade S..., produtos financeiros de private equity junto de pessoas, pelo telefone e de viva voz, em conluio com outros, usando como chamariz um elevado rendimento de 7,5% a 16%, assim tendo logrado receber ilegalmente 2,098 biliões de CNY de um conjunto de pessoas não especificadas, mas superior a 414, que utilizou para a compra de imóveis e para consumo pessoal, causando o não pagamento de 612 milhões de CNY, o que à taxa de câmbio atual equivale à quantia de cerca de 79 milhões de euros.

A arguida foi detida na cidade de ... a 19.4.2021, ouvida neste Tribunal da Relação a 20.4.2021, no âmbito do processo de validação de detenção n.º 61/21...., da 4ª..., apenso, confirmada a detenção, que posteriormente foi substituída pelas medidas de coação de apresentações periódicas e proibição de se ausentar para o estrangeiro.

*

2. Após a prolação de despacho liminar, procedeu-se à audição da extraditanda, nos termos previstos no artigo 54.º da referida Lei n.º 144/99, tendo a mesma manifestado a sua oposição ao pedido de extradição formulado pela República Popular da China, e não tendo renunciado ao princípio da especialidade.

Foi-lhe aplicada a medida de coação de apresentações periódicas.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 55.º do citado diploma legal, veio a requerida deduzir oposição ao pedido de extradição, invocando, para o efeito, fundamentos que enunciou da seguinte forma:

a) Nulidade dos autos por inexistência do Despacho do Sr. Secretário de Estado;

b) Invalidade da garantia apresentada pela Embaixada Chinesa por não estar completa a Nota nº 27;

c) Insuficiência da Garantia por não incluir a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Popular;

d) Insuficiência e falta de clareza na vinculação do Ministério dos Negócios Estrangeiros;

e) Insuficiência e falta de clareza no texto da “Garantia”, suscitando dúvidas se a garantia foi efetivamente prestada;

f) Razões humanitárias relacionadas com a situação da Extraditanda e de sua Família; e

g) Erros factuais constantes da matéria que fundamenta o pedido de extradição.

*

3. A requerida juntou prova documental e requereu a inquirição de testemunhas.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas.

Nas alegações finais que apresentaram, o Ministério Público e a extraditanda reafirmaram as posições antes assumidas.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

*

II.

Fundamentação

1. Questão prévia:

- Nulidade do processo

Nas suas alegações escritas, suscitou a extraditanda a questão prévia da inexistência nos autos do despacho a que se refere o art. 48º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (doravante designada abreviadamente por LCJ).

O processo de extradição comporta duas fases distintas: uma administrativa, cabendo à Procuradoria Geral da República receber o pedido de extradição, que tem de se encontrar instruído com os elementos referidos nos arts. 23º e 44º da LCJ, elaborar um parecer e remetê-lo para o Ministro da Justiça, que decide pelo deferimento ou deferimento do pedido; e uma fase judicial, precedida do despacho de deferimento do pedido de extradição pelo Ministro da Justiça, cabendo o impulso processual ao Ministério Público do Tribunal da Relação competente para o processo de extradição – arts. 48º e 50º da LCJ.

É este despacho, condição para o início do processo judicial, que a extraditanda refere não ter sido proferido.

Vejamos:

No art. 5º do requerimento inicial, refere o Ministério Público o seguinte:

“O pedido Formal de Extradição foi apresentado às Autoridades Portuguesas, tendo Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, por competência delegada de Sua Excelência a Ministra da Justiça, por despacho de 04 de agosto de 2021, considerado admissível o pedido de extradição”.

Porém, e como afirma a extraditanda, não foi junto tal despacho.

Sucede que o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, notificado da oposição, veio juntar aos autos o original do despacho que refere, cujo original se encontra a fls. 165 dos autos, e cujo teor é o seguinte:

«A República Popular da China solicita à República Portuguesa a extradição da cidadã de nacionalidade chinesa AA, ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em ... em 31 de janeiro de 2007.

No âmbito do processo-crime que corre termos no Departamento de Investigação do Crime

Económico do Ministério da Segurança Pública da República Popular da China, a extraditanda é suspeita da prática de (1) um crime de fraude para arrecadação de fundos, previsto e punido pelo artigo 192º da Lei Penal da República Popular da China, com pena máxima abstratamente aplicável de prisão perpétua, por factos praticados de outubro de 2013 a agosto de 2018.

Os factos imputados a AA pelas autoridades judiciárias chinesas, encontram correspondência no ordenamento jurídico português nos crimes de burla qualificada e de exercício da atividade ilícita de receção de depósitos e outros fundos reembolsáveis, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 217º e 218º, n.º 2, al. a), do Código Penal e artigo 200º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, com pena máxima abstrata aplicável de 8 e 5 anos de prisão, respetivamente.

Nos termos do disposto no artigo 118º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e de acordo com o preceituado no artigo 87º, n.º 2m, da Lei Penal da República Popular da China, o respetivo procedimento criminal não se mostra extinto por efeito da prescrição.

A aplicação de pena de prisão perpétua é proibida pelo ordenamento jurídico português e, consequentemente, a sua verificação, no caso concreto, encontra-se identificada, no artigo 3º, n.º 1, alínea h), do Tratado Bilateral já citado, como fundamento imperativo de recusa.

Contudo, o artigo 6º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, admite que a cooperação, no caso de extradição por crimes puníveis com pena de prisão perpétua, possa ter lugar se o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena não será aplicada ou executada.

Assim, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50º da Lei interna de extradição  da República Popular da China, com base em decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de AA ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua.

Esta garantia é, nos termos da referida disposição legal, vinculativa para todos os tribunais chineses.

Analisado o pedido e os seus fundamentos de facto conclui-se que, mediante a prestação de garantias, foram ultrapassadas as causas de recusa previstas pelo artigo 3º do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição e não se verificam as recusas que resultam da lei interna, nomeadamente porque a extraditanda não é nacional portuguesa, o crime que lhe é ora imputado mostra-se igualmente previsto pelo ordenamento jurídico português e foram prestadas garantias relativamente à causa de recusa a que alude o artigo 6º, alínea f), da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Assim, nos termos acima explanados, ao abrigo do disposto no Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em ... a 31 de janeiro de 2017 e no artigo 48º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, considero admissível o pedido de extradição efetuado pela República Popular da China relativamente a AA. (assinado Pel’A Ministra da Justiça Francisca Van Dunem, de forma digital, Mário Belo Morgado)».

Notificada a extraditanda da junção do documento, nada disse.

Tendo o despacho a que se refere o art. 48º da LCJ sido proferido em tempo, e no sentido da admissibilidade da extradição, com a sua junção aos autos ficou suprida a irregularidade de que os autos enfermavam.

*

2. Fundamentação de facto

a) Factos provados (relevantes para a decisão da causa)

1 - Ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em ... a 31 de janeiro de 1007, as autoridades competentes da República da República Popular da China solicitaram ao Estado Português a extradição da cidadã AA, acima melhor identificada, para efeitos de procedimento criminal relativo aos crimes descritos no ponto n.º 1 do “Relatório”, acima.

2 - Por despacho proferido, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 48.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, em 4 de agosto de 2021, Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, por competência delegada de Sua Excelência a Ministra da Justiça, considerou admissível o pedido de extradição, face às garantias enviadas pelas Autoridades da República Popular da China de que a pena de prisão perpétua não será aplicada à extraditanda.

3 - Os factos que estão na base do procedimento criminal, e que se respigam do pedido de cooperação, são os seguintes:

a) FF formou uma equipa de vendas especial em ..., de outubro de 2013 a agosto de 2018, sem a aprovação da autoridade financeira nacional, para vender fundos de private equity estabelecidos em nome da H... através da H... para absorver ilegalmente depósitos do público;

b) FF havia sido contratada por GG, pessoa que controla o G..., tendo este grupo estabelecido a H..., para o cargo de gerente geral para vender aqueles fundos de private equity;

c) FF ficou responsável pela administração e operação da H..., e acorda com GG que a equipa de vendas de FF receberia uma comissão de 6% do valor das vendas totais dos fundos;

d) Além de treinar as equipas de vendas em habilidades de fala, FF formulou um sistema de gestão de salários dos vendedores;

e) A equipa formada vendeu fundos de private equity, sem projetos reais, usando como isca retornos de 7,5% a 16%, por meio de ligações telefónicas, boca a boca e outros;

f) Por esta forma, absorveu 2,098 bilhões de yuans de 414 vítimas, sabendo que o G... e as suas empresas filiais não tinham as qualificações relevantes para absorver depósitos do público e vender fundos de private equity e que a maioria dos fundos de private equity não eram registados na C... e os projetos de investimento relacionados não existiam;

g) Causou uma perda de 612 milhões de yuans, e fugiu para o exterior.

4 – Os factos sumariamente descritos indiciam a prática pela extraditanda de um crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, punível pelo art.º 192º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua

5 - Não corre perante tribunais portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

6 – Com data de 16.6.2021 foi emitida pela Embaixada da República Popular da China a Nota n.º (2021) 24, do seguinte teor:

“A Embaixada da República Popular da China na República Portuguesa apresenta os seus cumprimentos à Procuradoria-geral da República Portuguesa e tem a honra de informar o seguinte:

De acordo com o artigo 50 da Lei da Extradição da República Popular da China e a decisão do Tribunal Supremo do Povo da República Popular da China, no caso da extradição da FF de Portugal para a China, se a FF for condenada por um tribunal chinês pelos factos subjacentes ao pedido de extradição, o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua) em conformidade com a lei. (…) ”

7 – Posteriormente, emitiu a mesma entidade a Nota (2021) N.º 27, do seguinte teor:

“A Embaixada da República Popular da China na República Portuguesa cumprimenta atenciosamente a Procuradoria-geral da República Portuguesa e tem a honra de fazer referência ao caso de FF, suspeita cuja extradição foi pedida pela parte chinesa à parte portuguesa, e presta os seguintes esclarecimentos e garantia sobre a aplicação da pena sobre o caso referido.

FF é uma suspeita do crime de fraude na angariação de fundos. Ao abrigo do artigo 192º do Código Penal da República Popular da China, as penas aplicáveis para esse crime incluem pena de prisão e pena de prisão perpétua. Ao abrigo do Código Penal da República Popular da China e do Código de Processo Penal da República Popular da China, se a conduta de AA constitui um crime e se e que tipo de penalidade AA deve ser condenada, compete ao tribunal de julgamento pronunciar, com base nos fatos, meios de prova e leis relevantes depois de AA ser extraditada para a China. O texto do artigo 192º do Código Penal da República Popular da China foi citado no pedido de extradição”.

