Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1747
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
REQUISITOS
TÍTULO CONSTITUTIVO
CONSTRUÇÃO CLANDESTINA
LICENCIAMENTO DE OBRAS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NORMA IMPERATIVA
Nº do Documento: SJ200307030017477
Data do Acordão: 07/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 654/02
Data: 06/18/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
Razão da Revista
1. No Tribunal Judicial de Paredes de Coura, nos autos de inventário nº. 57/94, procedeu-se à conferência de interessados que acordaram na constituição de um imóvel relacionado, em regime de propriedade horizontal, compreendendo dez fracções, com acesso próprio.
Ouvidos os interessados quanto à forma da partilha, foi ordenada a notificação da cabeça-de-casal para, no prazo de oito dias, juntar a documentação comprovativa de que se encontravam satisfeitas as condições previstas nos artigos 78º-8, do Código de Notariado e 214º, do Código da Contribuição Predial.
2. É relevante, embora em traços largos, fazer um curto reporte histórico da situação, como método de melhor poder ajudar à compreensão e solvência do caso.
A cabeça-de-casal agravou daquele despacho de notificação, tendo o mesmo sido confirmado pela Relação, na parte que interessa.
Inconformada, a cabeça-de-casal recorreu para o S.T.J., no qual foi entendido não conhecer do recurso e ordenou a baixa do processo à 1ª instância para aí prosseguir os seus termos.
3. Na 1ª instância, foi ordenada a elaboração do mapa de partilha, com o esclarecimento de que, quando o processo se encontrasse em fase de homologação, teria de aguardar a junção aos autos de certidão camarária relativa à constituição da propriedade horizontal.
Elaborado o mapa, foi o mesmo posto em reclamação.
4. Posteriormente, foi ordenada a notificação dos interessados para juntarem aos autos a certidão camarária em causa nos autos, sem prejuízo no artº. 51º, nº. 2, al. b), do Código das Custas Judiciais.
5. Os interessados vieram, então, requerer que fosse reconhecido o deferimento tácito autorizante do pedido da certidão remetido pela requerente em 13.10.99 ou, se assim não fosse entendido, se solicitasse à Câmara Municipal para informar se as fracções identificadas no mesmo pedido de certidão constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída para uma parte comum do prédio ou para a via pública.
6. Solicitada pela 1ª Instância àquela entidade informação sobre o estado do processo da certidão requerida e que a mesma informasse se o silêncio seria entendido como deferimento, a Comissão Instaladora do Município de Odivelas, em satisfação do solicitado, remeteu um parecer técnico sugerindo a recusa do pedido de constituição de propriedade horizontal.
7. Convidada a pronunciar-se, a cabeça-de-casal veio requerer que, face à resposta daquela entidade, se considerasse satisfeita a condição exigida para a homologação da partilha.
8. Na 1ª instância, porém, foi entendido que não foi dado cumprimento ao despacho que determinava a junção do documento a que se refere o artº. 74º, alínea b), do Código do Notariado e ordenado que os autos aguardassem o seu cumprimento, sem prejuízo do disposto no artº. 51º, nº. 2, alínea b), do CCJ..
Interposto recurso desta decisão, veio a Relação, revogando o despacho anteriormente proferido, concluir que o Tribunal dispõe já de elementos para apreciação em definitivo a questão da propriedade horizontal, não se justificando sobrestar na decisão de homologar ou não, o mapa da partilha.
9. Em face da decisão do Tribunal da Relação, a 1ª instância procedeu a nova conferência, tendo os interessados mantido o propósito em dividir o prédio, que constitui a verba nº. 7ª da relação de bens, em propriedade horizontal.
10. Por despacho de fls. 275. 276, de 07.2.95, o Tribunal "a quo", fundamentando-se no Ac. da Relação do Porto, na sequência do recurso interposto nos autos a fls. 51, e de acordo com o documento junto aos autos a fls. 226, e em conformidade com o despacho proferido a fls. 233 e 234 dos autos, já transitado em julgado, não homologou o mapa de partilha.
