Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1855/19.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
BANCO DE PORTUGAL
DANOS PATRIMONIAIS
DANO EMERGENTE
CRÉDITO BANCÁRIO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. A comunicação à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal do incumprimento de uma dívida anteriormente declarada inexistente constitui facto ilícito susceptível de fazer incorrer as responsáveis em responsabilidade civil pela reparação dos prejuízos decorrentes de tal acto;

II. Derivando o prejuízo material da impossibilidade de celebração de um contrato de aquisição das instalações da sua sede – em que se manteve como inquilina – por recusa de concessão de crédito decorrente dessa comunicação indevida, não exorbita dos limites da equidade consentidos ao julgador na determinação dos danos patrimoniais sofridos a ponderação referencial do valor das rendas que ela continuou a pagar no período em que se manteve o registo de tal incumprimento acrescido do período habitualmente necessário à formalização desse projectado negócio.

III. Nessa circunstância, e não assentando o juízo de equidade que serviu de fundamento à determinação do valor da indemnização em estritos critérios normativos, deve ser mantido pelo Supremo Tribunal de Justiça o juízo de equidade e o resultado a que ele conduziu no acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1. Acvinhos – Comércio de Vinhos do Cartaxo, S A intentou uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Hefesto – Sociedade de Titularização de Créditos, S A, Whitestar Asset Solutions, Caixa Económica Montepio Geral, S A e Arrow Global Limited, pedindo a condenação das rés no pagamento solidário à autora da quantia de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros), a título de danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento, e nos demais encargos legais.

Alegou, para tanto, e em síntese:

Que em abril de 2014, a Caixa Económica Montepio Geral, S A comunicou indevidamente à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal um incumprimento da Autora no montante de € 14.131,00 (catorze mil cento e trinta e um euros), por desconto de uma letra que já fora dada à execução, em 2000, pelo Banco Finibanco, S A (por ela incorporado), tendo a então executada, ora autora, deduzido embargos que vieram a ser julgados procedentes, em resultado do que a execução foi julgada extinta por sentença proferida em 7 de fevereiro de 2003.

A inclusão da autora na lista de devedores em incumprimento do Banco de Portugal manteve-se indevidamente, pelo menos, até 27 de fevereiro de 2015.

Que em 21 de novembro de 2017, pretendeu celebrar um contrato de Aluguer de Longa Duração duma viatura necessária para a sua actividade comercial de compra e venda de vinhos e que em 25 de novembro de 2017 a autora apresentou à ... uma proposta de concessão de crédito para aquisição de instalações físicas situadas no ....

Porém, a ... e a ... recusaram tais operações de crédito por existir uma nova comunicação à Central de Responsabilidades do Banco de Portugal dum suposto incumprimento por parte da autora, o que a impossibilitou realizar os projetados investimentos, o que originou que os produtos por si comercializados tivessem continuado a ser transportados num veículo com muitos anos de serviço, com prejuízo para a imagem comercial da Autora.


2. Tendo sido citadas as rés contestaram a acção, tendo a Caixa Económica Montepio Geral, S A (CEMG, S A) contestado em articulado autónomo e as restantes rés em articulado conjunto.

Alegaram  a primeira, segunda e quarta rés que apenas tomaram conhecimento da inexistência da "dívida" da Autora em 26 de Fevereiro de 2018 tendo desde logo diligenciado pela eliminação do histórico de comunicações do saldo ao Banco de Portugal e parado com as diligências de cobrança, pelo que, tendo agido sem culpa e na convicção de licitude quando adquiriram e geriram o crédito, não violaram qualquer direito da Autora, nem gerado quaisquer danos na sua esfera pedem a sua absolvição do pedido.

Alegou a terceira ré, além do mais, que não teve qualquer responsabilidade pela comunicação da situação de crédito vencido desde janeiro de 2015 e que, se a autora sofreu transtornos, foram todos posteriores a essa data, não sendo compagináveis com a sua conduta os danos invocados que, de resto, não consubstanciam factualidade merecedora de tutela jurídica. Pediu esta ré a sua absolvição do pedido.


