Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
856/11.1TYVNG-U.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: BEM IMÓVEL
DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
CADUCIDADE
HIPOTECA
MASSA INSOLVENTE
REGISTO PREDIAL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
DIREITO AO ARRENDAMENTO
DIREITO REAL DE GOZO
COMPRA E VENDA
LIQUIDAÇÃO
DIREITOS DE TERCEIRO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I - Relativamente a bem imóvel integrante da massa insolvente, sobre o qual tinham sido constituídas e registadas hipotecas a favor de credor reclamante na insolvência, caduca o direito de uso e habitação, enquanto direito real limitado de gozo, constituído e inscrito no registo predial a favor de terceiro após o registo dessas hipotecas, em momento anterior à insolvência do devedor hipotecário, com a venda desse bem na liquidação associada ao processo de insolvência, por interpretação e aplicação do art. 824.º, n.º 2, do CC (que afasta direitos de terceiros registados posteriormente à hipoteca).
II - De acordo com o art. 824.º, n.º 3, do CC, os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens. Tal significa que o titular do direito real de gozo que caduca, mesmo não sendo credor do titular do bem sobre o qual incide o direito real de gozo caducado e não tenha reclamado qualquer crédito no processo de insolvência onde a venda vai ser realizada, pode reclamar o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda do mesmo, ainda que para o efeito possa ser necessário instaurar uma acção contra a massa insolvente.
III - Não se aplica à caducidade de um direito real de gozo abrangido pela previsão do art. 824.º, n.º 2, do CC o segmento uniformizador tirado no AUJ do STJ n.º 2/2021.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 856/11.1TYVNG-U.P1.S1

Revista Excepcional – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 3.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. Em apenso de liquidação tramitado em razão do processo de insolvência da «I..., S.A.», o administrador da insolvência apresentou requerimento:

             

“A verba .., fracção “V” sob o nº ... da Conservatória do Registo Predial ... do auto[,] é o único bem por vender. Esteve recentemente em venda em leilão electrónico obtendo propostas acima do valor base, mas que acabaram por ser declinadas com fundamento na existência de um ónus cujo extinção e prazo é incerto.

(…)

O ónus em causa, “Direito de Uso e Habitação”, foi registado pela AP. ...27 de 2014/04/04. Existem duas hipotecas voluntárias, registadas pela AP. ...0 de 2000/07/13 e pela AP. ...6 de 2003/08/11, ambas anteriores ao registo do Direito de Uso e Habitação.

Entende que a venda no âmbito da liquidação extingue aquele direito. Pois, o nº 2 do artigo 824º (venda em execução) do Código Civil estipula que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.

(…)

Para poder transmitir alguma “certeza” ao comprador e porque a extinção do direito se verifica apenas após a venda e não é de cancelamento oficioso, é necessário a prolação de despacho a extinguir o ónus, vem requerer a Exa. que doutamente se pronuncie sobre o entendimento do signatário, e sobre a disponibilidade do Tribunal para proferir o despacho de extinção do direito de uso e habitação após a venda.”

2. Os titulares do direito de uso e habitação, AA e BB, enquanto Intervenientes Acidentais nos autos, opuseram-se à pretendida extinção do direito de uso e habitação, antes ou depois da venda da fracção autónoma.

Alegaram: foi celebrado contrato promessa de constituição de direito de uso e habitação em 30/10/2000, mediante o qual a sociedade «A..., S.A.» (anterior firma da depois insolvente) acordaram a entrega do prédio urbano por eles habitado e, como contrapartida, obrigou-se a constituir, gratuita e simultaneamente, a favor deles o direito real de habitação sobre a fracção ... com garagem individual, no ... andar do prédio que estava a construir; tal direito de uso e habitação fora constituído por escritura pública celebrada em 29/11/2004 e encontra-se registado descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2639/20...; a constituição do direito de uso e habitação visa satisfazer a necessidade de habitação destes, direito de habitação que os intervenientes acidentais já dispunham há mais de trinta anos no prédio que entregaram; a fracção autónoma encontra-se inscrita a favor da insolvente pela Ap. ...06 de 2016/10/11, sendo a declaração de insolvência posterior ao registo do direito de uso e habitação, estando ainda inscritas duas hipotecas voluntárias pela AP. ...0 de 2000/07/13 e AP. ...6 de 2003/08/11 a favor da «C... S.A»; o direito de uso e habitação não se extinguirá porque não se está perante uma venda promovida no âmbito do processo executivo requerido pelo credor hipotecário; o direito de uso e habitação foi constituído a favor de ambos os intervenientes para satisfazer a sua necessidade básica e fundamental do direito constitucionalmente consagrado de habitação (artigo 65º da CRP); os titulares do direito de uso e habitação são pessoas de 85 e 83 anos respectivamente, têm limitações de mobilidade e dispõem de reduzidos rendimentos, exclusivamente pensão de velhice nos montantes anuais de €6.851,54 e €4.391,02 respectivamente.

3. Foi proferida decisão pelo Juiz 2 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (Tribunal Judicial da Comarca do Porto) em 21/3/2021:

