Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
111/14.5YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: MELO LIMA
Descritores: JUIZ
RECURSO CONTENCIOSO
DELIBERAÇÃO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO
CONTENCIOSO DE MERA LEGALIDADE
DIREITOS DE DEFESA
ANULABILIDADE
SANÇÃO DISCIPLINAR
REVOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA JUSTIÇA
PROCESSO EQUITATIVO
REJEIÇÃO DO RECURSO
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
MATÉRIA DE FACTO
PROVA
MEIOS DE PROVA
PODERES CENSÓRIOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTENCIOSO
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - ESTATUTOS PROFISSIONAIS / MAGISTRADOS JUDICIAIS.
Doutrina:
- J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3.ª Ed. Almedina, 261 a 265.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 217.º, N.º1.
ESTATUTO DISCIPLINAR DOS TRABALHADORES QUE EXERCEM FUNÇÕES PÚBLICAS [LEI Nº 58/2008, DE 9/09: - ARTIGO 25.º.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 131.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16.05.1995, PROC. Nº 86727, IN BMJ 447,157:
-DE 19.02.2013, PROCESSO Nº 113/11.3YFLSB.
Sumário :

1. Os princípios da justiça, do processo devido e da proibição de indefesa impõem ao Tribunal o dever de procurar e aplicar a solução justa para o caso concreto, havendo de ser consideradas ilegítimas quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas sempre que, implicando um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa, não confiram ao arguido a oportunidade de apresentar as suas próprias razões na valoração da sua conduta.

2. Se, na formulação do pedido, o recorrente, claro na identificação do efeito prático/útil que pretende ver judicialmente reconhecido, omite a identificação do efeito jurídico (nomen iuris), deve o tribunal, enformado na axiologia decorrente dos anteditos princípios e no apelo prático à máxima «dá-me os factos, dou-te o direito», suprir tal lacuna, afirmando a iuris dictio que ao caso competir.

3. Tendo o Conselho Superior da Magistratura, em plenário, adquirido a convicção firme, sem a sombra de uma qualquer dúvida razoável, quanto à prática dos factos descritos na acusação disciplinar, decorrendo, da motivação emprestada à decisão de facto, o juízo crítico e legitimador sobre a prova em que suportou tal convicção, cabe ao STJ, em sede de recurso de contencioso, sindicar, de uma parte, a legalidade das provas e meios de prova considerados e, de outra, a existência/inexistência de ofensa às regras da lógica, da experiência e ciência comuns.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes Conselheiros que integram a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

1. AA, juiz ..., veio, nos termos do disposto no artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), interpor recurso contencioso da Deliberação, de 30 de setembro de 2014, do Plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM) que, no âmbito do Processo Disciplinar Nº 2014-058/PD, pela prática de uma infração disciplinar, consubstanciada na violação dos deveres de urbanidade e correção, com quebra do prestígio exigível para que possa manter-se no meio em que exerce funções, p. e p. pelo art. 3.º/1 e 2, h), e 10, do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (EDTEFP), aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9.09, ex vi do art. 131º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30.07, e pelos arts. 82º, 85º/1, c), 93º e 103º deste último diploma, cominou ao Recorrente a pena de transferência, com a consequente perda de sessenta dias de antiguidade.

Formulou o seguinte PEDIDO:

i. Seja revogada a decisão em recurso, com a absolvição da infração imputada;

ii. Entendendo-se provada a prática da infração, lhe seja determinada a suspensão da sanção cominada.

CONCLUIU a motivação nos seguintes termos:
1.1 Nego perentoriamente, como sempre neguei, e sempre negarei, ter praticado os factos que me são imputados na deliberação recorrida.
1.2 Como sempre afirmei no decurso dos presentes autos, na situação em causa não me dirigi à Sra. Escrivã BB dizendo que a mesma era burra ou incompetente.
1.3 A prova produzida nos autos para dar como demonstrada na decisão em recurso que eu pratiquei os factos e a infração que me são imputados cinge-se, apenas, às declarações da Sra. Escrivã BB, dado que ninguém mais assistiu aos factos, para além de mim próprio.
1.4 Ora, uma análise cuidada dos autos permite concluir que a Sra. Escrivã BB não manteve a mesma descrição dos factos, nas três ocasiões em que se pronunciou sobre os mesmos, apresentando em cada uma delas uma versão diferente da forma como os mesmos ocorreram.
1.5 Designadamente, na exposição que dirigiu ao COJ, datada de 27 de setembro de 2013, ou seja, 4 dias após a ocorrência dos factos, a Sra. Escrivã BB não faz qualquer menção a que eu, a dado momento da conversa entre ambos mantida, me tenha levantado da cadeira onde estava sentado e feito um gesto agressivo,
1.6 Só no depoimento que prestou no dia 13 de dezembro de 2013, isto é, decorridos quase 3 meses após a data dos factos, veio a Sra. Escrivã acrescentar que eu me teria levantado da cadeira e efetuado um gesto brusco.
1.7 Esta contradição e a adição de um facto novo compromete o valor e a consistência probatória da versão da Sra. Escrivã, retirando-lhe valor probatório.
1.8 Mas mais. Os depoimentos das testemunhas CC e Dra. DD não podem ser valorados para efeito de prova direta dos factos, na justa medida em que não presenciaram os mesmos, limitando-se aquelas a reproduzir o que lhes foi dito pela Sra. Escrivã BB.
1.9 Refira-se ainda que em nenhum momento do seu depoimento a Dra. DD refere que a Sra. Escrivã BB lhe tivesse comunicado que eu lhe teria chamado burra ou incompetente no dia em causa.
1.10 Ora, perante a existência de duas versões contraditórias sobre os factos e atendendo às contradições e versões distintas apresentadas pela Sra. Escrivã BB, nas diversas vezes em que descreveu a factualidade, permanece, pelo menos, uma dúvida séria e fundada sobre os factos.
1.11 Pelo que em obediência aos princípios fundamentais do in dubio pro reu e da presunção de inocência do arguido, terei de ser absolvido da infração que me é imputada.
1.12 Acresce que o depoimento da testemunha CC não é merecedor de qualquer credibilidade, dado que não só não presenciou os factos, como o mesmo encontra-se eivado de contradições, que lhe retiram qualquer consistência probatória.
1.13 Com efeito, esta testemunha declarou que a Sra. Escrivã BB lhe disse que eu a teria chamado de "jerica", quando nunca, repito, nunca, a Sra. Escrivã BB afirmou que eu lhe teria dirigido tal expressão.
1.14 Mas mais. O depoimento da testemunha CC padece de uma contradição intrínseca, que não pode deixar de ser valorada: por um lado, afirma que eu, ao passar por si, não lhe dirijo qualquer palavra quando passo por ela no Tribunal e, por outro lado, afirma que, aquando dos factos, falou comigo, a propósito do sucedido, no interior do meu gabinete.
1.15 Estas contradições e incongruências retiram, em absoluto, o valor probatório do depoimento desta testemunha.
1.16 Acresce que a decisão recorrida não atendeu aos depoimentos das testemunhas EE e FF, as quais trabalharam comigo durante vários anos e que negaram que, em alguma ocasião, eu tivesse dirigido a algum Sr. Funcionário expressões injuriosas, designadamente, as de burro e incompetente.
1.17 As declarações destas testemunhas tinham necessariamente de ser valoradas na decisão a proferir e não foram.
1.18 Aliás, não vislumbramos qualquer fundamento para que os depoimentos destas duas testemunhas não tenham sido tidos em consideração na decisão recorrida e os depoimentos das testemunhas GG, HH e JJ tenham sido valorados para dar como provada a versão apresentada pela Sra. Escrivã BB.
1.19 Deveria aqui mais uma vez aplicar-se o princípio do in dubio pro reo e perante duas versões contraditórias apresentadas pelas testemunhas, deveria prevalecer mais uma vez a versão que fosse mais favorável ao arguido, ou seja aquela de onde resulta que não teria chamado esses nomes ofensivos aos Srs. Funcionários.
1.20 Reafirmo que em todas as ocasiões que me desloquei à secção me limitei a censurar as falhas cometidas pelos Srs. Funcionários, exercendo o meu poder disciplinar e de supervisão, tendo efetivamente ralhado com os mesmos, mas nunca lhes chamei nomes ofensivos, designadamente os de incompetente e burro.
1.21 De forma alguma se pode confundir a disciplina e a censura com a falta de educação e a ofensa.
1.22 Porque, reitero, não pratiquei os factos que me são imputados, deverá a decisão recorrida ser revogada, por falta de prova, por não ter efetuado uma correta apreciação e valoração de toda a prova produzida, e porque violou os princípios legais, designadamente do in dubio pro réu e da presunção da inocência do arguido.
1.23 Deve assim a deliberação recorrida ser substituída por outra que me absolva da infração que me é imputada.
1.24 Caso assim não seja entendido, deverá ser determinada a suspensão da execução da sanção aplicada, na justa medida em que a suspensão da execução da mesma é suficiente e adequada aos factos.

2. Neste Supremo Tribunal de Justiça, levados os autos com 'Vista' ao Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, pronunciou-se o mesmo «no sentido de nada obstar à admissão do recurso, por ser legal, a decisão ser recorrível, e o requerente ter legitimidade e estar em tempo».

3. Citado, o Conselho Superior da Magistratura tomou em consideração, na RESPOSTA oferecida, os seguintes segmentos a que subordinou a sua argumentação:

i) Manifesta improcedência do recurso.
· O recurso contencioso previsto e regulado nos artigos 168º e ss do EMJ é de mera anulação, tendo o pedido de ser a anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência do ato recorrido.
· No presente recurso, o Recorrente pede a absolvição da infração (pedido principal) ou que seja determinada a suspensão da execução da sanção aplicada (pedido subsidiário). Ora,
· Valendo no contencioso administrativo o princípio da vinculação do juiz ao petitum e não competindo ao S.T.J. fazer administração ativa, substituindo-se à entidade recorrida,
· Aqueles pedidos, principal e subsidiário, estão inexoravelmente condenados ao insucesso.