8 – E em anexo:

“Artigo 50º da Lei de Extradição da República Popular da China:

No caso de o Estado requerido conceder a extradição com condições adicionais, o Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em nome do Governo da República Popular da China, apresentar garantia desde que a soberania, os interesses nacionais e os interesses públicos da República Popular da China não sejam prejudicados. A garantia com respeito a restrição do processo será sujeita à decisão da Suprema Procuradoria Popular, e a garantia com respeito a aplicação da pena será sujeita à decisão do Supremo Tribunal Popular.

Ao investigar a responsabilidade criminal da pessoa extraditada, os órgãos judiciais devem ser vinculados pela garantia prestada.”

9 - A Extraditanda é casada com um cidadão chinês, e tem três filhos: HH, nascido a .../.../2006; CC, e DD, ambos nascidos a .../.../2018. O filho mais velho tem a nacionalidade chinesa, e os dois mais novos, nascidos já em Portugal, têm a nacionalidade Portuguesa.

10 – O marido da Reqda. é uma pessoa doente, com diabetes e displipidemia grave com mau prognóstico.

11 – A Requerida foi detida no dia 19 de abril de 2021, em cumprimento da ordem de captura emitido pelas autoridades chinesas, e manteve-se em detenção provisória.

12- Na sequência de comunicação da situação de detenção da requerida aos serviços de Segurança Social de ..., foi elaborado relatório social com data de 16.6.2021, onde consta designadamente o seguinte:

“No dia 20 de maio de 2021 esta EMAT procedeu à avaliação da situação do agregado familiar.

Foi realizada entrevista ao progenitor em contexto de visita domiciliária, não se tendo verificado que as crianças estivessem em situação de perigo, contudo a progenitora era quem desempenhava as funções de cuidadora e, atendendo à ausência de figura materna, pelo motivo de se encontrar detida no estabelecimento prisional ..., e atendendo às dificuldades do progenitor em conciliar as rotinas domésticas com os cuidados às crianças uma vez que se trata de duas crianças com dois anos de idade e que exigem atenção permanente de um adulto, esta EMAT diligenciou pela integração das crianças CC e DD em equipamento escolar.

Após estes serviços assegurarem vaga em creche, CC e DD integraram contexto escolar no dia 24 de maio, na creche ... de .... De acordo com a educadora de infância a integração decorreu com normalidade.

Foi contactada ainda a diretora do C..., estabelecimento frequentado pelo jovem EE. De acordo com a diretora do colégio, o jovem está bem integrado, sendo um aluno empenhado com bom rendimento escolar e comportamento exemplar com toda a comunidade educativa.

A situação da família estava acautelada, as crianças e o jovem estavam em equipamento escolar durante o dia, permitindo ao pai o autocuidado e a organização das rotinas de vida diária, face ao papel de cuidador a tempo inteiro, fomentando desta forma um ambiente familiar mais calmo.

Contudo o estado de saúde do progenitor agravou-se, subitamente, colocando o jovem e as crianças numa situação de vulnerabilidade. No dia 13/06/2021 decorrente de episódio de urgência hospitalar, na sequência de estado de hiperglicemia e complicações cardíacas, o progenitor ficou internado para observação médica, com alta clínica no dia 14/06/2021. Esta situação foi sinalizada à linha de emergência médica 112, pelo amigo de família II, a residir no ....

O agregado não tem retaguarda familiar, atualmente contam com o apoio da filha e genro de II, JJ e KK, respetivamente que se deslocaram a ..., no dia 14/06/2021 para apoiar o progenitor, crianças e jovem. Não obstante, o apoio de JJ e KK é pontual, uma vez que o casal tem de regressar a ... hoje (16/06/2021), no final da tarde (por volta da 17:00h), por motivos de trabalho, ficando assim o agregado familiar em situação de grande vulnerabilidade. (…)

Informamos ainda que o casal amigo, JJ e KK, está a providenciar pela contratação de uma empregada doméstica para prestar apoio ao progenitor, no que respeita à organização e higienização da habitação e rotinas de vida diária, face ao agravamento da sua situação de saúde, para facilitar a recuperação deste pai. Desta forma e caso esta situação se venha a verificar a proteção do jovem EE ficará salvaguardada, uma vez que, de acordo com o que podemos apurar, este é responsável e revela capacidade de interação, autonomia e maturidade que lhe permite adequação ao nível relacional com o pai e irmãos e adequação afetiva e comportamental. (…)

Em face do agravamento da situação de saúde do progenitor, na salvaguarda do bem-estar do jovem EE (14 anos de idade), propomos a aplicação da medida de promoção e proteção de apoio junto do pai.

No que respeita às crianças CC e DD (2 anos de idade), atenta a falta de retaguarda do casal amigo, a partir do final da tarde do dia de hoje (por volta das 17:00h), a sua desproteção, pode vir a agravar a situação familiar e colocar o jovem EE em perigo e comprometer todo o equilíbrio do sistema familiar. Neste sentido, na salvaguarda do bem-estar das crianças CC e DD, pelas necessidades desenvolvimentais específicas e pela exigência de maiores cuidados, e apenas pelo período estritamente necessário à recuperação do pai, somos a propor a aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial em Centro de Acolhimento Temporário, próximo da área de residência do progenitor, no ... de .... Atenta a fragilidade do estado de saúde, o pai aceita a aplicação da medida (…) ”

13 – Nesta mesma data (16.6.2021) a medida cautelar aplicada à requerida foi alterada para apresentações periódicas e proibição de se ausentar para o estrangeiro, no âmbito do processo de validação de detenção apenso.

14 - Foi iniciado um Processo de Promoção e Proteção de Menores no Juízo de Família e Menores ... em 17.6.2021, tendo nessa data sido proferido despacho que aplicou cautelarmente às crianças CC e DD a medida de acolhimento residencial urgente, ficando acolhidas no ... de ..., e à criança EE a medida de apoio junto do pai, pelo prazo de 6 meses, até se decidir o melhor encaminhamento para estas crianças e enquanto perdurarem os problemas de saúde incapacitantes do progenitor que conduziu ao internamento em ... das crianças, e medidas de apoio ao jovem.

15 – Nesta mesma data foi junta àquele processo a seguinte informação do NIJ: “Os técnicos constataram que com o regresso da progenitora, atualmente o agregado familiar reúne condições para a salvaguarda do bem-estar das crianças e jovens, pelo que a situação de perigo em que as crianças se encontravam, atualmente, não se verifica, tendo inclusive o casal demonstrado vontade no regresso das crianças para junto de si” – o que sucedeu, tendo sido aplicada a medida de apoio junto aos pais.

16 - Os gémeos estiveram dois dias no ....

17 – A Reqda. é atualmente, como já era anteriormente, a pessoa que cuida dos filhos, e agora também do marido, devido ao seu estado de saúde.

18 - Os menores não têm qualquer outros familiares em Portugal para além dos seus pais.

19 – O jovem HH frequenta a escola em ..., estando perfeitamente integrado e provocando nos professores a melhor impressão.

20 – A requerida e seu marido não trabalham, e não têm rendimentos em Portugal.

21 – Adquiriram imóveis em Portugal, nas cidades do ... e de ..., e não falam português.

*

b) Factos não provados:

- O marido da Extraditanda encontra-se completamente incapacitado para cuidar dos filhos, designadamente dos gémeos de três anos de idade;

- Os 2 dias de internamento no ... foram suficientes para provocar nos filhos mais novos da requerida alterações de comportamento;

– Após a saída do ... e a sua entrega à mãe, as crianças passaram por crises de ansiedade, chorando sempre que a mãe se separava deles por qualquer motivo, ainda que por pouco tempo;

– Durante largas semanas, as crianças acordavam de noite e choravam chamando a mãe, e só voltavam a adormecer quando a mãe estava junto deles;

– A ausência da mãe foi geradora de situações de ansiedade para as crianças;

– A situação de BB tem vindo a agravar-se, e hoje ele não tem quaisquer condições para cuidar de qualquer dos filhos, incluindo o mais velho;

- A extradição da Reqda. irá dissolver a família, e irá perturbar perigosamente, quiçá de forma irreversível, o normal desenvolvimento dos filhos;

- Caso a requerida seja extraditada para a China, o destino dos seus filhos seria a institucionalização;

– BB teria de ser internado em instituição hospitalar para poder receber os cuidados de que necessita; e os filhos teriam de ser entregues a Centros de Acolhimento, provavelmente com separação dos irmãos, tendo em conta a diferença de idades, e muito certamente sem qualquer possibilidade de voltarem a ver o progenitor.

– O mesmo se dirá em relação à mãe, sendo improvável o seu regresso a Portugal;

– Os menores, com a extradição da mãe, terão toda a sua formação futura completamente em risco, colocados que sejam em Centros de Acolhimento, em ambientes e culturas largamente diversas das que são as suas.

– Os menores, designadamente as crianças, já de nacionalidade portuguesa, iriam crescer sem qualquer contacto com os progenitores;

E o jovem, em idade crucial para a formação da personalidade, iria igualmente ser subtraído ao ambiente familiar, sem contactos com os progenitores e sem qualquer outra referência com os hábitos de vida e de cultura que sempre teve na sua família, com os seus pais.

- Provavelmente essa situação iria ser profundamente alterada com a extradição da mãe, certamente até com mudança de escola.

E ainda:

- A extraditanda não tem neste momento quaisquer ligações à República Popular da China, nem aí terá qualquer apoio, para si e sua família, se for extraditada;

- Os pais da extraditanda têm 70 anos; o seu pai internado na semana passada, com cancro no fígado, e aguarda uma intervenção cirúrgica; a mãe tem problemas coronários e sofre de depressão;

- Os pais da extraditanda vivem com dificuldades, pois foram muito afetados pela falência da empresa onde a filha trabalhava;

- O marido da extraditanda, BB, tem a mãe viva, com mais de 80 anos, que vive num lar;

- Devido ao facto de a extraditanda ter um processo em tribunal está afastada dos seus amigos, pois os problemas judiciais são muito mal vistos na China;

- Não tem casa onde viver, pois a casa que tinha foi apreendida;

- O seu marido não tem seguro de saúde e terá muitas dificuldades em ir ao hospital para tratamento;

- O filho mais velho não poderá continuar a estudar; a escola em ... onde estudava pediu aos pais que assinassem um documento de desistência antes de saírem, e não poderá voltar a matricular-se;

- Os filhos mais novos, como têm nacionalidade portuguesa, não poderão frequentar a escola pública, mas apenas escolas internacionais, que são muito caras;

- O mesmo se passa relativamente à assistência médica, pois não terão direito a hospitais públicos, salvo se tiverem um seguro de saúde.