11. Inconformados com a decisão, dela recorreu a cabeça de casal, A.
A Relação de Guimarães confirmou a sentença.
12. Daí a revista.
II
Conclusões da revista
Vamos expor, por mera precaução processual, as conclusões da revista, apesar da prolixidade e extensão com que se apresentam, espelhando bem a dificuldade de demonstração da tese do recurso e as próprias fragilidades com que se debate.
É um ponto de partida metodológico.
Caso julgado formal
1. Se é certo que só a sentença final é título constitutivo da propriedade horizontal, ela não só culmina o processo, que condensa e é vinculada pelos despachos judiciais que, nesse processo, a antecedem - artº. 672º do C PC.
De facto, aquele não é um despacho de mero expediente ou de poder discricionário - artºs. 156º, nº 4 e 679º do CPC.
No caso em apreço, o despacho de 07.02.1995, decidiu definitivamente, sem ressalva de qualquer condição suspensiva, a forma da descrição dos bens e a divisão de um deles em 10 fracções, para facilitar a adjudicação e composição por acordo, tudo matéria contida na competência do Juiz, ao qual cabe apreciar as reclamações sobre a relação de bens (artºs. 1340º a 1346º do CPC, na redacção, então em vigor, e 1348º a 1351º, na actual), bem como lhe cabe apreciar os pedidos de adjudicação de partes específicas dos bens divisíveis (artº. 1.364º do CPC, na redacção então em vigor, e 1.348º a 1.351º na actual).
Aliás, essas questões tinham enquadramento genérico na previsão do artº 1.352º, 4-b) na redacção então em vigor, e 1.353º, 4-b) da actual, como questões cuja resolução possa influir na partilha.
Obviamente, que o despacho de 07.02.1995, ao decidir sobre "Questões cuja resolução influenciava a partilha", não foi despacho de mero expediente;
E, por outro lado, porque, antes de deferir a divisão em propriedade horizontal, sem ressalva de qualquer condição suspensiva, o Juiz apreciou a subsunção do pedido ao disposto no artº. 1.417º do C.Civil, expressamente invocado pelas partes, também exerceu um poder vinculado pelo prescrito naquele dispositivo legal e pela configuração legal do instituto (da propriedade horizontal) em que aquele artigo se insere, não um poder discricionário.
2ª As razões pelas quais os despachos do Juiz na conferência de interessados do processo de inventário constituem caso julgado formal vinculante, influenciando a decisão final do processo, são da mesma natureza e preenchem o mesmo desiderato dos mais comuns casos julgados formais do processo comum, nomeadamente, os que se decidem sobre a necessidade de patrocínio forense, a oportunidade da entrega dos articulados, o julgamento das excepções no despacho saneador (competência, nulidade processual, ineptidão, capacidade, legitimidade, litispendência, etc.) e a admissão das provas indicadas.
Ora, os despachos que influenciam a decisão final e as sentenças, uma vez proferidos, não podem ser alterados, quer no seu teor, quer nos seus efeitos, pelo juiz da instância, salvo caso de nulidade, esclarecimento ou reforma, cuja iniciativa oficiosa carece de previsão legal - o que, no caso, se não verifica - artº. 666º - n.º 1 e n.º 3 do CPC.
Ou seja, uma vez proferido, sem ressalva de qualquer condição suspensiva, o despacho de 07.02.1995, que deferiu e ordenou a divisão do prédio da verba nº 7 em propriedade horizontal, e consequente adjudicação por distribuição das fracções autónomas, não mais podia, sob pena de violação do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 666º, nºs. 1 e 3, e 672º do C PC, decidir-se o contrário - como o fez a sentença recorrida -, ainda que com fundamento em alegada ilegalidade daquelas divisão e adjudicação.
3ª- Não tendo conhecido este vício de violação do caso julgado formal, que lhe fora submetido a apreciação, sob a CONCLUSÃO 8ª das alegações, o acórdão recorrido cometeu a nulidade prevista no artigo 668º, 1-d), 1ª parte, do CPC, que, se não for suprida antes da subida do recurso, deverá proceder e determinar a devolução á 2ª instância, para o conhecimento da questão desprezada - artº. 731º, nºs 1 e 2, do CPC.