II) Impugnação da matéria de facto.
· Em sede de sindicabilidade da matéria de facto, no âmbito do processo disciplinar, é de reconhecer que o princípio da tutela jurisdicional efetiva postula que a matéria de facto em que a administração se baseou possa ser apreciada por um tribunal, in casu, o STJ, funcionando, aqui, como um tribunal de 1ª instância. [Arts. 268º/4 da Constituição da República ([1]); 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ([2])]
· Não obstante, como tem sido entendimento reafirmado pela Secção do Contencioso, tal controlo judicial da matéria de facto não passa pela reapreciação da prova disponível e pela formação de uma nova e diferente convicção: «[e]m sede contenciosa, está vedada ao Supremo Tribunal reapreciar a prova produzida perante a entidade recorrida; cabe-lhe tão-somente ponderar, face aos elementos de prova de que se serviu, a razoabilidade do veredicto factual (Ac. de 07.02.2007, Proc. Nº 4115/05) e, assim, se a entidade recorrida examinou (ou reexaminou) a matéria de facto constante da acusação e da defesa do arguido, justificando adequadamente aquele veredicto, nada mais a fazer senão acatá-lo e fazê-lo acatar». (Ac. S.T.J. de 17.12.2009, Proc. Nº 365/09.9YFLSB)
· Na específica referência ao princípio in dubio pro reo: nos processos judiciais existe, em geral, a consciência de que o juiz não atinge a verdade absoluta: o juiz dá um facto como provado quando, na ausência de uma dúvida razoável sobre a realidade do facto em causa, chega à certeza subjetiva ou moral de que é verdadeira a sua afirmação.
· In casu, posto que se tenha visto confrontado com duas versões diferentes e até contraditórias, o Plenário contrapôs uma versão à outra e, conjugando-as com as demais provas obtidas, procurou encontrar a mais coerente e credível, tendo acabado por formar, através de um processo intelectual, fundamentado, a convicção - ou dizer, a «certeza subjetiva» - de que o Recorrente praticou os factos que lhe eram imputados na acusação.

(iii) Suspensão da execução da pena disciplinar.
· Não cabem nos poderes de sindicância da Secção de Contencioso do S.T.J. a apreciação da pena escolhida e da medida concreta da mesma ou, mesmo, a ponderação das atenuantes e/ou das agravantes, salvo em caso de manifesta desconformidade com referência aos princípios da necessidade, adequação ou proporcionalidade.
· Acresce, que o Recorrente não apresentou uma razão, de facto ou de direito, em benefício da pretensão formulada.

4. Notificados que foram, nos termos do art. 176.º do EMJ, recorrente e recorrido ofereceram alegações.
4.1 O Recorrente concluiu nos termos que se sintetizam:
· Inexiste norma que suporte a alegação feita pelo CSM - sendo, aliás, inconstitucional, por violação do artº 20º da CRP, uma tal interpretação -no sentido de que o STJ apenas poderá fazer uma análise formal da deliberação tomada pelo mesmo CSM, designadamente verificar se a mesma padece de algum vício legal e concluir ou não pela sua nulidade, anulabilidade ou inexistência.
· Contrapondo à alegada falta de fundamento, da parte da Sra. Escrivã, para inventar a história de que o Recorrente lhe teria chamado os nomes ofensivos, justifica que «a Sra. Escrivã veio fabulizar toda esta situação de forma a conseguir que o sindicato dos funcionários arcasse com o pagamento do tratamento às mazelas físicas de que padece».
· A alegação da ausência de fundamentos para a pretendida suspensão da sanção disciplinar peca por falta de leitura das alegações de recurso.
· Conclui, como na motivação do recurso, «solicitando a revogação da decisão de condenação pela prática de uma infração disciplinar», com a absolvição da mesma.

4.2 O Conselho Superior da Magistratura:

A) Sendo o recurso das deliberações do CSM para o STJ um contencioso de mera anulação, o pedido formulado deve ser a anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência do ato recorrido;

B) Mesmo admitindo que com esse pedido pode ser cumulado um outro, destinado ao restabelecimento da situação que deveria existir se o ato recorrido não tivesse sido praticado, sempre se tem de restringir a admissibilidade deste à condenação do CSM à prática do ato devido.

C) Como tal, é manifestamente improcedente o recurso que, como o presente, é interposto da deliberação que condenou um magistrado judicial numa pena disciplinar em que se pede (apenas) que o STJ absolva o arguido ou, assim não entendendo, suspenda a execução da pena;

D) Tal levaria a que o STJ se substituísse ao CSM, praticando ele próprio o ato administrativo, numa clara ofensa ao princípio da separação de poderes;

E) Este entendimento não importa qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, uma vez que está garantida a impugnação das deliberações do CSM tanto ao nível da matéria de facto como ao nível da matéria de direito;

F) E esse recurso apenas diverge do que é aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas no que tange à natureza do órgão jurisdicional competente para dele se conhecer;

G) Essa divergência não assenta em qualquer arbitrariedade, mas na qualidade do recorrente enquanto Juiz ...;

H) O controlo judicial da matéria de facto não passa pela reapreciação da prova, mas pela reponderação da razoabilidade da narrativa factual face aos elementos probatórios recolhidos;

I) A narrativa factual feita na deliberação recorrida assentou na leitura conjugada, à luz das regras do Id quod plerumque accidit, de toda a prova recolhida na fase instrutória, não tendo infringido qualquer regra de direito probatório material, designadamente a que se expressa no brocardo in dublo pro reo, corolário da presunção de inocência que vale também nesta sede;

J) O suspender ou não a execução de uma pena disciplinar aplicada a um magistrado judicial é um poder discricionário do CSM, que apenas pode ser sindicado contenciosamente com base em fundamentos (incompetência, vício de forma, violação da lei, violação de princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, boa fé, justiça, imparcialidade e defeitos de vontade) que não foram invocados pelo Recorrente, o que sempre servirá para que o recurso seja julgado improcedente.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde concluiu no sentido de que o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência ou, se houver que ser conhecido, deverá improceder.

6. Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos que foram os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. Factos dados por apurados na deliberação recorrida:

A) Da acusação.

1. O Dr. AA é Juiz titular do ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ....

2. Do seu certificado do registo individual constam as seguintes classificações de serviço: Bom, como Juiz ... no Tribunal da Comarca de ..., no período de 2001-02-02 a 2002-05-‑09; Bom com Distinção, como Juiz ... no 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de ..., no período de 2002-10-01 a 2006-10-01; Muito Bom, como Juiz ..., no 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de ..., no período de 2006-10-02 a 2011-12-31.

3. E o seguinte registo disciplinar: Advertência Registada, por deliberação do C.S.M. de 2005-‑11-15, no Proc. Administrativo n.º 2005-455/01; Advertência Registada, por deliberação do C.S.M. de 2008-09-23, no Proc. n.º  60/2008.

4. A Sr.ª Funcionária BB exerce as funções de Escrivã ... no ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ... desde maio de 2013.

5. No dia 20 de setembro de 2013 (uma sexta-feira), a Senhora Escrivã BB esteve ausente do tribunal para frequentar uma ação de formação em Santarém.

6. Na segunda-feira seguinte, dia 23-09-2013, tinha na sua secretária um bilhete escrito pelo M.mo Juiz AA no qual este lhe pedia que fosse ao seu gabinete.

7. Após ter perguntado aos funcionários da secção se algo de anormal tinha ocorrido na sexta-‑feira anterior, foi-lhe dito que um processo (PCS nº 321/12.0PATNV), com julgamento agendado para o dia 23-09-2013, não tinha sido levado ao M.mo Juiz para admissão da contestação e rol de testemunhas, não tendo estas nem os demais intervenientes sido notificados.

8. Não estando nenhum interveniente presente, o julgamento designado no aludido processo para o dia 23-09-2013 foi dado sem efeito, por não terem sido notificados os intervenientes nem as testemunhas, tendo sido designada, como nova data para a realização da audiência, o dia 10-10-2013.

9. Consta do despacho exarado pelo M.mo Juiz na ata da diligência agendada no referido processo para o dia 23-09-2013, além do mais o seguinte:
«Compulsados os autos, constata-se que a secção cometeu um erro bastante grande na medida em que abriu conclusão para nos pronunciarmos sobre a contestação junta pela arguida mas nunca trouxe o processo ao nosso gabinete, a fim de proferirmos despacho sobre essa contestação. Para além disso, também não foram quaisquer das partes notificadas das datas marcadas paro o Julgamento, designadamente as testemunhas. Consequentemente, haverá necessidade de marcar nova data para a realização da Audiência de Julgamento, dando sem efeito a marcação do dia de hoje para a mesma."

10. A nova data agendada para o julgamento -10-10-2013 - foi, entretanto, dada sem efeito, por despacho de 07-10-2013, em virtude de ter dado entrada, em 2-10-2013, requerimento de desistência da queixa.

11. No referido dia 23-09-2013, a Sr.ª Escrivã BB após ter tomado conhecimento da omitida tramitação atempada do referido processo, dirigiu-se ao gabinete do M.mo Juiz Dr. AA tendo-lhe dito que já tinha conhecimento do ocorrido e pedindo desculpa pelo facto do processo em causa não lhe ter sido levado para despacho.

12. Exaltado e em tom de voz elevado, o M.mo Juiz Dr. AA respondeu-lhe: "Eu não desculpo porque pensava que estava descansado quanto a situações desta natureza, mas verifico que não", acrescentando que para ele tinha sido uma desilusão.