*

c) Convicção do tribunal:

O Tribunal baseou a sua convicção, relativamente aos factos provados:

- Nos documentos de fls. 6-54 e 55-79 (pedido de extradição, e respetiva tradução, onde constam os fundamentos da mesma) – factos provados em 1 e 3 a 5;

- Nos documentos de fls. 80-81, quanto aos factos provados n.ºs 6 a 8;

- No documento de fls. 97-98, quanto ao facto provado n.º 2;

- Nos documentos de fls. 198-201 e 55-70 do processo apenso, quanto ao facto n.º 9;

- No documento de fls. 268-272 do processo apenso, quanto ao facto n.º 12;

- No documento de fls. 4-11, quanto ao facto n.º 11;

- Nos despachos proferidos no processo apenso quanto às medidas de coação da requerida – factos n.ºs 11 e 13;

- No relatório médico de fls. 127 do processo apenso, e diário clínico de fls. 197 do processo principal – facto n.º 10;

- Nos relatórios sociais de fls. 136-138, 178-184, informações de fls. 140-141 e 144-145, e despacho de fls. 143 – factos n.ºs 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20;

- Nos documentos de fls. 85-93 (proc. apenso), relatório de fls. 183-184, documento de fls. 134 (este no processo apenso), quanto ao facto provado em 21.

Relevou o depoimento da testemunha LL, professora no C..., em ..., na medida em que o estabelecimento de ensino é frequentado pelo filho mais velho da requerida, EE, desde o ano lectivo 2020/2021. A testemunha confirmou ser sua encarregada de educação a mãe, que em junho falava apenas algumas palavras em português; que em junho o aluno faltou, e ligou ao pai, sabendo que este estava na urgência do hospital e a mãe se encontrava detida; que têm uma amiga no ... que ajuda a família, e que falou com a testemunha; que o menor se mostrou preocupado com a saúde do pai, e a mãe demonstrava receio em voltar para a China.

A testemunha MM, advogada na comarca ..., referiu ter-lhe a requerida sido apresentada em 2019, no ..., através de uma associação de apoio a emigrantes chineses, referindo que a requerida tinha 2 casas, uma nas ... e outra na ..., e que estava isolada na cidade, apenas falando a língua inglesa; que a requerida não teria apoio em ...; que o seu marido é diabético, e vê mal; e apenas contactar com a requerida por mensagem, vendo-a como pessoa só, sem amigos ou apoio, não tendo a quem deixar os filhos.

Nesta medida, confirmaram os factos provados em 17, 18, 19, 20 e 21.

*

Relativamente aos factos não provados, não foi feita prova que permitisse concluir pela sua verificação, não se encontrando sequer de forma mínima sustentados quer pela prova documental quer pela prova testemunhal produzida no âmbito dos presentes autos.

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Não foram considerados os factos alegados relativos à imputada atuação criminosa da requerida – ponto IV da oposição.

Na verdade, não cabe neste processo apurar se a extraditanda praticou ou não os factos que lhe vêm imputados, uma vez que o processo de extradição não visa o julgamento dos factos que fundamentam o respetivo processo. Aliás, nos termos do art. 46º, n.º 3, da LCJ, tal sindicância probatória está expressamente vedada; e, segundo o art. 55º, n.º 2, da mesma LCJ, a oposição “só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição”, pelo que as provas e os factos relevantes para a decisão deste processo apenas sobre estes pressupostos podem respeitar – o que foi oportunamente consignado em despacho proferido nos autos, e que se reitera.  

*

3. Fundamentação de direito

A) Da Garantia apresentada pela República Popular da China:

Alega a extraditanda que as “garantias” prestadas, consistentes em Notas Verbais emitidas pela Embaixada da República Popular da China, não constituem garantia suficiente de não lhe vir a ser aplicada por um tribunal na China a pena de prisão perpétua,

Vejamos:

Como é sabido, a extradição constitui uma das formas de cooperação internacional em matéria penal, mediante a qual um Estado (requerente) solicita a outro Estado (requerido) e entrega de uma pessoa que se encontre no território deste, para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade, por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

As condições em que é admissível e pode ser concedida a extradição, quando Portugal seja Estado requerido (extradição passiva), são fixadas primeiramente pelas disposições de tratados internacionais, multilaterais ou bilaterais sobre extradição em que Portugal seja parte, e, em geral, pelas disposições jurídicas, substantivas e processuais, fixadas no regime jurídico relativo à cooperação internacional em matéria penal (Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, doravante designada abreviadamente por LCJ).

A extradição rege-se pelas normas dos tratados internacionais de que o estado requerente e Portugal sejam parte, pelas convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas normas da LCJ, sendo subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal (art. 3º da LCJ).

Entre a República Portuguesa e a República Popular da China foi assinado, em 31 de janeiro de 2007, um Tratado sobre Extradição, que foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 31/2009, de 6.3.2009, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/2009, de 30.4.2009, e publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 84, de 30.4.2009. Será este o Tratado a aplicar primacialmente aos autos, e, complementarmente, outros tratados e convenções de que sejam parte ambos os Estados, a LCJ e o nosso Código de Processo Penal.

Ora, ressalta do art. 6º, n.º 1, als. e) e f), da LCJ que o pedido de extradição é recusado quando o facto a que respeita for punível com pena de morte ou pena de prisão perpétua – como sucede in casu.

No entanto, prevê o n.º 2, al. b), do mesmo preceito que a cooperação ocorra se “o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida se segurança não será aplicada ou executada”.

Não explicita a lei a que garantias se refere.

No caso, temos como provado terem sido emitidas duas Notas Diplomáticas, a primeira (n.º 24) referindo que “o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua) ” (sendo evidente que resulta da mesma que não será aplicada a pena de prisão perpétua, pese embora a expressão utilizada - “acima” -, por si sem qualquer significado, uma vez que a garantia refere que não será aplicada); no entanto, posteriormente, e em data que não ficou consignada, emitiu nova Nota Diplomática (n.º 27), foi anexada a norma jurídica da República Popular da China com base na qual assentou a primeira Nota emitida. Refira-se que os contactos foram estabelecidos entre os canais de comunicação previstos no Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, conforme previsto no seu art. 6º.

A Embaixada, na pessoa do seu Embaixador (Chefe de Missão), representa o respetivo Estado e, por maioria de razão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros – art. 3º, al. a), da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena a 18 de abril de 1961, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 48.295, de 27.3.1968, convenção que foi igualmente subscrita pela República Popular da China.

O art. 50º da Lei da Extradição da República Popular da China, lei a que naturalmente os tribunais da República Popular da China estão vinculados, reza que “O Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em nome da República Popular da China, apresentar garantia…”, que “a garantia com respeito a aplicação da pena será sujeita à decisão do Supremo Tribunal Popular”; e ainda que “Ao investigar a responsabilidade criminal da pessoa extraditada, os órgãos judiciais devem ser vinculados pela garantia prestada”.

Resulta assim claro que nos casos em que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China apresente uma garantia ao Estado terceiro que imponha condições adicionais à extradição, os órgãos judiciais chineses ficam vinculados à mesma. Na verdade, se tal garantia se encontrar dependente, internamente, de uma prévia decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China, não é a República Portuguesa, no âmbito das relações diplomáticas bilaterais, que tem de controlar ter sido a mesma emitida e a respetiva regularidade, antes resultando do princípio da boa fé vigente nas relações internacionais entre estados soberanos que a informação transmitida por via diplomática corresponde à realidade.

Assim, conjugando as normas referidas, resulta que o Chefe da Missão do Estado num terceiro país, no caso o Embaixador (art. 14º da Convenção sobre Relações Diplomáticas), pode assumir, em nome do seu Governo, o compromisso oficial de não vir a ser aplicada a pena de prisão perpétua – compromisso que, nos termos sobreditos, vincula os órgãos judiciais do respetivo país -, não sendo necessário que comprove encontrar-se formalmente autorizado quer pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, quer pelo Supremo Tribunal Popular - sendo assim desnecessária a comunicação de prestação de garantia pelo próprio órgão judicial, contrariamente ao alegado pela extraditanda.

A garantia decorre do complexo de competências e poderes que é reconhecido às Missões Diplomáticas, que exercem a atividade de representação diplomática do seu país. Acresce que as Missões Diplomáticas emitem Notas, constituindo estas, consabidamente, o meio de comunicação por excelência entre o Estado acreditante e o Estado acreditador. Assim, as Notas Diplomáticas valem pelo seu conteúdo, vinculam o Estado da Missão que a emite, gozando de presunção iuris tantum quanto à sua autenticidade e veracidade – que decorre do já referido princípio da boa fé e do princípio da confiança mútua, vigentes no plano das relações internacionais entre os Estados soberanos.

Em suma, presume-se a sinceridade do compromisso diplomático.

Por outro lado, sendo na sua maioria transmissões simples e resultantes de informação verbal, as Notas não obedecem a um formalismo estrito, bastando que refiram quem as emite e a quem são dirigidas – sendo totalmente desnecessário que invoquem a qualidade em que são emitidas, o que decorre da própria natureza da Missão Diplomática em causa. Assim, do facto de se não encontrar assinada ou datada não se extrai não se encontrar completa a Nota n.º 27, a que se refere o facto provado em 7/8, antes decorrendo estar completa, uma vez que o anexo a acompanha.

Assim, assumiu a República Popular da China o compromisso diplomático de não vir a ser aplicada à extraditanda a pena de prisão perpétua, com as fortes garantias inerentes à assunção de um comportamento de um Estado soberano perante outro Estado.

O mesmo foi entendido pela Ministra da Justiça Portuguesa, que, no despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 48º, n.º 2, da LCJ, menciona o seguinte: “Assim, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base me decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de AA ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua” – condição para a admissibilidade da extradição da requerida.

E quanto à possibilidade de aplicação de uma PENA DE DURAÇÃO INDEFENIDA, a que se refere igualmente a causa de recusa de extradição prevista no mesmo art. 6º, n.º 1, al. f), da LCJ?

