Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4774
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: CONTRATO DE CONSTRUÇÃO DE NAVIO
CONTRATO DE DEPÓSITO
CONTRATO MISTO
NULIDADE DA DECISÃO
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ200804100047742
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, apenas lhe estando vedado servir-se de factos não alegados pelas partes.

2. Não incorre em nulidade por excesso de pronúncia a decisão que, assentando nos factos alegados e provados, os valora juridicamente em termos parcialmente diferentes dos aduzidos pela autora.

3. A nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão só se verifica quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da expressa na sentença.

4. É a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão que corporiza esta nulidade, que não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou com o erro na interpretação desta, situações estas que configuram erro de julgamento, não nulidade da sentença.

5. Tendo o réu, arrogando-se a qualidade de dono de uma embarcação de reboque, acordado com a autora, que se dedica à reparação de embarcações navais, a execução, por esta, das obras necessárias à transformação daquela embarcação num barco de recreio, de acordo com projecto cuja elaboração o réu asseguraria e entregaria à autora, e devendo essas obras estar concluídas em prazo também acordado, tal acordo consubstancia a celebração, pelas partes, de um contrato-promessa de construção de navio, tendo o contrato prometido previsão nos arts. 12º e seguintes do Dec-lei 201/98, de 10 de Julho.

6. Tendo sido celebrado verbalmente, tal contrato é nulo, por falta de forma.

7. Se, conjuntamente com este contrato-promessa, as partes também negociaram e acordaram a recolha do navio no estaleiro da autora, durante o período temporal previsto para a transformação a que iria ser sujeito, e mesmo para além desse período, tal convenção corresponde, em substância, ao conteúdo normal, típico, do contrato de depósito, que não está sujeito a forma especial.

8. Tendo esta convenção sido acordada com vista a possibilitar a viabilização e o cumprimento do projectado contrato de construção de navio, os dois negócios jurídicos corporizaram um contrato misto complementar, cujo regime resultava da aplicação combinada das regras de um e de outro, não se estendendo ao depósito a invalidade formal da promessa de construção de navio, e estando, por isso, o réu depositante obrigado a pagar à autora a retribuição acordada, nos termos do art. 1199º, al. a) do Cód. Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

C...& C...S..., L.da intentou, em 19.11.2003, no Tribunal Marítimo de Lisboa, contra J...M...D...F... e C...N...G..., acção com processo ordinário, pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe
- a quantia de € 2.985,30, referente ao IVA devido pela estadia, nos estaleiros da autora, no período compreendido entre Agosto de 2000 e Maio de 2002, da embarcação “Quatro de Julho”;
- a quantia de € 61.642,00, referente à estadia da embarcação nos estaleiros da autora, no período compreendido entre 1 de Junho de 2002 e 31 de Outubro de 2003, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento; e
- a quantia de € 100,00, acrescida de IVA á taxa legal em vigor, por cada dia que a embarcação aí esteja estacionada, a partir de 1 de Novembro de 2003 e até à sua retirada dos ditos estaleiros.
Para tanto, alegou, em resumo, ter acordado com o réu J...F... a transformação do “Quatro de Julho”, um rebocador, numa embarcação de recreio, sendo essa obra a realizar no seu estaleiro, em conformidade com um projecto de arquitectura naval a apresentar pelo réu, tendo ficado igualmente acordado com o mesmo réu que seria devido o pagamento de um determinado montante (3.150.000$00), como contrapartida pela estadia da embarcação nesse estaleiro durante o projectado período de execução da obra (até Maio de 2002), e ainda de uma quantia diária, para além desse período, caso a embarcação não saísse do estaleiro no prazo previsto, quantias acrescidas do respectivo IVA.
Porém, o réu nunca apresentou o aludido projecto, tendo apenas solicitado que fossem executados trabalhos de decapagem da embarcação, que a demandante efectuou.
O réu pagou o montante acordado, respeitante à estadia da embarcação até Maio de 2002, permanecendo em dívida o IVA referente a essa quantia.
Em Junho de 2002 o réu assumiu o compromisso de retirar a embarcação do estaleiro da autora até ao fim de Agosto seguinte, pagando então a quantia acordada per diem para o período posterior a Maio/2002, mas não o fez e nunca mais contactou a autora, encontrando-se a embarcação abandonada no seu estaleiro.
Posteriormente, veio a apurar que a aludida embarcação se encontra registada na Capitania do Porto de Lisboa em nome da ré C..., que já tentou contactar, mas sem êxito.
Mas esta ré é também responsável pelo pagamento das referidas importâncias porque é a proprietária registada da embarcação e está sujeita ao regime de responsabilidade previsto nos artigos 4.º/1 e 2 e 7.º do Dec-lei 202/98, de 10 de Julho.