3. Realizada a audiência final foi proferida sentença em primeira instância que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Caixa Económica Montepio Geral, S A no pagamento à autora da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, calculados às taxas aplicáveis aos créditos na titularidade de empresas comerciais, absolvendo todas as rés do mais que foi peticionado.


4. Inconformada a Caixa Económica Montepio Geral, S A interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa impugnando a decisão sobre a matéria de facto e a existência de pressupostos da sua responsabilidade civil no pagamento da indemnização arbitrada a favor da autora.

Também a autora se mostrou irresignada com a absolvição do pedido das primeira, segunda e quarta rés, interpondo recurso de apelação com vista à sua condenação solidária com a CEMG, S A.


5. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 3 de fevereiro de 2022 foi decidido alterar a sentença recorrida e condenar todas as rés a pagar à autora, solidariamente, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, calculados às taxas aplicáveis aos créditos na titularidade de empresas comerciais, mantendo a absolvição de todas as rés do mais peticionado pela autora.


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Parte II – A Revista

6. A autora interpôs recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

“1.º - O acórdão proferido atribui a verba de 15.000 euros de indemnização a favor da autora;

2.º - Os factos alterados a mote da Recorrente Montepio não minimizam a gravidade dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos e nem se infere que essas alterações devessem sequer acontecer;

3.º - A descida muito considerável da quantia arbitrada pela 1.ª Instância não se justifica, de 40.000 euros para 15.000 euros, antes se justifica é o seu significativo aumento nos termos inicialmente alegados e importados à acção;

4.º - Atendendo aos danos e à situação e às normas reportadas na petição inicial, na Sentença da 1.ª Instância e no anterior Recurso, que aqui implicitamente se dá por reproduzido, deve o Acórdão ser alterado nessa conformidade, atribuindo-se verba consentânea com os danos patrimoniais e morais sofridos e ilicitamente causados pelas rés;

5.º - Porque foram violadas as normas precisamente indicadas no que tange à responsabilidade civil e fatores de atribuição e quantificação da indemnização, assim como as normas inerentes ao setor bancário e financeiro, ou seja, os artigos 483º, 487º-2, 490º, 496º-1, 497º, 562º, 559º, 566º-1 e 3 do Código Civil e os artigos 73º a 75º do RGICSF tudo através do entendimento agora recorrido que das mesmas foi realizado;

6.º - Invocando-se, de resto, o vertido nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de setembro de 2013 e deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 10 de julho de 1997”.


7. Não indiciam os autos que tenha sido apresentada pelas rés qualquer resposta às alegações de revista.


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8. Admitido o recurso de revista e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista apresentadas pela recorrente, a única questão a resolver reporta-se à adequação do critério de que as instâncias se socorreram para concretizar o montante da indemnização arbitrado à autora pelos danos por ela sofridos e causados pela conduta das rés.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

Recapitulemos, antes de mais, o elenco dos factos que as instâncias deram como provados, tendo já em conta as alterações operadas em segunda instância.


a) Factos provados

“1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de vinhos, estando implementada no mercado há largos anos;

2. Em 2000, o Banco F..., S A, intentou uma ação executiva contra a aqui Autora, que tinha por base uma letra pelo valor de Escudos 2 833 000$00;

3. Essa letra fora supostamente aceite pela Autora e, sendo o dito banco o portador da mesma, visou então agir judicialmente contra a Autora;

4. Por esta, foram deduzidos os respetivos embargos de executado no âmbito do Processo n.º ...00, do então ... Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca ...;

5. Tais embargos foram julgados procedentes e provados e, por isso, declarada extinta a execução e o direito pretendido e visado pelo banco exequente, o que aconteceu por sentença judicial proferida no dia 7 de fevereiro de 2003, aqui dada como integrada;