Trata-se de pena contrária aos princípios constitucionais vigentes em Portugal, e, assim, fundamento imperativo de recusa da extradição estatuído no próprio Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, como bem referem quer a extraditanda quer o Ministério Público – art. 3º, n.º 1, al. h): “A extradição será recusada se: a execução do pedido colocasse em causa a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses públicos essenciais da Parte requerida ou se fosse contrária aos princípios fundamentais do seu direito interno”.

A propósito desta alegação da extraditanda, juntou aos autos o Ministério Público informação a propósito prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (fls. 168), informando que a pena máxima a aplicar à extraditanda será de 15 anos de prisão, nos termos do art. 45º do Código Penal do mesmo país. Esta norma, inserta na secção relativa à “Prisão por tempo determinado e Prisão perpétua” dispõe que “A duração da pena de prisão por tempo determinado não pode ser inferior a 6 meses nem superior a 15 anos, salvo se de outro modo estipulado nos Artigos 50º e 69º da presente lei”. (fls. 167).

A norma incriminadora (art. 192º do Código Penal da República Popular da China) reza o seguinte: “O indivíduo que, com finalidades de posse ilegal, arrecada fundos por meios fraudulentos, se o montante for relativamente grande, será sentenciado a prisão determinada de não superior a cinco anos ou detenção penal e multado em não inferior a 20.000 yuan, mas não superior a 200.000 yuan; se o montante for grande ou houver outras circunstâncias graves, será sentenciado a prisão determinada de não inferior a 5 anos, mas não mais de 10 anos, e multado em não inferior a 50.000 yuans, mas não superior a 500.000 yuans; se o montante for particularmente elevado ou houver outras circunstâncias particularmente graves, deve ser condenado a mais de 10 anos de prisão ou prisão perpétua, e cumulativamente multado em mais de 50.000 yuans e menos de 500.000 yuans ou confisco de propriedade”.

Perante estas normas, e conforme informação veiculada pela República Popular da China – que terá de ser havido como correspondente à realidade naquele País -, a extraditanda não poderá ser condenada numa pena de prisão de duração indefinida, sendo o máximo da pena de prisão a que ficará sujeita de 15 anos de prisão. Aliás, o próprio tipo legal de crime nem sequer prevê a aplicação de uma prisão de duração indefinida.

Pelo exposto, nada obsta a que se considere totalmente séria e válida a garantia prestada, para os efeitos do art. 6º, n.º 2, al. b), da LCJ.

*

B) Da Recusa de Extradição por Razões Humanitárias:

O art. 4º, al. b), do Tratado sobre Extradição celebrado entre a República Portuguesa e a República Popular da China dispõe sobre os Fundamentos para recusa opcional, estatuindo que “A extradição pode ser recusada se: A extradição for incompatível com considerações humanitárias em virtude da idade, saúde ou outras condições da pessoa reclamada”.

No mesmo sentido, reza o art. 18º, n.º 2, da LCJ: “Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de caráter pessoal”.

Cotejando os factos provados e até os próprios fundamentos da oposição, é patente a inexistência de quaisquer razões relacionadas com a idade, saúde ou outros motivos de carácter pessoal da requerida que tornem a extradição especialmente gravosa para a mesma.

Na verdade, a extraditanda mais não faz do que apelar para a sua situação familiar, social e económica e, designadamente, para as difíceis condições de vida em que poderá ficar o seu marido, pessoa, essa sim, doente, e os seus três filhos menores de idade.

Da factualidade que alegou, vejamos o que logrou provar:

- A extraditanda é casada com um cidadão chinês, e tem 3 filhos, de 15 e gémeos de 3 anos de idade, sendo os mais novos de nacionalidade portuguesa;

- A extraditanda e seu marido não trabalham em Portugal, e não falam a língua portuguesa;

- O marido da extraditanda é pessoa doente, sofrendo de diabetes e displipidemia grave, com mau prognóstico;

- Não têm família em Portugal, e mantêm escassas relações com terceiros;

- É a extraditanda e o marido que asseguram os cuidados dos filhos;

- Quando a extraditanda esteve detida provisoriamente, entre 19.4 e 16.6.2021, foi o seu marido que cuidou dos 3 filhos do casal;

- O filho mais velho frequenta um colégio privado, e os gémeos foram integrados numa creche, após a detenção da mãe, e por intervenção da Segurança Social;

- O marido da extraditanda cuidava e organizava as rotinas diárias da família durante a ausência da requerida, de forma adequada, até que o seu estado de saúde se agravou, tendo sofrido internamento hospitalar entre 13 e 14.6, ficando os filhos sem apoio;

- Em virtude da fragilidade do estado de saúde do marido da extraditanda, os menores então com 2 anos de idade, com o consentimento do pai, foram acolhidos em ... a 16.6, saindo a 17.6, após a libertação da mãe;

- É a extraditanda quem cuida quer dos filhos, quer do marido.

Estes factos, em particular os que resultam do teor dos relatórios sociais elaborados no âmbito do acompanhamento aos filhos menores da extraditanda, cujo teor consta dos factos provados, correspondem à normalidade da vida de uma qualquer família ocidental. Na verdade, e contrariamente ao alegado, o marido da extraditanda logrou cuidar sozinho, de forma adequada, dos 3 filhos do casal, com maior qualidade após a intervenção dos serviços sociais que colocou em creche os filhos mais novos.

Quanto ao estado de saúde do marido da extraditanda, na ausência de outra informação clínica não é de considerar, por si, incapacitante: os problemas de saúde de que é portador são infelizmente comuns, podendo sofrer de agravamento pontual, como sucedeu, mas consabidamente permitem uma vida de qualidade desde que se adoptem hábitos de vida adequados e se mantenha a vigilância médica.

Aliás, consta do relatório social que aquele que será o único apoio do casal em Portugal, um casal residente em ..., diligenciou pela contratação de uma empregada doméstica, forma adequada de obtenção do apoio necessário ao bem-estar dos filhos do casal.

Ou seja, não se consegue extrair dos factos provados que o marido da extraditanda não consiga cuidar dos filhos (sendo certo que uma situação de doença aguda ou qualquer outra causa de incapacidade temporária poderá sempre ocorrer em qualquer agregado familiar, com as dificuldades inerentes), ou que os menores venham a ser institucionalizados em ... no caso de procedência da requerida extradição.

Pelo contrário, o circunstancialismo descrito nos factos provados durante a detenção da extraditanda corresponde aos naturais incómodos e perturbação dos hábitos de vida que uma extradição sempre ocasiona ao extraditando e família, mostrando-se insuficiente para legitimar a conclusão de que o deferimento do pedido seria susceptível de implicar as “consequências graves” que a lei exige para que se aceite como ajustada a decisão de negar a cooperação.

Caso pretenda continuar a residir em Portugal, naturalmente que o agregado familiar da extraditanda, nomeadamente o seu marido, terá de efetuar um esforço sério de inclusão, sendo a sua inserção social e eventualmente laboral suficiente para garantir um crescimento harmonioso e adequado às crianças.

A propósito, o nosso Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de se não enquadrar nos fundamentos de recusa de extradição, nos termos do art. 18º, n.º 2, da LCJ, “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de caráter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça”.

Na verdade, a prática de crimes e o cumprimento de pena de prisão, seja em que país for, é suscetível de provocar uma quebra de laços afetivos da pessoa com a sua família. É o que ocorre normalmente com qualquer pessoa que seja suspeita da prática de um crime, e que fique detida por essa razão. A ponderação a efetuar será entre a gravidade dos factos indiciados à extraditanda, e a gravidade das consequências da extradição. Desde logo, impõe-se considerar que no que toca aos factos indiciados, constantes do pedido de extradição (e cuja punibilidade, quer na República Popular da China quer em Portugal, a extraditanda não coloca em causa), ainda não ocorreu condenação, ignorando-se se a extraditanda, no final do processo que corre termos na China, será condenada, e se o será em pena de prisão efetiva.

Ora, a decisão de o agregado familiar da extraditanda ficar em Portugal ou regressar ao País de origem será do casal. O certo é que os deveres a que o Estado Português se encontra constitucionalmente adstrito, de proteção da família, da infância e da juventude (arts. 67º, 69º e 70º da Constituição da República Portuguesa, invocados pela extraditanda), não podem ceder perante o direito à administração da justiça. Para garantir os direitos inerentes à família e ao são crescimento das crianças e jovens, Portugal dispõe de estruturas e serviços públicos adequados, como bem foi demonstrado durante a detenção da extraditanda.

Em suma, a instabilidade ou rutura familiar provocada pela extradição para a República Popular da China não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 4.º, al. b), do Tratado sobre Extradição celebrado entre os dois Países, sendo certo que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela própria Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável (ter abandonado o País onde cometeu os alegados crimes).

A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à ação da justiça.

O que é de todo inadmissível.

Pelas razões expostas, improcede totalmente a oposição deduzida pela extraditanda.

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 II. 2. Questões a decidir:

São as seguintes as questões suscitadas nas conclusões da motivação pela recorrente AA, de que cumpre conhecer:

a) Da alegada falta de validade formal das notas verbais, através das quais as Autoridades da RP da China prestaram as necessárias garantias ao Estado Português, por não terem aposta a fórmula protocolar diplomática.

b) Validade da garantia prestada pelo Estado Chinês de que à recorrente não será aplicada pena de prisão perpétua

c) Da Recusa de Extradição por Razões Humanitárias:

d) Da violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, por não aplicação do art.º 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional).

e) Da Violação Do Princípio In Dubio Pro Reo

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II. 3. No domínio da cooperação judiciária internacional, em matéria penal, a extradição emerge como a mais antiga forma de colaboração entre Estados. Através dela um Estado (requerente) pede a outro Estado (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena em que foi condenado.

Trata-se de um instrumento de cooperação internacional que visa não só evitar a impunidade, mas também contribuir para a inexistência de territórios que se tornem locais onde os criminosos se possam refugiar.

Com se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de maio de 2012, a admissibilidade de extradição, nomeadamente quando Portugal é o Estado requerido (extradição passiva), é regulada pelos tratados e convenções internacionais, e, na sua falta ou insuficiência, pela lei relativa à cooperação internacional (Lei 144/99, de 31.08 - LCJ), e ainda pelo CPP, conforme dispõem o art.º 229.º deste diploma e o art.º 3.º, n.º 1, daquela Lei. A aplicação da lei interna portuguesa é, pois, subsidiária (Cf. proc. n.º 290/11.3YRCBR1.S1, in www.dgsi.pt.)