13. No decurso da conversa entre ambos, o M.mo Juiz AA, dirigindo-se à Senhora Escrivã BB, exaltado e em tom de voz elevado, disse-lhe que era "mais incompetente que os incompetentes que por aqui passaram e mais burra que os burros."

14. A Senhora Escrivã BB ficou nervosa, sentiu-se humilhada e amedrontada pela exaltação e tom de voz elevado como o Mº Juiz AA se lhe dirigiu.

15. Desmaiou e caiu desamparada no gabinete do M.mo Juiz AA.

16. O M.mo Juiz AA, após o desmaio e queda da Sr.ª Escrivã no seu gabinete, correu às secções a pedir aos funcionários que ligassem para o INEM e a pedir para ajudarem a socorrer a Sr.ª Escrivã.

17. A Senhora Secretária do Tribunal, CC, ligou para o INEM tendo-lhe, sido respondido que deveria contactar os Bombeiros para condução da Sr.ª Escrivã ao Hospital, o que acabou por não suceder por esta ter, entretanto, recuperado e dito que não considerava necessário ir ao hospital.

18. A Sr.ª Escrivã BB, após recuperar os sentidos, ficou transtornada, com dificuldades respiratórias e, aos gritos, pediu para a retirarem do gabinete do M.mo Juiz.

19. A discussão do M.mo Juiz AA, em tom de voz elevado, com a Senhora Escrivã BB e os gritos desta após ter recuperado do desmaio, levaram a que a Exma. Juíza auxiliar, Dra. DD, interrompesse uma audiência de julgamento que estava a decorrer na sala de audiências situada ao lado do gabinete do Dr. AA, dirigindo-se a este, juntamente com o Sr. Advogado interveniente no referido julgamento, para se inteirar do que se estava a passar.

20. O M.mo Juiz AA agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as expressões dirigidas à Sr.ª Escrivã, mencionadas no antecedente ponto 13, violavam o dever funcional de correção e urbanidade.

21. É considerado pelos funcionários do Tribunal com quem trabalha uma pessoa de mau trato, sentindo-se alguns deles amedrontados pela forma como o Dr. AA se lhes dirige, nalguns casos na secção e na presença de público, o que gera um ambiente de medo e apreensão.

22. São também frequentes as queixas feitas verbalmente à Sr.ª Secretária, de Advogados e testemunhas intervenientes nos julgamentos a que o M.mo Juiz preside pela forma incorreta como são tratadas por ele.

B) Do alegado na defesa do arguido e, em geral, do conjunto da prova produzida:

23. Na opinião do Dr. AA, a Sr.ª Escrivã BB é a funcionária mais competente e uma das mais sabedoras com quem trabalhou.

 24. A Sr.ª Escrivã BB, quando iniciou funções no 1.º Juízo da comarca de ... (em maio de 2013), encontrou uma Secção com atrasos no cumprimento de despachos, na junção de papéis e subsequente tramitação, cumprimento de trânsitos e na movimentação dos processos, nalguns casos com atrasos de anos.

25. Trabalhando à noite e fins-de-semana, com o apoio dos funcionários que tem sabido dirigir, orientar e motivar, conseguiu reorganizar a secção e pôr o serviço em dia.

26. Após o desmaio ocorrido no gabinete do Dr. AA, a Srª Escrivã BB recobrou a consciência, em pânico e a gritar.

27. O Dr. AA ficou perturbado com o facto da Sr.ª Escrivã AA ter desmaiado no seu gabinete.

28. No qual permaneceu enquanto o Dr. AA foi chamar funcionários à Secção tendo, após ter sido auxiliada por estes, sido levada para a sala destinada aos senhores Advogados que na altura se encontrava livre.

29. A Sr.ª Escrivã BB chega habitualmente ao Tribunal antes das 9 horas e no período em que esteve a reorganizar o serviço e a recuperar os atrasos que existiam quando iniciou funções saía habitualmente depois das 20 horas, chegando nalguns dias a trabalhar até próximo da meia-noite.

30. Em geral, o Dr. AA, após chamar a atenção e censurar os funcionários por erros cometidos por estes, por vezes exaltado e levantando o tom de voz, passadas horas esquece o que aconteceu e volta a ter uma conversa normal com os mesmos.

31. No final do dia em que a Sr. Escrivã BB desmaiou no seu gabinete o Dr. AA falou com ela e pediu-lhe desculpa.

32. Desde finais de outubro de 2013 o Dr. AA não voltou a "ralhar" verbalmente a algum funcionário, quer na secção, quer no seu gabinete e passou a ir à secção apenas em situações de urgência.

33. O gabinete da Sra. Secretária situa-se no rés-do-chão do edifício onde se encontra instalado o tribunal, tendo uma porta que dá para o corredor de acesso ao público.

34. A Srª. Escrivã BB não apresentou queixa-crime contra o Dr. AA.

35. Após a Sr.ª Escrivã se ter acalmado e ter verificado que lhe estava a ser prestada assistência, a Drª DD reiniciou a audiência de julgamento referida.

36. Na altura em que o Sr. EE exerceu as funções de Secretário no Tribunal da comarca de ... e a Sr. CC exercia as funções de escrivã do ... Juízo do mesmo Tribunal, houve desentendimentos entre ambos, em virtude desta, não elaborar as contas nos processos do ... Juízo, remetendo-os à secção central para ali serem elaboradas.

37. Tais desentendimentos levaram a que passassem a falar um com o outro apenas quanto a questões de serviço.

38. O Sr. Secretário EE pediu a transferência para a comarca de ... por esta se situar mais próximo da sua residência e também por não existir bom relacionamento entre ele e a então Sr. Escrivã CC.

39. O Exmo. Sr. Juiz foi colocado, por força do Movimento Judicial Ordinário de 2014, no Tribunal Judicial da Comarca de ... (instância local de ...)

 

2. Em sede de motivação a respeito do iter da convicção firmada, consignou-se:

«A matéria de facto foi adquirida com base na apreciação crítica, conjugada e concatenada das declarações prestadas pelo Exmo. Sr. Juiz ... arguido, dos depoimentos das testemunhas BB, CC, DD, EE, JJ, FF, HH, LL, GG, II e MM, dos documentos de fls. 27 (ficha biográfica), 28 (certificado de registo individuai), 43 a 51 (cópia da deliberação do PD 60/2008) e 52 a 59 (cópia da deliberação do PD 13/95) e 60 a 63 (cópia da ata da audiência de julgamento do Processo n.º 321/12.0PATNV e do requerimento de desistência de queixa nele apresentado).

Concretizando...

No que tange aos factos provados dos pontos 1. a 3., atendeu-se à ficha biográfica, ao certificado do registo individual e às cópias das deliberações tomadas nos mencionados processos disciplinares, pelas quais o Exmo. Sr. Juiz ... foi sancionado. No que tange aos factos provados dos pontos 4. a 11., atendeu-se às declarações do Exmo. Sr. Juiz ... e ao depoimento da testemunha BB, que a esse propósito foram conformes. Atendeu-se ainda ao teor das cópias extraídas das peças processuais do processo n.º 321/12.0PATNV. No que tange aos factos provados dos pontos 12. a 19., cumpre começar por notar que os mesmos não foram presenciados por outrem que não os dois intervenientes neles - o Exmo. Sr. Juiz ... e a Sra. Escrivã ... BB, os quais apresentaram versões diferentes, em alguns pontos mesmo contraditórias, do sucedido. A versão apresentada pela segunda encontrou forte arrimo em vários outros elementos de prova, o que se afigurou bastante para, com base nela, formar uma convicção positiva acerca dos factos que constavam da acusação. Em primeiro lugar, nos depoimentos das testemunhas CC, Secretária de Justiça, e Dra. DD, Juíza ..., ambas em exercício de funções no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, as quais, nas apontadas circunstâncias, acorreram ao gabinete do Exmo. Sr. Juiz ..., depois de terem sido alertadas pelos gritos da Sra. Escrivã ... BB. Constatando o estado debilitado desta, logo a interrogaram sobre o sucedido, tendo recebido dela uma explicação semelhante à que ficou plasmada na participação dirigida ao Conselho dos Oficiais de Justiça que deu origem a estes autos e à que foi dada aos Exmo. Sr. Inspetor Judicial. Em segundo lugar, nos depoimentos das testemunhas HH, GG, II e MM, todas elas a exercerem funções como oficiais de justiça do Tribunal Judicial da Comarca de ..., as quais referiram ser frequente o arguido dirigir-se aos funcionários, na secretaria, com um tom de voz agressivo e modos exaltados, tratando-os, por vezes por incompetentes e burros. Estes elementos demonstram, a um tempo, que a Sra. Escrivã ... BB manteve sempre, desde o primeiro momento, a mesma versão dos factos e, a outro, que essa versão encaixa no padrão comportamental do Exmo. Sr. Juiz .... Acresce que o relato da Sra. Escrivã ... foi, como bem notou o Exmo. Sr. Inspetor Judicial, prestado de forma coerente e credível e sem qualquer sinal de animosidade para com o Exmo. Sr. Juiz ....

Tudo somado, sufragamos, na íntegra, a apreciação que, a este propósito, o Exmo. Sr. Inspetor Judicial fez no relatório final, dela respigando ainda a seguinte passagem, a propósito da versão apresentada pelo Exmo. Sr. Juiz ...: "Não é credível que a Sra. Escrivã tenha desmaiado, caído desamparada no gabinete do Dr. AA e após ter recuperado os sentidos tenha, transtornada, gritado para a tirarem dali, caso nenhum comportamento ou conduta do Dr. AA tivesse contribuído para ter ficado no estado em que foi vista pelos funcionários que chamados pelo Dr. AA se dirigiram ao gabinete deste para lhe prestarem ajuda."