6. A 3.ª ré, tendo adquirido ao extinto F..., S A, por escritura pública celebrada em 4 de Abril de 2011, todos os créditos que o cedente detinha, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes, comunicou indevidamente à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal um incumprimento de € 14 131,00, por desconto de efeitos. [1]

7. (...) Incumprimento esse que, alegadamente, se reportava e refletia o desconto da mencionada letra que fora objeto da execução e da oposição judicialmente deduzida, em 2000, naquele mesmo processo assinalado;

8. E tal situação junto do Banco de Portugal manteve-se ao longo do tempo, pelo menos, até dia 27 de fevereiro de 2015;

9. A comunicação surgiu após a operação bancária entre o dito banco e a 3.a ré, vindo
a autora a tomar conhecimento dessa circunstância quando, por via da necessidade do seu giro
comercial e de se capitalizar aumentando o seu investimento e objeto negocial, se deparou com
essa informação e com a impossibilidade de obter tal desiderato;

10. Em consequência direta da ação da 3.a ré, ficou a autora impossibilitada de
prosseguir com a sua política de investimento, através da aquisição das instalações a si arrendadas;

11. Quando a autora soube da situação, contactou a 3.a ré por escrito, vindo esta, em 9 de outubro de 2014, informar que se tratava da situação constante da "Declaração" documentada a fls. 38, aqui dada como integrada;

12. Em consequência do acima exposto, a autora demandou judicialmente a 3.a ré, junto da Instância Local Cível da Comarca ..., Juiz ..., no âmbito do Processo n.º 33780/15....;

13. Tramitada a causa, a 25 de janeiro de 2017 foi proferida sentença que condenou a aqui 3.a ré no pagamento da quantia de € 9 000,00;

14. A 3.a ré pagou tal quantia por força da decisão judicial transitada em julgado;

15. Em 25 de novembro de 2017, a autora deu entrada junto da C... de uma proposta de financiamento de € 350 000,00, com vista à aquisição das instalações que já visara antes comprar, no seguimento de conversações e reuniões para o efeito;

16. Em 21 de novembro de 2017, pretendeu a autora celebrar um contrato de ALD (aluguer de longa duração) para uma viatura, necessária para a atividade inerente ao seu objeto comercial da compra e venda de vinhos;

17. Tanto a C..., como a ..., recusaram tais operações - de crédito e realização de ALD -, por existir nova comunicação de "dívida", repetida (desde 30 de setembro de 2017), junto da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal;

18. Em 18 de dezembro de 2017, a autora remeteu a comunicação e indagação à 1.ª ré;

19. Perante a ausência de resposta, em 29 de janeiro de 2018 voltou a fazê-lo, a indagar sobre a situação e a pedir explicações;

20. No dia 31 de janeiro de 2018, a autora recebeu uma comunicação eletrónica subsequente a telefonema informal provinda da 2.ª ré, a revelar ter existido uma cessão de créditos entre a 3.ª ré e a 4.ª ré e que "(...) essas mesmas dividas foram titularizadas pela Hefesto STC e são geridas pela Whitestar Asset Solutions, SA ";

21. E mais foi aí referido que "Uma das dívidas que nos foi cedida corresponde a um Desconto de Letra (Operação n° ...01) em que a sua E..., SA, foi sacado e aceite";

22. Tal como se escreveu: "O montante em dívida, actualmente, é cerca de 14.799,80 € correspondente a capital mais juros. Tal como lhe indiquei, o nosso objectivo será sempre um acordo extra-judicial para a liquidação do montante em questão";

23. A autora enviou nova carta registada com aviso de receção, datada de 14 de fevereiro de 2018, contendo a sua indignação, que nenhuma dívida deveria ter sido comunicada nos sobreditos termos, por inexistir;