As relações de cooperação penal entre Portugal e a República Popular da China, regem-se pelo Tratado sobre Extradição assinado, em 31 de janeiro de 2007, que foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 31/2009, de 6.3.2009, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/2009, de 30.4.2009, e publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 84, de 30.4.2009. Será este o Tratado a aplicar primacialmente aos autos, e, complementarmente, outros tratados e convenções de que sejam parte ambos os Estados, a LCJ e o nosso Código de Processo Penal.

No processo de extradição a “entrega”, designando a translação jurídica e física de uma pessoa e constituindo um dos elementos do processo, está sujeita à verificação de determinados requisitos, uns de ordem formal e outros substanciais.

Posto isto e retomando o caso concreto, passemos a conhecer das questões suscitadas:

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II. 4. Quanto à alegada falta de validade formal das notas verbais, através das quais as Autoridades da RP da China prestaram as necessárias garantias ao Estado Português, por não terem aposta a fórmula protocolar diplomática.

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II.4.1. Alega a recorrente que «do pedido de extradição consta expressamente que a pretensão do Estado requerente se dirige à prossecução da acção penal contra a Recorrente pela prática do crime de obtenção de fundos por meios fraudulentos, praticado de outubro de 2013 a agosto de 2018, punível pelo art.º 192.º da Lei Criminal da República Popular da China com pena de prisão perpétua.

Se sujeita a julgamento, será possível que à Recorrente venha a ser imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição. Consequência não admissível à luz do nosso ordenamento jurídico.

Não podemos partilhar da confiança do Tribunal a quo para legitimar a aplicação do disposto no artigo 6.º com as garantias prestadas pela representação diplomática da Republica Popular da China.

Até porque umas notas verbais que fazem parte integrante dos autos, a n.º 27, não tem validade formal, uma vez que não tem aposta a fórmula protocolar diplomática.

O que levanta sérias dúvidas quanto à subscrição, respeito e, acima de tudo, sua vinculação por parte da Republica Popular da China ao conteúdo que estas emanam.

Resulta um dever de cuidado manifesto porquanto se o incumprimento pelas regras estatuídas se manifesta logo à partida com as notas verbais, como será possível a Portugal impor o respeito e um regular cumprimento das garantias agora prestadas?» (conclusões H a M).

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II.4.2. Contrariamente ao alegado pela recorrente, nenhuma das notas está incompleta, não padecendo de qualquer imperfeição ou vício, ou, pelo menos, de imperfeição ou vício que coloquem em causa o respetivo conteúdo ou validade.

Nos termos da al. a) do artº. 3º da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961, de que Portugal e a República Popular da China são parte, as funções das missões diplomáticas consistem, nomeadamente, em “representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador”, razão pela qual quaisquer garantias prestadas pela embaixada daquele país vinculam necessariamente o Estado Chinês. Ora, decorrendo tal vinculação de instrumento de direito internacional, também não carecia a mesma de ser expressamente invocada nas notas produzidas pela embaixada da República Popular da China.

E dúvidas também não cabem quanto à validade da garantia prestada pelo Estado Chinês de que à recorrente não será aplicada pena de prisão perpétua.

Na verdade, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50.º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base em decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de AA ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua.

Não havendo motivo para questionar a validade da garantia de não aplicação da prisão perpétua à recorrente, prestada através de nota verbal da Embaixada da República Popular da China, dúvidas também não há de que a mesma vincula o Estado Chinês. Com efeito, nos termos da al. a) do art.º 3.º da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961, de que Portugal e a República Popular da China são parte, as funções das missões diplomáticas consistem, nomeadamente, em “representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador”, razão pela qual quaisquer garantias prestadas pela embaixada daquele país vinculam necessariamente o Estado Chinês.

Ora, decorrendo tal vinculação de instrumento de direito internacional, também não carecia a mesma de ser expressamente invocada nas notas produzidas pela embaixada da República Popular da China.

Como bem salienta a decisão recorrida:

«(…) No caso, temos como provado terem sido emitidas duas Notas Diplomáticas, a primeira (n.º 24) referindo que “o tribunal que a julgará não imporá uma sentença acima de prisão perpétua (incluindo a prisão perpétua)” (sendo evidente que resulta da mesma que não será aplicada a pena de prisão perpétua, pese embora a expressão utilizada - “acima” -, por si sem qualquer significado, uma vez que a garantia refere que não será aplicada); no entanto, posteriormente, e em data que não ficou consignada, emitiu nova Nota Diplomática (n.º 27), foi anexada a norma jurídica da República Popular da China com base na qual assentou a primeira Nota emitida. Refira-se que os contactos foram estabelecidos entre os canais de comunicação previstos no Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, conforme previsto no seu art. 6º.

A Embaixada, na pessoa do seu Embaixador (Chefe de Missão), representa o respetivo Estado e, por maioria de razão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros – art. 3º, al. a), da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena a 18 de abril de 1961, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 48.295, de 27.3.1968, convenção que foi igualmente subscrita pela República Popular da China.

O art.º 50.º da Lei da Extradição da República Popular da China, lei a que naturalmente os tribunais da República Popular da China estão vinculados, reza que “O Ministério dos Negócios Estrangeiros pode, em nome da República Popular da China, apresentar garantia…”, que “a garantia com respeito a aplicação da pena será sujeita à decisão do Supremo Tribunal Popular”; e ainda que “Ao investigar a responsabilidade criminal da pessoa extraditada, os órgãos judiciais devem ser vinculados pela garantia prestada”.

Resulta assim claro que nos casos em que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China apresente uma garantia ao Estado terceiro que imponha condições adicionais à extradição, os órgãos judiciais chineses ficam vinculados à mesma. Na verdade, se tal garantia se encontrar dependente, internamente, de uma prévia decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China, não é a República Portuguesa, no âmbito das relações diplomáticas bilaterais, que tem de controlar ter sido a mesma emitida e a respetiva regularidade, antes resultando do princípio da boa fé vigente nas relações internacionais entre estados soberanos que a informação transmitida por via diplomática corresponde à realidade.

Assim, conjugando as normas referidas, resulta que o Chefe da Missão do Estado num terceiro país, no caso o Embaixador (art. 14º da Convenção sobre Relações Diplomáticas), pode assumir, em nome do seu Governo, o compromisso oficial de não vir a ser aplicada a pena de prisão perpétua – compromisso que, nos termos sobreditos, vincula os órgãos judiciais do respetivo país -, não sendo necessário que comprove encontrar-se formalmente autorizado quer pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, quer pelo Supremo Tribunal Popular - sendo assim desnecessária a comunicação de prestação de garantia pelo próprio órgão judicial, contrariamente ao alegado pela extraditanda.

A garantia decorre do complexo de competências e poderes que é reconhecido às Missões Diplomáticas, que exercem a atividade de representação diplomática do seu país. Acresce que as Missões Diplomáticas emitem Notas, constituindo estas, consabidamente, o meio de comunicação por excelência entre o Estado acreditante e o Estado acreditador. Assim, as Notas Diplomáticas valem pelo seu conteúdo, vinculam o Estado da Missão que a emite, gozando de presunção iuris tantum quanto à sua autenticidade e veracidade – que decorre do já referido princípio da boa fé e do princípio da confiança mútua, vigentes no plano das relações internacionais entre os Estados soberanos ( ).

Em suma, presume-se a sinceridade do compromisso diplomático.

Por outro lado, sendo na sua maioria transmissões simples e resultantes de informação verbal, as Notas não obedecem a um formalismo estrito, bastando que refiram quem as emite e a quem são dirigidas – sendo totalmente desnecessário que invoquem a qualidade em que são emitidas, o que decorre da própria natureza da Missão Diplomática em causa. Assim, do facto de se não encontrar assinada ou datada não se extrai não se encontrar completa a Nota n.º 27, a que se refere o facto provado em 7/8, antes decorrendo estar completa, uma vez que o anexo a acompanha.

Assim, assumiu a República Popular da China o compromisso diplomático de não vir a ser aplicada à extraditanda a pena de prisão perpétua, com as fortes garantias inerentes à assunção de um comportamento de um Estado soberano perante outro Estado.

O mesmo foi entendido pela Ministra da Justiça Portuguesa, que, no despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 48º, n.º 2, da LCJ, menciona o seguinte: “Assim, conforme resulta das Notas Verbais de 16 e 22 de junho de 2021, o Governo da República Popular da China garante, nos termos do artigo 50º da Lei interna de extradição da República Popular da China, com base me decisão do Supremo Tribunal Popular da República Popular da China que, no caso de AA ser extraditada de Portugal para a China e condenada por um tribunal chinês pelos factos pelos quais a extradição foi requerida, o Tribunal de julgamento não a condenará em pena de prisão perpétua” – condição para a admissibilidade da extradição da requerida».

Estamos, pois, perante uma declaração formal, cujo conteúdo se deve presumir verdadeiro e que, para todos os efeitos, corresponde a um compromisso solene que o Estado Chinês assume perante o Estado Português, compromisso esse que, nos termos dos elementos transmitidos, está em condições formais e substanciais de cumprir, e tanto basta, como bastou, para que o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça considerasse admissível a extradição da recorrente.