No que tange ao facto provado do ponto 20., o mesmo, apesar de insusceptível de apreensão direta, por respeitar ao foro interno do agente, conjuga-se, em termos de normalidade, com os factos objetivos acerca dos quais se fundou uma convicção positiva nos termos sobreditos. No que tange aos factos provados dos pontos 20. a 22., foram considerados, ademais dos já aludidos depoimentos das testemunhas CC, HH, GG, II e MM, os que foram prestados por EE e FF, também eles oficiais de justiça que trabalharam com o Exmo. Sr. Juiz ..., que descreveram como sendo uma pessoa emotiva, que por vezes repreendia os funcionários com um "tom mais ríspido, “exaltava-se" e "alterava o tom de voz".

No que tange aos factos provados dos pontos 23. a 33., atendeu-se aos depoimentos da Sra. Escrivã ... BB e da testemunha LL, Escrivã-Adjunta no Tribunal Judicial da Comarca de ..., que presenciou a conversa que, após os factos descritos nos pontos anteriores, ocorreu entre aquela e o Exmo. Sr. Juiz .... Atendeu-se também ao depoimento da testemunha JJ, cônjuge do Exmo. Sr. Juiz ..., que relatou as referências que este lhe fez a propósito do desempenho funcional da Sra. Escrivã ... BB. No que tange ao facto provado do ponto 34., atendeu-se ao depoimento da Dra. DD, que o confirmou. No que tange aos factos dos pontos 35. a 38., atendeu-se ao depoimento do mencionado EE, que os referiu em termos que não foram contrariados por qualquer outro meio de prova. No que tange ao facto do ponto 39., atendeu-se ao conhecimento advindo do exercício de funções como membros do Conselho Superior da Magistratura».

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Delimitação objetiva do recurso.

São três as questões a conhecer, sendo que do conhecimento e solução emprestada à primeira, dependerá o conhecimento das  2ª e 3ª questões:


i. Face aos pedidos formulados - de revogação da decisão em recurso, com a consequente absolvição da infração imputada (pedido principal); ou, concluindo-se pela prova da prática da infração, que seja determinada a suspensão da sanção aplicada – deve o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência?
ii. A decisão de facto padece duma deficiente apreciação das provas produzidas e viola o princípio in dubio pro reo?
iii. A suspensão da execução da sanção disciplinar cominada é suficiente e adequada aos factos?

2. CONHECENDO

2.1 Rejeição do recurso por manifesta improcedência?

2.1.1 Pugna o Conselho Superior da Magistratura (CSM) pela verificação duma manifesta improcedência, sob a seguinte argumentação silogística: (i) sendo o recurso contencioso, previsto no EMJ, de mera anulação, o pedido tem de ser a anulação, ou a declaração de nulidade ou de inexistência do ato recorrido; (li) ora, in casu, o Exmo. Juiz Recorrente, nos pedidos principal e subsidiário formulados, visa alcançar efeitos jurídicos diferentes da simples anulação da deliberação recorrida; (iii) logo, uma vez que, no contencioso administrativo, vale o princípio da vinculação do juiz ao pedido, não pode o Supremo Tribunal de Justiça substituir-se ao Recorrente, decidindo o que não lhe foi pedido, pelo que há de ter-se por óbvia a improcedência do recurso.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, neste Supremo Tribunal de Justiça, acompanha a argumentação, concluindo no sentido de que «o recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência».

2.1.2 Contrapõe o Exmo. Juiz Recorrente apontando, num primeiro momento, a inexistência de «norma jurídica que sustente tal perspetiva». Sustenta, outrossim, que a valer tal fundamentação, seriam violados, de uma assentada, os princípios de matriz constitucional, quer do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efetiva, quer da Igualdade, ínsitos, respetivamente, nos artigos 20º e 13º da Lei Fundamental: ali, «na medida em que o juiz apenas poderia aspirar a que um tribunal fizesse uma análise meramente formal e não de mérito, da decisão tomada pela entidade que exerce o poder disciplinar, concluindo apenas sobre se tal decisão padece ou não de algum vício legal e se deve ou não ser declarada inválida»; aqui, porquanto «se fosse aceite tal perspetiva, o resultado seria que todos os profissionais e trabalhadores teriam direito a recorrer para um tribunal de uma decisão negativa que contra eles fosse tomada pela entidade que exerce o poder disciplinar, e obter uma decisão de mérito desse tribunal, com exceção...do Juiz ....»

2.1.3 Quid iuris?

Nos termos do art. 268º, nº 4, da Constituição da República:

 
«É garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas
 

Nos termos do art. 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) [subsidiariamente aplicável ex vi artº 178º do Estatuto dos Magistrados Judiciais]:
«i - O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de cosa julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórios, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão. 2-A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:
d) A anulação ou a declaração de nulidade au inexistência de atos administrativos».

É ideia comum que a invalidade do ato administrativo resulta da sua desconformidade com as leis aplicáveis à respetiva prática e efeitos. «Residindo a causa da invalidade do ato na sua desconformidade com as regras e os princípios aplicáveis à sua prática, as consequências da invalidade traduzem-se em o ato "doente" poder (ou não poder) ter uma vida jurídica estável ou plena, ou ser, mesmo, incapaz para qualquer vida ou efeito, um "nado-morto" - consoante se trata de anulabilidade ou nulidade.

A invalidade é, portanto, a sanção que o ordenamento jurídico comina, em regra, para o ato administrativo praticado (ou nascido) em desconformidade com os seus princípios e regras, ou seja, para o ato administrativo ilegal» ([3])

Desta arte,
«São nulos os atos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.» [Artº 133º/1 CPA]
 «São anuláveis os atas administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção» [Artº 135º CPA]
 

Não obstante esta distinção, é comummente reconhecido que a anulabilidade surge qual sanção geral residual da ilegalidade do ato administrativo: «a sanção geral da invalidade do ato ferido de ilegalidade - ou seja, o ato desconforme com o ordenamento jurídico, por ofensa ou dos princípios gerais de direito ou de normas jurídicas escritas, constitucionais, internacionais, comunitárias, legais ou regulamentares (....) -, é a da anulabilidade». Assim, na justa medida em que «Considera-se,..., mais ajustado, num sistema como o nosso, o princípio de que os atos ilegais são anuláveis, permitindo a eficácia (provisória, pelo menos) do ato e impondo ao interessado o ónus de pôr em movimento o sistema de garantias para fazer valer essa invalidade». ([4])

Como fazer valer, então, a invalidade?

Identifica-se, na sua essencialidade, com esta questão o punctum pruriens subjacente ao segmento sob apreciação.

Nos termos do art. 50º, nº1, do CPTA «A impugnação de um ato administrativo tem por objeto a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência desse ato».

Por via do que, em termos maioritários, vem decidindo esta Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que «os recursos contenciosos são, salvo disposição em contrário, de mera legalidade, tendo por objeto a declaração de invalidade (inexistência, nulidade ou mera anulação dos atos administrativos recorridos)» pelo que, «é - salvo disposição expressa - inadmissível ao particular pedir a revogação, modificação ou substituição do ato impugnado, lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, a condenação da Administração a praticar determinado ato ou, ainda, a substituição do tribunal à autoridade administrativa na prática do ato administrativo que se repute adequado». ([5])

Já no seu «Manual de Direito Administrativo», Marcello Caetano ensinava, de uma parte, que «O recurso é interposto de um ato definitivo e executório praticado por um órgão de quem a lei autoriza que se apele para o tribunal», e, de outra, que «o pedido é sempre a anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência de um ato ilegal: só excecionalmente (e estamos então perante uma anomalia do sistema contencioso), poderá ser a reforma do ato». ([6])

 Hoje, importará ter presente a nova axiologia de matriz constitucional, introduzida no âmbito da tutela jurisdicional efetiva no ponto em que se faz incidir esta sobre a impugnação de quaisquer atos administrativos lesivos, e, assim, na justa medida em que o sentido da alteração textual operada pela Revisão de 1997, no transcrito art. 268º/4, «prende-se com a atual orientação da doutrina e jurisprudência que confere centralidade não às ilegalidades que dizem respeito ao ato mas à pretensão autónoma incidente sobre o próprio ato»: é a lesão de direitos ou interesses dos particulares que explica e legitima a impugnabilidade. ([7])

Pari passu, deflui, ainda, da consagração da plenitude do princípio da garantia jurisdicional administrativa, um alargamento dos poderes tradicionalmente reconhecidos aos juízes do contencioso administrativo: «As ações para tutela (e não apenas para o reconhecimento) de direitos ou interesses apontam para uma proteção efetiva reconhecendo o juiz administrativo como "juiz de amparo", dotado de uma ampla gama de remédios jurisdicionais que podem ir (....) até à substituição da ação administrativa (desde que não se trate de "usurpar" os poderes discricionários da Administração)». ([8])

Os princípios da justiça, do processo devido e da proibição de indefesa [Arts. 20º/4, 32º, nºs 1 e 10,268º, nº4, 269º, nº3 da CRP] impõem ao Tribunal o dever de procurar e aplicar a solução justa paro o caso concreto, havendo de ser consideradas ilegítimas quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido, em que, enfim, se lhe não dê oportunidade de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta.

Isto posto.

