Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8928/11.6TBOER.L2.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
EXAME HEMATOLÓGICO
RECUSA
CULPA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 05/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / PATERNIDADE.
Doutrina:
- J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “Constituição da República” Anotada, 4.ª edição, vol. I, p. 462.
- JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, 2005, I, 204-205.
- LEBRE DE FREITAS, “Código de Processo Civil” Anotado, voI. 2.º, 2.ª edição, 2008, Coimbra Editora, Coimbra, 440.
- LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 361.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º, N.º 2, 1801.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA REDACÇÃO PRECEDENTE À ACTUAL: - ARTIGOS 266.º, 519.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, 18.º, 25.º, N.º 1 E 26.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE HAIA DE 18 DE MARÇO DE 1970 (APROVADA PELO DL 764/74, DE 3 O-XII).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 616/98, N.º 401/11, ACESSÍVEIS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :

I. Há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.

II. Tendo em conta que os testes de ADN são como que uma prova plena do ponto de vista científico da paternidade, ou seja, do ponto de vista da realidade factual, manifesto é que aquele que culposamente impede a realização desses exames está a preencher a previsão do n.º 2 do art.º 344.º do CC.

III. A atitude do R, investigado progenitor, não aceitando a solução de recolha do seu material biológico pelo INML, nem por qualquer outra instituição, salvo se efectivada na Síria e por ordem de um tribunal sírio, o que já sabia não ser viável nem ter o valor de prova, implica uma recusa implícita e ilegítima, logo, uma violação culposa do dever de cooperação.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 8928/11.6TBOER.L2.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – AA intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, pedindo que seja declarado que é filho do réu.

Alegou, em suma, que nasceu a 15 de Novembro de 1990, na constância do casamento de sua mãe com CC; que a presumida paternidade foi impugnada por este último, tendo, por sentença transitada em julgado, sido declarado que aquele não é o seu pai biológico; que, como reconheceu nesse processo, a sua mãe admitiu que manteve relações de cópula completa com o ora Réu BB durante os 180 dias dos 300 que antecederam o nascimento do autor; que o réu tem consciência de que o A. é seu filho, pois, em diversas ocasiões e ao longo dos últimos anos, enviou dinheiro à mãe; e que o A. sofre da doença denominada "B- Thalassemia", a qual é hereditária, tendo ficado provado que a sua mãe não é portadora dessa doença.

O réu contestou, alegando, em síntese, que conheceu a mãe do A., pois a mesma trabalhou para a sociedade "DD, Lda", da qual era um dos sócios; que é falso que tenha mantido relações de cópula completa com a mãe do A. e muito menos durante os 180 dias que antecederam o nascimento do A e que tinha um bom relacionamento profissional com a mãe do A, chegando a emprestar-lhe dinheiro para pagamento das prestações da casa.

O Autor replicou, alegando que sofre da doença "B-Thalassemia", a qual é hereditária e que tal doença tem origem nos Países do Golfo Pérsico, o que constitui mais um forte indício de que o A. é filho do R.

Conclui, requerendo que o R. se submeta à efectivação do teste de ADN.

Foi proferido despacho saneador, organizados os factos assentes e a base instrutória.

Pelo despacho de fls. 88, foi ordenada a realização de exames de ADN ao réu para determinar se é o pai do autor.

Ouvidas as partes sobre a forma de realização desse exame, veio o autor requerer que o mesmo seja realizado em Portugal, no INML, e, caso tal não seja possível, uma vez que não existe representação diplomática portuguesa na Síria e, sendo os assuntos deste país acompanhados pela Embaixada de Portugal em Nicósia, requer em alternativa que seja aí realizada a recolha de material biológico. Refere ainda que o réu é uma pessoa muito influente na Síria, sendo o seu irmão o actual cônsul honorário de Portugal em Alepo.

Por sua vez, o réu veio dizer que tem a sua residência na Síria e, por motivos profissionais, familiares e do conflito bélico em curso, não tem qualquer possibilidade de sair da Síria; que os dois consulados portugueses na Síria foram encerrados, por força do estado de guerra e que apenas aceita que a perícia seja realizada no seu país e por ordem de um tribunal judicial sírio.