Por tudo o exposto, improcede esta alegação da recorrente

*

II. 5. Quanto à validade da garantia prestada pelo Estado Chinês de que à recorrente não será aplicada pena de prisão perpétua

II.5.1. Alega a recorrente que o crime que lhe é imputado poderá, eventualmente, ser punido com pena de prisão perpétua, consequência essa que não pode de todo afastada, porquanto há circunstâncias/elementos desconhecidos, nomeadamente as empresas revestirem natureza pública ou privada, entre outras, poderão levar a aplicação de pena diversa e mais gravosa das garantias agora prestadas, não estando provado, porque nem o julgamento se iniciou, existindo apenas uma acusação, a que título são imputados os factos à recorrente – se como autora, se como cúmplice e se seria uma mera funcionária; as autoridades chinesas, ao invés de elencarem todas as normas abstratamente aplicáveis ao caso, escolheram o artigo 192.º da Lei Penal da República Popular da China, cuja moldura penal inclui a prisão perpétua abstratamente aplicável, isto apesar de acordo com a nota n.º 24 e também na informação prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros consideram que não será de aplicar pena superior a 15 anos; contudo é forte convicção da recorrente que esta comunicação visa apenas integrar as condições para a admissibilidade da Extradição para que depois, uma vez extraditada a requerente se lhe perca o rasto e o cumprimento dessa moldura penal; assim, não cuidaram de elencar todas as normas e factos mais gravosos, uma vez em julgamento, que possam em abstrato ser aplicadas ao caso e por isso, por agravarem a medida da pena obstassem à Extradição; neste sentido, a violação dos Direitos do Homem, e a real possibilidade de ser aplicada uma pena de prisão perpétua por força das débeis garantias prestadas pelo Estado Requerente, tem de se revelar suficiente para preencher a causa de recusa da extradição prevista no art.º 6.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que aqui não aconteceu. Também neste sentido, e ao abrigo do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, assinado em 31 de Janeiro de 2007, deveria ter sido rejeitada a autorização da extradição, pura e simples, em conformidade com o plasmado no artigo 3.º, do qual resulta a recusa de extradição como um imperativo, pois, a concessão de extradição sem apresentação de garantia é, ademais, uma ilegalidade, que expressamente se invocou, e não foi atendida, mas não só, ela consubstancia a prática de uma Inconstitucionalidade por violação do artigo 33.º n.º 4 da CRP, que faz depender a concessão da extradição da apresentação de garantia pelo estado requerente da não aplicação de uma pena de prisão perpétua ou de duração indefinida, garantia essa que não foi nos autos de extradição válida e/ou legalmente prestada, por insuficiente motivação, pelo que, outra deveria ser a submissão dos factos ao direito e daí o tribunal a quo faz uma errada e incorreta interpretação das normas aqui elencadas sendo que delas deveria ter resultado uma interpretação diametralmente díspar, violando-se de forma grosseira o disposto no artigo 6.º, al. a) e f) da Lei n.º 144/99 e no artigo 33.º n.º 4 CRP. Contextualizando, também no caso vertente e objeto deste recurso inexiste esse princípio de confiança mútua porquanto não há uma garantia sólida e válida prestada pela República Popular da China, existe apenas um formalismo em que se expressa a aplicação de uma pena de prisão de 10/15 anos, sem se conhecer de toda a factualidade que poderá produzir alterações na aplicação da pena, possibilitando a aplicação da pena de prisão perpétua – Princípio esse violador das normas constitucionais já identificadas bem como da lei 144/99 e do referido Tratado celebrado e que rege a presente situação (conclusões O a Z).

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II.5.2. Remetendo o art.ª 6.º, n.º 1, al. a) da Lei 144/99, de 31.08, para a necessidade do pedido de cooperação satisfazer e respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), sob pena de ser recusado, importa aqui atender aos artigos 3.º, 6.º e 13.º desta Convenção e às reservas que o Estado Português apresentou aos artigos 3.º e 6.º.

O art. 3.º da CEDH, estabelece que «Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.».

O art. 6.º, desta mesma Convenção, estabelece que qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo.

Seguindo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), DDD, esclarece que “um processo equitativo exige, como elemento conatural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição não inferior à da parte contrária, ou, de outro modo, a parte deve deter a garantia de apresentar o caso perante o tribunal em condições que a não coloquem em substancial desvantagem face ao seu oponente.” (Cf. “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª ed. Da Coimbra editora, pág. 165).

O art. 13° da CEDH, sob a epígrafe «Direito a um recurso efetivo», dispõe que «Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas funções oficiais.».
As reservas que Portugal formulou à Convenção Europeia de Extradição, foram as seguintes:
«
Artigo 1.º: Portugal não concederá a extradição de pessoas:

a) Que devam ser julgadas por um tribunal de exceção ou cumprir uma pena decretada por um tribunal dessa natureza; b) Quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão a pena em condições desumanas; c) Quando reclamadas por infração a que corresponda pena ou medida de segurança com carácter perpétuo.

Artigo 2.º: Portugal só admitirá a extradição por crime punível com pena privativa da liberdade superior a um ano.

Artigo 6.º, n.º 1: Portugal não concederá a extradição de cidadãos portugueses.

Artigo 11.º: Não há extradição em Portugal por crimes a que corresponda pena de morte segundo a lei do Estado requerente.

Artigo 21.º: Portugal só autoriza o trânsito em território nacional de pessoa que se encontre nas condições em que a sua extradição possa ser concedida.».

Sobre a possibilidade de à recorrente vir a ser aplicada uma pena de prisão de duração indefinida, diremos que, ainda que seja certo que o art.º 192.º do Código Penal da República Popular da China não prevê no seu corpo um limite máximo para a duração da pena de prisão que não a prisão perpétua, estabelecendo apenas o limite mínimo de dez anos de prisão, aquele primeiro limite tem que se ir buscar ao art.º 45.º do mesmo diploma legal, que dispõe que, “a não ser que os artigos 50 e 69 da presente Lei estabeleçam de diferente modo, o termo de uma pena de prisão com termo fixo não pode ser menos de seis meses e não mais de quinze anos”, significando isto que a recorrente, a ser condenada pelos factos que fundamentam o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão entre um limite mínimo de dez anos e um máximo de quinze anos.

 Sendo certo que a garantia prestada pelo Estado Chinês não menciona o limite máximo de quinze anos para a pena de prisão em que a recorrente pode vir a ser condenada, não menos certo é que não tinha que o mencionar, uma vez que tal limite não resulta de uma condição aceite pelo Estado Chinês, mas da sua própria lei penal.

A este propósito diga-se, como bem observa o Digno Magistrado do MºPº, que o próprio Código Penal português contém uma norma de idêntico teor ao da acima mencionada, a saber, o art.º 41.º, que, em rigor, dispensaria que as normas relativas aos crimes puníveis com penas de prisão até vinte e cinco anos de prisão contivessem a indicação expressa desse limite, uma vez que o mesmo já se encontra imperativamente estabelecido pelo mencionado normativo.

Assim, sendo certo que a garantia prestada pelo Estado Chinês não menciona o limite máximo de quinze anos para a pena prisão em que a recorrente pode vir a ser condenada, não menos certo é que não tinha que o mencionar, uma vez que tal limite não resulta de uma condição aceite pelo Estado Chinês, mas da sua própria lei penal.

Impõe-se recordar a parte da fundamentação do acórdão recorrido que conheceu das garantias jurídicas do procedimento criminal, das condições de cumprimento da pena e do grave prejuízo para o extraditando, concluindo com clareza;

«(…) E quanto à possibilidade de aplicação de uma PENA DE DURAÇÃO INDEFENIDA, a que se refere igualmente a causa de recusa de extradição prevista no mesmo art. 6º, n.º 1, al. f), da LCJ?

Trata-se de pena contrária aos princípios constitucionais vigentes em Portugal, e, assim, fundamento imperativo de recusa da extradição estatuído no próprio Tratado sobre Extradição celebrado entre Portugal e a China, como bem referem quer a extraditanda quer o Ministério Público – art. 3º, n.º 1, al. h): “A extradição será recusada se: a execução do pedido colocasse em causa a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses públicos essenciais da Parte requerida ou se fosse contrária aos princípios fundamentais do seu direito interno”.

A propósito desta alegação da extraditanda, juntou aos autos o Ministério Público informação a propósito prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (fls. 168), informando que a pena máxima a aplicar à extraditanda será de 15 anos de prisão, nos termos do art. 45º do Código Penal do mesmo país. Esta norma, inserta na secção relativa à “Prisão por tempo determinado e Prisão perpétua” dispõe que “A duração da pena de prisão por tempo determinado não pode ser inferior a 6 meses nem superior a 15 anos, salvo se de outro modo estipulado nos Artigos 50º e 69º da presente lei”. (fls. 167).

A norma incriminadora (art. 192º do Código Penal da República Popular da China) reza o seguinte: “O indivíduo que, com finalidades de posse ilegal, arrecada fundos por meios fraudulentos, se o montante for relativamente grande, será sentenciado a prisão determinada de não superior a cinco anos ou detenção penal e multado em não inferior a 20.000 yuan, mas não superior a 20o.000 yuan; se o montante for grande ou houver outras circunstâncias graves, será sentenciado a prisão determinada de não inferior a 5 anos, mas não mais de 10 anos, e multado em não inferior a 50.000 yuans, mas não superior a 500.000 yuans; se o montante for particularmente elevado ou houver outras circunstâncias particularmente graves, deve ser condenado a mais de 10 anos de prisão ou prisão perpétua, e cumulativamente multado em mais de 50.000 yuans e menos de 500.000 yuans ou confisco de propriedade”.

Perante estas normas, e conforme informação veiculada pela República Popular da China – que terá de ser havido como correspondente à realidade naquele País -, a extraditanda não poderá ser condenada numa pena de prisão de duração indefinida, sendo o máximo da pena de prisão a que ficará sujeita de 15 anos de prisão. Aliás, o próprio tipo legal de crime nem sequer prevê a aplicação de uma prisão de duração indefinida».

Em resumo, o Estado Chinês prestou garantia válida e incondicional de que à recorrente não será «imputado um ou mais crimes, de natureza diferente, e com molduras penais mais gravosas, não integrados no pedido e que legitimem a extradição» e de que a mesma não será condenada a pena de prisão perpétua, resultando da conjugação dos art.ºs 192.º e 45.º do Código Penal da República Popular da China que a mesma, a ser condenada pelos factos que fundamentaram o pedido de extradição, incorrerá numa pena de prisão cujo limite máximo não poderá ser superior a quinze anos.

Não assiste assim razão à mesma também quanto a tais segmentos da sua argumentação, não colhendo o seu entendimento de que não se mostram prestadas garantias de que não lhe será aplicada pena de morte, de prisão de carácter perpétuo ou de duração indefinida.

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II. 6. Quanto à desconsideração de todas as circunstâncias pessoais da Recorrente que podem consubstanciar causa de recusa da extradição, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31.08 e artigo 4.º, al. b) do Tratado sobre extradição.