A lei adjetiva civil ([9]) identifica o pedido com o efeito jurídico que a parte, no articulado inicial ou na reconvenção, pretende obter na demanda judicial. ([10])

Baudry e Barde faziam corresponder o objeto duma ação - que A. REIS identifica com o pedido, com o efeito jurídico concreto que se pretende - ao benefício jurídico imediato que se pretende obter pela ação, ao direito cuja efetivação se pede. ([11])

Numa linguagem de larga amplitude, M. ANDRADE identificava o pedido com a providência jurisdicional solicitada pelo autor. ([12])

ANSELMO DE CASTRO, no seu ensino em Coimbra, introduzia, porém, uma distinção, que ora se releva pelas ilações que da mesma se colhem, entre objeto imediato e objeto mediato. Transcreve-se:
"Por pedido (.....) tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz através das quais é atuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc), ou seja, a providência que se pretende obter com a ação; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecida. O primeiro, é o objeto imediato; o segundo, é o objeto mediato.
Para determinar o petitum concorrem ambos os aspetos, embora o objeto imediato contribua em menor escala que o objeto mediato. Assim, nem sempre a não identidade do objeto imediato da ação importará a não identidade da ação para todo e qualquer efeito em que tal identidade releve, embora não deixe de relevar para alguns deles".

Acrescentava:
"Embora a lei o não diga, parece que deve adotar-se, aqui, uma orientação semelhante àquela que em direito privado vigora para a determinação do exato conteúdo dos contratos: basta que as partes tenham conhecimento do efeito prático, embora careçam da representação do efeito jurídico. Por outras palavras, o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar; o objeto mediato deve entender-se como o efeito prático que o Autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão". ([13])

No caso concreto.

Manifestamente, nos termos em que formulado o petitum, o Recorrente avançou para o objeto mediato, dizer, para a consequência jurídica material que, ao fim e ao cabo, qual efeito prático útil, pretendia obter e/ou ver reconhecido por este Supremo Tribunal de Justiça.

Dizer: sobrepôs ao efeito jurídico - que não chegou a expressar, numa falha que este STJ, à luz da máxima "dá-me os factos, dou-te o direito", pode suprir - o efeito prático que pretendia alcançar com o recurso de impugnação.

Tendo sido claro no efeito prático pretendido, olvidou a qualificação jurídica, o nomen iuris.

O suprimento desta lacuna coaduna-se, como se entende, com a axiologia decorrente dos anteditos princípios do processo justo, do processo devido (due process), do processo equitativo.

Está em consonância, de igual passo, com o princípio reitor da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, assumido pelo legislador no campo adjetivo civil, de acordo com o qual «toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjetivas que impeçam a composição do litigio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais» ([14])

 Last but not least, tal suprimento não deixa, ainda, de se coadunar com o princípio da vinculação cognitiva do tribunal na justa medida em que, como igualmente já se decidiu nesta Secção do Contencioso, «o facto do recorrente, menos tecnicamente, ter pedido a revogação do deliberado, em vez de pedir a sua anulação, visto estarmos no sede do contencioso de anulação, isso não prejudica o conhecimento do recurso, pois a anulação é um "minus" em relação à revogação que é um "maximus".» ([15])

Em conformidade, conhecer-se-á do recurso, com vista à confirmação ou à infirmação dos apontados vícios do ato administrativo sob recurso -como sejam: (i) a violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, relativamente à apreciação das provas; (li) a violação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, com referência à sanção cominada - e ao correlato apuramento da existência ou inexistência de fundamento de invalidade/anulabilidade.

2.2 A decisão de facto padece duma deficiente apreciação das provas produzidas e viola o princípio in dubio pro reo?

 

2.2.1 O Recorrente impugna, com o presente recurso, a decisão de facto constante da deliberação proferida, em 30 de setembro de 2014, pelo Conselho Plenário do CSM. De par com a negação dos factos tidos por provados,

neguei, nego e negarei sempre... », Art. 3º da Motivação do Recurso),

o Recorrente ora aponta à decisão em causa o vício da ilogicidade,
[ex.g.: «perante tantas provas de competência e sapiência, como poderia chamar de incompetente e de burra à Sra. Escrivã. Seria um contrassenso, um ilogismo, que eu não seria capaz de cometer», «Tanto para mais que esteve em causa uma falha pontual da Sra. Escrivã, que não tinha ocorrido anteriormente e que não se repetiu) (sic, Arts. 242 e 262), «se não chamei tais nomes ofensivos de incompetente ou burro aos outros funcionários que, por várias vezes, cometeram este tipo de falhas» (27º)

ora classifica de inverídicos os depoimentos -nomeadamente pelas contradições que lhes são intrínsecas -em que a decisão se arrima para dar como provados os factos elencados como tal
[Assim, ex.g. com referência aos depoimentos de HH e JJ (Art: 9º); Sra. Funcionária CC (52º)].

A partir do argumento de que, estando em causa duas versões antagónicas dos factos em questão, apresentadas pelas duas únicas pessoas que assistiram aos mesmos, e quando é certo que «a versão apresentada ela Sra. Escrivã vai variando» (38º), o Exmo. Juiz Recorrente conclui, desde logo que «não parece correto que tenha sido valorizada a versão apresentada por um funcionário judicial, como sendo a verdadeira, em detrimento da versão apresentada por um magistrado judicial» (45º), outrossim, a existência de duas versões contraditórias e a ausência de mais prova levaria, «necessariamente, pelo menos, a suscitar uma dúvida categórica quanto à forma como os factos ocorreram» (46º), sob pena de violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência (72º).

2.2.2 Assim desenhada, em termos sucintos, a impugnação da decisão de facto, cumpre conhecer do seu mérito quanto aos apontados vícios de apreciação das provas, cometidos na decisão recorrida.

Importa referir, ato prévio, que muitos são os factos/apreciações/considerações/juízos de facto, tecidos pelo Recorrente em abono da tese que pretende levar de vencida, sem sustento no quadro fáctico, seja na vertente provados, seja na vertente não provados. Exemplo paradigmático do que vem de ser referido colhe-se nos artigos 24º e 25º do articulado recursivo: «perante tais provas de competência e sapiência, como poderia chamar de incompetente e de burra à Sra. Escrivã. Seria um contrassenso, um ilogismo, que eu não seria capaz de cometer», «Se nunca chamei a qualquer outro funcionário de incompetente ou de burro, nunca poderia chamar a Sra. Escrivã de burra ou incompetente, na medida em que, conforme referi, a considero o funcionário mais competente com quem trabalhei».

Em causa, claras mas inócuas proclamações e/ou protestos de boa conduta, sem suporte em qualquer factualidade levada ao crivo da prova e adquirida no âmbito do procedimento disciplinar, de sorte que, relativamente a tais factos/juízos de facto que partem de realidades não comprovadas, vale o brocardo quod non est in actis non est in mundo.

Independentemente do que fica referido na antecedente nota prévia, importa fazer luz sobre os princípios por que há de se subordinar a apreciação dos vícios em sede de reapreciação da matéria de facto. Subscreve-se, neste conspecto, o entendimento que maioritariamente vem sendo seguido nesta Secção do Contencioso, expresso nos seguintes termos:
«O controlo da suficiência probatória, não deverá, como objecto de recurso contencioso, consistir na reapreciação e em nova e diferente convicção perante os elementos de prova constantes do processo, mas antes na apreciação da razoabilidade e coerência da relação entre os factos que a entidade recorrida considerou provados e os elementos de prova que lhe serviram de fonte de convicção, no que respeite aos factos relevantes delimitados pela acusação disciplinar ou incluídas no modelo pertinente de defesa.»

«Os poderes de cognição do STJ encontram-se, em regra, limitados à matéria de direito, não existindo qualquer norma que expressamente lhe confira poderes de cognição em matéria de facto, quando funciona como órgão jurisdicional do contencioso administrativo, no julgamento de deliberações do CSM.»
Daí que esteja afastada a possibilidade deste Tribunal proceder à reapreciação dos elementos probatórios existentes nos autos, devendo, antes, resumir-se a aferir do cumprimento dos princípios e regras que presidem à apreciação da prova»

«Compete ao STJ não a formulação de um (novo) juízo sobre a valoração da prova, mas apenas a apreciação da validade e legalidade dos meios de prova, por um lado, e da razoabilidade e coerência da matéria de facto fixada, por outro. Cabe-lhe, pois, neste âmbito, avaliar contradições, incoerências, insuficiências das provas, e erros notórios na sua apreciação, desde que tais vícios sejam manifestos e evidentes. São esses «erros de facto» que o STJ pode conhecer, o que não inclui um reexame da prova recolhida para formular um autónomo juízo sobre ela» ([16])

2.2.3 Isto posto.
Descendo ao caso concreto, importará, em primeiro mão, tomar sob consideração a invocada violação do princípio de raiz constitucional da presunção da inocência.
Dispõe o Artigo 32º, nº2, da Constituição da República que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação».
Este direito ou princípio de 'presunção de inocência' - aplicável ao direito sancionatório, em geral, e ao direito disciplinar, em particular ([17]) - constitui um verdadeiro princípio de prova diretamente vinculante, que protege e garante à pessoa acusada que não será julgada culpada enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma atividade probatória inequívoca. Consubstancia, do mesmo passo, um direito subjetivo público que, no plano processual/procedimental probatório, significa que toda a decisão condenatória deve ser precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas, que estas hão-de ser legalmente admissíveis e válidas, que o encargo de destruir a presunção recai sobre os acusadores e que não existe nunca ónus do acusado sobre a prova da sua inocência.
Neste conspecto, o princípio de presunção de inocência identifica-se com o princípio «in dubio pro reo» e abrange-o efetivamente no sentido de que um non liquet na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 1998.nov.04 [in BMJ 481/265], «Se, por força da presunção de inocência, só podem dar-se por provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido quando eles se tenham, efetivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável".
Desta sorte: verificado que se mostre que um tribunal - ou, como ao caso importa considerar, uma entidade Administrativa no exercício do seu poder disciplinar -, formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio In dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal ou, correspetivamente, à autoridade Administrativa.
Vale dizer: a eventual violação do princípio In dubio pro reo só pode ser aferida em sede de recurso quando da decisão impugnada resulte, de forma evidente, que o tribunal recorrido ou a Entidade Administrativa ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tendo chegado a um estado de dúvida "insuperável", neste estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Invoca o Recorrente, no caso concreto, a violação deste princípio de prova sob o fundamento de que a existência de duas versões contraditórias e a ausência de mais prova levaria, «necessariamente, pelo menos, a suscitar uma dúvida categórica quanto à forma como os factos ocorreram».