Erro de julgamento, na parte decidida:
4ª - Na parte em que, de modo expresso, negou provimento ao recurso, a substância do acórdão circunscreve-se ao entendimento de que a existência e conformidade com o projecto de licenciamento é requisito necessário à constituição da propriedade horizontal.
A questão é apenas essa, desde logo porque a sentença da 1ª instância, na parte em que é apoiada pelo acórdão, estriba a derrogação do despacho de 07.02.1995 no teor do parecer do gabinete jurídico do Município de Odivelas de fls. 226, o qual, depois de, no 1º parágrafo, confirmar que se verifica "ser o edifício composto por dez fracções independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio, em conformidade com a previsão do artº 1.415º do Código Civil, informa, porém, no 2º parágrafo, que o edifício foi construído e é utilizado sem as competentes licenças municipais".
Por isso, opinando que "deverá recusar-se provimento a qualquer pretensão de constituição de propriedade horizontal, no entendimento de que, tendo em conta o disposto no ano 1.418º, nº 3, do C.Civil, "por maioria de razão", deverá considerar-se nulo o título constitutivo da propriedade horizontal, quando a construção, nem sequer dispuser de projecto aprovado (permitindo aferir a coincidência do destino de cada fracção com o previsto nesse projecto).
5ª - O próprio artº. 59º do Cód. de Notariado (tal como o 74º-B, na redacção anterior) para a celebração dos instrumentos notariais de constituição da propriedade horizontal (ele insere-se no TITULO II - DOS ACTOS NOTARIAS, CAPITULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS, SECÇÃO II - Requisitos dos instrumentos notariais), não exige a existência de licença da construção (agora, no regime do DL 555/99, de 16/12, também autorização de construção), bastando-se com a exibição do projecto de construção (em sentido estrito, projecto de arquitectura) aprovado pela Câmara Municipal - nº. 2 daquele artigo.
E se apenas o projecto aprovado (não a licença ou autorização de construção) é requisito para a constituição da propriedade horizontal, por maioria de razão não o são, a autorização ou licença de utilização, pois que estas não se concebem sem aqueles - artº. 62º , al. b), do DL 555/99, de 16/12.
6ª - Ainda que extemporaneamente e, por isso, desnecessariamente, a Câmara Municipal foi ouvida (fls. 226), e nenhum reparo fez, no que respeita à salubridade, estética e segurança - apenas advertiu da falta de projecto aprovado, ficando apenas por decidir se a propriedade horizontal pode ser constituída por "decisão judicial (sic. no artº. 1.417º do C.Civil), sem exibição de projecto aprovado pela Câmara Municipal, importa saber o que nos diz o direito.
7ª- Desde o assento publicado no DR de 15-07-1989 - cuja essência, pela via do DL 267/94, de 25/10, passou para o artº. 1.418º, nº. 3, 2ª parte, do CCivil - os Tribunais estão mais sensibilizados para a tutela da legalidade urbanística.
De facto, face ao disposto nos artºs. 294º do CCivil e 165º do RGEU tinha de julgar-se nulo o título constitutivo da propriedade horizontal que destinasse as fracções a fim diverso daquele para o qual haviam sido licenciadas.
Mas o referido artº. 294º já não se aplicava se, o título nada dispusesse relativamente ao fim das fracções - indicação que ainda hoje é facultativa (artº. 1.418º, nº. 1, al.a), do CCivil e 95º, 1, p) do CRPredial).
E, como evidente, a nulidade julgada no Assento de 1989 não é específica da propriedade horizontal - como seria se enquadrada no artº. 1.416º do C.Civil -, antes se enquadra no regime geral das nulidades do artº. 294º do C.Civil, ou seja, a norma que determina a nulidade da escritura de propriedade horizontal que destina uma fracção a um fim diferente do previsto no seu licenciamento municipal, é a mesma que determinaria a nulidade de uma escritura de compra e venda ou do contrato de arrendamento de um prédio em propriedade total nos quais se declarasse que a venda ou o arrendamento se faziam para afectação a um fim diferente do licenciado.