24. Com a data de 2 de março de 2018, veio a 2.ª ré referir ter acontecido um "engano involuntário" por parte da 1.ª ré, a qual reportou "erradamente" o "crédito" à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, pedindo desculpa pelo sucedido e a informar que foi solicitada, de imediato e junto da mesma, a eliminação do aludido registo, bem como do respetivo histórico;

25. Em 28 de março de 2018, veio a Autora a remeter nova carta registada com aviso de receção às 1.ª e 2.ª rés, tendo por finalidade responder à missiva anteriormente rececionada;

26. Em 31 de janeiro de 2018 ainda existia o "incumprimento" declarado junto do Banco de Portugal;

27. Em virtude do acima exposto, a autora continua a pagar uma renda mensal na ordem dos € 850,00 pelas instalações (da sua sede) de que é inquilina;

28. (Facto eliminado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa);

29. Em 29 de setembro de 2016, a 4.ª ré adquiriu à 3.ª ré uma carteira de créditos, portefólio de créditos conhecido entre as partes com a denominação "...";

30. O contrato atrás referido visou a compra e venda de 19 577 créditos e incluía o crédito em apreço, com a referência ...01, que internamente nos sistemas das rés veio a assumir a referência "993922 crédito", identificado pela 3.ª ré como "Desconto de Letras';

31. Nos termos do contrato, a 3.ª ré garantiu à 4.ª ré que nenhum dos créditos era 'litigioso", bem como que cada crédito era autêntico e constituía uma obrigação jurídica válida e vinculativa dos responsáveis pelo pagamento dos créditos, designadamente a aceitante, ora autora, tendo a 4.ª ré adquirido o crédito nessa convicção;

32. Nos termos da sua Cláusula 2 (a) do contrato supra referido, foram cedidos os créditos e todos os direitos acessórios aos mesmos;

33. A 4.ª ré contratou os serviços da 2.ª ré para proceder à gestão e cobrança dos créditos que integravam o portefólio de créditos em questão;

34. Segundo o acordado na Cláusula 5.6 do contrato, a 3.ª ré obrigou-se a enviar à 4.ª ré um ficheiro de dados com as informações constantes do Anexo VI ao referido contrato;

35. No dia 2 de dezembro de 2016, a 3.ª ré enviou, por comunicação eletrónica à 2.ª ré (cujos serviços de gestão de créditos a 4.ª ré havia contratado), o ficheiro acordado;

36. Desses ficheiros constava a ora Autora como aceitante do crédito sub judice;

37. A 2.ª ré e a 4.ª ré utilizaram a informação enviada pela 3.ª ré para inserir os créditos e dados referentes aos mesmos no sistema informático de gestão operacional de créditos, sendo tal informação utilizada para efetuar a gestão diária dos mesmos;

38. Nos termos do disposto na Cláusula 5.1 do contrato em apreço, a 3.ª ré obrigou-se a entregar à 4.ª ré todos os documentos relativos aos créditos;

39. Analisados os documentos referentes ao crédito ...01,
enviados às 2.ª e 44.ª rés, dos mesmos não constava qualquer documento que pudesse levar as
referidas rés a concluir pela inexistência do crédito ou a suscitar-lhes dúvidas quanto à sua
existência ou validade, não tendo sido entregues documentos alusivos aos processos judiciais acima
identificados (execução, embargos e ação declarativa comum), nem ao pagamento da indemnização
pela 3.ª ré decorrente da sentença proferida na dita ação de condenação (Processo n.º
33780/15....);

40. No dia 10 de julho de 2017, a 1.ª ré adquiriu um portefólio de 107 949 créditos;

41. Por entre as vendedoras deste portefólio de créditos, encontrava-se a 4.ª ré, que lhe transmitiu, entre outros, o crédito com a referência ...01, (referência interna ...22);

42. A 1.ª ré contratou os serviços de gestão de créditos da 2.ª ré para gerir o portefólio de créditos adquirido ao abrigo do contrato atrás referido, tendo esta última continuado a gerir o crédito em apreço;