Seguidamente foi proferido despacho com o seguinte teor:

"Fls. 103 e 107: Uma vez que o R. não aceita, ou não pode, deslocar-se a Portugal, e que a Síria não é parte na Convenção de Haia de 18 de Março de 1970 (aprovada pelo DL 764/74, de 30-XII), não se mostra possível a recolha de material biológico (quer no lNML., quer através das competentes autoridades judiciárias sírias).

A recolha de material biológico do R. através da Embaixada de Portugal em Nicósia não tem cabimento legal – não se mostrando viável, quer pelo estado de guerra (praticamente notório) em que se encontra a Síria, quer pela relação de parentesco alegada (a fls. 103), a sua recolha através do Cônsul Honorário de Portugal em Alepo.

Assim, mostra-se inviabilizada a realização do exame determinado a fls. 88. Notifique. "

Após foi designada data para a realização do julgamento.

Realizado este, por despacho exarado na acta de julgamento (datado de 12107/2013), respondeu-se à matéria constante da base instrutória.

Posteriormente, a Sra. Juíza proferiu o seguinte despacho (datado de 9/10/2013) a reabrir a audiência de julgamento, a fim de ser inquirida EE (progenitora do autor).

Pelo requerimento de fls. 140/143 o réu arguiu a nulidade desse despacho, o que foi indeferido pelo despacho de fls. 160/161.

O Réu juntou exames clínicos a fim de tentar demonstrar não ser portador da doença "B-Thalassemia".

O Autor impugnou tais exames.

Reaberta a audiência de julgamento, o tribunal inquiriu a progenitora do autor.

Após foi proferida sentença, na qual se fixaram os factos provados e respectiva fundamentação, tendo-se concluído pela procedência do pedido, tendo o autor sido declarado filho do réu.

O réu interpôs recurso dessa sentença, tendo, por acórdão desta Relação sido revogada a decisão proferida dia 9/10/2013 que ordenou a reabertura da audiência de julgamento e anulado todo o processado posterior, incluindo a sentença.

Baixados os autos à 1.ª instância, foi então proferida nova sentença, na qual se julgou a acção procedente e, em consequência, declarou-se que AA é filho biológico de BB, ordenando-se o correspondente averbamento no assento de nascimento do Autor.

Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação, sem sucesso, já que a Relação, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

De novo inconformado, veio o R. interpor recurso de revista excepcional, tendo a Formação admitido o referido recurso, com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

O A. apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:

1.º Nos presentes autos está em causa uma questão cuja apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito;

2.º A questão cuja apreciação se suscita nos presentes autos consiste em saber se, numa ação de investigação de paternidade se pode estabelecer a presunção legal de filiação constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, assente numa inversão do ónus da prova, sem que tenha havido uma recusa culposa do investigado em deslocar-se a Portugal para realizar um teste de ADN;

3.º A apreciação da questão suscitada no presente recurso é absolutamente essencial para uma melhor aplicação do Direito, sob pena de se abrir um precedente, capaz de abalar de forma drástica a segurança jurídica, mormente, no que à inversão do ónus da prova e à aplicação da presunção de paternidade diz respeito;

4.º A interpretação e aplicação da lei constante do Douto Acórdão recorrido reveste de natureza inovadora, em termos de se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar dissonâncias interpretativas a por em causa a boa aplicação do Direito;

5.º Os contornos da apreciação da verificação de uma situação de inversão do ónus da prova para efeitos da aplicação da presunção de filiação constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871.º do Código Civil com base na inversão do ónus da prova fundamentada num comportamento notoriamente não culposo, nos moldes que foram efetuados no Douto Acórdão recorrido, assume particular relevância social;

6.º Essa relevância social existe por se tratar de uma matéria com repercussão ou, no limite, apta a causar alarme e controvérsia, por conexão com os valores socioculturais dominantes, podendo colocar em causa a eficácia do direito e/ou criar dúvidas sobre a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística;

7.º Esta matéria vai muito para além dos interesses individuais dos sujeitos processuais, revestindo contornos de abrangência comunitária, em que existe um interesse da comunidade que ultrapassa a referida dimensão inter partes (cfr. art. 672.º n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil);