“Compulsados os autos constatamos que:
a. I..., S.A. apresentou-se à insolvência, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida em 29/9/2011.
b. Em 11/10/2016 o Sr. administrador da insolvência apreendeu para a massa, sob verba .., a fracção "V" – Habitação ..., no ... andar, bloco ..., com entrada pelo n.º ...21 da Praceta ..., ... varandas designadas por V-um e V-dois, garagem designada por V-três localizada na cave, com entrada pelos n.os ... e ..., sito na Rua ..., n.º .., com a área total de 90,98 m2, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...39..., inscrito na matriz predial urbana com o número ...90, freguesia ....
c. Por contrato promessa de constituição de direito de uso e habitação celebrado no dia 30/10/2000, “A..., S.A.” acordaram com AA e BB a entrega do “prédio urbano omisso a matriz e não descrito na conservatória do registo predial” por eles habitado, e como contrapartida a supra identificada sociedade obrigou-se a constituir, gratuita e simultaneamente a favor destes “O direito real de habitação sobre a fracção de ... com garagem individual, sita no ... andar do prédio que está a construir, referido na cláusula seguida deste contrato”.
d. Em cumprimento daquele contrato, o direito de uso e habitação foi constituído por escritura pública celebrada no dia 29 de Novembro de 2004.
e. Encontrando-se tal direito de uso e habitação registado sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2639/20... através da AP. ...27 de 2014/04/04.
f. Sobre tal imóvel encontram-se registadas duas hipotecas voluntárias, registadas pela AP. ...0 de 2000/07/13 e pela AP. ...6 de 2003/08/11.
g. O registo da apreensão é posterior ao registo do direito de uso e habitação.
Perante essa factualidade a questão que se nos coloca é a de saber se, tal como entendido pelo Sr. administrador da insolvência, após a venda este tribunal poderá proferir o despacho de extinção do direito de uso e habitação ou, se pelo contrário, como defendem os intervenientes AA e BB, não se extingue esse direito.
O Sr. administrador da insolvência entende que esse direito se extingue visto que o nº 2 do artigo 824º (venda em execução) do Código Civil estipula que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em elação a terceiros independentemente de registo”.
Os referidos intervenientes entendem que esse direito não se extingue alegando que o direito de uso e habitação não é impeditivo da venda da fracção autónoma, que o registo do direito de uso e habitação é anterior ao registo da declaração de insolvência, que os direitos de uso e habitação se extinguem pelo mesmo modo de extinção do usufruto, pelo que não se pode extinguir enquanto não cessar a necessidade pessoal que justificou o direito, sendo que os intervenientes têm necessidade do imóvel.
(…)
Voltando agora ao caso em apreço, constata-se que os intervenientes AA e BB têm registado a seu favor, desde 2004, o direito de uso e habitação do imóvel devidamente identificado nos autos, sendo certo que, por outro lado, desde data anterior – estão registadas hipotecas sobre o mesmo e que está registada, com data posterior, a apreensão do imóvel a favor da massa insolvente.
Como acima dissemos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1488.º do Cód. Civil, o direito de uso e habitação não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável e impenhorável.
E, nesta sequência, importa ter presente o estipulado no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, no qual é afirmado que, na venda em execução, “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia (…)”.
Como é sabido o processo de insolvência “é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
Assim, ao contrário do que defendem os intervenientes, entende este tribunal que o disposto no art. 824.º, n.º 2, é aplicável ao presente caso, até por força da remissão prevista no art. 17.º do C.I.R.E. porquanto, a insolvência, não deixa de ser um processo de execução em que, em vez de ter apenas um exequente, tem por beneficiários todos os credores que vierem ser reconhecidos.
Por isso, é nosso entendimento que o direito de uso e habitação dos intervenientes, tendo sido registado em momento posterior à garantia hipotecária, terá que caducar, inexoravelmente, com a venda em insolvência do referido imóvel, por força do disposto no citado nº 2 do artigo 824.º do Código Civil.”

4. Inconformados, os titulares do direito que se decidira extinguir por caducidade interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRG), visando a revogação da decisão recorrida. Identificando-se como questão recursiva saber se, “nos termos do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil, um direito de uso e habitação inscrito no registo predial a favor de terceiro após a inscrição de duas hipotecas e antes da insolvência do devedor hipotecário, caduca com a venda na insolvência do imóvel respectivo que integra a massa insolvente”, veio a ser proferido acórdão em 26/7/2021, que julgou o recurso improcedente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida.

5. Novamente sem se resignarem, os Recorrentes de Apelação interpuseram recurso de revista excepcional para o STJ, invocando para o efeito o art. 672º, 1, em todas as suas alíneas a), b) e c), do CPC, invocando, nesta última frente recursiva, como fundamento de “oposição jurisprudencial”, o Ac. do STJ de 27/11/2018 (processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2, Rel. HENRIQUE ARAÚJO), visando a revogação da decisão recorrida, “substituindo-a por outra que não extinga o direito de uso e habitação, por força do disposto no nº 2 do art. 824º do Código Civil”.

6. Verificados os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário de revista e os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (art. 671º, 1, CPC), ex vi art. 17º, 1, do CIRE (sem aplicação do regime do art.14º, 1, do CIRE; cfr. art. 125º do CIRE), foi proferido despacho de remessa dos autos à Formação Especial do STJ, a que alude o art. 671º, 3, do CPC. Esta proferiu acórdão que admitiu a revista excepcional, a fim de se apreciar a aplicação do art. 824º, 2, do CCiv. à situação jurídica do direito de uso e habitação da titularidade dos Recorrentes.

7. Neste contexto, avultam as seguintes Conclusões que finalizam as alegações dos Recorrentes:

“3 – Adere-se aqui aos argumentos do dos Acórdão fundamento, devendo contudo fazer-se uma interpretação e aplicação por analogia, face à similitude entre o direito ao arrendamento e o direito de uso e habitação.

4 – O artº 824º 2 do Código Civil não se aplica, nem direta nem analogicamente, ao direito de uso e habitação, não caducando, assim o contrato celebrado depois do registo da hipoteca, havendo-se como transmitida a posição dos recorrentes para o terceiro que vier a adquirir o imóvel em venda judicial.

5 – (…) afigura-se relevante referir que, tendo sido declarada a insolvência da “I..., S.A.” em 29/09/2011, nunca foi praticado qualquer ato, nomeadamente pelo Sr. Administrador de Insolvência de apreensão da fração autónoma.

6 – Por conseguinte, nunca o direito de uso e habitação dos recorrentes foi antes colocado em crise quando da declaração de insolvência e/ou em momento posterior a este.

7 – Só muito recentemente, face a uma proposta de compra da fração autónoma sob apreciação, terá sido suscitada a questão da extinção do direito de uso e habitação.

8 – Significa isto que, durante cerca de 10 anos da pendência do processo de insolvência os recorrentes têm mantido o exercício do seu direito sem oposição de quem quer que seja.

9 – Os direitos de uso e habitação são direitos reais limitados. Referimo-nos à circunstância de os poderes de uso ou de fruição serem reconhecidos ao titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos, de gozo pleno. A sua medida é a das necessidades do seu titular e respetiva família. São pois, limitados pelo fim.

10 – Tratando-se “no fundo, de um puro corolário de carácter estritamente pessoal do direito, muito próximo, na sua finalidade, da prestação alimentarnão se pode extinguir enquanto não cessar a necessidade pessoal que justificou o direito.”

11 – Ao regime dos direitos de uso e habitação manda a lei aplicar o que se dispõe quanto ao usufruto, quando conciliável com a sua natureza – art. 1490º do Código Civil, em todo o que não ache estabelecido no seu título de constituição.

12 – Em geral o uso e habitação, extingue-se quando cessam as necessidades do seu titular.

13 – O art. 1485º do Código Civil, estende, em geral, aos direitos de uso e habitação os modos de constituição e de extinção do usufruto.

14 – O direito de uso e habitação dos recorrentes encontra-se devidamente

constituído e registado antes da declaração da insolvência, no âmbito da qual se pretende promover a venda da habitação.

15 – Assim, o que está em causa é o confronto entre dois direitos reais, independentes e com diferentes conteúdos, um direito real de garantia e um direito real de uso e fruição, limitado pelo fim, não implicando que a imperativa extinção daquele implica que também se extinga este.