43. A 4.ª ré transmitiu o crédito na convicção de que o mesmo era "não litigioso" e constituía uma obrigação jurídica válida e vinculativa dos responsáveis pelo pagamento dos créditos, nesse dia 10 de julho de 2017, à 1.ª ré, que o adquiriu na mesma convicção, nos termos do estabelecido na Cláusula 6 e Anexo IA ponto 7, do referido contrato;

44. A 1.ª ré é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste na titularização de créditos (conforme certidão permanente com código de acesso ...87);

45. As 1.ª, 2.ª e 4.ª rés apenas tomaram conhecimento da inexistência do pretenso crédito sobre a autora em 26 de fevereiro de 2018, por não deterem nenhum elemento confirmativo da inexistência até então;

46. E logo diligenciaram pela eliminação do histórico de comunicações do saldo ao Banco de Portugal, parando com as diligências de cobrança;

47. (...) Tendo emitido, em 2 de março de 2018, a comunicação escrita dirigida à autora e que se encontra documentada a fls. 15v (aqui dada como integrada).


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b) Factos não provados

“I. O proprietário das instalações arrendadas à autora ficou com sérias dúvidas
acerca da idoneidade comercial e idealização negocial desta empresa;

II. A entidade que reportou a dita situação de "crédito vencido" à Central de
Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal limitou-se apenas à 1.ª ré, não tendo a
3.
a ré qualquer contribuição a esse nível, referente à autora, desde janeiro de 2015.”


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Parte II – O Direito

1. Conforme ficou dito, a única questão decidenda no presente recurso de revista prende-se com a determinação do montante da indemnização decorrente da responsabilidade civil por factos ilícitos ou extracontratual arbitrada à autora, mais precisamente com a adequação do critério utilizado no acórdão recorrido para definição do montante da indemnização arbitrado à autora.

Definitivamente fixado no acórdão recorrido que todas as rés são solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos danos sofridos pela autora em consequência da comunicação indevida de um crédito da primeira ré sobre a autora alegadamente em situação de incumprimento à Central de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal, importará apurar quais os danos de natureza patrimonial e não patrimonial abrangidos na responsabilidade das rés.

Sobre essa matéria divergiram as instâncias, tendo, essencialmente com base na mesma factualidade, sido arbitrada à autora em primeira instância uma indemnização global no valor de 40.000,00 euros, sendo 35.000,00 euros destinados à reparação dos prejuízos de natureza patrimonial e 5.000,00 euros à reparação dos danos de natureza não patrimonial, a qual foi reduzida na segunda instância para o valor global de 15.000,00 euros, em virtude da diminuição do valor da indemnização relativa aos danos de natureza patrimonial para 10.000,00 euros, já que se manteve o valor da indemnização devida pelos danos não patrimonial.

Em rigor, portanto, do que se trata é de aferir se o montante fixado a título de danos patrimoniais foi correctamente fixado.

2. Dispõe o artigo 483.º n.º 1 do Código Civil que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Pressupostos da obrigação de indemnizar são, pois, os seguintes:

- a ocorrência de um facto que seja controlável pela vontade do agente;

- a ilicitude desse facto;

- a sua imputação ao agente a título de culpa ou de negligência;

- a ocorrência de um dano na esfera jurídica do lesado;

- a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

3. Quanto ao modo de realizar a reparação do lesado é sabido que a lei privilegia o critério da reconstituição natural.

Porém, quando a restituição do lesado à situação anterior à lesão não for possível ou se revelar demasiado onerosa para o devedor, a indemnização deverá ser fixada em dinheiro, tendo sempre como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.

E no caso de não poder ser averiguado o valor exacto dos danos sofridos, nem por isso deixará de ser atribuída uma indemnização, decidindo o tribunal com recurso à equidade dentro dos limites que tiverem sido provados.

Assim descrito em termo gerais muito esquemáticos o regime legal vejamos o que sucede no caso presente.