8ª - Conforme a anotação de Pires Lima e Antunes Varela, na nota 2 ao artº. 1416º do Cód. Civil, os requisitos legais específicos da propriedade horizontal - cuja falta determina a nulidade (especial) do titulo constitutivo, com automática conversão em compropriedade - são os constantes dos artºs. 1414º e 1415º do mesmo diploma: independência, separação e isolamento das fracções, pertença de proprietários diferentes e a disponibilidade de saída própria de cada fracção.
A entender-se que o acórdão recorrido considerou a aprovação do projecto de construção, como requisito necessário à constituição da propriedade horizontal, o mesmo viola o disposto no artigo 1.515º do C Civil, pois que isso não está nas exigências de tal dispositivo.
9º - Aliás, o argumento do acórdão acima referido, só favorece a tese de que a aprovação do projecto de construção não é requisito da constituição da propriedade horizontal. Conforme a doutrina e a jurisprudência aí referidas, é óbvio que o tribunal, sempre que entenda necessitar de uma informação técnica deve usar o poder previsto no artº. 535º do CPC, designadamente, para saber se o prédio reúne condições de segurança e, até - porque não - para saber se as fracções preenchem os requisitos do artº. 1.415º do CCivil. Não resulta que deva exigir a cópia do projecto aprovado ou as licenças/autorizações de construção e habitabilidade.
O certo é que, no caso dos autos, talvez porque as fracções já se encontravam discriminadas na matriz, o Juiz entendeu dispensar essa informação. Apenas, extemporaneamente, entendeu que estava sujeito ao regime do artº. 74G-B (então em vigor) do Cód. de Notariado, veio a exigir o cumprimento dessa norma (que identificou por artº. 78º-B)
10ª - Só que aquele normativo do artº. 74G-B, então em vigor, e do 59º, actual, do Cód. de Notariado apenas se aplicam aos actos notariais, tal como a generalidade das normas daquele Código, que regulam o procedimento notarial, mas não o judicial (este está no CPC).
Aliás, as razões pelas quais se sustente que os Tribunais só poderiam deferir a constituição de propriedade horizontal, quando o projecto de construção do prédio se encontrasse aprovado pela Câmara Municipal, são as mesmas que determinariam que os Tribunais houvessem de exigir prova do licenciamento das construções - e, até, licença de habitabilidade - de todos os prédios urbanos objecto de vendas judiciais, de partilhas judiciais e de divisões de coisa comum. - artº. 9º do CCivil.
É que a exigência (do artº. 1º do DL 281/99, de 26/7) das licenças de construção ou habitabilidade para a celebração das escrituras de venda de quaisquer imóveis dirige-se aos notários, tal qual como o artº. 59º do Cód. de Notariado.
E, tanto no artº. 1º do DL 281/99, de 26/7, como no artº. 59º do Cód. de Notariado, está em causa a defesa dos mesmos interesses de ordem pública.
As licenças de construção ou de utilização como requisito para a transmissão dos imóveis, até seriam, por maioria de razão, exigíveis nas vendas judiciais (em execução, divisão de coisa comum ou falência) do que num inventário, como no presente caso, É que, nos inventários, o imóveis mantém-se na titularidade dos herdeiros que já são conhecedores das vicissitudes do seu licenciamento. Diversamente, os compradores nas vendas judiciais são terceiros, que, por norma, desconhecem se o prédio se encontra licenciado. A estes é que poderia justificar-se que o Tribunal os tutelasse.
11ª O desígnio do legislador não pode ter sido o de condicionar o acto de constituição da propriedade horizontal à reapreciação, nessa fase, da legalidade dos actos de licenciamento do edifício (licenciamento da construção e licenciamento da utilização), designadamente sobre a salubridade, a estética e a segurança, quando essas condicionantes não contendam directamente com a verificação dos requisitos do artigo 1.415º do Cód. Civil.