II.6.1. Alega a recorrente que o circunstancialismo que rodeia a extradição da recorrente não pode de forma alguma ser desconsiderado. A extradição da recorrente equivaleria sim à quebra do vínculo familiar e ao necessário acolhimento dos filhos numa instituição, porquanto a recorrente reside em Portugal desde Agosto de 2018 com o seu marido, BB, e plenamente integrada no nosso país, do ponto de vista social e familiar; a recorrente, conforme resultou provado, é esposa e mãe, da qual dependem o seu marido gravemente doente, com patologia degenerativa e os seus 3 filhos, 2 gémeos com 3 anos e o seu filho mais velho com uns frágeis 14 anos de idade, com todas as responsabilidades que daí advêm; a extradição da recorrente implica a exposição desta família a uma situação absolutamente vulnerável e de risco, violadora em toda a sua plenitude do direito à vida privada e familiar, e do previsto no art.º 8.º da CEDH; os artigos 67º (“Família”), 69º (“Infância”) e 70º (“Juventude”), plasmados na Constituição da República Portuguesa (CRP) determinam que a família “como elemento fundamental da sociedade” tem direito a proteção e à “efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”; a extradição que se pretende ser imposta à recorrente pelo Tribunal a quo contende de forma grosseira com este princípio porquanto o afastamento incerto e dramático da recorrente do seu seio familiar, pautado pela séria incerteza do seu regresso, em nada se coaduna com o plasmado nos princípios basilares do nosso Estado de direito; “a progenitora era quem desempenhava as funções de cuidadora e, atendendo à ausência de figura materna, pelo motivo de se encontrar detida no estabelecimento prisional ..., e atendendo às dificuldades do progenitor em conciliar as rotinas domésticas com os cuidados às crianças uma vez que se trata de duas crianças com dois anos de idade e que exigem atenção permanente de um adulto, esta EMAT diligenciou pela integração das crianças CC e DD em equipamento escolar.” – se restassem dúvidas sobre o papel fundamental e pilar da recorrente no seio da sua família, todas elas são dissolvidas com este relatório social elaborado durante a sua ausência e, apenas esta circunstância fez com que resultasse necessária a entrega dos menores a uma instituição; também o filho jovem EE, adolescente, “o jovem está bem integrado, sendo um aluno empenhado com bom rendimento escolar e comportamento exemplar com toda a comunidade educativa, sendo no seu conjunto uma família funcional e equilibrada, pelo que não se pode entender em sentido diverso ao da profunda perturbação que a extradição acarretaria para o seio daquela família que passaria a ser perfeitamente disfuncional e desprotegida nessa mesma qualidade; a realização pessoal dos membros deste agregado familiar estaria completamente destruída, contrariando de forma manifesta e violenta o plasmado nos referidos artigos da nossa Constituição, e que, por isso mesmo, regem a situação em análise, bem como a garantia à infância e à juventude plasmados nos artigos 69.º e 70.º porquanto as crianças CC e DD e o jovem EE teriam a sua infância e juventude, valores protegidos constitucionalmente, inegavelmente comprometidas, pelo que a interpretação das normas nunca poderá ser feita por forma a aplicar e autorizar de forma automática a extradição de um cidadão em situação familiar tão vulnerável e frágil. Conclui, assim, que este caso reclama de forma imperiosa a aplicação da cláusula humanitária prevista no art.º 4.º, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição e no art.º 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 – o que o Tribunal a quo rejeitou (conclusões CC a TT).

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II.6.2. Sobre uma situação em tudo idêntica à dos autos, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de Abril de 2020, proferido no processo 498/18.0YRLSB.S1, 5ª Secção, Relatora: Margarida Blasco (consultável em www.dgsi.pt), nos seguintes termos:

«I - Tem sido entendimento maioritário da jurisprudência deste STJ, que não se enquadra como motivo de recusa de extradição prevista no artigo 18.º, n.º 2, da LCJ “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de carácter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça. Pelo que não existe desconsideração de circunstâncias pessoais da extraditanda que possam consubstanciar causa de recusa da extradição, ao abrigo do art. 18.º, n.º 2, da Lei n. º144/99, de 31-08 e art. 4.º, al. b), do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre extradição. De acordo com o art. 3.º, da LCJ, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31-08 (e posteriores alterações): “As formas de cooperação a que se refere o art. 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.” Cumpre referir que o processo de extradição tem fins e propósitos distintos da decisão de expulsão prevista na Lei n.º 23/2007, de 04-07, e, nessa medida, não é convocável nesta sede, o disposto no art. 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04-07.

II -  É verdade que a união da família é um direito fundamental e que a entrega da recorrente implica uma diminuição ou eventual quebra do vínculo aos filhos, porém, face aos contornos do caso em apreço, não vemos que essa circunstância possa ser considerada como um motivo bastante, ponderoso e excepcional que fundamente a recusa facultativa da entrega da recorrente ao seu País de origem. Entendemos que a interferência no direito à vida familiar da Requerente provocada pela autorização da Extradição afigura-se justificada e não é manifestamente arbitrária ou desproporcionada, e, nessa medida, não é violadora de qualquer preceito constitucional e/ou do art. 8.º, da CEDH, inexistindo fundamento ponderoso para recusa facultativa nos termos do art. 18.º, n.º 2, da LCJ e art. 4.º, al. b), do Tratado».

Como resulta do aresto vindo de citar, corresponde ao sentido maioritário da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não se enquadra como motivo de recusa de extradição prevista no artigo 18.º, n.º 2, da LCJ “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de carácter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça.

Veja-se alguns arestos exemplos deste entendimento:

- Acórdão do STJ de 11-01-2018, Proc. n.º 1331/17.6YRLSB.S1 - 3.ª Secção, Relator: Manuel Augusto de Matos: “VII - O afastamento do requerente da sua família por virtude da sua extradição não consubstancia - para efeitos do disposto no art. 8.º da CEDH - lesão ou prejuízo grave para o mesmo concretamente de grau superior àquele que aquela medida de cooperação normalmente implica. Por outro lado, não se poderão considerar consequências graves resultantes de outros motivos de carácter pessoal aquelas consequências que são a regra para quem tem família e vai ter de cumprir uma pena de prisão” (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Boletim anual – 2018, pag. 13 e 14).

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- Acórdão do STJ de 07-01-2016, Proc. n.º 3/15.0YRLSB.S1 - 5.ª Secção, Isabel Pais Martins: “VII -É inquestionável que o deferimento do pedido de extradição e o eventual cumprimento de pena na República Federativa do Brasil, no âmbito do processo em que o pedido é formulado, implica uma ruptura do projecto de vida do extraditando em Portugal, com custos no plano pessoal e afectivo e no plano profissional. Só que essa consequência é a consequência normal do afastamento "forçado" do território nacional implicada na extradição. VIII - As consequências graves que o deferimento do pedido possa implicar para a pessoa do visado reclamadas para a denegação facultativa da cooperação internacional, nos termos do n.º 2 do art. 18.° da referida Convenção, não podem ser identificadas com aquelas que são comuns a todos os casos em que os extraditandos vieram a estabelecer o seu núcleo de vida pessoal e familiar no Estado requerido, sob pena de uma generalizada recusa de cooperação, contrária aos ideais afirmados no preâmbulo da Convenção. IX - Perante a gravidade do facto, traduzida, nomeadamente, na condenação, embora ainda não transitada, pela prática de um crime de homicídio terá de reconhecer-se que as consequências da extradição - afastamento do extraditando do território nacional, onde se encontra familiar, social e profissionalmente inserido, com quebra, pelo menos física, dos laços afectivos com a companheira e os filhos - não consubstanciam lesão ou prejuízo de grau superior àquele que aquela forma de cooperação, normalmente, pela sua própria natureza, implica (art. 18.º, n.º 2 da Convenção). “ (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Boletim anual – 2016, pag. 31,32 e 33).

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-Acórdão do STJ de 08-08-2014, Proc. nº 364/14.9URLSB.S1 - 3.ª Secção, Relator Raul Borges “V - O recorrente alega um conjunto de condições pessoais, que determinam em seu entender a negação da cooperação, nos termos do n.º 2 do art. 18.º da Lei 144/99. Mas, no caso presente não estão em causa consequências ao nível da idade (actualmente o recorrente conta 36 anos de idade), da saúde do requerido, e como refere o acórdão de 19-01-2012, proferido no Proc. 242/11.3YRCBR.S1 - 5.ª, não se poderão considerar consequências graves devido a outros motivos de carácter pessoal aquelas consequências que são inerentes ao processo de extradição, que são a regra para quem tem família e emprego e vai ter que cumprir uma pena de prisão” (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Boletim anual – 2014, pag. 355).

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-Acórdão de 03-05-2012, Proc. nº 205/11.9GYRCBR.S2 - 5.ª Secção, também da Relatora Isabel Pais Martins: “ IV - O n.º 2 do art. 18.º da Lei 144/99, de 31-08, ao prever a possibilidade de negação do pedido de extradição quando este possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, faz depender a denegação facultativa da cooperação internacional, não só das mencionadas consequências pessoais mas também de um juízo de ponderação de interesses entre o facto criminoso e aquelas consequências, ponderação em que assume particular relevância o confronto entre a gravidade do facto e a gravidade das consequências da extradição para o visado. Ora, perante a gravidade do facto, traduzida, nomeadamente, na acusação pela prática de 2 crimes de tráfico de estupefacientes, terá de reconhecer-se que as invocadas consequências da extradição – afastamento do extraditando do território nacional, onde se encontra social e profissionalmente inserido, com quebra dos laços afectivos com a companheira e o filho desta – não consubstanciam lesão ou prejuízo de grau superior àquele que aquela forma de cooperação, normalmente, pela sua própria natureza, implica. ” (Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Boletim anual – 2012, pgs. 295 e 296).

Entendemos, deste modo, que a instabilidade/ruptura familiar provocada pela Extradição da recorrente para China, não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 6.º, al. f) da LCJ e/ou artigo 4.º, al. b), do Tratado, na medida em que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável.

A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à acção da justiça.

E, como bem salienta o Digno Magistrado do MºPº, «as dificuldades que a extradição da recorrente para a Republica Popular da China acarretarão para a sua família não serão substancialmente diferentes daquelas que teriam que enfrentar se a mesma tivesse que cumprir pena de prisão em Portugal por crime cometido no nosso país (…) Em qualquer caso, na hipótese de recusa da extradição por razões humanitárias, hipótese que só por mera cautela se equaciona, não poderia dizer-se que bastaria à RP da China pedir ao nosso país a continuação do procedimento criminal para que se obviasse à impunidade da recorrente pelo crime que é suspeita de ter cometido: é que ninguém com um mínimo de conhecimento sobre a realidade judiciária portuguesa poderia acreditar que a investigação de uma fraude financeira de várias centenas de milhões de euros, cometida na RP da China, contra centenas de cidadãos chineses, poderia algum dia chegar a bom porto… aliás, a qualquer porto que fosse! Assim, em poucas palavras, recusar a extradição da recorrente seria, pura e simplesmente, conceder-lhe a impunidade pelo gravíssimo crime que é suspeita de ter cometido (…) Cumpre-nos ainda sublinhar que não se estará a autorizar a extradição da recorrente para o cumprimento de uma pena de prisão, mas sim, apenas, para procedimento criminal, desconhecendo-se se, a final, será condenada em pena de prisão efetiva, tendo forçosamente que se admitir que até possa vir a ser absolvida ou que, em caso de condenação, não o seja em prisão efetiva ou que o seja em pena de prisão inferior a dez anos».