4. Nesta revista não se discute já a existência dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos atrás enunciados, sendo, de resto, inquestionável que a comunicação à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal do incumprimento de uma dívida anteriormente declarada inexistente constitui facto ilícito susceptível de fazer incorrer as responsáveis em responsabilidade civil pela reparação dos prejuízos decorrentes de tal acto.

Assim como não se discute a quem cabe a responsabilidade pela reparação.

O que está em causa é apenas a quantificação do prejuízo material sofrido pela autora que as rés devem reparar.

Para o efeito as instâncias, não tendo resultado concretamente provada a dimensão pecuniária do prejuízo sofrido pela autora, socorreram-se de um critério equitativo para determinar o valor da indemnização arbitrada à autora pelos danos de natureza patrimonial.

5. Como tem sido pacificamente decidido neste Supremo Tribunal de Justiça – por todos o acórdão de 22 de fevereiro de 2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Lopes do Rego que se passa a citar [2]“o “juízo de equidade” das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma “questão de direito”, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias, deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade.

Deste modo, mais do que discutir e reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação pela Relação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, plasmada nas particularidades singulares da matéria de facto fixada, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em situação em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afectam, de forma sensível e irremediável, o padrão e a qualidade de vida de lesados”.

6. Na sentença proferida em primeira instância o valor da indemnização arbitrada a título de danos de natureza patrimonial foi encontrado nestes termos:

“Ora, em relação ao dano correspondente à perda da possibilidade de aquisição do imóvel onde a Autora está sedeada, continuando na condição de empresa inquilina, não sendo linear a avaliação em dinheiro dessa perda de oportunidade, também convirá salientar que, se a Autora conseguisse obter o financiamento bancário pretendido em tempo útil, não se garante que levasse a bom porto tal aquisição onerosa e que seria a proprietária plena do imóvel (locado); provável, sim, mas certeza absoluta não existe.

Certo é que, em virtude do acima exposto, a Autora continua a pagar uma renda mensal na ordem dos € 850,00 pelas instalações (da sua sede) de que é inquilina.

(…)

(…) parecendo-nos relevar, sobretudo e em primeiro lugar, a circunstância de a Autora, em princípio, não ter podido adquirir o imóvel e haver ficado circunscrita à condição de mera arrendatária do mesmo, fruto da atuação negligente e omissiva da 3.ª ré.

(…)

Atente-se, porém, que a nova - e reiterada - situação anómala junto do Banco de Portugal se repercutiu ao longo de, pelo menos, cerca de seis meses (desde 30 de setembro de 2017 até março de 2018), meses durante os quais a Autora teve de continuar a pagar a renda pela ocupação do imóvel - à semelhança, aliás, do que ainda sucede hoje em dia.”

E foi com essa fundamentação que foi encontrado o valor de 35.000,00 euros dos danos patrimoniais sofridos pela autora.

7. A autora manteve no recurso de apelação – e reiterou no recurso de revista – a pretensão formulada na petição inicial de condenação das rés no pagamento de uma indemnização global no valor de 150.000,00 euros.

Sobre essa pretensão indemnizatória e no que concerne aos danos de natureza patrimonial o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se nos seguintes termos:

“O único prejuízo patrimonial que a Autora logrou demonstrar ter sofrido, por virtude da recusa do financiamento bancário, no montante de € 350.000,00, por ela solicitado à C... para a aquisição das instalações que já antes pretendera comprar, no seguimento de conversações e reuniões para o efeito, recusa essa que se ficou unicamente a dever ao facto de existir uma nova comunicação de "dívida", repetida (desde 30 de setembro de 2017), junto da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, é o que decorre da circunstância de ela continuar a pagar uma renda mensal na ordem dos € 850,00 pelas instalações (da sua sede) de que é inquilina, renda essa que ela não teria de pagar se lhe tivesse sido concedido o aludido financiamento e se ela tivesse, portanto, podido tornar-se proprietária dessas instalações.

(…)

Dado que não se demonstrou que o proprietário das instalações arrendadas à Autora tivesse ficado com sérias dúvidas acerca da idoneidade comercial e idealização negocial desta empresa (…), a circunstância de a Autora não ter podido adquirir essas instalações, por falta de financiamento bancário, durante o período em que perdurou o reporte do seu pretenso incumprimento junto da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal, não inviabilizou definitivamente a consumação desse negócio, posto que se não provou que o imóvel tenha, entretanto, sido vendido a um terceiro ou que a senhoria da Autora já não pretenda vender-lho ou só o queira fazer por um preço muito superior, incomportável para a Autora.

Assim sendo, o prejuízo patrimonial sofrido pela Autora reconduz-se ao montante das rendas que ela teve de pagar pelo arrendamento das referidas instalações durante os cerca de seis meses (desde 30 de setembro de 2017 até março de 2018) em que em que perdurou o reporte do seu pretenso incumprimento junto da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal.

Como o montante dessa renda é de cerca de € 850,00, não se evidencia que o aludido prejuízo patrimonial seja superior a € 5.100,00 (cinco mil e cem euros): € 850,00 x 6 meses = € 5.100,00.

Ainda assim, ponderando que a negociação dum novo financiamento bancário destinado ã aquisição das instalações arrendadas à Autora pode demandar algum tempo após a eliminação do histórico de comunicações do incumprimento ao Banco de Portugal, o que origina que a Autora tenha de continuar a ser arrendatária das mesmas instalações durante mais alguns meses, enquanto esse novo financiamento não for aprovado, a indemnização do dano decorrente da subsistência do arrendamento pode e deve ser superior aos referidos € 5.100,00, correspondentes a 6 (seis) meses de renda, elevando-se a € 10.000,00 (dez mil euros), no pressuposto de que o arrendamento, devido ã demora na obtenção dum novo financiamento bancário, terá de subsistir durante, pelo menos, mais 6 meses.”

8.  Já atrás se salientou que, não sendo possível averiguar o valor exacto dos danos sofridos deve o montante da indemnização a atribuir ao lesado ser encontrado com recurso a critérios de equidade dentro dos limites dos factos apurados (artigo 566.º n.º 3 do Código Civil).

9. Ora face aos factos apurados o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, relevou na quantificação dos prejuízos patrimoniais sofridos pela autora em resultado da comunicação indevida à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal de uma dívida inexistente, a impossibilidade temporária de aquisição do imóvel em que a autora tinha a sua sede como inquilina, inviabilizada pela recusa de concessão de crédito por uma instituição bancária fundada no registo de situação de incumprimento.

Os parâmetros de avaliação do prejuízo patrimonial da autora daí decorrente são objectivos, não se afastam dos padrões de determinação do seu montante a adoptar em situações semelhantes e o resultado encontrado situa-se dentro dos limites concedidos ao julgador, sendo os seus pressupostos passíveis de ser adoptados como critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados.

10. Não se alcança, pois, qualquer fundamento para que o Supremo Tribunal de Justiça censure a fundamentação dos parâmetros de equidade utilizados pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido, mantendo-se integralmente o seu teor quanto á concretização do valor da indemnização arbitrada à autora a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

11. Termos em que se delibera julgar a revista improcedente e confirmar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de fevereiro de 2022, ora recorrido.

Por ter ficado vencida a autora suportará integralmente as custas do recurso de revista.


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DECISÃO

Termos em que julgam improcedente a revista e confirmam o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo da autora, ora recorrente.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 17 de janeiro de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor

António Pedro de Lima Gonçalves

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[1] A redação deste facto é a que foi dada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
[2] Apesar de o acórdão citado se reportar à determinação de danos de natureza não patrimonial a argumentação colhe da mesma forma quanto à fixação dos danos patrimoniais a que se deva proceder com recurso à equidade.