É que, mesmo por escritura pública, a propriedade horizontal pode constituir-se antes do prédio ser construído (basta que tenha projecto), podendo, no final, quando concluída a construção não ter as condições de segurança e de salubridade exigíveis, assim como, mesmo depois de passada a licença de utilização, pode vir a perdê-las. Propriedade horizontal, por um lado, e estética, salubridade e segurança, por outro, são questões sujeitas a diferentes momentos de apreciação,
E a generalidade das ilegalidades de licenciamento e de alteração do uso (as que padecem de mera anulabilidade) degradam-se com o tempo, como caso resolvido, e nada justifica que possam, depois, ser retomadas, por ocasião do acto de constituição da propriedade horizontal, por razões que não tenham a ver com este acto - como foi entendido pelo STA no acórdão de 28.11.89, em Scíentía Ivrídíca, 1º sem./93, págs. 25 e ss, o DL 329/81, de 4/12, veio sanar as ilegalidades mais graves de alteração do uso das construções, se tiverem ocorrido anteriormente à sua entrada em vigor.
A própria lei do licenciamento ressalva das condições de salubridade e urbanísticas, actualmente exigíveis às construções existentes, cuja construção ou utilização se pretenda legalizar- artº. 60º, do DL 555/99 referido.
Finalmente, são muitos os casos de prédios que foram construídos sem licença de construção, porque, ao tempo, não era exigível (nalgumas localidades dos país a deliberação municipal que os sujeitou à obrigatoriedade de licenciamento é posterior a 1975) e que têm condições para a constituição no regime da propriedade horizontal, caso não o esteja, já, por usucapião.
12ª - Sendo certo que às Câmaras Municipais cabem poderes de fiscalização da salubridade, da estética, da segurança e da legalidade das construções, aquelas têm momentos e campos de actuação que só podem condicionar os actos dos Tribunais quando se verifique a existência de norma legal expressa, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes e, logo, do artº. 113º da Constituição.
13ª- Ainda que implicitamente, a lei admite como válidos os contratos de arrendamento de prédios que não tenham licença de construção e de utilização e para os quais esses títulos sejam exigíveis - artº. 9º, n.º 5, do RAU. E com este novo regime (RAU), deixou de vigorar o congelamento das rendas daqueles prédios que se encontrava prescrito no artº. 45º, da Lei 46/85, de 20/9.
O tribunal não pode substituir-se ao legislador e declarar inválidos todos actos em que se demonstrem infracções urbanísticas, doutro modo tinha de começar a despejar as famílias pobres que ocupam os cómodos arrendados com sobrelotação, face às regras do artº. 66º do RGEU.
Noutros países assim é, porque há condições económicas e lei expressa - como no nosso caso o exige o princípio da separação dos poderes do artº. 113º da Constituição.
14ª - A falta de licença de construção e de utilização ou de projecto aprovado, não determinam a invalidade dos actos jurídicos sobre os respectivos prédios: a regra é a da validade, sendo a nulidade (do DL 329/81, de 4/12) ou a exigência desse requisito (no artº. 59º do CNotariado), a excepção.
Aliás, aquele DL 329/81, de 4/12, nem sequer a todos os actos notariais se aplica, sendo dele excluídos os actos de partilha de herança.
Pelo que esses regimes excepcionais, exclusivamente dirigidos aos actos notariais - e nem sempre, são inaplicáveis aos actos judiciais, vendas judiciais divisões de coisa comum, nos inventários - artº. 11º do CCivil.
15ª - Deferindo a constituição de propriedade horizontal do prédio em causa, o Tribunal não dá qualquer colaboração na introdução das fracções autónomas no mercado - é que a divisão entre as duas herdeiras, reportada à sucessão no acervo hereditário dos pais, não é um acto de introdução no mercado. Se um dia os recorrentes quiserem transmitir qualquer das fracções para terceiros - ou, até, doá-las aos filhos - terão de, previamente, licenciar a utilização, como o exige o DL 329/81, de 4/12.