Afoitamente: a objeção não tem fundamento.
Impressionam, desde logo, o cuidado, a minúcia, que enformam a motivação da decisão de facto, com manifesto cumprimento do dever de legitimação do exercício jusdisciplinar através da fundamentação da decisão.
Dizer: na prolação da decisão, ressuma que o CSM bem deu conta da existência de duas versões. A posição assumida pelo Recorrente é, aliás, a clara manifestação desta latente divergência, acabando, na motivação oferecida em sede de recurso, por fazer (co)incidir tal divergência sobre a convicção fáctica assumida pelo plenário do CSM.
Ora das diferentes versões emergentes da prova produzida, o CSM delas tomou adequado conhecimento e sopesou-as.
Acontece que, no exercício da apreciação da prova, entendeu acolher a versão levada ao crivo da prova, contrária à do Recorrente.
Certo, é, aliás, que entre as explicitações oferecidas em sede de motivação do iter da convicção firmada, relativamente aos depoimentos prestados e invocados na motivação pelo Recorrente relativamente aos mesmos depoimentos - dizer, a respeito das leituras dos depoimentos prestados -não ocorrem divergências que mereçam especial realce.
O que acontece, o que ressuma já da motivação da decisão sub iudicio, já da motivação do recurso sub specie, é uma divergente valoração da prova produzida, sem que contudo se evidencie no juízo alcançado pela Autoridade Administrativa, algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum.
Seguramente que advindo ao Julgador justificadas dúvidas sobre a culpabilidade do arguido, a presunção da inocência terá de prevalecer.
Porém, não é imperioso que duas versões dos factos conduzam necessariamente a uma dúvida inultrapassável no espírito de quem julga.
Assim aconteceu na situação sub iudicio.
Na explicitação do iter formativo da sua convicção, o CSM justificou a adoção de uma das teses em confronto: privilegiou, pela sua coerência e consistência, a versão sustentada no depoimento da Sra. Escrivã BB, e, assim, também por conjugação com a demais prova produzida.
Repetindo, embora, transcreve-se da decisão recorrida:
«A versão apresentada pela segunda encontrou forte arrimo em vários outros elementos de prova, o que se afigurou bastante para, com base nela, formar uma convicção positiva acerca dos factos que constavam da acusação. Em primeiro lugar, nos depoimentos das testemunhas CC, Secretária de Justiça, e Dra. DD, Juíza ..., ambas em exercício de funções no Tribunal Judicial da Comarca de ..., as quais, nas apontadas circunstâncias, acorreram ao gabinete do Exmo. Sr. Juiz ..., depois de terem sido alertadas pelos gritos da Sra. Escrivão de Direito BB. Constatando o estado debilitado desta, logo a interrogaram sobre o sucedido, tendo recebido dela uma explicação semelhante à que ficou plasmada na participação dirigida ao Conselho dos Oficiais de Justiça que deu origem a estes autos e à que foi dada aos Exmo. Sr. Inspetor Judicial.
Em segundo lugar, nos depoimentos das testemunhas HH, GG, II e MM, todas elas a exercerem funções como oficiais de justiça do Tribunal Judicial da Comarca de ..., as quais referiram ser frequente o arguido dirigir-se aos funcionários, na secretaria, com um tom de voz agressivo e modos exaltados, tratando-os, por vezes, por incompetentes e burros. Estes elementos demonstram, a um tempo, que a Sra. Escrivã ... BB manteve sempre, desde o primeiro momento, a mesma versão dos factos e, a outro, que essa versão encaixa no padrão comportamental do Exmo. Sr. Juiz ....
Acresce que o relato da Sra. Escrivã ... foi, como bem notou o Exmo. Sr. Inspetor Judicial, prestado de forma coerente e credível e sem qualquer sinal de animosidade para com o Exmo. Sr. Juiz ....»

Desta arte, como decorre da fundamentação da decisão tomada pelo CSM, este não incorreu em qualquer dúvida insanável. Na verdade, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a sua convicção.

À sobreposse, importará dizer, a respeito da discutida valoração das testemunhas que, também aqui, não se vê fundamento de censura: no exercício da apreciação da prova, não cabe a quem julga ou exerce o poder disciplinar, procurar achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, antes importa que lhes saiba pesar a valia.

Não se desconhece que o Recorrente procura, exatamente, pôr em causa esta valia.

Seja exemplo a apreciação a respeito da Sra. Secretária do tribunal, testemunha CC. Sem deixar de invocar o «conflito» existente entre ambos - «devido ao facto de eu (Recorrente) não ter deferido determinadas pretensões da mesma durante os períodos temporais em que exerci funções como juiz presidente deste tribunal e que ela não aceitou» (Art. 148º do Recurso) - o Recorrente logo acrescenta ser a mesma a sua «inimiga» dentro do tribunal, «que não existe algum advogado na comarca que tenha uma boa relação com a Sra. Secretária. Muito pelo contrário, todos os advogados da comarca têm uma relação fria e distante com a Sra. Secretária» (Art. 144º do Recurso), e que «é do conhecimento comum que a Sra. Secretária tem um feitio conflituoso quer com magistrados, quer com funcionários, tratando todos de forma agressiva e não os respeitando» (Art. 150º do Recurso).

Porém, tais factos, bem como este alegado «conhecimento comum» relativamente ao feitio conflituoso da Sra. Secretária, não logrou o Recorrente fazê-los chegar ao domínio do Exmo. Inspetor Judicial já que o mesmo tomou em boa consideração o depoimento por aquela prestado.

Em formulação de síntese, acolhe-se, pela sua inteira pertinência e justeza de argumentação, o expendido pelo Recorrido nos artigos 48 a 53 da Resposta apresentada nesta instância recursiva. Dizer:
«Por muito que ao Recorrente custe aceitar, "não é credível que a Sra. Escrivã tenha desmaiado, caída desamparada no gabinete do Dr. AA e após ter recuperado os sentidos tenha, transtornada, gritado para a tirarem dali, caso nenhum comportamento ou conduta do Dr. AA tivesse contribuído para ter ficado no estado em que foi vista pelos funcionários que chamados pelo Dr. AA se dirigiram ao gabinete deste para lhe prestarem ajuda". A referência que o Recorrente, à laia de explicação para a suposta cabala que contra ele foi urdida pelos oficiais de justiça, com a necessária, ainda que não afirmada, participação da Sra. Escrivã ... BB, faz à sua natureza disciplinadora, não coloca em causa este juízo. Em primeiro lugar, porque na génese de tudo esteve uma oficial de justiça -a Sra. Escrivã ... BB -que, segundo o próprio arguido, nunca foi destinatária de qualquer censura - desde logo por dela não carecer. Na tese do Recorrente fica, portanto, por explicar a razão que a Sra. Escrivã ... tinha para inventar os factos que, de forma consistente, imputou ao Recorrente.
Como fica por explicar que essa suposta falsa imputação tenha ocorrido logo a seguir ao desmaio ocorrido no gabinete do Recorrente, o que seria demonstrador de uma frieza pouco comum no aproveitar de uma situação inopinada.
Em segundo lugar, porque as regras do id quod plerumque accidit dizem-nos que, por muito disciplinador que seja o juiz, não é usual que os oficiais de justiça que com ele trabalham encenem e montem estórias para o prejudicar, designadamente em termos profissionais»

Concluindo: o CSM adquiriu a convicção firme sobre os factos - logo sem sombra de dúvida razoável - e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

Na verdade, não se vê que regra alguma da lógica ou da experiência comum ou relativa à legalidade da prova, tenha sido violada.

Por tudo o exposto, improcede a impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrente.

2.3 A suspensão da execução da sanção disciplinar cominada é suficiente e adequada aos factos?

Diz o Recorrente:

«[s]e por mera hipótese académica, se considerar provada a infração cometida, o que não se aceita, consideramos que a gravidade da situação, assim como a frágil prava produzida, não se coaduna com a aplicação de uma sanção efetiva»: «seria quando muito adequado que a sanção aplicada seja suspensa na sua execução». [Arts. 167º e 168º da Motivação do Recurso]

 

Conhecendo.

 

Dispõe o artigo 217º, n.º1 da Constituição da República, que o exercício da ação disciplinar sobre juízes dos tribunais judiciais compete ao Conselho Superior da Magistratura "nos termos da lei".

Nesta Secção do Contencioso, vem-se entendo, sem discrepância, que «Vale, (... ), para o contencioso disciplinar entregue à competência deste Supremo Tribunal a regra de que está excluída do seu controlo a apreciação valorativa da conduta atribuída ao arguido, nomeadamente quando conduz à escolha de uma qualquer pena disciplinar e à valoração do circunstancialismo que a rodeou, eventualmente justificativo de atenuação da pena a aplicar -ressalvada, naturalmente, a hipótese de manifesto excesso ou desproporcionalidade (no mesmo sentido, cf. Acórdão de 15 de dezembro de 2011, proc. Nº 87/11.0YFLSB, com sumário disponível em www.stj.pt)» ([18]).

