Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4435/18.4T8MAI.S1
Nº Convencional: 1ª SEEEÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
OBJECTO DO PROCESSO
OBJETO DO PROCESSO
TESTADOR
INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO DE REVISTA E REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 192-193;
- Castro Mendes,Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, s/d, p. 179;
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1981, p. 97-99 ; Comentário ao Código de Processo Civil, vol.2. p. 370;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina p. 592;
- Lebre de Freitas, Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, ROA 2006, Ano 66, Vol. III, in https://portal.oa.pt./publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006, p. 8;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, p. 311;
- Miguel Teixeira de Sousa, Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, p. 395 e ss. ; Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2.ª Edição, Lisboa, 1997, p. 585-586 ; As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, Lisboa, 1995, p. 123-125 ; O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 49 e ss.;
- Milton Paulo de Carvalho, Do Pedido no Processo Civil, FIEO – Fundação Instituto de Ensino para Osasco, Porto Alegre, 1992, p. 93.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 581.º, 609.º, N.º 1, 619.º E 621.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 24-04-2013, PROCESSO N.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1;
- DE 22-06-2017, PROCESSO N.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1;
- DE 18-09-2018, PROCESSO N.º 21852/15.4T8PRT.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 22-10-2013, PROCESSO N.º 272/12.8TBMGD.P1, IN WWW.DGSI,PT E NA CJ, ANO XXXVIII, TOMO IV, P. 199 A 202.
Sumário :
I - A excepção dilatória do caso julgado, reflectindo a função negativa do caso julgado, pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do art.º 581.º do CPC.
II - Já a autoridade do caso julgado, diferente daquela, exerce a função positiva do caso julgado e tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.os 619.º e 62l.º, ambos do mesmo Código.
III - A qualidade jurídica a que se deve atender para efeito de aferição da identidade de sujeitos reporta-se às partes, pelo que, havendo representação, a parte é o representado e não o representante.
IV - A causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo demandante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.
V - O autor não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na acção que seja proposta, o que está de acordo com o princípio do dispositivo.
VI - Não existe identidade de causas de pedir entre uma acção estruturada a partir da incapacidade decorrente de interdição por anomalia psíquica do testador e, com base nela, foi pedida a declaração de nulidade e outra acção baseada na incapacidade acidental do mesmo testador.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 4435/18.4T8MAI.S1[1]
*

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório


AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra:
1. BB, por si e na qualidade de tutora do interdito, CC,
2. DD,
3. EE,
4. FF,
5. GG,
6. HH,
7. II e
8. JJ, todos melhor identificados nos autos,[3]
pedindo a declaração de nulidade do testamento lavrado em 3/4/2007, no Cartório Notarial do Licenciado ..., em ...,
alegando, para tanto e em síntese, que o testador, CC, foi declarado interdito por anomalia psíquica, por sentença proferida em 25/6/2010, sendo que, na data em que outorgou naquele testamento, já se encontrava incapacitado de entender e de querer.

Citados, os réus não contestaram.

Notificadas as partes para se pronunciarem, querendo, sobre eventual verificação da excepção do caso julgado, o autor respondeu, pugnando pela não verificação de tal excepção, sustentando que não existe qualquer identidade de sujeitos nem de causa de pedir.

Seguiu-se despacho, datado de 26/11/2018, em que se decidiu nos seguintes termos:
Aqui chegados, concluiu-se a existência de uma identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido, entre a ação n.º 5247/17.8T8MAI e a presente ação n.º 4435/18.4T8MAI, o que configura uma exceção de caso julgado prevista pelo artigo 577.º, al. f), pelo que, em consequência, determino, ao abrigo dos artigos 578.º e 576.º, todos do Código de Processo Civil, a absolvição dos réus da instância”.

Inconformado, o autor interpôs recurso “per saltum” para o Supremo Tribunal de Justiça e apresentou as correspondentes alegações que terminou com as seguintes conclusões:

“1- A excepção de caso julgado orienta-se pelo objectivo de impedir a repetição de causas, tomadas estas segundo o critério da tríplice identidade, isto é, identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

2- No caso vertente, confrontando a presente acção e a que a antecedeu, decorre com clareza que não ocorre a excepção de caso julgado.

3- Havendo embora identidade de pedido, não ocorre identidade de causa de pedir nem ocorre identidade de sujeitos.

4- Não há identidade da causa de pedir porque, na presente acção, o fundamento do pedido é a incapacidade acidental do testador, enquanto que, na acção anterior, o fundamento do pedido foi a interdição do testador.

Na verdade,

5- Na douta sentença proferida no primeiro processo (5247/17.8T8MAI) só haveria que decidir em função da única causa de pedir ali apresentada - a interdição do testador decretada por sentença de 26 de Junho de 2010, devido a incapacidade por anomalia psíquica fixada desde o seu nascimento, o que o impedia de poder celebrar os Testamentos por si outorgados, o primeiro de 03 de Abril de 2007 e o segundo de 24.5.2011.

6- Esta sentença, no entanto, determinou a improcedência do pedido de declaração de nulidade do testamento outorgado em 3.4.2007, "por a declaração de sentença do início de incapacidade, no caso reportando-a ao nascimento, não ter efeito retroactivo quanto ao início da interdição".

7- Na acção aqui em apreço invoca-se como causa de pedir que o CC se encontrava, quando subscreveu o Testamento em 3 de Abril de 2007, incapacitado de entender o sentido das declarações que ali produziu e não tinha o livre exercício da sua vontade.

8- Esta invocação não foi objecto na acção anterior de qualquer decisão de mérito.

9- Esta nova factualidade, não é desenvolvimento da causa de pedir formulada no processo anterior (5247/11.8T8MAI), sendo-lhe, antes, completamente independente e autónoma.

10- Enquanto a 1ª acção se baseava na interdição do Testador, e portanto na sua incapacidade para o exercício do direito de outorgar Testamentos, - nos termos do disposto no Artº 123, aplicável por força do disposto no Artº 139, ambos do Cód. Civil – a presente acção funda-se na incapacidade acidental do Testador anterior à propositura da acção de interdição, - portanto no disposto nos Artºs 2199 e 150 do Cód. Civil.

De resto,

11- A presente acção de anulação do Testamento de 3.4.2007 teria até que ser proposta apenas com base na incapacidade acidental, sem recurso à acção de interdição - cuja sentença lhe foi posterior, e não poderia ter efeitos retroactivos.

Pelo exposto,

12- A causa de pedir aduzida na presente acção é nova, diversa e autónoma da que foi invocada na 1ª Acção.

De sublinhar que,

13- Na lógica do entendimento da sentença recorrida, apesar da absolvição da instância decretada, o aqui recorrente não poderia propor nova acção, por não ser possível reparar o vício - a causa de pedir que fundamentou a presente acção, não obstante não ter sido objecto de qualquer decisão de mérito, não poderia ser utilizada em nova acção, sob pena de caso julgado.

14- O que conduziria à errada aplicação da Lei, por omissão ao disposto no Artº 20, n° 1 da Constituição da Republica Portuguesa, que garante o acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, constituindo inconstitucionalidade.

Por outro lado,

15- Entre as duas acções não há qualquer identidade de sujeitos, porque estes se encontram em diferentes lugares processuais nas 2 lides - o aqui A. era, (com outros), R. na 1ª Acção, sendo que nesta (1ª Acção) era A., (BB), a qual é,(com outros), R. na presente acção

16- O entendimento de que, nestas circunstâncias, existe caso julgado por identidade dos sujeitos, impossibilitaria o A., aqui recorrente - que em nada contribuiu para a propositura da primeira acção, que até tinha interesse na procedência da mesma, e que não tinha qualquer meio para alterar a respectiva Petição Inicial - de propor acção própria na defesa dos seus direitos e legítimos interesses, onde pudesse invocar, com vista à nulidade do Testamento de 3.4.2007, fundamento não utilizado na acção anterior, ou seja, a incapacidade acidental do referido CC aquando da outorga do Testamento de 3.4.2007.

17- O que constituiria inconstitucionalidade por omissão de aplicação do disposto no nº 1 do Artº 20 da Constituição da República Portuguesa - princípio da Garantia de Acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos-.

Sem prescindir,

18- Este entendimento da douta sentença recorrida, poderia ainda conduzir a abuso do direito - seria suficiente que um herdeiro de CC, que pretendesse perpetuar a validade do Testamento de 3.4.2007, propusesse acção judicial contra todos os demais herdeiros pedindo a nulidade deste, utilizando, de má fé e dolosamente, deficientes e ou insuficientes fundamentos, para impedir todos os demais herdeiros de pedir a anulação do mesmo!!

19- A sentença recorrida violou, além do mais, o disposto nos Artºs 580º e 581 do Código de Processo Civil, nos Artºs 123º, 139º, 2199º e 150º do Código Civil e ainda, por omissão de aplicação, o disposto no Artº 20, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa.

20- Tratando-se de recurso interposto de decisão referida no nº 1 do Artigo 644º do C.P.C., é propósito do Recorrente que o recurso suba imediatamente ao Supremo Tribunal de Justiça, visto que estão verificados os requisitos fixados no nº 1 do Artº 678º do mesmo Código, o que se requer.

Nestes termos, e nos mais que V.Exas doutamente suprirão,

Deve julgar-se não verificada a excepção de caso julgado e revogar-se a sentença recorrida, determinando-se, ainda o prosseguimento dos presentes autos para prolação de decisão de Mérito, tudo com as legais consequências.

Assim se espera por ser de

Direito e de Justiça”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata e directa para este Supremo Tribunal, com efeito meramente devolutivo, efeito que foi mantido pelo Relator.

           Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
           Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única verdadeira questão que importa dirimir consiste em saber se não se verifica a excepção dilatória do caso julgado.

II. Fundamentação


1. De facto

Na decisão recorrida não foram autonomizados factos provados, tendo apenas sido referenciados a propósito da apreciação e qualificação jurídica. Todavia, para uma melhor compreensão, importa aqui enunciá-los, o que se faz da seguinte forma:
a) CC foi declarado interdito por sentença proferida no, então, 1.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Maia, de 25/6/2010, transitada em julgado no dia 1 de Setembro de 2010, por padecer de anomalia psíquica desde 1 de Novembro de 1940, data do seu nacimento, tendo sido fixado nessa data o início de tal incapacidade.
b) Em 11/10/2017, BB, na qualidade de tutora do interdito, CC, intentou contra AA, DD, EE,FF, GG, HH, II e JJ, a acção n.º 5247/17.8T8MAI, que correu termos no Juízo Local Cível da ... – Juiz 1, peticionando a declaração de nulidade dos testamentos lavrados em 3/4/2007 e em 24/5/2011, aquele no Cartório Notarial do Licenciado ..., em ..., e este no Cartório Notarial do ..., do Licenciado LL outorgados pelo interdito, alegando que este se encontrava incapaz de celebrar qualquer testamento, porquanto a incapacidade determinada em sede judicial remontava à data do seu nascimento.
c) Por sentença de 29/1/2018, essa acção foi julgada parcialmente procedente, tendo sido declarado nulo o testamento outorgado em 24/5/2011.
d) Nessa mesma sentença foram absolvidos os réus quanto ao restante pedido, ou seja, relativamente ao pedido de declaração de nulidade do testamento lavrado em 3/4/2007, por ter sido outorgado antes da declaração de interdição e por esta não ter efeitos retroactivos, apesar da fixação do início da incapacidade em data anterior, o que apenas importaria na sua anulabilidade por incapacidade acidental, caso fossem alegados e demostrados os respectivos requisitos.

2. De direito


Como é sabido, a excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir, ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário, obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição da instância (cfr. art.ºs 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º, n.º 1, 581.° e 619.°, n.º 1, todos  do CPC).
Os seus requisitos, de verificação cumulativa, estão previstos no citado art.º 581.º nos seguintes termos:
“1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”
Reporta-se, assim, à tríplice identidade relativa aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, de verificação cumulativa, como resulta da lei e tem sido entendimento unânime.
Quanto à identidade dos sujeitos, há que atender, como diz o n.º 2 do citado art.º 581.º, à “qualidade jurídica” em que o autor e o réu intervêm, donde deriva que, “havendo representação, a parte é o representado e não o representante”[4]. É a posição ou a qualidade jurídica na titularidade de direitos e obrigações contemplados pelo julgado que importa considerar[5]. Todavia, a relatividade subjectiva do caso julgado não obsta a que este se possa estender a terceiros, nos casos em que da lei resulte tal extensão[6].
Na definição da identidade do pedido, “há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem”, sendo que “à identidade de efeito jurídico referida no n.º 3 basta … uma identidade relativa, abrangendo, «não só o efeito preciso obtido no primeiro processo, como qualquer que nesse processo houvesse estado implicitamente mas necessariamente em causa» (Castro Mendes, Limites objectivos…, p. 350). Por outro lado, apresentando-se o pedido determinado material e processualmente …, interessa fundamentalmente ao conceito de repetição o efeito jurídico de direito material, mas a função do caso julgado não impede que, com base na decisão anteriormente proferida, se peticione um efeito processual não abrangido pela decisão proferida: pode, por exemplo, pedir-se a condenação do réu no cumprimento da obrigação reconhecida em acção de simples apreciação…”[7].
Daí que se possa afirmar que ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo.
A causa de pedir é o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido[8].
Legalmente definida no n.º 4 do citado art.º 581.º como “facto jurídico” de que procede a pretensão deduzida, a mesma consubstancia-se na factualidade alegada pelo autor como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, a qual não pode ser destituída de qualquer valoração jurídica, sendo antes “relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, ambos do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor[9]. É o que se designa por princípio da causa de pedir abertas”, como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/9/2018, proferido no processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1[10], que acrescenta: 
“Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:
a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima[11], traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;
b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota[12], o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.”
E, após fazer referência a outras teorias, prossegue afirmando que a orientação corrente vai no sentido de que o n.º 4 do citado art.º 581.º acolhe a doutrina da substanciação, “segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido”, procedendo, de seguida, às citações que seguem.
Sintetizando tal orientação, Abrantes Geraldes[13] escreve o seguinte:
«No art.º 498.º [atual art.º 581.º, n.º 4, do CPC] o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)
Assim, a densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.
Todavia, importa distinguir, por um lado, os factos essenciais nucleares, estruturantes ou identificativos da causa de pedir; por outro lado, os factos complementares que, embora essenciais à procedência da pretensão deduzida, não relevam para identificação ou inteligibilidade daquela.
A par disso, tem-se entendido que, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.»
Segundo Lebre de Freitas[14]:
«(…) embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo».
Também Teixeira de Sousa[15] elucida que:
«A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.
(…)
Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.»
E conclui:
“Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir.
Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.”
Diferente da excepção do caso julgado, com a qual não se confunde (ou, pelo menos, não deve ser confundida, embora a prática nem sempre o confirme), é a autoridade do caso julgado.
Este radica nos art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, ambos do CPC, dispondo o primeiro que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”; e o segundo que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).
Ambos respeitam ao caso julgado material e pressupõem o trânsito em julgado da decisão (cfr. art.º 628.º).
A excepção do caso julgado, enquanto excepção dilatória, tem que ver com “um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de essa mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.
Pelo contrário, a figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relações – já não de identidade jurídica – mas de prejudicialidade entre objectos processuais: julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes – incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção. Ou seja, estamos aqui confrontados com a chamada função positiva do caso julgado …, mediante a qual a vinculatividade própria do instituto do caso julgado impõe que o objecto da primeira decisão funcione como pressuposto indiscutível da nova decisão de mérito, a proferir na segunda causa, incidente sobre relação jurídica diversa, mas dependente ou condicionada pela anteriormente apreciada, em termos definitivos, pelo tribunal[16].
Como se afirma no acórdão de 19/2/09 do STJ, proferido no processo n.º 09B0081, citado no acórdão deste Tribunal identificado na nota anterior:
“A excepção de caso julgado visa evitar que o tribunal se veja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. A autoridade de caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.
Assim, em primeiro lugar, essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do tribunal: se tal ocorrer, por força da figura da excepção de caso julgado – que reflecte a chamada função negativa da figura do caso julgado -  deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou questão que se mostra já jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objecto de uma anterior acção.”
O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa.
A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por fim evitar contradições ou reproduções (cfr. art.º 580.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a excepção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.
O Prof. Lebre de Freitas também escreveu[17]: “A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida…”.
No mesmo sentido, propugna o Prof. Miguel Teixeira de Sousa que escreveu[18]: “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior”, já “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.
Tem sido entendido por alguns, nomeadamente a maioria da jurisprudência, que a autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida[19].
Feitas estas considerações, vejamos o caso dos autos.
A vertente da figura do caso julgado que está aqui em causa é a relativa à excepção dilatória de caso julgado, pois foi essa a que foi julgada procedente no despacho recorrido e é contra esse entendimento que se insurge o recorrente, sustentando que ela não existe por não se verificar identidade de sujeitos nem de causas de pedir.
E tem razão.
Relativamente à identidade de sujeitos, constata-se que a aqui ré BB foi demandada nesta acção, “por si e na qualidade de tutora do interdito CC”, enquanto que na acção supra identificada na alínea b) da fundamentação de facto interveio apenas nesta qualidade. Ao propor essa acção em representação do interdito, a parte é o representado, ou seja, o dito interdito e não ela, seu mero representante (cfr. art.ºs 124.º e 139.º, ambos do Código Civil e art.ºs 15.º e 16.º, n.º 1, ambos do CPC). Quer isto dizer que nessa acção não teve qualquer intervenção por direito próprio, ou seja, não foi parte.
Ainda que não obste à identidade das partes o facto de elas aparecerem no novo processo em posição inversa da que tiveram naquele em que foi proferida a sentença[20], no caso, não pode falar-se em inversão da posição, visto que na primeira acção a referida BB não teve qualquer intervenção para sustentar um direito próprio.
Também se nos afigura não ser caso de extensão da eficácia do caso julgado. Nada permite concluir que a BB está abrangida pela força do caso julgado formado com a prolação da sentença ali proferida e, assim, impedir a propositura desta nova acção por um interessado ali demandado, o qual nenhuma responsabilidade teve na propositura da primitiva acção e nada podia fazer para suprir a falta da intervenção daquela, nem recorrer da sentença na parte em que foi julgada improcedente, por lhe ser favorável.
Não existe, pois, identidade de sujeitos, contrariamente ao sustentado no despacho recorrido.

Passando à apreciação das causas de pedir de ambas as acções, constata-se que:
            A 1.ª acção – a supra identificada sob a al. b) – foi estruturada a partir da incapacidade decorrente da interdição por anomalia psíquica do testador CC, partindo-se daí para a invalidade dos dois testamentos por ele outorgados, independentemente da data da sua outorga.
           É o que resulta, de forma clara, da petição inicial, onde foi alegado que o referido CC outorgou dois testamentos, um em cada data – 3/4/2007 e 24/5/2011 – e que o mesmo foi declarado interdito por anomalia psíquica noutra data – 25/6/2010 – acabando, com base nela, por ser formulado o pedido de declaração de nulidade de ambos os testamentos.
E foi assim que o Tribunal que a apreciou a entendeu como fez constar logo que começou a apreciação de direito, escrevendo “A autora defende que os dois testamentos são nulos porque outorgados por um interdito por anomalia psíquica”.
Foi também perante a alegação de o testador ter sido declarado interdito por anomalia psíquica que o Tribunal entendeu, face ao teor dos art.ºs 2189.º, al. b) e 2190.º, ambos do Código Civil, e atenta a circunstância de aquela declaração só ter efeitos para futuro, ou seja, após o trânsito em julgado da sentença que a decretou (1/9/2010), que tal interdição apenas afectava o testamento de 24/5/2011, julgando procedente a acção relativamente ao pedido de declaração de nulidade deste segundo testamento.

Por sua vez, na presente acção, a causa de pedir foi estruturada com base na incapacidade acidental no momento da outorga do primeiro testamento, de 3/4/2007.
É o que consta da petição inicial, nomeadamente nos art.ºs 16.º a 34.º, onde foi alegado, em síntese, que:
- o referido CC sofre, desde a nascença, de debilidade mental, doença hereditária que lhe causa grave e irreversível atraso mental e intelectual;
-  desde a nascença, apresenta um défice cognitivo grave, sendo incapaz de reger a sua pessoa autonomamente;
- no momento em que foi outorgado aquele primeiro testamento, mercê da sua constante debilidade mental, não podia perceber, minimamente, o sentido das declarações nele produzidas, nem se encontrava no exercício da sua vontade;
- nesse contexto, não tinha a mínima capacidade de entender ou de querer.

Confrontando as causas de pedir das duas acções, facilmente se constata que elas são diferentes. Enquanto a primeira é construída, relativamente aos dois testamentos, com base na nulidade decorrente da interdição por anomalia psíquica do testador CC, sanção prevista no art.º 2190.º do Código Civil, a segunda apresenta-se estruturada com base na incapacidade acidental no momento da outorga do primeiro testamento, o que o torna anulável nos termos do art.º 2199.º do mesmo Código[21].

Esta causa de pedir não foi objecto da primeira acção, nem podia ter sido, pela simples razão de que não foram alegados os respectivos factos, como, aliás, foi reconhecido na respectiva sentença.

O facto de nela se fazer referência à falta de alegação de factos integradores da incapacidade acidental, único vício que poderia afectar o primeiro testamento, tendo, por isso, improcedido, nessa parte, a acção, não obsta a que, em acções posteriores, como foi a presente, tal ocorrência viesse a ser “invocada para ser apreciada à luz de diferente enquadramento jurídico”[22].

É também este o entendimento deste Supremo Tribunal, como se pode ver no, já mencionado, acórdão de 18/9/2018, proferido no processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1, em cujo sumário se pode ler:

1. A exceção de caso julgado material exerce uma função negativa consistente no impedimento de que as questões alcançadas por caso julgado anterior se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura, tendo como requisitos a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, nos termos do artigo 581.º do CPC. 

2. Para tais efeitos, a identidade do pedido afere-se pela identidade do efeito prático-jurídico considerado à luz do estatuído no quadro normativo aplicável ao litígio em causa.  

3. Por sua vez, a causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo impetrante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.

4. A densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.

5. Todavia, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.

6. Embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir. 

7. Porém, perante uma pretensão deduzida e julgada numa ação, não basta empreender uma qualificação jurídica diferente sobre a mesma factualidade para, em ação posterior, se concluir por causa de pedir diversa, já que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”.

8. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

9. ….”.

De resto, relativamente aos efeitos preclusivos decorrentes da primeira acção, ao contrário do que sucede com o réu (que deve concentrar toda a defesa na contestação – art.º 573.º, n.º 1, do CPC - ou excepcionalmente em momento posterior nos termos do n.º 2 do mesmo artigo), quanto ao autor tal não ocorre, visto que não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na acção que seja proposta[23], o que está de acordo com o princípio do dispositivo.

Sobre esta matéria, o Prof. Castro Mendes já havia escrito[24]:

«sem sombra de dúvida que a pretensão do autor não está sujeita a este efeito preclusivo.»

E adianta que:

«De jure condito (…) é lícito ao autor em processo civil formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir. Efeito preclusivo só se verifica aqui no domínio pouco importante das questões secundárias ou instrumentais».

Na mesma linha, Teixeira de Sousa também escreveu[25]:

«O âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objecto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da acção com base numa distinta causa de pedir. Isto significa que não há preclusão sobre factos essenciais, ou seja, sobre factos que são susceptíveis de fornecer uma nova causa de pedir para o pedido formulado.

Mas está precludida a invocação pelo autor de factos que visam completar o objecto da acção anteriormente apreciada, mesmo que com uma decisão de improcedência. (…) Portanto, quanto ao autor a preclusão incide apenas sobre os factos complementares. (…)

A preclusão incide igualmente sobre as qualificações jurídicas que o objecto alegado pode comportar e que não foram utilizadas pelo tribunal.»

Regressando ao caso dos autos, embora ambas as acções visem a invalidade do mesmo testamento – o de 3/4/2007 –, elas têm causas de pedir distintas, pelo que o trânsito em julgado da sentença proferida na primeira – supra identificada em b) – não obstava a que fosse instaurada a presente acção.

Não se verifica, por conseguinte, a excepção dilatória do caso julgado, contrariamente ao decidido no despacho recorrido.

O recurso merece, pois, provimento.

Sumariando:
1. A excepção dilatória do caso julgado, reflectindo a função negativa do caso julgado, pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do art.º 581.º do CPC.
2. Já a autoridade do caso julgado, diferente daquela, exerce a função positiva do caso julgado e tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do mesmo Código.
3. A qualidade jurídica a que se deve atender para efeito de aferição da identidade de sujeitos reporta-se às partes, pelo que, havendo representação, a parte é o representado e não o representante.
4. A causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo demandante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.
5. O autor não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na acção que seja proposta, o que está de acordo com o princípio do dispositivo.
6. Não existe identidade de causas de pedir entre uma acção estruturada a partir da incapacidade decorrente de interdição por anomalia psíquica do testador e, com base nela, foi pedida a declaração de nulidade e outra acção baseada na incapacidade acidental do mesmo testador.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista procedente e em revogar o despacho recorrido, determinando-se o legal prosseguimento dos autos.


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Custas:

- da acção pela parte vencida a final;

- da revista pelos recorridos.


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Lisboa, 30 de Abril de 2019

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Maia – Juiz 3.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães

[3] Sob o n.º 3 foi indicado, na petição inicial, certamente por lapso, o nome de AA que é o autor.
[4] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina pág. 592.
[5] Neste sentido, vide, entre outros, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1981, pp. 97-99.
[6] Cfr. Alberto dos Reis, ob. cit. p. 99, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra cit., p. 593 e acórdão do STJ de 22/6/2017, processo n.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, também citado e transcrito parcialmente no despacho recorrido.
[7] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra citada, págs. 593 a 597.

[8] Neste sentido, José Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol.2. pág. 370.
[9] A este propósito, vide Miguel Teixeira de Sousa, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex, Lisboa, 1995, pp. 123-125
[10] Acessível em www.dgsi.pt.
[11] Vide, MILTON PAULO DE CARVALHO, Do Pedido no Processo Civil, FIEO – Fundação Instituto de Ensino para Osasco, Porto Alegre, 1992, p. 93.
[12] MILTON PAULO DE CARVALHO, ob. cit. p. 93.
[13] In Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, pp. 192-193.
[14] Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil” Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, in ROA 2006, Ano 66, Vol. III, acessível na Internet https://portal.oa.pt./publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006, p. 8. 
[15] Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pp. 395 e ss. (395, 401-402).
[16] Cfr. acórdão do STJ de 24/4/2013 do processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt e o acórdão da RP de 22/10/2013, proferido no processo n.º 272/12.8TBMGD.P1, publicado em www.dgsi,pt e na CJ, ano XXXVIII, tomo IV, págs. 199 a 202, relatado pelo aqui também Relator.
[17] Cfr. Obra citada, pág. 599.
[18] In O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, págs. 49 e sgs.”.
[19] Cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 13/12/2007, processo n.º 07A3739; de 6/3/2008, processo n.º 08B402 e de 23/11/2011, processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1 e de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt., referentes ao anterior art.º 498.º, a que corresponde aquele, sem alterações e, ainda, o acórdão do STJ de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, disponível no mesmo sítio da internet.
[20] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, pág. 311.
[21] Apesar da qualificação indevidamente efectuada e não obstante a falta de indicação deste preceito legal, já que compete ao tribunal fazê-lo correctamente, pois “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (cfr. art.º 5.º, n.º 3 do CPC), cabendo às partes “alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (n.º 1 do mesmo art.º 5.º).
[22] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil, vol. I, pontos 7, 8, 9 e 11 da anotação ao art.º 581., citado pelo Prof. Paulo Pimenta, no parecer junto a estes autos, donde foi extraída a expressão acabada de transcrever.
[23] Cfr. Abrantes Geraldes e outros, obra citada, ponto 12 da anotação ao art.º 581.º.
[24] In Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, s/d, p. 179.
[25] In Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2.ª Edição, Lisboa, 1997, p. 585-586.