Nada justificando que, enquanto os recorrentes desenvolvem esforços de legalização do prédio dentro do moroso regime das REGEU, não possam, no entretanto, as recorrentes ser donas das fracções em condomínio, forma encontrada para possibilitar a partilha dos bens das heranças dos pais.
16ª- Com o procedimento adoptado, que o Tribunal sancionou - e bem -, mas veio a revogar, os recorrentes e o Tribunal não entram em conflito directo, não violam qualquer norma legal, designadamente a do artº. 1418º, nº3, 2ª, parte, ao contrário do que se diz no parecer do gabinete jurídico da CM de Odivelas.
17ª - Nem é violado o artº. 165º do REGEU (Regulamento Geral de Edificações Urbanas, aprovado pelo DL 38.382, de 07.08.51) que permite às Câmaras Municipais ordenar o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem a respectiva licença, ou em desconformidade com elas.
Aliás, não é por deferir a constituição da propriedade horizontal que, como se diz no acórdão recorrido, "O Tribunal emite um decisão contrária às normas que regem as construções urbanas" mesmos locais - isso fazia-o era se, por exemplo, a pedido do senhorio, com fundamento na ilegalidade das construções, deixasse de ordenar o despejo dos inquilinos. Mas o que sabemos é que, nesses casos, os tribunais comuns se recusam a despejar, considerando que é questão do foro exclusivo das Câmaras Municipais, às quais cabe o ónus e a legitimidade para apreciar, para além da legalidade, a oportunidade e conveniência.
III
Direito aplicável
1. A questão substantiva que vem colocada pela revista consiste em saber se, para além dos requisitos que são estabelecidos no artigo 1415º do Código Civil, como constitutivos do objecto da propriedade horizontal (fracções autónomas, unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública), devem também ser observados os requisitos administrativos, relativos à verificação das condições de construção e de habitabilidade da fracção ou do prédio de que as fracções fazem parte integrante.
É esta questão que importa resolver, já que o problema do invocado caso julgado, (conclusões 1ª, 2ª e 3ª) eventualmente formado pelo despacho de 7 de Fevereiro de 1995, não tem qualquer sentido, com já foi explicado pela decisão recorrida (fls. 319).
Não há caso julgado nenhum - formal, muito menos material - pois nunca foi decidido definitivamente que o prédio questionado para partilha, ficaria constituído, com dez fracções, em regime de propriedade horizontal, com dispensa do preenchimento dos requisitos administrativos, que razões de ordem pública impõem e que o tribunal não pode dispensar.
Esta é que é (e foi sempre) a questão.
A não homologação da partilha (Ponto 10, Parte I) diz respeito à falta de requisitos relacionados com normas que regem as construções urbanas, como adiante vai explicar-se também.
Não pode iludir-se a parte nuclear do conflito, através de uma questão meramente acessória, sempre revertida ao problema fundamental - que vai estudar-se: a falta de legalização administrativa da construção para habitação do prédio, objecto da partilha.

2. Para isto há que acautelar previamente o seguinte:
Trata-se de prédio nunca licenciado rectius, clandestino, num bairro, todo ele, de génese ilegal.
É bom que se faça esta prévia reserva, evitando a validação de aproximações analógicas de que se socorre a recorrente (conclusões 4ª a 13ª) nas suas alegações, maxime em relação a prédios degradados e outros em situação paralela, relativamente à possibilidade de realização de certos actos notariais ou validação judicial (conclusões 10ª a 14ª).
Aliás, o remédio para um mal, não pode encontrar-se, através de um outro mal! Esta a regra!

3. O artigo 1416º -1, do Código Civil determina que a "falta de requisitos legalmente exigidos", importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade ...»
Sendo que o artigo seguinte estabelece (nº. 1) que «a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário».
E o nº. 2: «A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial pode ter lugar a requerimento de qualquer consorte, desde que se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415º».
Por sua vez, o artigo 1325º do Código de Processo Civil refere que «compete à conferência de interessados decidir sobre a instituição da propriedade horizontal, sendo a sentença que vier a julgar a partilha, o titulo executivo que servirá de base ao registo».