16 – Por isso, no caso sob apreciação, perante a caraterização do direito de uso e habitação, este não se extinguirá em consequência da execução da garantia real mas, apenas quando cessar a necessidade dos titulares do direito de o habitar.

17 – Estamos perante um direito (uso e habitação) que tem proteção no art. 65º da Constituição da República Portuguesa

18 – Entender a habitação como um direito constitucional (cf. artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa - CRP) constitui uma primeira base nuclear de natureza jurídico-política para garantir uma habitação básica para todos sem exceção, de forma a possibilitar não só acesso a como a fruição de uma habitação segura e confortável em qualquer parte do território, nomeadamente na malha urbana da cidade, onde é mais difícil aceder a habitação básica num contexto de escalada de especulação imobiliária, gentrificação e segregação socio-espacial.

19 – Sendo a habitação um direito social inalienável consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP) desde 1976, encontra-se simultaneamente consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e em vários outros compromissos internacionais a que Portugal se encontra vinculado

20 – Nada impedindo a venda da fração autónoma sob apreciação, o direito de uso e habitação não se extinguirá, permanecendo independentemente de quem for o proprietário do imóvel.

21 – A interpretação e aplicação do disposto no nº2 do art. 824º do Código Civil nos termos em que é feita na decisão objeto deste recurso é inconstitucional por violar o disposto no art. 65º da Constituição da República Portuguesa.


22 – O direito de uso e habitação não restringe o direito dos credores nos presentes autos e não pode ser restringido por interesses dos credores que não dispõem de uma tal força legal.

23 – Ainda que a hipoteca confira ao credor que dela beneficia um privilégio de receber o seu crédito sobre o produto da sua venda, não estamos perante uma execução promovida por este credor.

24 – Por isso, não se pode interpretar, como se faz na decisão recorrida que o direito de uso e habitação é um ónus que se extingue com a venda do imóvel.

25 – Sem prejuízo do que atrás se alega, os titulares do direito de uso e habitação além de serem pessoas de avançada idade (85 e 83 a nos respetivamente), têm limitações de mobilidade e dispõem de reduzidos rendimentos, exclusivamente pensão de velhice nos montantes anuais de €6.851,54 e €4.391,02 respetivamente.

26 – A decisão recorrida além de violar frontalmente o disposto no art. 65º da Constituição da República Portuguesa, faz errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 824º nº 2, 1293º, 1485º, 1486º, 1487º 1488º, 1490º, 1057º e 2009 nº 1 al. b) e e) todos do Código Civil, art. 109º nº 3 do CIRE e art. 811º do CPC.”

8. A Credora Reclamante na insolvência «C... S.A.» apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Considerando o decidido pelo Ac. da Formação, a questão decidenda reside em saber se, relativamente a bem imóvel integrante da massa insolvente, sobre o qual tinham sido constituídas e registadas hipotecas a favor de credor reclamante na insolvência, caduca o direito de uso e habitação, constituído e inscrito no registo predial a favor de terceiro após o registo dessas hipotecas mas antes da insolvência do devedor hipotecário, com a venda desse bem no processo de insolvência, por interpretação e aplicação do art. 824º, 2, do CCiv.


2. Factualidade relevante

Temos como factos relevantes para a decisão do recurso a que consta do Relatório elaborado como precede.


3. Direito aplicável

3.1. As instâncias revelaram-se coincidentes na interpretação do regime legal aplicável e chegaram ao mesmo resultado na aplicação ao caso do art. 824º do CCiv.

O acórdão recorrido foi claro e assertivo.

Transcreve-se:

“A questão que cabe decidir prende-se com a interpretação do artigo 824.º do Código Civil, que está inserido na secção relativa à realização coactiva da prestação e mais propriamente à execução de bens para satisfação do direito de crédito do credor.

Sob a epígrafe “venda em execução”, este artigo dispõe o seguinte:

«1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.

3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens

A questão não vem colocada propriamente no âmbito de um processo de execução, vem suscitada no âmbito de um processo de insolvência no decurso de cuja fase da liquidação a venda do imóvel deve ter lugar.

Não obstante isso cremos ser inquestionável a aplicação do disposto no artigo 824.º do Código Civil ao processo de insolvência.

Com efeito, nos termos do artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas «o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».

Nessa medida, quando a recuperação da empresa não se afigure possível e o processo de insolvência avançar para a fase da liquidação, haverá que proceder à venda do património e à distribuição do produto da venda pelos credores, situação em que o processo de insolvência assume as características de um processo de execução, com a especificidade de ser universal em dois sentidos: por um lado, por compreender a totalidade do património do insolvente susceptível de responder pelas respectivas dívidas, por outro lado, porque a ele são chamados todos os credores do insolvente e o produto da liquidação é repartido por todos aqueles que intervierem e virem os respectivos créditos verificados.

O artigo 824.º do Código Civil rege sobre a extinção dos direitos de terceiros sobre os bens vendidos, constituindo a diferença principal entre a venda executiva (coerciva) e a venda negocial (voluntária), permitindo, por um lado que o executado rentabilize a venda do bem, diminuindo o sacrifício de património necessário para a realização do pagamento, e por outro que os credores reclamantes obtenham mais facilmente a satisfação dos seus créditos (cf. Teixeira de Sousa, in Acção executiva singular, Lex, 1998, pág. 385-386, e Anselmo de Castro, in A acção executiva singular, comum e especial, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1977, pág. 228.)

Resulta do artigo 824.º do Código Civil que a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Isso significa que se o devedor é titular da propriedade do bem é o direito de propriedade que é alienado, se o devedor apenas é usufrutuário do bem apenas é vendido o direito de usufruto.

Esta norma não resolve o problema por inteiro porque o bem a vender pode encontrar-se onerado com direitos de garantia ou com direitos reais de gozo menores ou mesmo direitos reais de aquisição, pelo que caberia sempre decidir o que sucede com estes direitos em caso de venda do bem a terceiro.

Em tese era pensável que esses direitos se mantivessem e que o adquirente do bem tivesse de os respeitar. Todavia, como dificilmente alguém se dispõe a adquirir um bem do qual afinal não pode dispor na plenitude ou apenas o poderá fazer em data posterior incerta ou ainda terá de suportar ele mesmo os ónus sobre o bem para obter a sua libertação, essa solução acabaria na prática por inviabilizar, na maior parte dos casos, a venda do bem, com prejuízo não apenas para os credores, como também para os devedores que poderiam ver-se obrigados à venda de mais bens para satisfação dos créditos (nesse sentido, veja-se o comentário ao preceito em causa in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 1209 e seguintes, onde se afirma, citando Menezes Cordeiro e Rui Pinto, que «quando incidem sobre os bens vendidos direitos reais de garantia, caso estas garantias não desaparecessem, haveria danos para os credores e para o crédito em geral»).