O que bem se compreende em face da discricionariedade do poder disciplinar que compete à Autoridade Administrativa, in casu, ao CSM, com as ressalvas atinentes quer aos aspetos vinculados - ex.g., quanto à qualificação jurídica dos factos - quer quanto à sua conformidade com o princípio de raiz constitucional da proibição do excesso, ou, em formulação positiva, da proporcionalidade em sentido estrito.

Não pôs o Recorrente em causa a sanção escolhida.

 

Entende, apenas, que a gravidade da situação assim como a frágil prova produzida não se coadunam com a aplicação de uma sanção efetiva, antes «seria quando muito adequado que a sanção aplicada seja suspensa na sua execução».

Não obstante a manifesta fragilidade de uma tal argumentação, importa averiguar se a não opção, por parte do Plenário do CSM, pela suspensão constitui uma violação intolerável do princípio da proporcionalidade.

Com fundamento constitucional, decorrente do princípio do Estado de direito democrático ou, de todo o modo, conexionado com os direitos fundamentais, é de todos bem conhecido o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo - que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública - seja, ex.g., a autoridade administrativa, seja a autoridade judicial - no sentido de saber da sua conformidade aos princípios subconstitutivos da proibição do excesso, como sejam: (i) o princípio da conformidade ou adequação de meios; (ii)o princípio da exigibilidade ou da necessidade; (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

De modo prático, pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação medida> fim.

Pergunta-se: a medida adoptada é apropriada, adequa-se à prossecução do fim ou fins a ela subjacentes?

A exigência de conformidade pressupõe, então, a investigação e a prova de que o ato do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adoção.

Pelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou princípio da "justa medida" cuida-se saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. Ou dizer, saber se, no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são "desmedidas" (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.

Finalmente, o princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão. ([19])

Fundamentando a escolha e determinação da medida da sanção disciplinar, ponderou o CSM:

 
«De acordo com o art. 85º/1 do EMJ, os magistrados judiciais estão sujeitos às seguintes penas: a) Advertência; b) Multa; c) Transferência; d) Suspensão de exercício; e) Inatividade; f) Aposentação compulsiva; g) Demissão.
A pena de advertência consiste, segundo o art. 86º, em mero reparo pela irregularidade praticada ou em repreensão destinada a prevenir o magistrado de que a ação ou omissão é de molde a causar perturbação no exercício das funções ou de nele se repercutir de forma incompatível com a dignidade que lhe é exigível. É aplicável a faltas leves que não devam passar sem reparo (art. 91º).
A pena de multa é fixada em dias, no mínimo de 5 e no máximo de 90 (art. 87º). É aplicável a casos de negligência ou desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo (art. 92º).
A pena de transferência consiste na colocação do magistrado em cargo da mesma categoria fora da área de jurisdição do tribunal ou serviço em que anteriormente exercia funções (art. 88º). É aplicável a infracções que impliquem a quebra do prestígio exigível ao magistrado para que possa manter-se no meio em que exerce funções (art. 93º).
As penas de suspensão de exercício e de inatividade consistem no afastamento completo do serviço durante o período da pena. A primeira pode ser de vinte a duzentos e quarenta dias e a segunda não pode ser inferior a um ano nem superior a dois (art. 89º). São aplicáveis nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais ou quando o magistrado for condenado em pena de prisão, salvo se a condenação aplicar pena de demissão (art. 94º).
A pena de aposentação compulsiva consiste na imposição da aposentação e a de demissão no afastamento definitivo do magistrado, com cessação de todos os vínculos com a função (art.90º). São aplicáveis quando o magistrado: a) Revele definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função; b) Revele falta de honestidade ou tenha conduta imoral ou desonrosa; c) Revele inaptidão profissional; d) Tenha sido condenado por crime praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes (art. 95º).
Do enunciado legal, recortante de tipos de infracção disciplinar, verifica-se que são puníveis, respetivamente com as sanções de advertência, multa, transferência, suspensão, inatividade e aposentação compulsiva e demissão, as faltas leves de serviço, os casos de negligência e má compreensão dos deveres funcionais, os casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, os casos de procedimento que atente gravemente contra a dignidade e prestígio do funcionário ou agente da função e as infrações que inviabilizarem a manutenção da relação funcional.
Desde logo temos a dizer que não estamos aqui perante uma “falta leve", como tal entendida aquela que não oferece perturbação nos serviços, nem revela falta de diligência ou zelo por banda do funcionário infrator, mas mesmo assim não deve ficar sem reparo, 'para recorrermos à definição de Leal-Henriques (Procedimento Disciplinar, Lisboa, 2.ª edição, 1989, p. 87), que dá o exemplo do funcionário que, pela primeira vez, chega atrasado ao serviço, sem motivo. Estamos perante um comportamento perturbador do serviço e do relacionamento do Exmo. Sr. Juiz ... com os funcionários da secção respetiva - em especial com a Escrivã ... - que configura inobservância dolosa do dever de correção, em termos que, na nossa perspetiva, colocam irremediavelmente em causa o prestígio do Exmo. Sr. Juiz ... no Tribunal onde o mesmo exerce funções, justificando a aplicação da pena de transferência, tal como proposto pelo Exmo. Sr. Inspetor Judicial.
Com efeito, está em causa o relacionamento do Exmo. Sr. Juiz ... com os funcionários com os quais vem trabalhando desde há anos, relacionamento esse que, em repetidas ocasiões, se tem pautado por atitudes humilhantes para com tais funcionários, tendo atingido o seu clímax no referido dia 23 de setembro de 2013. Esse relacionamento está de tal modo degradado que o Exmo. Sr. Juiz ... é considerado como uma pessoa de mau trato, que gera medo e apreensão junto daqueles que com ele trabalham. E há que notar que esse tipo de atitudes se estende também aos advogados e mesmo aos juízes desembargadores, como é demonstrado pelas anteriores deliberações que sancionaram o Exmo. Sr. Juiz ... em sede disciplinar, nas quais estiveram sempre em causa violações do dever de correcção.
Parecerá, prima facie, que a aplicação de tal pena perdeu utilidade com a reorganização judiciária levada a cabo pela Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08, posto que o Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, como todos os demais, foi extinto, o que levou a que o Exmo. Sr. Juiz ... fosse colocado num dos Tribunais criados ex novo. Cremos, no entanto, que é suficiente, para justificar a opção por esta pena, a manutenção do respetivo efeito previsto no art. 103º do EMJ: a perda de 60 dias de antiguidade.»

Nos termos do artigo 25º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas [Lei nº 58/2008, de 9/09, aplicável ex vi art. 131º do EMJ] o condicionalismo permissível da suspensão de uma pena implica a possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável se e «quando, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior à infracção e às circunstâncias desta, se conclua que a simples censura do comportamento e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

In casu, o Recorrente justifica a inadequação - logo a desproporcionalidade, em sentido amplo - num primeiro momento, na atenção à menor gravidade.

Sem razão, como justificadamente deflui da transcrita fundamentação, nomeadamente quando se atente na irremediável colocação em causa do prestígio do Exmo. Sr. Juiz ... no Tribunal onde exercia funções e, sobretudo, quando se leve em linha de consideração que «está em causa o relacionamento do Exmo. Sr. Juiz ... com os funcionários com os quais vem trabalhando desde há anos, relacionamento esse que, em repetidas ocasiões, se tem pautado por atitudes humilhantes para com tais funcionários, tendo atingido o seu climax no referido dia 23 de Setembro de 2013. Esse relacionamento está de tal modo degradado que
o Exmo. Sr. Juiz ... é considerado como uma pessoa de mau trato, que gera medo e apreensão junto daqueles que com ele trabalham. E há que notar que esse tipo de atitudes se estende também aos advogados e mesmo aos juízes desembargadores, como é demonstrado pelas anteriores deliberações que sancionaram o Exmo. Sr. Juiz ... em sede disciplinar, nas quais estiveram sempre em causa violações do dever de correcção».

Esta repetência justifica, entende-se, a impossibilidade da aplicação de uma pena suspensa.

Argumenta, ainda, o Recorrente com apelo à «frágil prova produzida».

Obviamente, não se trata de argumento que deva merecer, sequer, qualquer consideração.

Sem necessidade de outras lucubrações exegético-normativas, imperioso se torna concluir pela inexistência de fundamento que torne passível de um juízo de invalidade, por violação dos sobreditos principias da necessidade, da adequação e da justa medida ou da proporcionalidade, a sanção nos termos em que foi cominada pelo CSM.

 

IV-DECISÃO

 

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso contencioso interposto pelo senhor Juiz ... AA.

Custas a cargo do recorrente, conforme art. 527.º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil, com taxa de justiça que se fixa em 6 Ucs, nos termos do disposto na Tabela l-A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, e art. 7.º, nº 1 deste mesmo diploma, sendo o valor da presente acção de 30.000,01€, atento o disposto no art. 34.º, nº 2 do CPTA.