É este o quadro legal essencial convocado para apreciar a questão em revista.

4. Já ficou assinalado que o prédio tem na sua origem uma base ilegal.
Até que, pelo decurso do tempo, chegamos a uma situação carecida, quer de licença de construção - o que seria pouco útil, uma vez que o prédio está construído.
Mas falta-lhe a licença de uso ou habitabilidade.
E é aqui que bate o ponto do conflito, como se disse.
Escusado será dizer das razões sociais que levam a lei a esta exigência, segundo determina o artigo 26º do Decreto-Lei nº. 445/91, de 20 de Novembro, quanto ao alvará de utilização, concluída a obra.
Elas estão ligadas a preocupações de natureza constitucional relativas ao direito à habitação («habitação de dimensão adequada à família, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar» - artigo 65º-1).
Trata-se, inequivocamente, de disposições imperativas de interesse e ordem pública, retiradas à disponibilidade das partes, as que estabelecem o preenchimento dos requisitos condicionantes da passagem do alvará.
Foi também por este caminho, o Assento deste Tribunal, de 10 de Maio de 1989, proferido num contexto paralelo de interpretação e aplicação do artigo 294º do Código Civil, ao considerar, como nulos, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal imperativa, «sendo como tal, os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem a construção urbana».

5. Ao não homologar o mapa de partilha, a decisão de 1ª instância, confirmada pela Relação, socorre-se afinal de razões que se identificam com as expostas, substancialmente pelo facto de a constituição da propriedade horizontal pretendida pelos interessados, em conferência, não obedecer aos requisitos exigidos pela competente autoridade camarária. Por isso se mandou juntar as certidões a que referem os artigos 78º - 8, do Código de Notariado e 214º, do Código de Registo Predial (ver ponto 1; e pontos 3 a 7, Parte I).
Tudo circula em redor do mesmo!
Não pode aliás queixar-se a recorrente, fazendo comparações em relação a situações que não têm na sua génese qualquer processo clandestino de construção, ou de legalização a posteriori.
O que a Administração não pode conceder - ou ainda não pode conceder, porventura porque ainda não estão preenchidos os requisitos legais - não pode a Jurisdição autorizar.
E ainda que se diga, como insiste em dizer a recorrente, que estão certificados os requisitos fixados pelo direito civil (artigo 1515º) para a constituição da propriedade horizontal, naturalmente que esta constituição supõe a observação das condicionantes administrativas prévias.
Não pode ainda, esquecer-se, nesta postura de discurso, que o nº. 3, do artigo 410º, do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº. 379/86, de 11 de Novembro, exige a certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção, para a celebração do contrato promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir.
E no mesmo sentido e por razões paralelas, dispõe o artigo 1º do Dec.Lei nº. 281/99, de 26 de Julho que a parte recorrente invoca na conclusão 10ª; o artigo 59º do Código de Notariado; o artigo 112º da Lei nº. 15/2002, de 22 de Fevereiro (sobre urbanismo e edificação), etc...etc.

6. É com observância desta categoria de normas de manifesta imperatividade, que devem funcionar os diferentes poderes de um Estado de Direito, com vista à realização coerente do interesse comum, que tais normas asseguram.
Uma decisão judicial não as pode postergar, sob pena de, ela própria, violar direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, artigo 205º- 2, da Constituição - no caso, o direito à habitação condigna - cuja defesa também a própria Constituição formalmente assegura (aludido artigo 65º - 1, em especial).
Sendo que, nos casos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas infringindo a Constituição ou dar-lhes interpretação infractora dela ou dos seus princípios - (artigo 207º).
E assim aconteceria se fosse acolhida a tese da recorrente, relativamente às disposições do Código Civil que invoca nas suas conclusões, em especial a interpretação que procura retirar dos artigos 1415º e 1416º, do Código Civil.

7. Termos em que, sem necessidade de maiores explanações, se nega provimento à revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Julho de 2003
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros