Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1386/15.8T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
RUÍDO
COLISÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
DIREITO À QUALIDADE DE VIDA
PROTECÇÃO DA SAÚDE
PROTEÇÃO DA SAÚDE
DIREITO DE PROPRIEDADE
ACTIVIDADE COMERCIAL
ATIVIDADE COMERCIAL
AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / DISPOSIÇÕES GERAIS / COLISÃO DE DIREITOS.
Doutrina:
- Capelo de Sousa, A Constituição e Direitos de Personalidade, em Estudos sobre a Constituição, publ. Jorge Miranda, 2º vol. (1978), p. 93-196;
- Diogo Leite de Campos, Lições de Direito de Personalidade, 2ª ed. (1992), p. 115 e ss.;
- João de Castro Mendes, Direito Civil (teoria geral), Vol II (1968), p. 72-75;
- Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV- Direitos Fundamentais, 3ª ed. (2000), p. 563 e ss.;
- Menezes Cordeiro, Os Direitos de Personalidade na Civilística Portuguesa, ROA, Ano 61, Dezembro 2001, p. 1229 a 1256;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição (1985), p. 206-213;
- Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, Vol I (1984/85), p. 121-122;
- Paulo Cunha, Teoria Geral do Direito Civil, (1971/72), p. 110-202;
- Paulo Mota Pinto, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, BFD LXIX (1993), p. 479-585 ; O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Portugal-Brasil (2000), p. 149-246;
- Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeira Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, Volume II, p. 79;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, 2006, p. 71 e 72;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, p. 103;
- Rita Amaral Cabral, O direito à intimidade da vida privada (Breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil), em Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha (1998), separata;
- Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, Vol. I, p. 20;
- Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1983), p. 267 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 335.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 64.º E 66.º.
LEI DAS BASES DA POLÍTICA DO AMBIENTE (LBPA): - ARTIGO 3.º, ALÍNEA D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-09-2007, PROCESSO N.º 2198/07;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 7613/09.3TBCSC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 117/13.1TBML.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 3499/11.6TJVNF.G1.S2, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 26-09-2016 , PROCESSO N.º 1203/14.6TBSTS.P1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Constituem os direitos de personalidade um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa, cuja violação traduz um facto ilícito civil que desencadeia a responsabilidade civil do infractor (obrigação de indemnizar os prejuízos causados.

II - Constitui ofensa ilícita do direito ao repouso (que se integra no direito à integridade física e a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e, através destes no direito à saúde e qualidade devida de acordo com os artigos 64º e 66º da Constituição) a actividade de um posto de lavagem de veículos do tipo “Jet Wash” causadora de ruído incomodativo, de carácter permanente e que se verifica das 07h até às 22h a que estão sujeitos os autores, proprietários do prédio contíguo.

III – O direito à integridade física, à saúde, ao repouso e ao sono, prevalece, nos termos do artigo 335º do Código Civil, sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício da actividade comercial da sociedade ré, titular do posto de abastecimento de combustíveis, onde se encontra colocado o sistema de lavagem de veículos automóveis do tipo “Jet Wash”.

IV – Perante a lei civil, o direito de oposição face à emissão de ruídos subsiste, mesmo que o seu nível sonoro seja inferior ao legal e a respectiva actividade tenha sido autorizada pela autoridade administrativa competente, sempre que implique ofensas de direitos de personalidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


AA, BB, CC, DD e EE intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Lda”, GG e cônjuge, HH, pedindo que os réus sejam condenados:

“a) A absterem-se de usar ou mesmo a destruir o seu posto de lavagem de carros ou, subsidiariamente, dotarem o seu sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques por todos os seus lados que impeçam em absoluto quer a emissão de jactos de água, nebulizações desta, conspurcadas ou não, e misturadas ou não com detergentes, quer cheiros ou ruídos incómodos para o prédio dos AA.

b) A dotarem os regos de drenagem de águas atrás evocados de coberturas adequadas à não concentração de insectos que se propaguem à casa dos RR.

c) A verem fixada sanção pecuniária compulsória do valor de € 500,00 por cada dia que passe, a partir do trânsito em julgado da sentença, em que continuem a utilizar o sistema de lavagem actualmente existente ou qualquer outro que não obedeça ao constante das alíneas anteriores”.


Em síntese alegaram que são herdeiros de II, de cuja herança faz parte o prédio urbano que identificam, onde reside a primeira autora, o qual é contíguo ao prédio dos segundos réus, onde é explorado pela primeira ré um posto de combustíveis e de lavagem de veículos, por emissão de água a alta pressão. Não sendo o espaço de lavagem totalmente tapado, o prédio dos autores é atingido pela nebulização da lavagem e mesmo por jactos de água, para além do odor dos detergentes usados e do ruído que os jactos da mangueira provocam, o que afecta a saúde da autora, que passou a padecer de problemas ao nível respiratório, limitando desta forma o uso da propriedade pelos autores.


Os réus contestaram, alegando que a instalação de lavagem de veículos está licenciada, tendo sido obtido acordo da autora quanto a tal instalação no âmbito da transacção celebrada em acção anterior que correu termos entre as partes. No mais, defenderam-se por impugnação.

Deduziram ainda reconvenção, pedindo a condenação dos autores no pagamento aos réus da quantia de € 5.000,00, tendo alegado, em suma, que apesar do acordo quanto à instalação da lavagem de veículos, a autora tem vindo a adoptar comportamentos contrários a tal concordância, por forma a dificultar o seu funcionamento, sustentando ser, por isso, devido o valor convencionado a título de cláusula penal.