Por isso o n.º 2 do preceito regula o que sucede aos direitos reais que oneram os bens após a sua venda coerciva. Segundo dispõe a norma, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, ou seja, com a venda caducam todos os direitos de garantia.

Em relação aos demais direitos reais, mais especificamente os de gozo como o que aqui está em causa, a norma distingue várias situações. Os direitos reais de gozo que tenham sido constituídos (caso não necessitem de registo para serem eficazes) ou inscritos no registo (caso digam respeito a bens sujeitos a registo como os imóveis) antes da constituição ou registo, respectivamente, de qualquer dos direitos de garantia, arresto ou penhora invocados na execução, subsistem: o bem é vendido com esse ónus. Mas já caducam todos os direitos reais de gozo que tenham sido constituídos ou inscritos no registo apenas depois da constituição ou registo de qualquer dos direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução, de arresto ou de penhora.

Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 99, «os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias (Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, 1964, 3.ª ed., n.º 214). Exceptuam-se os direitos que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, porque estes também não caducam, se tiverem sido constituídos anteriormente ao mais antigo daqueles actos. Assim, não caduca um usufruto sobre os bens imóveis vendidos, se o direito estiver registado antes do registo de qualquer arresto, penhora ou garantia. Também não caduca um usufruto sobre bens móveis, constituído antes do arresto, penhora ou garantia, visto esse usufruto não estar sujeito a registo».

Também Lebre de Freitas, in A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 388 e seguintes, afirma que quanto aos «direitos reais de gozo (..), há que distinguir entre os que sejam de constituição (ou registo, se se tratar de coisas imóveis ou de móveis a ele sujeitos) anterior à constituição (ou registo) de todos os direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução e os que sejam de constituição (ou registo) posterior à constituição (ou registo) de qualquer deles. Para que se verifique o primeiro caso, é preciso, pois, que os direitos de garantia de todos os credores (incluindo o exequente) sejam de data posterior à do direito real de gozo (ex.: usufruto) dum terceiro (..). E, quando a lei refere «qualquer arresto, penhora ou garantia», abrange tanto o direito real constituído, fora do processo de execução, por um credor reclamante (e que serve de fundamento à sua reclamação) como o direito real do exequente, quer este seja anterior à execução (trata-se, por exemplo, da execução dum crédito hipotecário, ou duma execução que foi precedida de arresto), quer seja constituído na própria execução (o exequente é um credor comum e só com a penhora adquire um direito real de garantia)

Quanto ao segundo dos casos distinguidos, que é aquele que nos ocupa (o direito de uso e habitação foi inscrito no registo depois da hipoteca para garantia de um crédito hipotecário reclamado nos autos), o autor diz que quanto ao momento de constituição ou registo do direito real de gozo é possível ocorrerem três situações distintas: ser «a) posterior à constituição (ou registo) da penhora; b) anterior à constituição (ou registo) da penhora, mas depois da constituição (ou registo) dum direito real precedente (hipoteca voluntária ou judicial, arresto, etc.) do exequente; c) anterior à constituição (ou registo) de qualquer direito real do exequente, mas depois da constituição (ou registo) do direito real de garantia invocado por um dos credores reclamantes».

Continua o autor: «Em qualquer destas hipóteses, a lei determina que os bens se transmitam livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (no nosso exemplo: a propriedade de raiz, direito de propriedade limitado pelo usufruto). Nas hipóteses a) e b), tal não oferece dificuldade: o direito do exequente não pode ser limitado por um direito posterior, que na primeira hipótese até normalmente lhe é inoponível (..) e na segunda deu certamente lugar a uma execução movida, nos termos do art. 54-4, contra o devedor e o terceiro (..). A penhora, consequentemente, abrangeu a propriedade plena e é essa que é transmitida. Mas, na hipótese c), as coisas complicam-se. Agora, a penhora não abrangeu certamente, tal como não o abrangeu no primeiro caso (direito real de gozo anterior a qualquer direito real de garantia), o direito real de gozo do terceiro (o exequente penhorou, no nosso exemplo, a propriedade de raiz do executado, mas não o usufruto do terceiro), mas a lei vem dizer que, pela venda, o bem se transmite livre desse direito real. Estaremos perante um caso em que o objecto da venda pode ir além do objecto da penhora? Ou deverá o art. 824-2 CC ser interpretado restritivamente, quando se refere a qualquer arresto, penhora ou garantia a favor do exequente? A interpretação literal do artigo (o termo qualquer dificilmente se referirá apenas ao exequente) tem por si a consideração da grande probabilidade de prejuízo que, para o credor com garantia constituída antes da limitação da propriedade plena, adviria de, na interpretação restritiva, obter na execução o pagamento de parte apenas do seu crédito, em consequência da restrição apresentada pelo direito do executado à data da execução (no exemplo, restrição à propriedade de raiz), vendo-se obrigado a nova execução contra o terceiro (no exemplo, o usufrutuário) para obter o pagamento do resto do crédito. Embora a reclamação de créditos tenha, como vimos, a finalidade de garantia do credor, e não tanto a de pagamento do seu crédito, certo é que «a venda, não da propriedade plena, mas de direitos parcelares, pode prejudicá-lo: a soma do que estes renderem raramente será o que renderia a propriedade plena» (..). Certa parece ser, portanto, a conclusão de que o art. 824-2 CC tem de ser interpretado como estamos fazendo (…)»

Como vimos, não resulta da norma que para o efeito a anterioridade do registo do direito real de gozo deve ser aferida unicamente em relação à data do registo da garantia do credor exequente. Ao invés, resulta que para não caducar o direito real de gozo tem de se mostrar inscrito no registo antes do registo de qualquer direito real invocado no decurso do processo executivo. O que significa que se por exemplo um credor comum instaura uma execução para satisfação do seu crédito e no âmbito desta é penhorado um bem que se encontra hipotecado a favor de outro credor que não o exequente, caduca igualmente o direito real de gozo inscrito no registo antes da penhora promovida pelo exequente mas depois da hipoteca do credor hipotecário que na sequência da penhora é chamado à execução para defender a sua garantia e vê-la transferida para o produto da venda.

Se isso é assim numa execução promovida apenas por um credor e com a finalidade de obter somente a satisfação do direito de crédito deste, parece que por maioria de razão deve ser igualmente no âmbito de um processo de insolvência em que se pretende a execução universal de todos os bens e em benefício de todos os credores, sendo certo que no caso foi a própria devedora que se apresentou à insolvência e a credora com garantia hipotecária reclamou o respectivo crédito. Os problemas que Lebre de Freitas coloca a propósito da penhora e da sua relação com o objecto da venda não se chegam a colocar aqui porque tratando-se de uma execução universal todos os bens são apreendidos e todos os credores são chamados a reclamar o seu crédito para ser pago.

Refira-se que em rigor embora a norma fale em caducidade dos direitos reais de gozo, não é de verdadeira caducidade que se trata porque o direito não se extingue pura e simplesmente (cf. Rui Pinto, in A Acção Executiva, AAFDL, Lisboa, 2018, pág. 898, afirma que estamos perante uma «sub-rogação real»). Com efeito, nos termos do artigo 824.º, n.º 3, do Código Civil, os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens. Por via desta norma, o titular do direito real de gozo que venha a caducar, mesmo não sendo credor do titular do bem sobre o qual incide o direito de gozo caducado e por isso não tenha reclamado qualquer crédito no processo de insolvência onde a venda vai ser realizada, pode reclamar o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda do mesmo realizado no pressuposto e com a vantagem daquela caducidade, ainda que para o efeito possa ser necessário instaurar uma acção contra a massa insolvente.

Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., escreveram a esse respeito que «nos termos do n.º 3, os direitos de terceiro, que caducarem, transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens. Já afirmava a mesma doutrina o n.º 2 do artigo 907.º do Código de Processo, antes de 1967, em relação aos credores. Mas o princípio pode e deve aplicar-se aos titulares de direitos reais de gozo, que não sejam credores. Imaginemos que há um usufruto registado depois duma hipoteca ou do registo da penhora. O usufruto caduca, mas transferem-se para o remanescente, pagos os credores, os direitos do usufrutuário. Essa transferência para o produto da venda não pode prejudicar, entretanto, o direito do exequente, nem os direitos dos credores chamados que tenham preferência sobre o titular do direito caduco (Vaz Serra, anot. ao ac. do S. T. J.. de 11-2-1969, na Rev. de Leg. e de Jurisp., ano 103.º, pág. 164, nota 3).»

Também no Acórdão da Relação do Porto de 01-07-2019, relatados por Manuel Domingos Fernandes no processo n.º 1546/11.0TBAMT-B.P1, in www.dgsi.pt, se escreveu, então a propósito de uma venda em processo executivo mas em que se dava igualmente a circunstância de haver uma hipoteca com registo anterior ao do direito de uso e habitação:

«Se a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide, como decorre do disposto no artigo 695.º do Cód. Civil, não é menos certo que, gozando o titular da hipoteca do direito de preferência decorrente da prioridade do registo, fica o proprietário do bem limitado em relação ao seu direito de propriedade, como seja o de pôr em causa o valor do mesmo. A hipoteca é a garantia de um crédito em que o valor do imóvel é um elemento fundamental na atribuição do empréstimo que lhe subjaz e na determinação do respectivo quantitativo, a situação do direito de habitação será sempre um dos elementos relevantes dessa avaliação. Se sobre o imóvel incide um direito de habitação devidamente registado, o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância e essa qualidade é-lhe oponível, por ser anterior ao da constituição da hipoteca. Se, pelo contrário, se sobre o prédio não incide o referido direito de habitação e o imóvel está livre, a constituição do referido direito posteriormente ao registo da hipoteca, vem piorar a situação do credor hipotecário, situação esta com que o mesmo razoavelmente não podia contar, pois a constituição do direito de habitação é posterior à hipoteca. […] … se o direito de habitação tivesse sido constituído e registado antes de ter sido constituída e registada a hipoteca e realizada a penhora, não caducaria. Porém se o referido direito de habitação foi constituído e registado depois da constituição da hipoteca, verdadeiro direito real de garantia, e antes da penhora, o citado direito caduca com a venda executiva da fracção ao exequente enquanto credor hipotecário nos termos do citado artigo 824.º nº 2 do C.Civil.»

E sobre a circunstância de em resultado da constituição do direito de habitação o direito de propriedade ter ficado dividido em dois direitos: a nua propriedade e o direito de habitação, escreveu-se:

«Acontece que este desdobramento da propriedade não afectou a hipoteca sobre o imóvel, visto que o seu registo é anterior ao registo dos direitos resultantes daquele desdobramento e incidiu sobre a propriedade plena. Com efeito, a hipoteca repercute-se de modo diverso em função do direito real do autor hipotecante. Se constituída pelo proprietário pleno que, posteriormente, doou o mesmo bem a terceiros e constituiu para si um direito real de gozo sobre o imóvel, esta cisão do direito, não prejudica a posição jurídica do credor hipotecário. Com efeito, mercê da prioridade do registo (cf. artigo 6º do CRP), e atento o disposto no artigo 696.º do C. Civil nos termos do qual “salvo convenção em contrário a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas sobre cada uma das partes que as constituam (…)” a hipoteca incide sobre a propriedade plena. A hipoteca como direito real de garantia que é, goza do atributo de sequela, pelo que e enquanto subsistir, acompanha as vicissitudes do bem sobre que incide habilitando o seu titular a atingir a coisa onde esta se encontrar. O credor hipotecário tem o poder actuar sobre a coisa que lhe foi afecta, sem lhe ser oponível titular de direito real posteriormente constituído e registado. Desta sorte o direito hipotecário não se subordina à permanência do domínio do imóvel na mesma pessoa; é na pretensão erga omnes que se manifesta com absoluta clareza o carácter real deste direito de garantia, isto é, a hipoteca abrange o bem hipotecado em todas as suas transformações futuras. Ora, no caso dos autos, a hipoteca incidiu sobre o bem na sua plenitude, ou seja, sobre a propriedade plena que englobava a nua propriedade e o direito de habitação que, por lhe ser posterior, é em relação ao credor hipotecário ineficaz

Tudo isto é transponível para o processo de insolvência no qual a venda do bem é feita por inteiro exactamente por haver um credor, o credor hipotecário, relativamente ao qual a constituição do direito de habitação é ineficaz, e haver a necessidade de proceder à liquidação total do património do devedor insolvente, ou seja, à necessidade de através da venda tutelar a protecção de que os credores beneficiam sobre o património do devedor.

Concluímos, portanto, ao abrigo do disposto no artigo 824.º do Código Civil, que o direito de uso e habitação dos recorrentes caduca com a venda do imóvel no presente processo de insolvência uma vez que foi constituído e registado depois de estar constituída e registada a hipoteca do credor hipotecário (e, note-se, no caso mesmo já depois de declarada a insolvência do devedor embora antes da apreensão do bem pelo administrador da insolvência) que veio ao processo de insolvência reclamar o seu crédito e que irá ser pago pelo produto da venda com a graduação que decorre da hipoteca e com os efeitos da hipoteca que permitem ao credor hipotecário, em sede de liquidação do bem, afastar direitos de terceiros registados posteriormente à hipoteca.”

E ainda mais se fundamentou, com relevo:

“A essa conclusão não obsta o disposto no artigo 109.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que contém algumas disposições relativas especificamente ao contrato de locação. O n.º 3 desta norma estabelece que a alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância. Trata-se de uma norma de protecção do inquilino que se filia no regime protectivo próprio desta figura contratual e por isso não é aplicável fora do respectivo âmbito especial, designadamente a figuras que não são sequer direitos de natureza obrigacional (v.g. o direito de uso e habitação) e para as quais a lei civil fornece afinal uma solução própria: a do artigo 824.º do Código Civil.

Perguntar-se-á se tal conclusão é impedida por alguma norma do regime jurídico do próprio direito de uso e habitação. A resposta é, a nosso ver, negativa.

O artigo 1484º do Código Civil dispõe o seguinte:

“1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.

2. Quando esse direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação.”

O artigo 1485.º do mesmo diploma, o seguinte:

“Os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 1293.º, e são igualmente regulados pelo seu título constitutivo; na falta ou insuficiência deste, observar-se-ão as disposições seguintes”.

Por sua vez o artigo 1490º estabelece que se aplicam “aos direitos de uso e de habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à natureza daqueles direitos”.

O artigo 1488.º do Código Civil impede o trespasse, a locação ou a oneração do direito do morador usuário. Trata-se de uma norma que limita a actuação negocial voluntária do titular do direito de uso e habitação, não de uma norma que limite os efeitos jurídicos que decorram de outra fonte que não a vontade daquele titular, designadamente fonte legal. A proibição da possibilidade de transmissão ou oneração do direito de uso e habitação a favor de terceiros justifica-se por este direito ser constituído intuitu personae, ter como destino essencialmente a satisfação das necessidades do usuário ou morador, em atenção à sua específica condição social e, por inerência, as das pessoas da sua família que consigo vivam (cf. Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, 3.ª edição actualizada, pág. 405). Trata-se de um direito real limitado, em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos ao titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos.

Por outro lado, a norma do artigo 1485.º, ao remeter as causas de extinção do direito de uso e habitação para as do regime do usufruto, ou seja, as do artigo 1476.º do Código Civil, não obsta a que haja na lei geral outras fontes de extinção desses direito.

O artigo 1476.º do Código Civil não contém de facto um elenco taxativo ou fechado de causas de extinção; o direito de usufruto, como o direito de uso e habitação não se extinguem apenas nos casos ali previstos. Estes são apenas as causas normais de extinção do direito, não impedindo a existência e aplicação de outras normas legais que em função de determinados objectivos e verificadas determinadas condições estabeleçam a caducidade desse ou de outro qualquer direito real de gozo, como é precisamente o caso do artigo 824.º do Código Civil nas situações de venda coerciva do bem que é objecto desse direito.”

Por fim, na invocada incompatibilidade com o regime da CRP, também agora alegada em sede de revista, expôs-se:

“Sustenta a recorrente que esta solução (a caducidade do direito de habitação) traduz uma violação do direito constitucional à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa.

Em anotação ao nº 1 do artigo 65º da Lei Fundamental, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, págs. 344 e 345, escreverem que o direito à habitação «apresenta, tal como vários outros direitos sociais, uma dupla natureza», a qual consiste, «por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de «direito negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos «direitos, liberdades e garantias»»; e por outro lado, «o direito à habitação consiste no direito de obtê-la, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas à realização de tal objectivo», apresentando-se, neste sentido, «como verdadeiro e próprio «direito social», que «implica determinadas obrigações positivas do Estado (...), ou seja, "um direito positivo que justifica e legitima a pretensão dos cidadãos a determinadas prestações», por cujo «incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das obrigações constitucionais aqui indicadas constitui uma omissão inconstitucional».

Depois de citar estes autores, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, in www.tribunalconstitucional.pt, entende o seguinte:

«É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4.

Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à protecção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários directos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adopção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP). Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento.

Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 649/99, salientando, por um lado, que «o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o “mínimo de garantia” desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias”) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado».

(cf. Constituição…, cit., pág. 836), incumba ao Estado «garantir os meios que facilitem o acesso à habitação própria (fornecimento de terrenos urbanizados, cré­dito acessível à generalidade das pessoas, direito de preferência na aqui­sição da casa arrendada, etc.) e que fomentem a oferta de casas para arrendar, acompanhada de meios de controlo e limitação das rendas (subsídios públicos às famílias mais carenciadas, criação de um parque imobiliário público com rendas limitadas, etc.).».

Assim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares.

Nessa medida, a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo, a efectivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000).

Por outro lado, e tendo em conta a aludida vertente defensiva, está vedado ao legislador ordinário adoptar soluções que impliquem a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a ter uma habitação condigna (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 4/96 e 402/2001). Mas o Tribunal Constitucional tem igualmente reconhecido que, nesta matéria, o legislador goza de um amplo espaço de conformação (cf., a este respeito, entre outros, o Acórdão n.º 806/93), conformação essa que a propósito da tutela da habitação própria permanente do executado, tem a vindo a ser exercida em diversas ocasiões

Sendo assim a questão não [é]pois a de saber se a solução em causa viola o direito à habitação, mas sim a de saber se as normas que permitem essa solução afectam este direito de modo desproporcionado, desadequado ou em violação de outro princípio como o da igualdade.

A resposta deve ser, a nosso ver, negativa.

Na verdade, o direito do credor à satisfação do seu crédito e a possibilidade de, em caso de incumprimento, exigir a realização executiva do seu direito de crédito, à custa do património do devedor, em execução singular ou universal, é um direito de conteúdo patrimonial que é igualmente tutelado pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, que encerra a garantia (institucional e individual) da propriedade privada.

O conceito constitucional de propriedade é mais amplo que o conceito civilístico tradicional, abrangendo, para além da proprietas rerum, também a propriedade científica, literária ou artística e outros direitos de valor patrimonial, como sejam os direitos de crédito (cf., neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, págs. 1246-1247).

Neste mesmo sentido pronunciou-se o Tribunal Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 68/97, 491/2002 e 273/2004 e, especificamente no que respeita ao direito do credor à satisfação do seu crédito, nos Acórdãos n.ºs 349/91, 494/94, 51/99, 318/99 e 374/2003, todos disponíveis no sitio na internet do Tribunal Constitucional.

De acordo com essa jurisprudência, o direito do credor à satisfação do seu crédito decorre da garantia constitucional do direito de propriedade e aquele direito congloba, naturalmente, a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor. Por esse motivo, o artigo 601.º do Código Civil, ao estabelecer que «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora», constitui assim uma expressão, a nível da legislação ordinária, da tutela constitucional do direito do credor.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 612/2019, já antes citado, «estando este direito à satisfação dos créditos à custa do património do devedor abrangido pela garantia constitucional do direito de propriedade privada, decorre também dessa mesma garantia a tutela do interesse do devedor em que o seu património não seja onerado para além da medida correspondente à sua responsabilidade.»

A partir do momento em que o direito de uso e habitação é constituído e levado ao registo já depois de constar do registo uma hipoteca constituída pelo então titular da propriedade plena, isso significa que nenhuma oneração posterior à hipoteca é susceptível de quebrar a garantia de satisfação do direito do credor hipotecário representada pela totalidade do bem, isto é, pelo direito de propriedade plena não privada do direito à habitação.

Por outro lado, num processo de insolvência existe a necessidade de liquidar todo o património do devedor que possa responder pela satisfação da totalidade dos seus débitos reclamados, designadamente os créditos hipotecários. Não faria sentido deixar de fora da liquidação da massa insolvente, em prejuízo do universo dos credores e do próprio devedor, um direito de conteúdo claramente económico que irá necessariamente extinguir-se no futuro (quanto mais não seja pela morte certa do morador usuário), porque isso levaria a que fosse o adquirente (da nua propriedade) do bem a obter o aumento patrimonial do ingresso da faculdade correspondente ao direito de habitação apesar de não ter pago pela sua aquisição o valor económico deste direito, o que representaria um benefício injusto e um prejuízo para os credores.

Por fim, como se assinalou o direito do morador usuário não se extingue pura e simplesmente, o que sucede é que ele vai ser transferido para o produto da venda, naturalmente sem prejuízo dos direitos de outros credores que devam prevalecer (o credor hipotecário). Por esse motivo, atentas as concretas circunstâncias da sua constituição (note-se que ele foi constituído como contrapartida da entrega do imóvel onde antes residia o usuário mas sem que se concretize o direito com base no qual ele ali habitava) e registo (sabendo o morador usuário que o seu direito não prejudicava a hipoteca já registada e estaria sempre condicionado por esta) não vislumbramos nesta situação nem uma violação do princípio da igualdade, nem uma violação do princípio da adequação ou proporcionalidade e, consequentemente, também não uma violação do direito à habitação na medida em que o mesmo é passível e ser invocado no domínio das relação entre particulares.”


Razões estas que, sem mais, pelo seu acerto e completude, merecem ser sufragadas e às quais se adere nos termos do art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC.

3.2. Coloca-se, por fim, a questão de saber se este resultado é conflituante com o segmento uniformizador tirado no AUJ do STJ n.º 2/2021, de 5/7/2021[1], a saber: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil.”

A resposta é negativa, tendo em conta a fundamentação então usada, que distinguiu sem equívocos a caducidade do contrato de arrendamento, de onde provém o direito do arrendatário como direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, abrangido pelas previsões em harmonia dos arts. 1057º do CCiv. e 109º, 3, do CCiv, da caducidade de um direito real limitado (ou menor) de gozo, como é o direito de uso e habitação[2].

Recordemos esses fundamentos, que aqui servem para afastar qualquer oposição com o decidido e uniformizado nesse AUJ, uma vez que não é defensável que o art. 824º, 2, se possa aplicar a todos os direitos de gozo, quer de natureza real, quer de natureza pessoal e, se assim fosse, objecto de interpretação extensiva ou por analogia ao caso:

           

“A fim de se poder enveredar pela subsunção da caducidade do contrato de arrendamento em sede de venda ocorrida na liquidação insolvencial que aqui nos ocupa, nos termos esgrimidos pelo Acórdão fundamento, tornar-se-ia mister, fazer a equiparação da relação locatícia existente, na perspectiva do locatário, a um direito real, porquanto aquela norma se refere tão só à extinção de direitos reais e, não também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais, que incidam sobre a coisa transmitida.

Começamos por dizer que o contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III – Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.

Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824º, nº 2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento.

A tese sustentada no Acórdão fundamento, arrima-se na doutrina realista, baseada na ideia chave de o arrendamento ser um «direito inerente» por força do disposto no artigo 1057º do CCivil, que faz transferir para o adquirente do direito os direitos e obrigações do locador, aliando a essa ideia o carácter tendencialmente vinculístico do arrendamento, que constitui um gravame para o respectivo titular; se a Lei pretende que os bens sejam transmitidos livres de quaisquer direitos que os onerem, preservando assim o seu valor em processo executivo, seria incompreensível que deixasse incólume o arrendamento, incluindo-se o mesmo no disposto no artigo 824º, nº 2 do CCivil, o qual abrangerá assim, também os «direitos inerentes», doutrina essa que foi tomando forma ao longo dos anos 2000 neste Supremo Tribunal de Justiça, afastando-se da doutrina tradicional que até então prevalecia, cfr A. Luís Gonçalves, in RDES, Ano XXXX – XII da 2ª série – nº 1, pág. 98; Ana Carolina Sequeira, A Extinção de Direitos por Venda Executiva, in Garantias das Obrigações, 23 e 43; Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, 140/141; Oliveira Ascensão, Locação de bens dados em garantia. Natureza jurídica da locação, in ROA, nº 45, 352 e segs.; inter alia os Ac STJ de 5 de Fevereiro de 2009, proc. nº 08B3994; de 27 de Maio de 2010, proc. nº 5425/03.7TBSXL.S1; de 16 de Setembro de 2014, proc. nº 351/09.9TVLSB.L1.S1; de 22 de Outubro de 2015, proc. nº 896/07.5TBSTS.P1.S; de 9 de Janeiro de 2018, proc. nº 732/11.8TBPDL-A.L1.S; de 15 de Fevereiro de 2018, proc. nº 851/10.8TBLSA-D.S1 (todos em www.dgsi.pt).

Prima facie, há que acentuar que não obstante algumas características particulares do arrendamento, maxime, as que conferem ao locatário o poder de usar dos meios facultados ao possuidor, se for perturbado no exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 1037º, nº 2 do CCivil, contra o locador ou contra aquele que dele adquira o direito por força do artigo 1057º, o arrendamento é um direito pessoal de gozo (assim qualificado expressamente pelo artigo 1682º, n.os 1 e 2 do CCivil[3]), definido pelo artigo 1022º do CCivil, nos termos apontados supra, como o contrato pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem o gozo de uma coisa mediante uma retribuição, sendo nesta que reside a natureza creditícia da relação: é um direito creditório referente a uma coisa, não é um direito sobre a coisa; por outro lado a inerência, afloramento da sequela, não lhe confere a característica do absolutismo do direito, apanágio de um direito real, uma vez que o mesmo não corresponde a uma obrigação passiva universal, mas antes a um direito relativo ao senhorio, pois apenas a este o arrendatário poderá exigir que lhe seja assegurado o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, bem como que proceda às reparações necessárias, nos termos dos artigos 1031º, alínea b) e 1036º do mesmo diploma, cfr Pereira Coelho, in Arrendamento, 1988, 16/22.

Como se faz notar no Acórdão recorrido, fazendo apelo a Galvão Telles, in Arrendamento, 84 e Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 6ª edição, página 78 «[a] concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação – de natureza obrigacional – e não qualquer direito sobre a coisa».

Ademais, dispondo o artigo 109º, nº3 do CIRE que «A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», daí resulta a garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, ex vi do disposto no artigo 1057º do CCivil onde se prevê que «O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.», de onde a lei mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que nessa transmissão se mantenham intactos todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.

Ora, aquela previsão específica, faz afastar, a se, de um lado, a aplicação do normativo inserto no artigo 824º, nº2 do CCivil, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por outro, por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051º do mesmo diploma, não consta a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.

Nem se diga ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial, que aqui tratamos, entre outros os Ac STJ de 7 de Dezembro de 1995, proc. n.º 087516 e de 19 de Janeiro de 2004, proc. n.º 03A4098, in www.dgsi.pt; de 20 de Setembro de 2005, CJ STJ, Ano XIII, Tomo III, 29 e de 27 de Março de 2007, CJ STJ, Ano XV, Tomo I, 146.

Só não seria assim, se o legislador podendo prever a hipótese da venda em execução e, concomitantemente, em liquidação insolvencial, o tivesse deixado consignado, sendo certo que o poderia ter feito, atentas as alterações legislativas entretanto ocorridas, mas não o fez (maxime aquando da inclusão no artigo 819º do CCivil do arrendamento posterior à penhora, entre os actos inoponíveis à execução), caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca. Nestas circunstâncias específicas, vale a norma ínsita no artigo 109º, nº 3 do CIRE, como excepcional, sobrepondo-se, por isso, a qualquer outra aplicação normativa que a não comporta no seu âmbito, vg a situação apreciada no artigo 824º, nº 2 do CCivil, esbarrando com esta leitura interpretativa qualquer outro entendimento que a contrarie, cfr a propósito Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 2010, 400; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 482, onde se consigna «[V]isto no seu conjunto, pode dizer-se que o regime definido no artigo 109º, é dominado pela ideia da tutela do locatário, estranho à insolvência do locador.»; Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano e outros temas de Direito e Processo Civil, 2004, 54; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição,226; Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 8ª edição, 155; Pestana de Vasconcelos, in Insolvência e locação. Os efeitos da insolvência sobre o contrato de locação, RDP, nº70 Abril/Junho 2020; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2ª edição, 52.

A simples constatação da injuntividade do segmento normativo inserto no artigo 109º, nº 3 do CIRE, cuja operância não poderá ser, de modo algum, ignorada, deixa sem sentido, as antigas querelas existenciais sobre a natureza do direito do locatário e a dicotomia direito obrigacional/direito real, ou mera inerência do mesmo, face à incompatibilidade da lei geral civil no que tange à caducidade dos direitos reais em venda executiva, com a lei especial constante do CIRE e a aplicação expressa desta, com a expressão de manterem incólumes os direitos do locatário, aquando da venda em processo de insolvência, aliás na esteira do que se havia já consagrado no artigo 170º, nº 2 do CPEREF.

De outra banda, há que convir, que as alterações legislativas operadas em sede de arrendamento, vieram acentuar o carácter transitório do instituto, bem como, face ao aumento das rendas, tornaram-no um instrumento jurídico altamente rentável para os proprietários, não se podendo continuar a defender que o arrendamento implique uma desvalorização do bem, onerando-o economicamente, nem tão pouco que frustre e/ou diminua a posição do credor reclamante.

Decorrendo do artigo 59º, nº1 do NRAU (Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro) que este regime é aplicável «[a]os contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.», tal significa, que mesmo os contratos de arrendamento mais antigos, poderão inclusivamente ser objecto de negociação/actualização de rendas, desde que se não verifiquem quaisquer excepcões provenientes das disposições transitórias, o que faz igualmente afastar aquele eventual carácter depreciativo, em termos económicos, atribuído ao arrendamento, v.g. nos casos de longa duração.

Há que ter igualmente em atenção que a circunstância de o imóvel, em venda, poder estar hipotecado, não inibe o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, como deflui inequivocamente do disposto no artigo 695º do CCivil, uma vez que hoje em dia a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via de oposição à renovação, denúncia e/ou resolução, não procedendo as posições que reclamam a ideia de que o contrato de arrendamento «[n]a medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia», in M. Isabel H. Menéres Campos, Da Hipoteca – Caracterização, Constituição e Efeitos, 242.

(…)

Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o disposto no artigo 109º, nº 3 do CIRE, dúvidas não subsistem de que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824º, nº2 do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica.

(…)

A fundamentação e conclusão sustentada, sob um manto de interpretação normativa, nunca poderia derrogar uma norma excepcional do CIRE, a constante daquele nº 3 do artigo 109º, levando por arrasto o que se predispõe no artigo 1057º do CCivil, em frontal colisão com os deveres que sobre nós impendem, enquanto julgadores, de estrita obediência à Lei, decorrentes do artigo 8º do CCivil e 203º da CRPortuguesa.

Os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, «[N]ão sendo direito real, à locação, mesmo na modalidade de arrendamento, não se aplica o disposto no art. 824º, nº 2, CC, pelo que o bem vendido em execução é transmitido  sem afectar o direito do locatário.», in Pedro Romano Martinez, in Venda Executiva. Alguns aspectos das alterações legislativas na nova versão do Código de Processo Civil, 334, mormente numa situação paradigmática em que existe disposição legal especial, a insolvencial, de onde decorre literalmente, como deixámos sublinhado supra, que «A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», o que sempre faria afastar qualquer interpretação extensiva ou analógica.”


Por tudo, improcedem as Conclusões dos Recorrentes.


III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista.

Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficiam.



STJ/Lisboa, 21 de Junho de 2022



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo



SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Processo n.º 1268/16.6T8FAR.E1.S2-A, Rel. ANA PAULA BOULAROT, publicado in DR, 1.ª Série, de 5/8/2021, pág. 6 e ss, com Declaração de Rectificação n.º 342021, in DR, 1.ª Série, de 25/10/2021, pág. 8 e ss.
[2] Sobre esta última caracterização, v. por todos CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 155-156, RUI PINTO DUARTE, Curso de direitos reais, 4.ª ed., Principia, Parede, 2020, págs. 22 e ss, 298 e ss (“Os direitos em causa são como que usufruto diminuídos”).
[3] Será de entender esta referência ao art. 1682º-A do CCiv.