O réu J...F... veio contestar a demanda e, no essencial, impugnou a versão dos factos alegada pela autora e as consequências jurídicas pretendidas, alegando, desde logo, não ser proprietário da dita embarcação e nada haver contratado com a autora a propósito da mesma.
Também a ré C...G... contestou, sustentando, no essencial, ser completamente alheia aos factos em discussão, porque vendeu a embarcação a H...C..., em 18 de Agosto de 1999, e não celebrou qualquer negócio com as partes da presente acção.
Prosseguindo a causa a sua normal tramitação, veio a efectuar-se a audiência de julgamento e a ser proferida sentença, na qual o Ex.mo Juiz julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo a ré C...G... do pedido e condenando o réu J...M...D...F... a pagar à autora as seguintes quantias:
- de € 9.177,89 a título de retribuição pela estadia da embarcação entre 1 de Junho e 31 de Agosto de 2002, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento;
- de € 42.497,58 a título de indemnização pela estadia da embarcação entre 1 de Setembro de 2002 e 31 de Outubro de 2003, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento;
- de € 99,76 por dia, a título de indemnização pela estadia da embarcação desde 1 de Novembro de 2003 até à respectiva retirada pelo réu ou por terceiro a seu pedido.

Recorreu o réu, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou tal recurso improcedente, confirmando a sentença apelada.
Não convencido, o réu recorre, agora de revista, para este Supremo Tribunal, finalizando as suas alegações com a enunciação das seguintes conclusões (indicadas em síntese):
1ª - Existe contradição entre os factos alegados pela autora, o pedido e a decisão final: os montantes atribuídos não estão de acordo com os factos alegados; e
2ª - O pedido está em contradição com a decisão final: a autora apenas pediu a condenação no pagamento de retribuição e a decisão condenou no pagamento de uma retribuição e indemnização;
3ª - Não houve incumprimento: não só não foram alegados e provados factos que suportem tal conclusão, como também o recorrente não estava em mora e não foi interpelado;
4ª - Cabia á autora provar que lhe era devida uma indemnização, nos termos do art. 806º/3, conjugado com o art. 342º/1, ambos do CC, o que não fez; e o tribunal a quo fixou uma indemnização não existindo elementos suficientes para o fazer;
5ª - Assim, a decisão é nula, por força do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 668º do CPC;
6ª - O tribunal a quo reconheceu que se avançou com uma promessa de construção de navio, nos termos do art. 12º do Dec-lei 201/98, considerando, porém, o contrato nulo, por falta de forma – excepção que a autora, ora recorrida, não suscitou;
7ª - Foram executados trabalhos de decapagem na embarcação, pelo que não seria aplicável aquele regime, devendo, pelo menos, aplicar-se o regime da empreitada;
8ª - O tribunal a quo entendeu que se esteve perante um contrato misto; mas, a ser assim, existe uma relação de interdependência entre a dita promessa de construção e o contrato de depósito que o mesmo tribunal sustenta existir, sendo que a nulidade daquela afectaria a validade deste;
9ª - Ademais, se estamos perante um contrato de depósito, cabia à autora alegar e provar os factos integradores de tal contrato típico, o que não aconteceu;
10ª - Ao contrário, o recorrente fez prova de que não era proprietário da embarcação, atento o Dec-lei 202/98, de 10 de Julho.

A autora, recorrida, apresentou contra-alegações, pugnando pela denegação da revista.
Corridos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir do mérito do recurso.
2.

Vêm, das instâncias, provados os seguintes factos:
1) A autora C...& C...S..., L.DA dedica-se à reparação de embarcações navais;
2) A propriedade sobre a embarcação “QUATRO DE JULHO” LX-...-RL encontra-se registada, na Capitania do Porto de Lisboa, a favor da ré C...N...G..., desde 14 de Maio de 1999;
3) Esta ré e H...C... subscreveram o documento denominado “contrato de compra e venda”, datado de 18 de Agosto de 1999, cuja cópia consta a fls. 128 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido (1)
4) Em Agosto de 2000, a autora foi contactada pelo réu J...M...D...F... que lhe declarou ser proprietário da embarcação “QUATRO DE JULHO” e pretender contratar os serviços da autora para a execução das obras necessárias à transformação da referida embarcação de tráfego local e serviço de reboques numa embarcação de recreio;
5) A autora aceitou realizar e concluir essas obras até Maio de 2002;
6) Ficou então acordado verbalmente entre as partes que as obras seriam realizadas no estaleiro da autora, sito no Talaminho, Amora, Seixal,
7) E que o réu asseguraria rapidamente a elaboração do projecto de alteração,
8) E que o navio aludido ficaria, desde essa data, estacionado em seco no referido estaleiro,
9) E que o réu J...F... pagaria à autora a importância de Esc. 2.350.000$00 como contrapartida da estadia da embarcação no estaleiro até Maio de 2002,
10) E que a contrapartida passaria a ser no montante de 20.000$00/dia após essa data;
11) A autora executou trabalhos de decapagem na referida embarcação a solicitação do réu J...F...;
12) O réu J...F... não apresentou qualquer projecto de alteração até Junho de 2002 e acordou então com a autora que retiraria a embarcação do estaleiro até Agosto de 2002;
13) A embarcação “QUATRO DE JULHO” permanece estacionada no estaleiro da autora, sem que esta consiga contactar com o réu J...F... desde Junho de 2002;
14) O réu J...F... apenas pagou a importância de 2.350.000$00 pela estadia da referida embarcação no estaleiro da autora desde Agosto de 2000.
3.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (arts. 684º/3 e 690º/1 do CPC) (2) não podendo o tribunal ad quem, ressalvadas as de conhecimento oficioso, conhecer de outras questões para além das suscitadas em tais alegações.
Curemos, pois, da apreciação destas questões.