               

Lisboa, 18 de março de 2015

Melo Lima (Relator)

Gregório Jesus

Fernando Bento

Santos Cabral (Vencido, com a declaração de que existe vício de decisão proveniente da desproporcionalidade da pena aplicada)

Souto Moura

Ana Paula Boularot

Távora Victor

Sebastião Póvoas (Presidente, Vencido nos termos da declaração junta)

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[1] «É garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas.»
[2] Artigo 172.º (Requisitos do requerimento)
«1 - O requerimento deve conter a identificação do ato recorrido, os fundamentos de facto ou de direito, a indicação e o pedido de citação dos interessados que possam ser diretamente prejudicados pela procedência do recurso, com menção das suas residências, quando conhecidas, e a formulação clara e precisa do pedido.» [EMJ]
[3] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/ PEDRO COSTA GONCALVES / JOÃO PACHECO DE AMORIM - CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO COMENTADO, 2ª Edição, Almedina, 2010, pág. 637
[4] Ibidem, pág. 656
[5]  Ac. STJ (Secção Contencioso) de 11-10-2001, Proc. n.º 507/01, Ferreira de Almeida (relator); no mesmo sentido: Acs. STJ (Secção Contencioso): de 15-03-2001, Proc. N.º 185/01, Barata Figueira (relator); de 27-09-2001, Proc. n.º 2246/00, Azambuja da Fonseca (relator); de 19-03-2002, Proc. n.º 2977/01, Ferreira de Almeida (relator); de 25-11-2003, Proc. n.º 2953/03, Vasconcelos Carvalho (relator)
[6] Autor que referia, em outros passos: «O âmbito do recurso é determinado pelo conteúdo dos atos recorridos... », «o recurso tem de ter por objeto apenas o ato já praticado.. », «.. a nulidade dos atos consequentes do ato contenciosamente anulado resulta ipso iure da anulação do ato antecedente; e a eliminação dos efeitos dos atos consequentes faz parte da execução da sentença pela Administração.» Manual de Direito Administrativo, 9 ª Edição, Tomo 11, Lisboa 1972, Coimbra Editora Lda, págs.1305, 1306
[7] GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, CRP ANOTADA, 11 VOL., 4' Edição Revista, pág.828, 829
[8] GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 833,834 [Negrito e itálico, do Relator]
[9] Aos recursos das decisões do CSM aplicam-se subsidiariamente as normas que regem a tramitação dos recursos contenciosos do STA (art. 178.º do EMJ) e, por virtude da subsidiariedade afirmada no art. 1.º do CPTA, é aplicável supletivamente a lei de processo civil.
[10] Neste sentido: Artigo 498º nº3 CPC/2007; 581º nº3 NCPC: «Há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico».
[11] A. REIS, CPC ANOTADO, VoI. III, 105

[12] Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Edit. 1963, pág. 106

[13] Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra 1981, voI. I, págs. 201 a 204
[14] Exposição de Motivos da Reforma, preambular da Lei Nº 41/2013, de 26 de Junho.
[15] Ac. STJ (Secção do Contencioso) de21-03-96,Proc.n.º 87361;JoaquimdeMatos (Relator)
[16] Respetivamente: Acs. STJ (Secção Contencioso) de 14-12-2004; Proc. n.º 4436/03; de 20-10-2005, Proe. n.º 3416/04; de 21-03-2013, Proe. n.º 15/12.6YFLSB. 17

[17] Neste sentido: Acs. TC nºs 439/87 e 198/90
[18] Acórdão STJ de 19 de fevereiro de 2013, Processo nº 113/11.3YFLSB -CONTENCIOSO. Com interesse, vide: Ac. STJ de 16.05.1995; Proc. Nº 86727, in BMJ 447,157
[19] Seguiram-se, de perto, os ensinamentos de J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição -3ª Ed. Almedina, Pags. 261 a 265

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Declaração de voto



Fui vencido pelas razões que, nuclearmente, passo a expor:

1- O recorrente foi punido disciplinarmente por a entidade recorrida ter dado por assente que o mesmo violou os “deveres de urbanidade e de correcção, com quebra do prestígio exigível para que possa manter-se no meio em que exerce funções”.

O aresto ora votado assume toda a factualidade que o C.S.M considerou provada retirando a este STJ a possibilidade de a sindicar.

Não posso aceitar este entendimento.

Vejamos.

2- Estamos no âmbito do processo disciplinar estritamente sancionatório, fundado em meio de prova, que não apenas documental mas, antes, meramente testemunhal.

Ora, os factos imputados ao recorrente – eventualmente constitutivos de infracção disciplinar (e, nesta sede só relevaria o epíteto de “burra”, já que o de “incompetente” traduz uma mera apreciação de habilitação técnico-funcional) – não se mostram suficientemente indiciados.

No processo disciplinar, tal como no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção cabe ao titular do poder disciplinar.

A prova deve ser inequívoca (e conclusiva) no sentido de que o sancionado é o autor/responsável.

Não pode impor-se uma sanção com base em simples “indícios, presunções ou conjecturas subjectivas” (cfr. Acórdão TCAN de 10 de Maio de 2012-01958/08.7BEPRT onde, além do mais, se decidiu que “o condicionamento da ampla zona de liberdade probatória pelo fim de se obter a verdade material, conduz necessariamente à revisibilidade jurisdicional do juízo efectuado pelo órgão instrutor ou decisor sobre a apreciação e valoração das provas, sendo que o tribunal não está vinculado à apreciação que esse órgão tenha feito das provas recolhidas” – cfr. também os Acórdãos do mesmo Tribunal de 27 de Janeiro de 2011 – P.º 00827/07.2BEPRT; de 18 de Fevereiro de 2011 – P.º 00344/08.3BEPRT; e de 22 de Janeiro de 2012 – P.º 00851/07.5BEPRT).

Ademais, nesta sede, a Secção do Contencioso do STJ é o primeiro órgão de apreciação jurisdicional, não podendo retirar-se-lhe a sindicância da prova, sob pena de a mesma se tornar intocável nos termos, e conclusões, que a entidade recorrida alcançou.

Até mesmo no processo civil, onde o STJ é essencialmente um tribunal de revista, existem situações (excepcionais embora) em que a última instância pode reapreciar as provas (artigos 682.º n.º 2 e 674.º n.º 3 do CPC).

E a Relação pode sempre fazê-lo em sede de apelação cível (artigo 662.º CPC) e no processo penal (artigos 428.º e 431.º CPP).

O Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 16 de Fevereiro de 2015 – 01546/14) afirmou que quando se discute o princípio da presunção de inocência em processo sancionatório, e seus corolários quanto ao ónus da prova, há que verificar se no âmbito do processo disciplinar se procurou a demonstração de factos indiciadores de ilicitude e de culpa.

A melhor e mais pacífica jurisprudência pronunciou-se no sentido de, no processo disciplinar, o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção caber ao titular do poder disciplinar (cfr. v.g. os Acórdãos do S.T.A. de 19 de Janeiro de 1995 – P.º 031486 -; de 14 de Março de 1996 – P.º 028264 -; de 16 de Outubro de 1997 – P.º 031496 -; e de 27 de Novembro de 1997 – P.º 039040) não bastando meras ilações, ou simples presunções judiciais tiradas pelo instrutor.

E assim, também se louvando no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República, aquele Acórdão do STA de 14 de Março de 1996 julgou que “um non liquet em matéria de prova resolve-se a favor do arguido, por aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do in dúbio pro reo”. (cfr. ainda o Acórdão do STA (Pleno) de 17 de Maio de 2001 – P.º 40528:I).

E o exposto não contende com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal (e n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil).

É que este princípio não pressupõe, (nem conduz) à inversão do ónus da prova dos factos constitutivos da infracção imputada, a qual, como já se deixou dito, compete ao titular da acção disciplinar.

Ademais, não pode sequer invocar-se a limitação do artigo 410º do Código de Processo Penal, apenas aplicável aos recursos das decisões dos Tribunais, por aqui estar em causa o recurso de um acto de uma entidade administrativa (CSM), sob pena de ser criada uma zona de insindicabilidade impeditiva do acesso aos tribunais e, portanto, violadora do artigo 268º ,nº4 da Constituição da República.

O “iter” a seguir deve ser o seguinte: consideração da presunção de inocência; apresentação da prova recolhida pelo instrutor; finalmente proceder à respectiva valoração de acordo com o princípio da livre apreciação.

Mas nesta última operação devem ser desconsiderados meros indícios, presunções ou conjecturas subjectivas.

E o Tribunal “não está vinculado à apreciação que o órgão (instrutor ou decisor) tenha feito das provas recolhidas (cfr. Acórdão do TCAN de 10 de Maio de 2012 – P.º 01958/08.7BEPRT).

A assim não ser ficar-lhe-ia cerceado o poder de sindicância do erro sobre os pressupostos de facto, já que não podia afirmá-los dentro da sua liberdade de valoração limitando-se a apor a sua chancela nos precisos termos em que lhe foram presentes.

3- “In casu”, não resulta provado que o recorrente tivesse apodado a oficial de justiça de “burra”.

Apenas se pode afirmar que, em conversa “a dois” no gabinete do Senhor Juiz recorrente, houve uma “troca de palavras” iniciadas com invectiva do Magistrado por ter considerado que a Senhora Escrivã tinha cometido um erro funcional.

No decurso dessa conversa (que a denunciante quis que fosse “a sós”, já que mandou sair uma terceira pessoa) os ânimos exaltaram-se e a oficial de justiça terá perdido a consciência.

Tal foi causal de que se gerasse alarido que provocou a vinda de funcionários e de uma Magistrada.

No início do incidente o Senhor Juiz pediu que chamassem o INEM o que veio a revelar-se desnecessário por, entretanto a denunciante ter recuperado, clamando: “é o Diabo”… “é o Diabo”!

O Senhor Juiz terá um temperamento com assomos de alguma irascibilidade, característica idiossincratica que não cumpre apreciar nesta sede disciplinar.

Ora, sob pena de se valorar a palavra de um dos intervenientes – a queixosa – aliás recordada em estado crepuscular que se segue ao “despertar” (aqui, turbulento, por aos gritos …) de um desmaio e desvalorizar a do Senhor Juiz que nega a utilização do epíteto (“burra”) e com o risco de criar um precedente impeditivo de futuros diálogos a sós, tantas vezes com escopo didáctico, penso inexistir prova do ilícito imputado.

Daí que, dando provimento ao recurso anulasse a deliberação recorrida por erro nos pressupostos de facto.

O Presidente da Secção do Contencioso

Sebastião José Coutinho Póvoas