8.º A questão que integra o objeto do presente recurso é suscetível de gerar colisão com os valores sócio culturais dominantes;

9.º Não existindo ainda sobre a referida questão jurisprudência firmada do Supremo Tribunal de Justiça;

10.º A prova produzida e dada como assente pelo Tribunal de 1ª Instância nos autos é insuficiente para determinar a procedência da presente ação, impondo-se outro julgamento da matéria de direito;

11.º Não se logrou provar nos autos, que EE teve relações sexuais de cópula completa com o Recorrente durante o período legal de conceção;

12.º Não se logrou provar nos autos que o Recorrente se tenha recusado a realizar teste de ADN;

13.º O Recorrente apenas informou o Tribunal a quo de que, devido à guerra civil que o seu País atravessa, não lhe é possível deslocar-se a Lisboa, Portugal, para realizar um teste de ADN;

14.º Constitui um facto público e notório (e como tal isento de prova – nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417º do Código de Processo Civil) a circunstância de a Síria se encontrar em guerra civil e com grave crise humanitária, principalmente na cidade de Alepo (cidade onde o Recorrente tem o seu domicilio e onde foi citado para a presente ação), a qual levou ao encerramento de aeroportos e restrições à aviação civil, que implica que os refugiados Sírios só consigam movimentar-se e sair do seu País pela via terrestre e marítima, em condições desumanas e de risco para a integridade física e própria vida;

15.º O facto de a deslocação a Portugal não se poder fazer sem risco para a integridade física (quem sabe para a própria vida) do Recorrente, constituiria, por si só, motivo legítimo de recusa nos termos do disposto no nº 3 alínea a) do referido artigo 417º do Código de Processo Civil;

16.º Não é legal, sendo completamente ilusório e desproporcional impor ao Recorrente que o mesmo se desloque a Portugal para realizar o teste de ADN;

17.º O teste de ADN em causa nos presentes autos pode ser realizado no estrangeiro e / ou a recolha do material biológico pode ser efetuada no estrangeiro, nomeadamente no Consulado Honorário Português em Damasco, Síria e posteriormente enviado pelas entidades consulares portuguesas para Portugal.

18.º O Recorrente não se recusou a realizar teste de ADN;

19.º A impossibilidade de o Recorrente se deslocar a Lisboa para realização do teste não ê culposa;

20.º O Recorrente não pode ser prejudicado nos seus direitos de defesa pelo facto de o seu País estar em guerra e de não lhe ser possível deslocar-se a Portugal;

21.º Não estão por isso preenchidos os requisitos legais para operar uma inversão do ónus da prova constantes do nº 2 do artigo 344º do Código Civil;

22.º Não podendo operar, no presente caso, a presunção de paternidade constante do artigo 1871.º, nº 1, alínea e) do Código Civil uma vez que o Recorrido não logrou fazer prova de que a sua mãe teve relações sexuais com o Recorrente durante o período legal de conceção;

23.º Estando o Tribunal a quo obrigado a aplicar a regra constante do artigo 414° do Código de Processo Civil que estabelece que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, ela se terá de ser resolvida contra a parte à qual o facto aproveita (ou seja contra o Recorrido);

24.º A presente ação de investigação da paternidade deveria ter sido julgada pelo Douto Tribunal a quo como improcedente, por não provada e o ora Recorrente absolvido do pedido;

Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio aqui se invoca, sempre se teria ainda assim que concluir que:

25.º No caso de o Tribunal considerar o teste de ADN imprescindível para a decisão da presente ação judicial, o Tribunal a quo não esgotou todas as vias possíveis à sua realização;

26.º O Tribunal a quo – como forma de contornar a impossibilidade do ora Recorrente se deslocar a Portugal para a realização do referido teste de ADN – deveria ter solicitado a realização desse teste na Síria em instituição credenciada indicada pelo Tribunal e/ou a recolha do material biológico necessário à realização do teste de ADN tivesse lugar num dos dois Consulados Honorários de Portugal existentes na Síria, através de expedição de carta rogatória e/ou precatória consoante o caso aplicável;

27.º O facto de a Síria não ser parte da referida Convenção sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial concluída em Haia aos 18 de Março de 1970 (aprovada pelo DL nº 764/74, de 30/12), não obsta à expedição de carta rogatória para que a recolha de material biológico seja efetuada na Síria e o teste de ADN realizado em instituição credenciada indicada pelo próprio Tribunal Sírio, nem à expedição de carta precatória para a recolha de material biológico para a realização do teste de ADN tivesse lugar num dos dois Consulados Honorários de Portugal existentes na Síria;

28.º Sendo que o Recorrente disponibilizou-se a realizar testes de ADN na Síria e/ou a que a recolha do material biológico necessário à realização do teste de ADN tivesse lugar num dos dois Consulados Honorários de Portugal existentes na Síria (Pais onde tem o seu domicilio e onde foi regularmente citado para a presente ação);

29.º Razão pela qual o Douto tribunal a quo não deveria ter declarado, como fez, a realização do exame de ADN impossível;

30º. A não realização do teste de ADN não se deveu a facto ou ação culposa do ora Recorrente;

31.º Mas à inação do Douto Tribunal a quo que não cuidou de ordenar a emissão de carta rogatória para recolha do material biológico do Recorrente e realização do teste de ADN na Síria, em instituição credenciada a indicar pelo Tribunal Sírio;

32.º Não estando reunidos no presente processo os pressupostos da inversão do ónus da prova constantes do n° 2 do artigo 344° do Código Civil;

33.º O Douto Acórdão Recorrido viola o disposto nos artigos 1871º, nº 2, 342º e 344º, todos do Código Civil, bem como os artigos 412º, 414º e 417º do Código de Processo Civil;

34°. Não se aplicando no presente caso a presunção constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, porque o ora Recorrido não logrou fazer prova da ocorrência de relações sexuais entre a sua mãe e o ora Recorrente no período da conceção;

35º. Não subsistindo quaisquer dúvidas de que o Douto Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do direito, pelo urge revogar o Douto Acórdão Recorrido;

36.º Devendo ser proferido Acórdão a julgar a ação improcedente por não provada e a absolver o Recorrente do pedido, por força do disposto nos referidos normativos;

Subsidiariamente,

37.º Caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio aqui se refere V. Exas. deverão ordenar a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância para que seja emitida carta precatória a ordenar a recolha do material biológico do Recorrente no Consulado Honorário de Portugal em Damasco;

Ainda subsidiariamente,

38.º Caso essa diligência se venha a demonstrar impossível de realizar no Consulado Honorário de Portugal em Damasco (o que nunca aconteceu até à presente data), solicita-‑se que a recolha seja efetuada no Líbano, pais contíguo à Síria e alcançável pela via terrestre, uma vez que, com as limitações dos aeroportos e espaço aéreo Sírio a via aérea está afastada;

39.º Negar ao ora Recorrente a possibilidade de realizar o teste de ADN é uma violação dos seus mais elementares direitos de personalidade, mais precisamente o direito à sua identidade genética;

40.º O direito à identidade pessoal, constitucionalmente consagrado, no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inclui, além do mais, os vínculos de filiação, existindo um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da sua descendência, ou seja, da extensão familiar de cada um.

41.º Tal direito fundamental do conhecimento da descendência biológica, é um direito personalíssimo e imprescindível.

42.º O respeito pela verdade biológica sugere claramente a inderrogabilidade do direito de investigar.

43.º Razão pela qual tem que ser dada ao ora Recorrente a possibilidade de realizar teste de ADN, não podendo a presunção legal de paternidade ser efectuada com sacrifício da verdade biológica e da imposição ao ora Recorrente de um filho que não seja filho biológico.

Remata o R as suas alegações, peticionando que o recurso obtenha provimento, e, em consequência seja a acção julgada improcedente, por não provada e o recorrente absolvido do pedido, ou caso assim se não entenda, seja revogada a decisão da 1.ª instância e ordenado que o processo baixe à 1.ª instância para emissão de carta precatória para realização da recolha do material biológico do recorrente no Consulado Honorário de Portugal em Damasco, na Síria, ou tornando-se essa diligencia probatória inexequível, a referida recolha seja efectuada no Consulado Honorário de Portugal no Líbano.

Não houve contralegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Nas instâncias, com as alterações introduzidas pela Relação, foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. AA nasceu em Lisboa a 15 de Novembro de 1990;

2. O Autor foi registado como filho de EE e de CC;

3. Por sentença de 07 de Julho de 2008 (processo nº 8274/04; do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras) foi declarado que o ora A. não era filho de CC.

4. EE manteve relações de cópula completa com o Réu BB;

5. O réu enviou, por diversas ocasiões, dinheiro a EE;

7. O Autor sofre da doença hereditária "Beta-Thalassemia", não sendo a sua mãe portadora da mesma;

8. O Réu conheceu a mãe do Autor quando esta trabalhou na "DD, Lda”.

III – Apenas está em discussão no presente recurso o entendimento subscrito nas instâncias da aplicação ao caso da regra da inversão do ónus da prova do n.º 2 do art.º 344.º do C. Civil.

III.1 Cabe dizer em primeiro lugar que a presente acção é de investigação de paternidade.

Dispõe o artigo 1801.º do Código Civil:

Nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova, os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados.

O exame de sangue tem sido reputado de primordial importância nas acções de investigação de paternidade.

No presente caso essa importância é ainda mais evidente, porquanto o A. perdeu a menção de paternidade decorrente do casamento da sua mãe e o mesmo sofre de uma doença hereditária que só pode resultar de transmissão de qualquer dos pais, sendo que a mãe dela não padece.

Residindo o réu na Síria e não sendo este país parte na Convenção de Haia de 18 de Março de 1970 (aprovada pelo DL 764/74, de 3 O-XII), pelo despacho de fls. 110, considerou-se não se mostrar possível a recolha de material biológico através das competentes autoridades judiciárias sírias, por nestas circunstâncias, qualquer exame que aí se realizasse, não garantir os parâmetros de confiabilidade exigidos.

Como igualmente não seria merecedor de crédito a realização desse exame, através do cônsul honorário de Portugal na Síria, irmão do R, com recurso necessário a pessoas ou instituições radicadas na Síria, e mais uma vez sem garantias de confiabilidade.

É neste contexto que importa valorar a posição assumida pelo réu, ao recusar-se a deslocar-se a Portugal para a recolha de material biológico, inviabilizando assim a realização do exame de ADN.

Em causa está fundamentalmente o princípio da cooperação entre os intervenientes num processo (cf. art. 266.º do CPC, na redacção precedente à actual), o qual, no âmbito da instrução da causa, tem por corolário o "dever de cooperação para a descoberta da verdade", ínsito no art. 519.º do mesmo diploma legal).

Dispunha esse normativo que:

1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.

2 – Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:

a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.

4 – (…).

A aplicação desta regra à produção de prova científica, como a ordenada nos autos, implica que as partes tenham a obrigação de se sujeitarem aos exames laboratoriais pertinentes, ou seja, devem prestar-se aos procedimentos que visem a recolha de sangue ou de outros produtos, como a saliva, cabelo ou unhas.

Dispõe, por seu turno, o acima referido art. 344.º, n.º 2:

“1. ……………………………………………………………………………….

2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”

Como salienta LEBRE DE FREITAS (in Código de Processo Civil Anotado, voI. 2.º, 2.ª edição, 2008, Coimbra Editora, Coimbra, p. 440), verifica-se o condicionalismo do art. 344.º, n.º 2, do C. Civil, quando a conduta do recusante impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs: art.º 313.º, n.º 1 e art.º 364.º do CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos. Se outra prova dos factos em causa não existir ou, existindo, for insuficiente, a recusa pode dar lugar à inversão do ónus da prova, que ficará a cargo da parte não cooperante.

Também LOPES DO REGO (Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, p. 361) refere que se o exame se configurar como absolutamente essencial à determinação da filiação biológica – implicando consequentemente a recusa do pretenso pai a verdadeira impossibilidade de o autor fazer prova da invocada filiação biológica – deverá aplicar-se o preceituado no n.º 2 do art.º 344.º, presumindo-se a paternidade.

Ora, é notório o valor probatório, em acções de investigação de paternidade, dos exames de sangue ou outros menos invasivos, designadamente através da recolha do ADN colhido em saliva, cabelo ou unhas, cujos resultados – saliente-se – tanto podem ser favoráveis ao A. como ao R., pretenso progenitor.

Presente no caso está o direito fundamental do autor ao conhecimento, e reconhecimento, da paternidade, seja por via do direito à sua integridade pessoal, ou especificamente à integridade moral, seja por via do direito à identidade pessoal (arts. 16.º; 18.º; 25.º, n.º 1 e 26.º, todos da CRP), definido este como um direito do individuo à sua “historicidade pessoal”, abrangendo o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores, que inclui o direito à identidade genética própria e, em consequência, ao conhecimento dos vínculos de filiação "no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético" – cfr. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, 4.ª edição, vol. I, p. 462 e JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2005, I, 204-205.

Passamos a transcrever parte do Acórdão do T. C. 401/11 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):

«O direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico (sobre a distinção entre estes dois direitos, vide João Loureiro, em “Filho(s) de um gâmeta menor? Procriação medicamente assistida heteróloga”, na Revista Lex Medicae, ano 3.º (2006), n.º 6, pág. 26 e seg., e Rafael Vale e Reis, em “O direito ao conhecimento das origens genéticas”, pág. 108 e 109), cabem no âmbito de protecção quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito fundamental de constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição).

A identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, “uma unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 609, da 2.ª ed., da Coimbra Editora).

Este direito fundamental pode ser visto numa perspectiva estática – onde avultam a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem – e numa perspectiva dinâmica – onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a sociedade ao longo do tempo.

A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de auto-definição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afectiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em “Caducidade das acções de investigação”, ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um factor conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo.

Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distingue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade.

Por outro lado, o direito fundamental a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, abrange a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende um vector de sentido ascendente que reclama a predisposição e a disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo da filiação, com realce para o exercitável pelo filho, com o inerente conhecimento das origens genéticas.

Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afectos – coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar – implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar susceptível de ser juridicamente reconhecida. Pela natureza das coisas, a aquisição do estatuto jurídico inerente à relação de filiação, por parte dos filhos nascidos fora do matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição deve ser garantida através da previsão de meios eficazes. Aliás a peremptória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) não actua só depois de constituída a relação, projecta-se também na fase anterior, exigindo que os filhos nascidos fora do casamento possam aceder a um estatuto idêntico aos filhos nascidos do matrimónio. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribui­ção de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente.

É, pois, pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da paternidade biológica e do estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais.

Isso não impede, contudo, que o legislador possa modelar o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados. Não estamos perante direitos absolutos que não possam ser confrontados com valores conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição.»

Tendo em conta que os testes de ADN são como que uma prova plena do ponto de vista científico da paternidade, ou seja, do ponto de vista da realidade factual, manifesto é que aquele que culposamente impede a realização desses exames está a preencher a previsão do n.º 2 do art.º 344.º

A questão está, pois, em saber se a recusa do réu em deslocar-se a Portugal para a colheita de material biológico traduz uma recusa culposa da submissão da parte a exame, conducente à inversão do ónus da prova dos factos invocados nos arts. 7º e 8° da p.i. (neste último artigo, o autor alegou o facto naturalístico da procriação pelo réu).

A recusa peremptória do réu em deslocar-se a Portugal para a realização de exames de ADN não foi justificada em qualquer eventual ofensa à sua integridade física, o que seria aceitável, dada a jurisprudência do TC (Acórdão n.º 616/98) que entende que não há justificação para o direito à integridade física ser violado, por efeito de recolha de sangue em vista duma investigação de paternidade, não havendo norma que prescreva ou legitime o uso da força para a sua execução, pelo que só com o consentimento do R. o exame de sangue se pode efectivar.

A razão invocada para a não sujeição a exame foi o da impossibilidade de se deslocar a Portugal por "motivos profissionais, familiares e de conflito bélico em curso".

Porém, o réu não concretizou as causas reais da referida impossibilidade que, de resto, também não demonstrou.