Por tudo o que atrás se expôs, entendemos que a interferência no direito à vida familiar da requerente provocada pela autorização da Extradição afigura-se justificada e não é manifestamente arbitrária ou desproporcionada, e, nessa medida, não é violadora de qualquer preceito constitucional e/ou do artigo 8.º da CEDH, inexistindo fundamento ponderoso para recusa facultativa nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da LCJ e artigo 4.º, al. b), do Tratado.

Pelo que, não procede, nesta parte, a alegação da recorrente.

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II.7. Quanto à violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP, por não aplicação do art.º 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional).

II.7.1. A este propósito, alega a recorrente que o Tribunal a quo não atentou como devia ao disposto no artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que determina que não podem ser expulsos do país cidadãos estrangeiros que tenham efetivamente a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa a residir em Portugal; o eventual tratamento desigual destas figuras configura uma grosseira e flagrante violação Princípio Da Igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP. O diferente tratamento dos processos supra resultaria numa irracional e perfeita incongruência pois que, na prática, traduzir-se-ia, a título de exemplo, na não expulsão de território nacional de um cidadão que tenha cometido um crime grave e, em sentido completamente oposto mas, e mais uma vez se diga, à luz da protecção dos mesmos interesses subjacentes aos dois procedimentos, na extradição de um cidadão que tenha cometido um crime de menor gravidade no Estado que requeira a extradição; feita uma análise casuística ao crime pelo qual se pretende a extradição da recorrente, conclui-se que se trata de um crime económica e não de um crime enquadrado no conceito de criminalidade grave; assim, dúvidas não restam de que a aplicação do instituto da extradição aos presentes autos e a sua consequente autorização viola manifestamente o direito à família e o direito dos menores, à proteção da e em família, plasmados nos artigos  36.º, n.º 6 e 67.º a 70.º da CRP, os princípios constitucionais da Igualdade e Dignidade – artigos 1.º e 13.º, que orientam o nosso Estado de Direito bem como a protecção conferida pelo artigo 135.º n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (conclusões XX a AAA).

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II.7.2. Diremos, desde já, carecer de qualquer sentido a invocação do disposto pelo art.º 135.º da Lei 23/2007, de 04 de julho, uma vez que este normativo se aplica apenas relativamente à expulsão do território nacional de quem se encontrar numa das situações previstas pelo art.º 134.º do mesmo diploma legal, o que, manifestamente, não é o caso da recorrente.

Com efeito, os fins e propósitos do processo de extradição são distintos da decisão da expulsão e, nessa medida, não é convocável nessa sede (extradição) o regime do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04.07 – neste sentido, cfr. Acórdão do STJ de 16-11-2017, Proc. n.º 1321/17.9YRLSB.S2 - 5.ª Secção, Relator: Carlos Almeida: “III - O julgamento ou a execução da eventual pena aplicada em Portugal só poderiam ser equacionados se a extradição viesse a ser recusada, para o que não existe fundamento, e se tal fosse requerido pela República Federativa do Brasil (arts. 79.º e 95.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08), o que também não se verifica. A situação pessoal e familiar do extraditando não releva para o efeito, sendo inaplicável a um pedido de extradição uma norma relativa às condições de expulsão de um estrangeiro em Portugal”.

Concluindo-se que os fins/propósitos/interesses são distintos em ambos os processos (expulsão e extradição), não se impõe apreciar a questão da violação do princípio da igualdade convocada pela recorrente, na medida em que não se defendeu o argumentado pela recorrente que se estava perante duas situações iguais com tratamento desigual. 

Como acima foi já referido, inexiste qualquer violação do artigo 13.º da CRP, porquanto a interferência no direito à vida familiar da requerente provocada pela autorização da Extradição se afigura justificada e não é manifestamente arbitrária ou desproporcionada, e, nessa medida, não é violadora de qualquer preceito constitucional e/ou do artigo 8.º da CEDH, inexistindo fundamento ponderoso para recusa facultativa nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da LCJ e artigo 4.º, al. b), do Tratado.

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II.8 – Da Violação Do Princípio In Dubio Pro Reo.

II.8.1. Alega a recorrente que in casu, e atenta a posição do Tribunal da Relação ..., perante a desproteção do Princípio In Dubio Pro Reo pois que o Tribunal do estado requerido corrobora o desrespeito por este soberano princípio, pois que, ao bastar-se com as Notas Diplomáticas de uma condenação a pena de prisão até 15 anos, sem que o julgamento tenha sequer iniciado, está ab initio também a presumir a sua culpabilidade; in dubio pro reo é assim entendido no sentido de se tratar de uma imposição dirigida ao Tribunal, impondo o tratamento favorável ao arguido enquanto os factos contra si acusados não forem provados e a condenação transitar em julgado. Da mesma forma que, em caso de dúvida sobre os factos, o julgador encontra-se vinculado a este mesmo princípio tendo de decidir sempre em sentido favorável ao arguido, o que aqui não aconteceu – vejamos neste sentido o artigo 32.º nº. 2 da Constituição Portuguesa; estando também neste âmbito, o acórdão do Douto Tribunal recorrido ferido de substância legal e constitucional, manifestando-se violador dos mais basilares princípios orientadores do nosso Estado de Direito, por força da sua errada interpretação das supracitadas normas, pelo que a recorrente só poderá ser considerada Inocente pelo Tribunal a quo porque em Portugal não se condena, nem delimita a pena de prisão sem julgamento prévio e, nesse sentido, não estarem preenchidos os requisitos para a Extradição (conclusões BBB a HHH).

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II.8.2. O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido.

Sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, «só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, e só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção» (cfr. acórdão do STJ, de 27-01-2021, proferido no Proc. n.º 1663/16.0T9LSB.L1.S).

No caso presente, não faz qualquer sentido a invocada violação do princípio in dubio pro reo, quando a recorrente alega que, «atenta a posição do Tribunal da Relação ..., perante a desproteção do Princípio In Dubio Pro Reo pois que o Tribunal do estado requerido corrobora o desrespeito por este soberano princípio, pois que, ao bastar-se com as Notas Diplomáticas de uma condenação a pena de prisão até 15 anos, sem que o julgamento tenha sequer iniciado, está ab initio também a presumir a sua culpabilidade; in dubio pro reo é assim entendido no sentido de se tratar de uma imposição dirigida ao Tribunal, impondo o tratamento favorável ao arguido enquanto os factos contra si acusados não forem provados e a condenação transitar em julgado».

Com efeito a decisão recorrida autorizou a extradição de AA para a República Popular da China para efeitos de procedimento penal pelo crime de “obtenção de fundos por meios fraudulentos”, previsto e punível pelo artigo 192.º da Lei Criminal da República Popular da China, fundamentando devidamente a decisão de facto nos documentos de fls. 6-54 e 55-79 (pedido de extradição, e respetiva tradução, onde constam os fundamentos da mesma) – factos provados em 1 e 3 a 5; nos documentos de fls. 80-81, quanto aos factos provados n.ºs 6 a 8; no documento de fls. 97-98, quanto ao facto provado n.º 2; nos documentos de fls. 198-201 e 55-70 do processo apenso, quanto ao facto n.º 9; no documento de fls. 268-272 do processo apenso, quanto ao facto n.º 12; no documento de fls. 4-11, quanto ao facto n.º 11; nos despachos proferidos no processo apenso quanto às medidas de coação da requerida – factos n.ºs 11 e 13; no relatório médico de fls. 127 do processo apenso, e diário clínico de fls. 197 do processo principal – facto n.º 10; nos relatórios sociais de fls. 136-138, 178-184, informações de fls. 140-141 e 144-145, e despacho de fls. 143 – factos n.ºs 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20; nos documentos de fls. 85-93 (proc. apenso), relatório de fls. 183-184, documento de fls. 134 (este no processo apenso), quanto ao facto provado em 21, relevando também, o depoimento da testemunha LL, professora no C..., em ..., na medida em que o estabelecimento de ensino é frequentado pelo filho mais velho da requerida, EE, desde o ano lectivo 2020/2021 e depoimento da testemunha MM, advogada na comarca ..., que referiu ter-lhe a requerida sido apresentada em 2019, no ..., através de uma associação de apoio a emigrantes chineses, referindo que a requerida tinha 2 casas, uma nas ... e outra na ..., e que estava isolada na cidade, apenas falando a língua inglesa; que a requerida não teria igualmente apoio em ...; que o seu marido é diabético, e vê mal; e apenas contactar com a requerida por mensagem, vendo-a como pessoa só, sem amigos ou apoio, não tendo a quem deixar os filhos.

A fundamentação da decisão em matéria de facto mostra uma apreciação e valoração da prova feita de forma racional, lógica, plausível e de harmonia com as regras da experiência comum, pelo que, de modo algum, se pode concluir que aquela mesma prova gera factos incertos, ou que o tribunal se deparou com um qualquer estado de dúvida razoável sobre a factualidade dada como provada, susceptível de afastar a valoração efectuada quando à autorização da extradição de AA para a República Popular da China.

Pelo exposto, o acórdão recorrido não incorreu em qualquer violação do princípio da presunção de inocência e/ou do princípio in dubio pro reo, tanto mais, e com bem salienta a decisão recorrida, não foram considerados os factos alegados relativos à imputada atuação criminosa da requerida – ponto IV da oposição pois «não cabe neste processo apurar se a extraditanda praticou ou não os factos que lhe vêm imputados, uma vez que o processo de extradição não visa o julgamento dos factos que fundamentam o respetivo processo. Aliás, nos termos do art. 46º, n.º 3, da LCJ, tal sindicância probatória está expressamente vedada; e, segundo o art. 55º, n.º 2, da mesma LCJ, a oposição “só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição”, pelo que as provas e os factos relevantes para a decisão deste processo apenas sobre estes pressupostos podem respeitar – o que foi oportunamente consignado em despacho proferido nos autos, e que se reitera». (Ac. do TRL de 28.11.2019, proc. 499/18.9YRLSB-9, em www.dgsi.pt. Página 17 de 30).

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III – Decisão

          

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pela requerida AA e confirmar a douta decisão recorrida.

Sem custas (art.73.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 de 31 - 8), sem prejuízo do disposto no art.º 26.º, n.ºs 2 alínea a) do mesmo diploma.

 

Lisboa, 24 de fevereiro de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Eduardo Loureiro (Adjunto)