3.1. Começaremos, naturalmente, a nossa análise pela questão das arguidas nulidades do acórdão.
Questão que a conferência, na Relação, a coberto do disposto no n.º 4 do art. 664º, já enfrentou, em termos que, adianta-se desde já, merecem a nossa inteira adesão (cfr. fls. 661 e ss.).
Sustenta o recorrente que, tendo a autora, ora recorrida, pedido a condenação daquele no pagamento da estadia da embarcação nos seus estaleiros, a título de retribuição, não podia o tribunal a quo condená-lo a título de retribuição e de indemnização. Indemnização implica incumprimento; e de incumprimento não pode falar-se, porque não foram alegados e provados factos que permitam tê-lo por verificado e porque ele, recorrente, não estava em mora e não foi interpelado para cumprir. Tendo condenado em indemnização, sem que existissem elementos suficientes para o fazer, o Tribunal incorreu em excesso de pronúncia, ferindo de nulidade o acórdão respectivo.
O recorrente não tem razão.
É certo que, conforme dispõe a 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do art. 668º, a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
E certo é ainda que esta nulidade está directamente relacionada com o comando ínsito na 2ª parte do n.º 2 do art. 660º, segundo o qual o juiz não pode, na sentença, ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
No caso em apreço, o acórdão recorrido, valendo-se do disposto no art. 713º/5, remeteu para a fundamentação da sentença da 1ª instância, que entendeu que a autora tinha jus às quantias reclamadas, por um lado a título de retribuição, e, por outro, como indemnização, nos moldes supra indicados.
E, não obstante haver aquela apenas reclamado o pagamento a título de retribuição, tal não fere de nulidade a dita sentença – nem, obviamente, o acórdão da Relação, que para aquela remeteu – uma vez que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, apenas lhe estando vedado servir-se de factos não articulados pelas partes (art. 664º), não havendo, por isso, obstáculo a que a decisão do mérito dos pedidos deduzidos pela demandante repousasse naquela diferente e mais alargada qualificação jurídica dos factos alegados e provados.
A autora pediu que o réu, ora recorrente, fosse condenado a pagar-lhe, pela estadia do navio nos seus estaleiros, entre 01.06.2002 e 31.10.2003, a quantia de € 61.642,00, com fundamento em que, apesar de acordado que ele dali o retiraria até ao fim de Agosto desse ano, pagando então o per diem de € 100,00, respeitante aos meses de Junho, Julho e Agosto, tal não veio a verificar-se, continuando o “Quatro de Julho” no mesmo local no final do mês de Outubro de 2003. E, tendo intentado a presente acção em Novembro seguinte, pediu que o réu fosse ainda condenado a pagar-lhe a mesma quantia de € 100,00 por cada dia em que, a partir de 01.11.2003, a embarcação ali permanecesse, e até à retirada desta.
A decisão da 1ª instância – acolhida no acórdão recorrido – considerou que ocorreu o incumprimento culposo, pelo réu, daquilo a que se obrigou – pagamento da retribuição devida pelo depósito, naqueles três aludidos meses – e, por isso, condenou-o a pagar a correspondente importância (respeitante a 92 dias), num total de € 9.177,89 a título de retribuição pela estadia da embarcação nesse período.
Considerou também que, devendo o réu ter retirado a embarcação e não o tendo feito até 31 de Agosto de 2002, incorreu em mora creditoris, acrescentando de seguida:
A embarcação continua depositada no estaleiro da A. e a estadia dessa embarcação causa necessariamente prejuízos à mesma na medida em que a A. continua a disponibilizar o espaço do seu estaleiro para o estacionamento da embarcação sem qualquer contrapartida, ao mesmo tempo que se vê privada de dispor desse mesmo espaço para a execução de outros contratos que impliquem igualmente o estacionamento de outras embarcações.
A A. encontra-se privada de receber a contrapartida devida pela continuação do depósito e essa situação é exclusivamente imputável ao R. J...F....
O R. J...F... está, assim, obrigado a indemnizar a A. pagando-lhe a retribuição que vinha pagando pelo depósito da embarcação até à sua retirada.
Com esta fundamentação, condenou o réu no pagamento das quantias de € 42.497,58, como indemnização pela estadia da embarcação entre 1 de Setembro de 2002 e 31 de Outubro de 2003, e de € 99,76/dia desde 1 de Novembro de 2003 até à retirada daquela.
Não colhe, pois, a imputação, ao acórdão recorrido, do vício de excesso de pronúncia e da correspondente nulidade. A decisão teve por base os factos alegados e provados, e a valoração jurídica destes em termos (parcialmente) diferentes dos aduzidos pela autora não é, como vimos, causa de nulidade. Como refere o Prof. ALBERTO DOS REIS, o juiz é soberano na órbita estritamente jurídica, move-se dentro dela com inteira liberdade; ao fazer a aplicação da norma jurídica ao caso submetido ao seu veredicto, há-de proclamar os efeitos e declarar as consequências jurídicas que entender legítimas, e não as que qualquer das partes se permita reclamar (3)
Mas o recorrente filia ainda a nulidade do acórdão em contradição entre a decisão e os factos alegados e o pedido formulado pela autora/recorrida – vício que pretende reconduzir ao estatuído na alínea c) do n.º 1 do citado art. 668º.
Se bem entendemos, a nulidade decorreria de não ter a autora alegado e provado factos que permitam concluir pelo incumprimento contratual por parte do recorrente, e de os montantes atribuídos na sentença e confirmados no acórdão recorrido não estarem de acordo com os factos alegados.
Todavia, não se enxerga a imputada contradição, que o recorrente também não cuida de precisar. Ao contrário, do segmento decisório acima transcrito resulta claro que tal contradição não existe.
De resto, mesmo que os montantes fixados na decisão recorrida não estivessem em estrita coincidência com a factualidade alegada, nem por isso se verificaria a nulidade enunciada naquela aludida alínea c).
Na verdade, essa nulidade só se verifica quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou acórdão expressa.
É a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão que corporiza esta nulidade.
A lei refere-se aqui “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.”
“Nos casos abrangidos pelo art. 668º/1.c), há um vício real no raciocínio do julgador (...): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”(4).
Não se confunde, pois, esta oposição (entre os fundamentos e a decisão) com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou com o erro na interpretação desta. Quando ocorre esta segunda situação – a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão proferida – o que se verifica é um erro de julgamento, não uma nulidade da sentença.
Não se demonstrando, no caso em apreço, a contradição real entre os fundamentos (de facto e de direito) e a decisão, o acórdão recorrido não enferma da invocada nulidade.