Não está adquirido, nem é notório que a situação de guerra civil que se vive na Síria desde, pelo menos, o ano de 2011/2012, que o A. apelida de "conflito bélico em curso", seja motivo impeditivo da saída da Síria e do subsequente regresso aí do R. ou dos cidadãos sírios em geral.

Acontece até que, como se referiu nos autos, esse “conflito bélico” não impediu que o Réu se tivesse deslocado a Portugal para emitir a procuração junta com a contestação, a qual, de acordo com o nela exarado, foi assinada por aquele, em Lisboa, no dia 30 de Maio de 2012.

Nessa altura já a guerra civil síria era uma realidade e o réu não invocou, e, consequentemente, não provou, nos autos, qualquer agravamento do conflito que tivesse tornado impossíveis ou muito arriscadas posteriores deslocações ao exterior.

O sacrifício pessoal do réu em deslocar-se a Portugal não seria, neste contexto, arbitrário ou gratuito, configurando-se proporcional à vantagem para a descoberta da verdade biológica, máxime face ao direito do autor ao conhecimento das suas origens genéticas, sendo que do referido exame igualmente poderia resultar o afastamento da paternidade que o A. reclama e o R. nega.

Cabe salientar que, tendo o A. propugnado que o exame de ADN se fizesse em Portugal no INML, ou feita a recolha do material biológico na Embaixada de Portugal em Nicósia, por ser a entidade que representa os interesses portugueses na Síria, contrapôs o R. a impossibilidade de sair da Síria, que os dois consulados portugueses na Síria foram encerrados por força do estado de guerra, não fazer sentido ser a diligência feita através de Chipre e que apenas aceitava que a perícia fosse realizada no seu país e por ordem de um tribunal judicial sírio.

Foi depois proferido um despacho judicial, já atrás citado, a considerar não ser possível a realização do exame em Portugal, pelas razões que o A. invocou, sem considerar essas razões justificação bastante (o R. não aceita ou não pode deslocar-se a Portugal…), nem em Nicósia nem na Síria (neste caso por a Síria não ser subscritora da Convenção de Haia de 18.03.70).

Com este despacho o R. se conformou, até que se fez funcionar a regra da inversão do ónus da prova.

Agora, em sede de alegações no recurso de revista excepcional, já o R. aceita, em clara contradição com a sua inflexível posição anterior que a recolha de material biológico para a realização do teste de ADN se realizasse num dos dois Consulados Honorários de Portugal existentes na Síria ou no Consulado Honorário de Portugal em Damasco ou, ainda, no Consulado Honorário de Portugal no Líbano.

Trata-se de uma clara inflexão táctica que chega ao ponto de admitir que a recolha do material biológico ocorra no Líbano, isto é, num terceiro país, solução que anteriormente reputara absurda.

A atitude do R. não aceitando a solução de recolha do material biológico pelo INML nem qualquer outra que não passasse pela efectivação na Síria e por ordem de um tribunal sírio, o que já sabia não ser viável, implica uma recusa implícita e ilegítima, logo, uma violação culposa do dever de cooperação.

A culpa resulta do conhecimento de que as soluções que defende não são exequíveis e, apesar disso, não aceita as consideradas viáveis, escudando-‑se em argumentos que não demonstra, pelo que, agindo com vontade de impedir a realização do exame ou, pelo menos, com consciência de que o exame requerido ficaria, muito provavelmente, inviabilizado e aceitando tal resultado.

A alteração táctica do R. nas suas alegações para este Tribunal, flexibilizando a sua posição anterior, após a decisão de manutenção da decisão de 1.ª instância, mostra isso mesmo, ou seja, que a intransigência que manifestara visava impedir a realização do exame.

Mostra-se, pois, isenta de censura a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344°, n.º 2, do CC.

E, de igual modo, os efeitos dela advenientes com a prova da paternidade.

IV – Termos em que se acorda em negar a revista excepcional, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 17 de maio de 2016

Paulo de Sá (Relator)

Garcia Calejo

Hélder Roque


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[1] N.º 747
Relator:    Paulo Sá
Adjuntos: Garcia Calejo e
Hélder Roque