Os autores apresentaram réplica, tomando posição quanto aos fundamentos da reconvenção e defendendo-se por impugnação.


Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente nos seguintes termos:

I) - Condenou a ré “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Ldª” a limitar o funcionamento do sistema de lavagem de veículos automóveis que explora no estabelecimento, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de …, ao horário de segunda a sábado, das 7h às 21h, encerrando aos domingos e feriados.

- Fixou à ré “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Lda” a quantia de € 500,00 por cada dia em que viole o horário de funcionamento fixado e absolveu, no mais, os réus dos pedidos.

II) - Absolveu os autores do pedido reconvencional.


Os autores e a ré recorreram e a Relação, por acórdão de 22.05.2019, julgou parcialmente procedente o recurso dos autores e improcedente o recurso dos réus e, em consequência, condenou a ré a dotar o sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques, o que implica a execução de isolamento acústico da respectiva estrutura, por todos os seus lados, que impeçam, em absoluto, a emissão de ruídos para o prédio dos autores, mantendo-se a decisão relativa à fixação da sanção pecuniária compulsória do valor de € 500,00 por cada dia que passe, a partir do trânsito em julgado da sentença, em que continuem a utilizar o sistema de lavagem nas condições actualmente existentes ou qualquer outro que produza ruído para o prédio dos autores bem como a absolvição dos autores do pedido reconvencional.


A ré FF - Combustíveis e Lubrificantes, Ldª interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª – Os autores nas conclusões das suas alegações de recurso não escreveram uma única palavra sobre o ruído.

2ª - São as conclusões que delimitam o objecto do recurso.

3ª - O acórdão ao tomar conhecimento da questão do ruído, nos termos em que o fez, não tendo esta sido colocada pelos autores nas conclusões das suas alegações violou o artigo nº 3º, nº 1 do CPC que impede o tribunal de “…resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes…”. Esta decisão viola claramente o princípio do dispositivo.

4ª – A decisão do acórdão é nula porque violou ainda os artigos 615º nº 1, al. d) e e), artigo 637º nº 2 e 639º nº 1, aplicáveis por força do artigo 666º e 674º nº 1, al. c) do CPC.

5ª – A decisão do acórdão violou o princípio da proporcionalidade, nomeadamente na vertente do princípio da adequação, do princípio da necessidade e do princípio da proibição do excesso: A decisão do acórdão é uma solução radical, excessiva e inexequível pois ao obrigar a ré a dotar o sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques por todos os seus lados, a impedir em absoluto o ruído, não teve em atenção uma justa composição dos interesses em conflito e não teve em atenção a matéria de facto que se encontra fixada pelas instâncias.

6ª - A decisão do acórdão não teve em atenção a situação em concreto nos autos de que se trata de um Jet Wash.

7ª - O resultado prático da decisão do acórdão é fechar o Jet Wash da ré. Com esta decisão há um total aniquilamento do direito da ré ao exercício da actividade económica e dos seus direitos de propriedade, violando assim os artigos 17º, 18º, 61º e 62º da Constituição da República Portuguesa.

8ª - Os princípios da adequação e da necessidade como vertentes do princípio da proporcionalidade dizem respeito ao que é factualmente possível. Vedar o jet wash de uma maneira estanque por todos os lados e impedir em absoluto o ruído é factualmente impossível atendendo ao fim a que o mesmo se destina.

9ª - Não foram violados os direitos de personalidade dos autores pois os autores não provaram factos sobre esta matéria. Ficou apenas provado nos autos relativamente à questão do ruído, que é a única questão que está aqui em causa, o seguinte:

“21) o disparo da água contra a chapa dos veículos provoca ruído que, sobretudo na segunda e quarta fases de lavagem, se sente no interior do edifício destinado a habitação do prédio dos autores, mesmo com as janela fechadas, conseguindo‐se individualizar tal ruído do demais ruído ambiente.”

10ª - Não é a produção de qualquer ruído que acarreta ilicitude: este há-de ser caracterizado por frequência ou intensidade que o tornem insuportável.

11ª - O acórdão decidiu com base no ruído do funcionamento da máquina de lavagem mas tal facto não consta da matéria dada como provada, tendo o tribunal decidido com base num facto inexistente, não podendo a decisão ser proporcional e justa com base num facto inexistente.

12ª - Não se provou a intensidade do ruído, não se provou que fosse constante, não se provou que a saúde dos autores esteja ameaçada ou agredida. Os autores não provaram que os ruídos fossem particularmente fortes e incomodativos que perturbam emocionalmente e psiquicamente a A. AA e quem quer que habite, venha a habitar ou frequente a sua casa conforme alegaram no artigo 24º da petição inicial, como se pode verificar dos Factos Provados na sentença e no acórdão de que se recorre.

13º - O acórdão também viola o princípio da proporcionalidade na modalidade da proibição do excesso ao fixar uma sanção pecuniária compulsória de €500,00 diários.

14ª - O acórdão recorrido, tal como a decisão da 1ª instância, desconsideram completamente a aplicação do Regulamento Geral do Ruído aprovado pelo DL 9/2007 de 17 de Janeiro, apesar de não se ter provado factos sobre a violação dos direitos de personalidade dos autores, devendo o mesmo Regulamento ser aplicado e os autores deveriam ter demonstrado que o ruído era superior aos máximos previstos no Regulamento.

15ª - O horário de funcionamento é apenas das 7horas às 22 h e aos domingos das 7 horas às 15 horas. A ré, ao não laborar no horário nocturno, não prejudica o direito ao sono e ao repouso dos autores.

16º - O acórdão desconsiderou completamente de que se trata de uma actividade devidamente licenciada. O facto de ser uma actividade licenciada, terá de ter alguma relevância na ponderação dos interesses envolvidos na formação da decisão por parte do julgador, pois é completamente diferente ser uma actividade licenciada, nomeadamente pelo Ministério da Economia e do Ambiente, (sujeita a vistorias e pressupostos rigorosos) ou ser uma actividade clandestina, não licenciada.

17ª - A solução do conflito entre o direito de propriedade e o direito de personalidade em causa depende pois de um procedimento e de um juízo de ponderação, não dos direitos em si, mas das formas ou modos de exercício específicos desse direito, nas circunstâncias do caso concreto, tentando encontrar e justificar a solução mais conforme ao programa valorativo imposto pela ordem constitucional vigente.

18ª - O acórdão violou os artigos 335º do Código Civil e 18º da CRP pois na sua aplicação não aplicou o princípio da concordância prática, conforme a doutrina e Jurisprudência actual, dando prevalência absoluta ao direito de personalidade.

19ª - O acórdão fez uma aplicação errada do artigo 1346º do Código Civil pois os autores não provaram que tenha existido um prejuízo substancial para o uso do imóvel.

20ª - A actuação dos autores e a maneira como pretendem exercer o seu direito é ilegítima e está em manifesto abuso nos termos do artigo 334º do Código Civil.

21ª - Os acórdãos do STJ vão no sentido de considerar a limitação do horário de funcionamento uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores: “A limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores e permite compatibilizar o conjunto dos direitos em jogo. Tem-se como adequada a medida de limitar o fecho do estabelecimento ao horário nocturno, entre as 22h e as 7h, tal como demarcado no Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo DL nº 292/00, de 14-11, então em vigor), coincidente com o período em que as pessoas habitualmente repousam e dormem, assim recuperando física e psiquicamente”. (Acórdão do STJ de 13 de Setembro de 2007, Revista 2198/07).

22ª - Como a ré já cumpre este horário nada há a censurar à ré.


Termina, pedindo que o recurso seja julgado procedente, absolvendo-se a ré de todos os pedidos.

Os autores contra-alegaram, pedindo a improcedência do recurso.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto


Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1) Os autores são os únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de II.

2) Do acervo hereditário faz parte o prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de …, que confronta do Norte com caminho público, do Sul com JJ, do Nascente com KK e do Poente com LL, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o art. 347.

3) GG e cônjuge, HH, são proprietários do prédio que confronta pelo lado Nascente com o prédio identificado em 2).

4) Em Dezembro de 2002, a primeira ré construiu neste prédio rústico um posto de abastecimento de combustíveis.

5) Na sequência do desentendimento das partes em torno de tal construção, correu termos com o nº 1068/2002, no … Juízo Cível do Tribunal Judicial da extinta Comarca de …, o procedimento cautelar de embargos de obra nova, requerido pelos autores contra os réus, mediante o qual era pedida a ratificação do embargo extrajudicial da obra que a primeira ré estava a levar a cabo.

6) No referido procedimento cautelar, os autores e os réu celebraram uma transacção, mediante a qual:

- as partes reconheceram-se reciprocamente como proprietárias dos respectivos prédios agora identificados em 2) e 3).

- os aqui autores “obrigaram-se a dar o seu consentimento expresso e colaboração na execução da obra a efectuar pelos requeridos, abstendo-se de praticar qualquer acto que impeça ou dificulte a colocação do JET.WHASH (lavagem de carros)”.

- Estipularam “para a eventualidade de incumprimento do clausulado” a cláusula penal de €5.000,00.

7) A referida transacção veio a ser homologada por sentença proferida em 14 de Março de 2003, transitada em julgado.

8) Em data não determinada do ano de 2013, a primeira ré instalou e começou a explorar no prédio referido em 3) um sistema de lavagem de veículos automóveis do tipo “Jet Wash”.

9) O posto de abastecimento de combustíveis e o sistema de lavagem de veículos automóveis encontram-se licenciados pelo “Município de …” e pelo “Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e Energia”.

10) O funcionamento do sistema de lavagens de veículos automóveis está anunciado com o horário de segunda a sábado entre as 7h e as 22h e aos domingos e feriados entre as 7h e as 15h.

11) O prédio dos autores é constituído por casa de habitação com quintal.

12) O edifício destinado a habitação situa-se a cerca de três metros da linha divisória.

13) E tem duas janelas, uma com varanda, no primeiro andar, e uma janela de dimensões menores ao nível do rés-do-chão, todas voltadas para o prédio dos réus.

14) A autora AA reside na habitação.

15) O sistema de lavagem de veículos automóveis está instalado a cerca de 90cm da linha divisória dos prédios, paralelamente à fachada lateral do edifício destinado a habitação.

16) O espaço destinado à lavagem dos veículos é coberto, em forma de túnel, aberto nas extremidades, existindo no lado fronteiro ao prédio dos autores um taipal de material transparente, no qual assenta a cobertura, taipal esse que tem a extensão de 5,80m.

17) Esse taipal prolonga-se, para além da extensão da cobertura e para cada um dos lados, com o cumprimento 2,10 e a altura de 2,85m, altura medida a partir do prédio dos réus que se situa a uma cota inferior à do prédio dos autores.

18) O sistema de lavagem dos veículos é feito por uma máquina, com quatro fases de lavagem, com um tempo controlado de cerca de um minuto e meio cada, manipulada pelo próprio cliente, que insere nela fichas que a fazem funcionar por emissão de água sob pressão, projectada por uma mangueira presa no tecto da estrutura, que o cliente manuseia movendo-se em torno do veículo.

19) O detergente utilizado no sistema de lavagem de veículos é corrosivo em estado puro.

20) Na fase de lavagem em que é aplicado, o detergente é diluído previamente com a água antes da saída pela mangueira.

21) O disparo da água contra a chapa dos veículos provoca ruído que, sobretudo nas segunda e quarta fases de lavagem, se sente no interior do edifício destinado a habitação do prédio dos autores, mesmo com as janelas fechadas, conseguindo-se individualizar tal ruído do demais ruído ambiente.

22) Ao incidir sobre os automóveis, os jactos provocam a nebulização da água associada à sujidade dos veículos e aos detergentes utilizados.

23) A primeira autora padece de doença do foro respiratório, concretamente doença pulmonar obstrutiva (asma brônquica ou síndrome de sobreposição asma/doença pulmonar obstrutiva crónica), doença que se agrava com a exposição a factores externos, tais como detergentes, factores ambientais, produtos químicos, cheiros intensos ou poeiras.

24) A primeira autora permanece no seu quotidiano na habitação com as janelas e persianas exteriores fechadas.

25) A primeira autora apresentou queixas relativamente ao funcionamento do sistema de lavagem de automóveis perante o “Município de …” e perante o delegado de saúde


Não resultou provado que:

a.- Aquele espaço de três metros entre o edifício destinado a habitação e a linha divisória dos prédios é o único lugar de que o prédio dispõe para se pôr roupa a secar, para plantar flores e outras espécies vegetais e para ser disfrutado como logradouro.

b.- O ruído perturba a autora AA.

c.- O funcionamento do sistema de lavagem de automóveis provoca odor.

d.- Os jactos de água que saem da mangueira entram a cada passo no logradouro do prédio dos autores, atingindo por vezes as pessoas.

e.- As nebulizações resultantes evolam-se e atingem o logradouro do prédio dos autores.

f.- O que provoca a corrosão das persianas da habilitação.

g.- E faz com que sequem as plantas existentes do logradouro prédio dos autores.

h.- A roupa colocada a secar no logradouro do prédio dos autores é afectada pela nebulização, ficando com o odor gerado pelo sistema de lavagem.

i.- Quando a primeira autora veste qualquer das peças que deixa a secar no logradouro, fica com a pele irritada, com pruridos, necessitando de tratamento imediato.

j.- A primeira autora padece de “rinosinusite crónica”.

k.- A doença de que a primeira autora padece agrava-se com a respiração das nebulizações provocadas pelo funcionamento da lavagem de veículos automóveis.

l.- A primeira autora já foi conduzida sete vezes à urgência do hospital por causa da respiração das nebulizações.

m.- Em certas condições climatéricas, dois regos de drenagem das águas de lavagem de carros enxameiam insectos que invadem o prédio dos réus.

n.- A primeira autora atirou por diversas vezes baldes de água contra o acrílico que separa a máquina de lavagem de automóveis e o prédio dos autores no momento em que as pessoas estão a lavar os carros, assustando-as.

o.- O que fez concretamente no dia 21 de Novembro de 2014, às 8h45, quando o motorista de táxi o veículo “...-MJ-...” se encontrava a lavar o veículo.

p.- Quando se encontra com a ré HH, a primeira autora chama-a de “caloteira” e diz “quando é que devolves os trezentos contos que fui pôr na conta do teu marido”.

q.- No dia 7 de Dezembro de 2014, pelas 11h, a autora chamou o gerente da primeira ré, MM, de “bandalho”.


 B) Fundamentação de direito


As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, são as seguintes:

- Nulidade do acórdão;

- O direito da ré ao exercício da actividade económica e os direitos de personalidade dos autores.


NULIDADE DO ACÓRDÃO

A ré FF - Combustíveis e Lubrificantes Ldª, ora recorrente, invocou a nulidade do acórdão nos termos do artigo 615º nº 1 alíneas d) e e) do Código de Processo Civil, argumentando que o acórdão da Relação, ao tomar conhecimento da questão do ruído, nos termos em que o fez, não tendo esta sido colocada pelos autores nas conclusões das suas alegações violou o artigo 3º, nº 1 do CPC que impede o tribunal de “…resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes…”. Esta decisão viola claramente o princípio do dispositivo.


Cumpre decidir.

Dispõe o artigo 615° n°1, alínea d) do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

E a sentença é ainda nula, quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido - alínea e) do nº 1 daquele artigo.


A nulidade prevista na alínea d) está directamente relacionada com o artigo 608° n°2 do CPC, segundo o qual "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".


Na petição inicial, os autores pediram que os réus sejam condenados:

“a) A absterem-se de usar ou mesmo a destruir o seu posto de lavagem de carros ou, subsidiariamente, dotarem o seu sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques por todos os seus lados que impeçam em absoluto quer a emissão de jactos de água, nebulizações desta, conspurcadas ou não, e misturadas ou não com detergentes, quer cheiros ou ruídos incómodos para o prédio dos AA.

b) A dotarem os regos de drenagem de águas atrás evocados de coberturas adequadas à não concentração de insectos que se propaguem à casa dos RR.

c) A verem fixada sanção pecuniária compulsória do valor de € 500,00 por cada dia que passe, a partir do trânsito em julgado da sentença, em que continuem a utilizar o sistema de lavagem actualmente existente ou qualquer outro que não obedeça ao constante das alíneas anteriores”.


Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente nos seguintes termos:

I) - Condenou a ré “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Ldª” a limitar o funcionamento do sistema de lavagem de veículos automóveis que explora no estabelecimento, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de …, ao horário de segunda a sábado, das 7h às 21h, encerrando aos domingos e feriados.

- Fixou à ré “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Lda” a quantia de € 500,00 por cada dia em que viole o horário de funcionamento fixado e absolveu, no mais, os réus dos pedidos.

II) - Absolveu os autores do pedido reconvencional.


No recurso de apelação, os autores invocam expressamente o seu direito à saúde e bem-estar, nele se incluindo, como é óbvio, o direito ao sossego, por forma a evitar o ruído produzido pelo sistema de lavagem de automóveis pertencente à ré.

Pugnam até pela revogação da sentença recorrida e pela total procedência da acção, o que implica, naturalmente, o tomar conhecimento da questão do ruído, que é a principal dos presentes autos.


Os autores e a ré recorreram e a Relação, por acórdão de 22.05.2019, julgou parcialmente procedente o recurso dos autores e improcedente o recurso dos réus e, em consequência, condenou a ré a dotar o sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques, o que implica a execução de isolamento acústico da respectiva estrutura, por todos os seus lados, que impeçam, em absoluto, a emissão de ruídos para o prédio dos autores, mantendo-se a decisão relativa à fixação da sanção pecuniária compulsória do valor de € 500,00 por cada dia que passe, a partir do trânsito em julgado da sentença, em que continuem a utilizar o sistema de lavagem nas condições actualmente existentes ou qualquer outro que produza ruído para o prédio dos autores bem como a absolvição dos autores do pedido reconvencional.


Nesta conformidade, a Relação, não só não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, como não condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Pelo exposto, julga-se improcedente a arguida nulidade.


O DIREITO DA RÉ AO EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE ECONÓMICA E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE DOS AUTORES.


A solução do problema em causa nos presentes autos deve procurar-se no interior dos próprios direitos de personalidade.

Estabelece a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 16º nº 2 que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e são directamente aplicáveis, conforme previsto nos artigos 17º e 18º.

Preceitua aquela Declaração, nos seus artigos 3º, 24º e 25º, nº 1 que todo o indivíduo tem direito à vida, que toda a pessoa tem direito ao repouso e um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar.


O artigo 70º n º 1 do Código Civil estatui que “ a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

E o seu número 2 inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela da personalidade física ou moral.

Constituem os direitos de personalidade um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa, cuja violação traduz um facto ilícito civil que desencadeia a responsabilidade civil do infractor (obrigação de indemnizar os prejuízos causados)[1].

São direitos subjectivos absolutos, que têm por fim tutelar a integridade física e moral do indivíduo, impondo a todos os componentes da sociedade o dever negativo de se absterem de praticar actos que ofendam a personalidade alheia[2].

Integram o elenco de tais direitos, entre outros, o direito à vida, à integridade física, à saúde, ao repouso essencial à existência física[3].

No caso dos autos assume especial relevância o direito à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, de acordo com os artigos 64º e 66º da Constituição.

Contendo o artigo 70º do Código Civil uma norma de tutela geral da personalidade, a ofensa à personalidade física ou moral são aplicáveis, nos termos gerais, os artigos 483º e segs.


O direito à saúde, ao repouso, e ao bem-estar são direitos fundamentais de todos os cidadãos consagrados nos artigos 3º e 25º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 64º nº 1, e 66º nº 1, da CRP; e 70º do Código Civil.


Sobre o tema em análise, Pedro Pais de Vasconcelos pronunciou-se do seguinte modo[4]:

“ São muitas as sentenças judiciais de “casos de ruído”. Os tribunais têm-se pronunciado numa orientação jurisprudencial constante, no sentido de que o ruído que impeça o sono, constitui violação do direito de personalidade, direito ao repouso, ainda que o nível do ruído não exceda os limites fixados no respectivo Regulamento.

Esta orientação é correcta, dado que o direito de personalidade não pode ser restringido por um simples regulamento. A compatibilização jurídica do Regulamento do Ruído com o direito de personalidade deve ser feita no sentido de que todos devem limitar e emissão de ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento; mas desse Regulamento não resulta um “direito a fazer ruído” e muito menos a ilicitude do impedimento do repouso alheio. O direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído.

É também frequente na controvérsia judiciária a invocação do direito fundamental à liberdade e iniciativa económica para contrariar ou bloquear o direito à integridade física e psíquica sempre que o ruído, o mau cheiro ou outra emissão nociva provêm de uma actividade empresarial. Os tribunais não têm atendido a essa argumentação.

A integridade física e psíquica são de uma vastíssima amplidão e abrangem a saúde em geral, quer a saúde física, quer a psíquica. Sempre que a saúde de alguma pessoa esteja ameaçada ou agredida, quer por condições ambientais concretas, como por exemplo, lixeiras a céu aberto ou emissões industriais venenosas, pode essa pessoa requerer ao tribunal que adopte as providências adequadas à prevenção ou cessação da ofensa, ou à atenuação dos seus efeitos”.


Menezes Cordeiro, pronunciou-se sobre esta matéria, que qualifica de delicada, nos seguintes termos[5]:

“ A publicação do Código Civil não provocou, de imediato, uma especial concretização dos direitos de personalidade. Pelo contrário: o dispositivo dos artigos 70º e seguintes foi mesmo recebido com frieza, pela primeira doutrina subsequente a 1967: seria menos desenvolvido do que os artigos 359º e seguintes do Código de Seabra, enquanto a fórmula geral do artigo 70º corresponderia a “ um princípio vago demais para ser muito útil…”[6].

E continua o mesmo autor: “ A doutrina inverteu, depois, a sua posição. Autores como Paulo Cunha[7] e Mota Pinto[8], iniciaram uma divulgação universitária do tema”.

(…) “O desenvolvimento posterior da matéria foi assegurado pela jurisprudência portuguesa. Esta, primeiro com timidez e, depois, de modo decidido, veio concretizar o dispositivo dos artigos 70º e seguintes do Código Civil, apoiando-se, ainda, na Constituição. Na frente doutrinária, sucederam-se os estudos no campo dos direitos fundamentais, com relevo para Jorge Miranda[9] e Vieira de Andrade[10]. Nos direitos de personalidade, o relevo vai para Capelo de Sousa[11] e para Diogo Leite de Campos[12]. Estudos parcelares de maior relevo foram levados a cabo por Rita Amaral Cabral[13] e por Paulo Mota Pinto”[14].


A jurisprudência pronunciou-se abundantemente sobre a matéria.

Entre outros, destacamos os seguintes:

“Demonstrado que a actividade fabril da ré provoca vibrações e ruídos constantes, que rapidamente se transferem para a casa de habitação dos autores, fazendo-a vibrar de forma constante, particularmente a cozinha, e que o facto da ré laborar, ininterruptamente 24 horas por dia e 6 dias por semana, afecta o descanso dos autores, impedindo-os de dormir convenientemente, causando-lhes stress e desgaste psicológico acentuado e provocando-lhes transtornos de memória e cansaço, impõe-se dar prevalência ao direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre os interesses empresariais da ré.

Neste contexto e sob pena de preclusão da efectividade da tutela dos direitos de personalidade dos autores, impõe-se, de igual modo, afirmar a essencialidade da proibição de laboração da ré no período que decorre entre as 22 horas e as 6 horas e ao domingo como forma adequada e proporcional de assegurar aos autores um descanso nocturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio ao domingo (dia de descanso semanal), e, desse modo, minimizar a afectação da saúde e integridade física e psicológica dos autores.

E se é certo que tal restrição não deixará de ter implicações de ordem económica para a ré, a verdade é que, na vida em sociedade, seria absolutamente intolerável que os interesses económicos da ré na exploração lucrativa da actividade industrial de tecelagem de fio fossem satisfeitos à custa do total esmagamento dos direitos básicos dos autores a gozar de um período de total tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio ou da neutralização destes mesmos direitos em termos claramente desproporcionados[15]”.


Num caso de produção de ruído o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 29.11.2016,[16] decidiu:

“Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana. Por outro lado, são tarefas fundamentais do Estado a prossecução da higiene e salubridade públicas, o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação do direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos e promovendo a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana.

Os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de carácter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão de ser solucionados mediante a respectiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da optimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: (i) a sua adequação ao fim em vista; (ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a colectividade; (iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens”.


Ora, o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida configuram-se como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do direito fundamental de personalidade[17]. Por isso, se compreende que, desde há muito, se tenha firmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que a relevância da ofensa do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade nem sequer é afectada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamentado relativamente ao ruído[18] e/ou de a actividade[19] que o provoca se encontrar, ou não, devidamente licenciada, dispensando a ilicitude, nesta perspectiva, a aferição do nível do ruído pelos padrões legalmente estabelecidos[20].


Nas suas conclusões a recorrente alega que o acórdão da Relação desconsiderou que a actividade da ré está devidamente licenciada e, por isso, deverá ter alguma relevância na ponderação dos interesses envolvidos na formação da decisão por parte do julgador. Assim, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 335º do Código Civil.


Discordamos em absoluto da tese da ré, ora recorrente.

A ofensa ao repouso, ao descanso e ao sono, não é excluída pela simples circunstância de a actividade da ré ter sido autorizada administrativamente – a consagração legal de um valor máximo de nível sonoro do ruído apenas significa que a administração não pode autorizar a instalação de equipamento nem conceder licenciamento de actividades que não respeitem aquele limite máximo.

O direito à liberdade económica também deve ser exercitado de forma não discricionária ou arbitrária, com limites normais para não serem ofendidos com ele direitos de terceiros.


Há, na verdade, uma colisão ou conflito de direitos que importa solucionar, como acontece no caso sub judice.

O artigo 335º do Código Civil (Colisão de direitos) dispõe:

1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Mas ainda que não haja um critério de solução válido em termos gerais e abstractos 


Mas, ainda que a avaliação dos direitos em abstracto, feita através da comparação entre os bens jurídicos tutelados pelas situações em apreço, possa constituir um indício da possível superioridade de um dos direitos ou da igualdade entre ambos, a verdade é que, ela não se apresenta como um critério definitivo, impondo-se verificar no caso concreto se, em rigor e segundo as circunstâncias do caso, um dos direitos se apresenta superior ao outro, pois não se pode afirmar que o interesse pessoal seja, em todas as circunstâncias, superior ao patrimonial.


Por conseguinte, a avaliação feita abstractamente de cada um dos direitos em confronto, não dispensa uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade. 


No caso em análise, o quadro factual, nuclearmente, é o seguinte:

 - Na sequência do desentendimento das partes em torno da construção pela ré de um posto de abastecimento de combustíveis, correu termos com o nº 1068/2002, no … Juízo Cível do Tribunal Judicial da extinta Comarca de …, o procedimento cautelar de embargos de obra nova, requerido pelos autores contra os réus, mediante o qual era pedida a ratificação do embargo extrajudicial da obra que a primeira ré estava a levar a cabo - (5º).

- No referido procedimento cautelar, os autores e os réu celebraram uma transacção, mediante a qual:

- as partes reconheceram-se reciprocamente como proprietárias dos respectivos prédios agora identificados em 2) e 3).

- os aqui autores “obrigaram-se a dar o seu consentimento expresso e colaboração na execução da obra a efectuar pelos requeridos, abstendo-se de praticar qualquer acto que impeça ou dificulte a colocação do JET.WHASH (lavagem de carros)”.

(…) – (6º).

- A referida transacção veio a ser homologada por sentença proferida em 14 de Março de 2003, transitada em julgado – (7º).

- Em data não determinada do ano de 2013, a primeira ré instalou e começou a explorar no prédio referido em 3) um sistema de lavagem de veículos automóveis do tipo “Jet Wash”- (8º).

- O funcionamento do sistema de lavagens de veículos automóveis está anunciado com o horário de segunda a sábado entre as 7h e as 22h e aos domingos e feriados entre as 7h e as 15h – (10º).

- O prédio dos autores é constituído por casa de habitação com quintal e situa-se a cerca de três metros da linha divisória – (11º e 12º).

- O sistema de lavagem de veículos automóveis está instalado a cerca de 90cm da linha divisória dos prédios, paralelamente à fachada lateral do edifício destinado a habitação – (15º).

- O espaço destinado à lavagem dos veículos é coberto, em forma de túnel, aberto nas extremidades, existindo no lado fronteiro ao prédio dos autores um taipal de material transparente, no qual assenta a cobertura, taipal esse que tem a extensão de 5,80m – (16º).

- Esse taipal prolonga-se, para além da extensão da cobertura e para cada um dos lados, com o cumprimento 2,10 e a altura de 2,85m, altura medida a partir do prédio dos réus que se situa a uma cota inferior à do prédio dos autores – (17º).

- O sistema de lavagem dos veículos é feito por uma máquina, com quatro fases de lavagem, com um tempo controlado de cerca de um minuto e meio cada, manipulada pelo próprio cliente, que insere nela fichas que a fazem funcionar por emissão de água sob pressão, projectada por uma mangueira presa no tecto da estrutura, que o cliente manuseia movendo-se em torno do veículo – (18º).

- O disparo da água contra a chapa dos veículos provoca ruído que, sobretudo nas segunda e quarta fases de lavagem, se sente no interior do edifício destinado a habitação do prédio dos autores, mesmo com as janelas fechadas, conseguindo-se individualizar tal ruído do demais ruído ambiente – (21º).


Da análise daqueles factos provados e tendo em conta o disposto do supra mencionado artigo 335º do Código Civil, decorre a necessidade de efectivar um juízo que tenha em conta a ponderação dos valores em causa, a concordância prática entre os direitos conflituantes e a proporcionalidade na restrição de qualquer deles. E feito o imprescindível e citado ajuizamento a balança pesa sempre mais a favor dos autores.


Na alínea a) os autores pediram que os réus fossem condenados a absterem-se de usar ou mesmo a destruir o seu posto de lavagem de carros ou, subsidiariamente, dotarem o seu sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques por todos os seus lados que impeçam em absoluto quer a emissão de jactos de água, nebulizações desta, conspurcadas ou não, e misturadas ou não com detergentes, quer cheiros ou ruídos incómodos para o prédio dos autores.


 A primeira instância condenou a ré “FF - Combustíveis e Lubrificantes, Ldª” a limitar o funcionamento do sistema de lavagem de veículos automóveis que explora no estabelecimento, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de …, ao horário de segunda a sábado, das 7h às 21h, encerrando aos domingos e feriados.


A Relação condenou a ré a dotar o sistema de lavagem de automóveis de vedações completas e estanques, o que implica a execução de isolamento acústico da respectiva estrutura, por todos os seus lados, que impeçam, em absoluto, a emissão de ruídos para o prédio dos autores.


Nas alegações de recurso, a ré pugna pela absolvição de todos os pedidos, mas sempre disse que “os acórdãos do STJ vão no sentido de considerar a limitação do horário de funcionamento uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores: “A limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores e permite compatibilizar o conjunto dos direitos em jogo. Tem-se como adequada a medida de limitar o fecho do estabelecimento ao horário nocturno, entre as 22h e as 7h, tal como demarcado no Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo DL nº 292/00, de 14-11, então em vigor), coincidente com o período em que as pessoas habitualmente repousam e dormem, assim recuperando física e psiquicamente”. (Acórdão do STJ de 13 de Setembro de 2007, Revista 2198/07)”.


Ora, como muito bem refere a Relação, a harmonização dos direitos conflituantes, em obediência ao princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º nº 2 da CRP, implica que a ré proceda a obras na estrutura onde se encontra instalada a máquina de lavagem de veículos, de forma a impossibilitar que o ruído daí decorrente se propague para o prédio dos autores, destinado a habitação, exigência que é plenamente justificada pela proximidade desse local ao prédio dos autores e está em conformidade com o princípio do poluidor-pagador previsto no artigo 3º, al. d) da Lei das Bases da Política do Ambiente.

Afigura-se-nos que o ruído incomodativo, de carácter permanente, que se verifica durante todo o dia e de noite até às 22 horas, a que estão sujeitos os autores, quando se encontram no imóvel, prejudica gravemente o seu uso como local destinado a habitação e convívio, a sua tranquilidade e o ambiente, devendo, por isso, prevalecer sobre a actividade económica de lavagem de veículos, que se encontra integrada num espaço de abastecimento de combustível.

Assim, pretendendo a ré manter o sistema de lavagem de veículos automóveis quase encostado, paralelamente, ao imóvel dos autores, (dista apenas três metros da respectiva fachada, com janelas e varanda) a única forma dos direitos (de personalidade e de propriedade) dos autores não continuarem a ser lesados com a actividade de lavagem de veículos, ou seja, a cessação desta ofensa obriga necessariamente os responsáveis poluidores a dotarem a estrutura onde é desenvolvida essa actividade, de isolamento acústico seguro, que neutralize o ruído daí emanado.

 

Por todo o exposto, torna-se absolutamente manifesto que se considerem improcedentes as conclusões das alegações da ré.


JUNÇÃO DE DOCUMENTO

Nas suas alegações, a ré juntou uma “DECLARAÇÃO” assinada pelo Engenheiro Civil NN (fls 470).

Nas contra-alegações, os autores, no exercício do contraditório, manifestam-se contra a sua admissibilidade, por ser impertinente.

Cumpre decidir.

Vejamos, então, se se mostra possível tal admissão.


O artigo 651º do CPC (Junção de documentos e de pareceres), preceitua no nº 1 que:

1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.


E dispõe o artigo 425º (Apresentação em momento posterior):

Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

Importa ainda ter presente, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423º do Código de Processo Civil que, sob a epígrafe “Momento da Apresentação), preceitua:

1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior. 


Da conjugação destas normas decorre, que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva. 

Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. 

Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis. 

Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento[21]

Nada vem alegado a este respeito, designadamente qual o facto a provar com tal junção, segundo um critério de oportunidade, em coerência com o que estabelece para o rito processual em 1ª instância (artigos 552º nº 2 e 572º alª f)[22].


Por outro lado, tal documento deve ser recusado, pois a matéria de facto já se encontra estabilizada nesta fase do litígio nos termos do artigo 682º nº 3 do Código de Processo Civil.


Nesta conformidade, recusa-se a admissibilidade do documento apresentado nas alegações da ré.



III - DECISÃO


Atento o exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.  

Custas pela recorrente.

Lisboa, 07.11.2019


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

_______________

[1] Mota Pinto, in “ Teoria Geral do Direito Civil”, 1976, pág. 63 e 64.
[2] Rodrigues Bastos “ Das Relações Jurídicas”, vol. I, pág. 20.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, pág. 103. Na jurisprudência, cfr. o Ac. STJ de 28.4.77, in BMJ 266- 165 e de 26.04.1995, in CJ STJ 1/95.155.
[4] Direito de Personalidade, Almedina, 2006, págs 71 e 72
[5] “Os Direitos de Personalidade na Civilística Portuguesa”, in ROA, Ano 61, Dezembro 2001, págs. 1229 a 1256.
[6] Cita o autor: João de Castro Mendes, Direito Civil (teoria geral), vol II (1968), 72-75 e Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, Vol I (1984/85) 121-122.
[7] Teoria Geral do Direito Civil, (1971/72), 110-202.
[8] Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição (1985),206-213.
[9] Manual de Direito Constitucional, tomo IV- Direitos Fundamentais, 3ª ed. (2000),563 e ss.
[10] Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1983), 267 e ss.
[11] A Constituição e Direitos de Personalidade, em Estudos sobre a Constituição, publ. Jorge Miranda, 2º vol. (1978), 93-196.
[12] Lições de Direito de Personalidade, 2ª ed. (1992), 115 e ss.
[13] O direito à intimidade da vida privada (Breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil), em Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha (1998), separata.
[14] O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, BFD LXIX (1993),479-585 e O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Portugal-Brasil (2000), 149-246.
[15] Ac STJ de 18.10.2018, Procº nº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, in www.dgsi.pt/jstj
[16] Procº nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[17] Neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ, de 17.01.2002 (processo nº 4140/01); de 07.04.2011 (processo nº 419/06.3TCFUN.L1.S1); de 30.05.2013 (processo nº 2209/08.0TBVD.L1.S1); de 02.12.2013 (processo nº 100/2000.L1.S1) e de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBMLG.G1.S1), todos acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[18] Ou seja no Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo DL nº 9/2007, de 17.01, que revogou o DL nº 292/2000, de 14.11. Neste sentido, cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 17.01.2002 (processo nº 4140/01); Acórdão de 02/07/2007 (proc. nº 09B0511),de 30.05.2013 (processo nº 2209/08.0TBTVD.L1.S1) ; de 02.12.2013 (processo nº 110/2000.L1.S1) ; de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1) e de 29.06.2017 (processo nº 117/13.1TBML.G.g1.S1), todos acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[19] Neste sentido, cfr. Acórdãos do STJ, de 15.05.2008 (processo nº 08B779) e de 06.12.2012 (processo nº 247/1998.C2.S1), ambos acessíveis in www dgsi.pt/stj, nos quais se afirma a irrelevância da licença camarária para afastar a ilicitude da conduta lesiva do direito ao repouso.
[21] Ac RP de 26/9/2016 , Proc.º nº 1203/14.6TBSTS.P1, in www.dgsi.pt/jtrp.
[22] Cfr Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeira Notas ao Novo Código de Processo Civil” , 2014, Volume II, pág. 79, em anotação ao artigo 651º.