3.2. Quanto ao mais alegado e às demais questões suscitadas:
A matéria de facto provada mostra que em Agosto de 2000, o réu, ora recorrente, arrogando-se a qualidade de dono da embarcação “Quatro de Julho”, destinada a tráfego local e serviço de reboques, acordou verbalmente com a autora – sociedade que se dedica à reparação de embarcações navais – a execução, por esta, das obras necessárias à transformação daquela embarcação num barco de recreio.
Ficou então assente que as obras se realizariam no estaleiro da autora, no Talaminho, Amora, Seixal, e que seriam concluídas até Maio de 2002, de acordo com projecto cuja elaboração o réu asseguraria rapidamente, e que o navio ficaria, desde logo, estacionado em seco no dito estaleiro, assumindo o réu o compromisso de pagar à autora, como contrapartida da estadia da embarcação no estaleiro, até àquela data, o montante de 2.350.000$00, e o de 20.000$00/dia após o final daquele mês.
Todavia, até Junho de 2002 o réu não entregou o projecto que se comprometera a apresentar, tendo então acordado com a autora que retiraria o barco até Agosto seguinte.
Mas, mais uma vez, não honrou esse acordo, permanecendo a embarcação estacionada no estaleiro da autora, que apenas recebeu do réu a importância de 2.350.000$00, acordada para a estada do “Quatro de Julho” até ao final de Maio de 2002.
O acórdão recorrido, assumindo a fundamentação da sentença da 1ª instância, concluiu que entre a autora e o réu foi celebrado um contrato-promessa de construção de navio.
O contrato prometido – o contrato de construção de navio – tem previsão nos arts. 12º e seguintes do Dec-lei 201/98, de 10 de Julho, está sujeito à forma escrita, e é disciplinado pelas cláusulas do respectivo instrumento contratual e, subsidiariamente, pelas normas do contrato de empreitada, podendo definir-se como aquele pelo qual uma das partes, o construtor, se obriga em relação à outra, o dono da obra, mediante um preço, a construir certo navio.
Entendeu-se, na decisão do tribunal a quo, que a transformação de um rebocador em embarcação de recreio, vai muito além da mera reparação de navio, devendo ser equiparada à construção de raiz – e daí a operada qualificação do contrato (e contrato-promessa porque as partes não foram além da promessa de contratar a transformação do navio, na medida em que o réu nem sequer tinha aprovado o projecto a que a autora deveria dar execução).
Porém, como decorre do n.º 2 do art. 410º do CC, o aludido contrato-promessa é nulo por falta de forma, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso (art. 286º do CC); e, assim, nenhuma das partes poderia exigir o cumprimento de qualquer obrigação dele decorrente, no pressuposto da sua validade.
Conjuntamente com este contrato-promessa, as partes também negociaram e acordaram a recolha do navio no estaleiro da autora durante o período temporal previsto para a transformação a que iria ser sujeito, e mesmo para além desse período, prevenindo a hipótese de ele não ser dali retirado até ao final de Maio de 2002.
Como bem se entendeu na sentença e no acórdão recorrido, esta convenção corresponde, em substância, ao conteúdo normal, típico, do contrato de depósito – contrato que, ao contrário do contrato-promessa de construção de navio, não está sujeito a forma especial, valendo quanto a ele o princípio da liberdade de forma, a que alude o art. 219º do CC.
E foi também aí entendido que, tendo sido essa convenção acordada com vista a possibilitar a viabilização e o cumprimento do projectado contrato de construção de navio, os dois negócios jurídicos corporizavam um contrato misto complementar – um negócio jurídico em que foram adoptados os elementos essenciais de um contrato (contrato-promessa de construção de navio), mas acompanhados e complementados acessoriamente pelas obrigações típicas de outro (contrato de depósito), e cujo regime resultaria da aplicação combinada das regras de um e de outro, em termos tais que a invalidade formal da promessa de construção de navio não se estendeu ao depósito e que, por isso, não ocorreu a invalidade de todo o negócio (art. 292º do CC).
Ora, sendo o depósito oneroso, como é no caso em análise, a medida da retribuição é determinada pelo ajuste entre as partes (arts. 1186º e 1158º/2 do CC).
O réu, depositante, ficou, pois, obrigado a pagar à autora, depositária, a retribuição acordada, nos termos da al. a) do art. 1199º do mesmo Código.
De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 1200º, ainda do CC, a remuneração do depositário, quando outra coisa se não tenha convencionado, deve ser paga no termo do depósito; mas, se for fixada por períodos de tempo, pagar-se-á no fim de cada um deles.
Pois bem.
O recorrente não pagou a retribuição devida pelo depósito no período temporal decorrente entre 1 de Junho e 31 de Agosto de 2002. E devia tê-lo feito, tal como flui da já referida norma do n.º 1 do art. 1200º do CC.
Nesta parte, é de todo destituído de razão pretender-se que não houve incumprimento, ou que o réu não estava em mora e não foi interpelado para o pagamento. Desde logo, estamos perante obrigação com prazo certo, em que a mora não depende de interpelação (art. 806º/2.a) do CC).
Mas o mesmo se dirá no tocante ao período posterior, corrido a partir de 1 de Setembro de 2002.
Foi acordado que a contrapartida pela estadia da embarcação no estaleiro da autora seria de 20.000$00/dia (equivalente a € 99,76) até à retirada dela pelo réu.
Não tendo o recorrente procedido ao levantamento da embarcação, na data em que o devia fazer, nem posteriormente, tal facto só a ele é imputável, uma vez que – como refere a Relação – se a não foi levantar foi porque não quis, não tendo sido alegados factos que demonstrassem estar ele impedido de o fazer. Ademais, como resulta dos autos, a autora enviou-lhe várias cartas, reclamando o levantamento do navio e o pagamento do montante relativo à estadia e depósito deste, cartas que, enviadas para a residência do recorrente, vieram sempre devolvidas.
Assim, ao contrário do que este sustenta, existe incumprimento contratual da parte do recorrente, sendo inquestionável, face ao disposto no art. 1201º do CC, o direito da autora a restituir a coisa depositada – direito que ela vem querendo exercitar, e que só não logrou concretizar devido à inacção culposa daquele.
O depositante – diz ainda o art. 1199º do CC, na sua al. c) – é obrigado a indemnizar o depositário do prejuízo sofrido em consequência do depósito, salvo se houver procedido sem culpa.
Logra, pois, plena validade, o que a Relação deixou referido, a propósito do incumprimento por parte do recorrente:
Tal incumprimento, ao contrário do sustentado pelo (recorrente), gera para si o dever de indemnizar a A., por força do disposto nos arts. 813º e 816º do CC, sendo que a estadia da dita embarcação nos estaleiros da A., após Agosto de 2002, causa-lhe directamente prejuízos, uma vez que não só se mostra indisponível aquele espaço para a execução de outros contratos que tenham como fim a utilização daquele “estacionamento” por outras embarcações, como também continua a A. a disponibilizar o espaço existente no seu estaleiro para o estacionamento da embarcação em causa sem que, para o efeito, esteja a receber a devida contrapartida monetária. Além disso, face ao incumprimento contratual do recorrente (por não ter procedido ao levantamento da embarcação até Agosto de 2002) seria, de todo em todo, ilógico que o valor da indemnização por ele devida (a partir de Setembro de 2002) viesse a ser inferior ao valor que tinha sido acordado pagar pela estadia da embarcação até Agosto de 2002.
Não procede, assim, a argumentação do recorrente quando sustenta a inexistência de incumprimento da sua parte, ou quando afirma que o tribunal fixou indemnização sem que existissem elementos suficientes para o fazer.
Inconsequente é também o que consta das conclusões 6ª e 7ª, acima transcritas, cujo alcance, aliás, não se descortina.
O recorrente pretende ainda que, a aceitar-se a qualificação jurídica do negócio celebrado nos moldes definidos na decisão sob censura – é dizer, como um contrato misto – sempre a relação de interdependência afirmada entre a promessa de construção de navio e o contrato de depósito conduziria a que a nulidade daquela afectasse a validade deste, sendo o negócio globalmente nulo.
Já se deixou referido que assim não é – que a nulidade, por carência da forma legalmente exigida, da promessa de construção de navio, não afecta a validade do negócio jurídico celebrado, na parte respeitante ao contrato de depósito, relativamente ao qual vale o princípio da consensualidade. Mas, mesmo que assim não fosse, e que houvesse de considerar-se o negócio nulo, na sua globalidade, nem por isso o recorrente lograria o efeito visado com o recurso que interpôs.
De acordo com o disposto no art. 289º/1 do CC, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Seria, então, aplicável a doutrina do Assento n.º 4/95, deste Supremo Tribunal, nos termos do qual, quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do art. 289º do CC.
Teria, assim, o recorrente – por ser inquestionável a impossibilidade da restituição em espécie – de restituir montante correspondente ao valor do depósito do navio no estaleiro da autora. E o melhor critério para achar esse valor seria fazê-lo equivaler ao quantum em que as partes haviam acordado (o equivalente a € 99,76/dia), pois foi este montante o que elas próprias fixaram como justo e adequado, do ponto de vista contratual, para traduzir o valor económico do depósito, o mesmo é dizer, o valor económico da prestação da autora.
Resta, finalmente, referir que, ao contrário do que entende o recorrente, a autora alegou e provou os factos integradores do contrato de depósito, não sendo necessário, para tanto, a expressa alusão ao nomen juris, a referência expressa à espécie contratual em causa.
E, contrariamente ao que também afirma, o recorrente assumiu a posição de depositante, sendo para tanto indiferente que não seja o proprietário do navio. Não foi em veste de proprietário da embarcação que foi demandado.
4.

Improcedendo, assim, as conclusões do recorrente, e não merecendo censura o acórdão recorrido, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 10 de Abril de 2008

Santos Bernardino (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva
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(1) Com o seguinte teor na parte que aqui releva: “Outorgantes. Primeiro: C...N...G... (...) Segundo: H...C... (...) O primeiro outorgante declara: (...) Que pelo presente contrato vende ao segundo, livre de quaisquer ónus e encargos a embarcação de reboque e seus aprestos denominada “4 de Julho (...) O preço de venda é de esc. 4.000.000$00 (...) com a assinatura do presente contrato o segundo outorgante fica desde já autorizado a tomar posse da embarcação (...) e a registar em seu nome na Capitania do Porto de Lisboa a propriedade da referida embarcação (...) Pelo segundo outorgante foi dito que aceita a venda nos termos sobreditos (...)”.;
(2) A este diploma respeitam todas as disposições que, sem indicação da respectiva matriz ou origem, forem referidas na exposição subsequente. ).
(3) Código de Processo Civil anotado, vol. V, 1952, págs. 92 e 93..
(4) Antunes Varela et alteri, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 689/690