Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1219
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DE SINISTRADO
DIREITO DE REGRESSO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Nº do Documento: SJ200605300012196
Data do Acordão: 05/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Não existe direito de regresso quando o abandono sinistrado não contribuiu para agravar os danos consequentes do acidente, e a indemnização voluntariamente paga pela seguradora nem sequer distinguiu entre os danos derivados de responsabilidade civil e os derivados de tal abandono.
II - O preceito da lei (no caso presente al c) do D.L. 522/95 de 31/12) deve na dúvida ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura ( English, Introdução ao Pensamento Jurídico).
III - Uma boa interpretação da lei não é aquela que, numa perspectiva hermenêutico - exegética determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectiva prático - normativa utiliza bem a norma como critério de decisão do problema concreto (Prof. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica).
IV - Por vezes há que considerar uma determinada norma como afloramento de um princípio geral, devendo, por isso, aplicar-se sempre que surjam situações merecedoras de idêntico tratamento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Empresa-A intentou acção ordinária contra AA pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €17.500 e juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento, baseada no seu direito de regresso, já que em acidente de viação abandonou o sinistrado.
O processo seguiu seus termos com contestação do Réu, tendo findos os articulados sido proferidos nos termos do art.º 51ºº nº1 b) C.P.C. despacho saneador sentença a julgar a acção procedente.
De tal decisão interpôs o Réu recurso admitido "per saltum" para este Supremo Tribunal como revista (art.º 725 C.P.C.).
Formula nas suas alegações as seguintes conclusões:
«1 ª - O ora recorrente foi condenado pelo crime de omissão de auxílio, pena essa suspensa na sua execução pelo período de 3 anos condicionada ao pagamento de determinada quantia - o que tudo foi cumprido. Contudo,
2ª - Tal facto - por si só - não confere à Seguradora o exercício do direito de regresso discutido nos autos.
3ª - Demandante e demandado transaccionaram no processo crime em causa onde o acorrente não era parte cível - antes e tão só Réu criminal não é peco facto de ter sido condenado peco crime em causa que tem que suportar tal quantia.
4ª - A indemnização conferida peca Seguradora foi no pressuposto dos danos emergentes do acidente, sem se distinguir se distinguia também os próprios do abandono.

5ª - Na transacção não se fez referência a tal ilícita situação e o que se provou, em audiência de julgamento, foi que os danos ou tesões da vítima não resultaram da falta de assistência atempada. Não existindo danos conexionados com a situação ilícita do seu abandono a Seguradora não dispõe do direito de regresso já que o que pagou (..) está englobado na sua exclusiva obrigação de indemnização, tudo conforme jurisprudência aqui novamente invocada.

6ª - Não alegou a Seguradora que resultaram outros danos ou o agravamento dos provenientes do abandono do sinistrado, o que vale por dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a mesma suportou e têm um nexo causal com o mesmo: não basta que resultem da condução, impondo-se, antes, que resultem do abandono do sinistrado.

7ª - Não havendo aquece nexo causal entre o prejuízos sofridos pela ora recorrida e a conduta referida na al c) do artigo 19° do Dec. Lei 522/85, no caso concreto - abandono de sinistrado - entende o acorrente - que não se justa o direito de regresso.

8ª - Mesmo existindo - como existiu - abandono de sinistrado - não pode sequer presumir-se a existência de nexo de causalidade entre o facto e os danos, por não existir inclusive preceito legal que estabeleça tal nexo e nem dos autos resulta tal nexo como se demonstrou.

9ª - Assim, a douta sentença recorrida violou - entre outros - o disposto no artigo 19° al c) do (Dec. Lei 522/85, de 31112,342'48Y, 494° 562° do Cód Civil.».
Corridos os vistos, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto provada:
«II- Ao contrário do entendimento manifestado pela A., não vejo que o R. tenha arguido a excepção da ineptidão da petição inicial.
Assim, não tendo tal excepção sido suscitada e não haver fundamento para a apreciar oficiosamente, não tomo conhecimento dessa questão.

Inexistem outras excepções dilatórias, nulidades ou questões prévias, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.

III - O estado da causa habilita, desde já, a uma decisão conscienciosa, motivo pelo qual se passa a conhecer do mérito da causa ( art° 510°, n° 1, b) do CPC ).
Empresa-A, com sede na Av. José Malhoa, n° ..., 1070-157, Lisboa intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra AA, residente no ..., ....., ...., Mealhada pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 17500, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, desde a citação até integral pagamento.
Por forma a obter procedência do pedido, a A. alegou, em síntese, factos tendentes a demonstrar assistir-lhe direito de regresso relativamente a valores que pagou na decorrência de acidente de viação, por o R. ter na produção do acidente ter abandonado o sinistrado.
Contestou o R. e, embora sem impugnar qualquer dos factos alegados, sustentou, no essencial, que não existem fundamentos para a procedência do pedido já que a indemnização foi prestada no pressuposto dos danos emergentes do acidente sem distinguir se abrangia também os próprios do abandono, sendo que o direito de regresso apenas abrange os prejuízos que a A. suportou e tenham um nexo causal com o abandono de sinistrado.

De acordo com o estatuído nos art°s. 490°, n° 2 (falta de impugnação e 674°-A do CPC (oponibilidade da decisão penal condenatória), considero provados os seguintes factos:
1. A A. dedica-se à actividade seguradora
2. No exercício da sua actividade, a A. celebrou com BB o contrato de seguro titulado pela apólice junta a 17 a 30 e que aqui se dá por reproduzida, mediante o qual BB transferiu para a A. a responsabilidade civil dia emergente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes Benz, com a matrícula ND.
3. No dia 11 de Abril de 2002, pelas 23h., o R. AA tripulava a viatura ND pela Estrada Municipal n° 1136, em Adões, pela direita da metade direita da faixa de rodagem, no sentido Adões/Sargento Mor
4. Sem que nada o justificasse, o R. foi embater com a parte da frente, lado direito - zona do farol de " pisca " - em CC
5. CC circulava a pé naquela estrada, no sentido Sargento-Môr-Adões, pela berma ali existente do lado direito, atento o sentido de marcha do ND
6. Em consequência do embate, CC foi projectado para o chã, ficando caído junto da berma existente do lado por onde caminhava
7. O R., apesar do embate e de ter verificado que o CC necessitava de assistência, parou a viatura um pouco
mais à frente do local do embate e, de seguida, reiniciou a marcha, pondo-se imediatamente em fuga, sem prestar qualquer tipo de assistência ou auxílio ao CC, nem sequer alertando as autoridades ou chamado uma ambulância.
8. Após o embate, CC foi socorrido por DD e por,
9. "EE" perseguiu a viatura conduzida pelo R., tendo apontado a matrícula e posteriormente informado as autoridades policiais
10.O local onde o embate ocorreu apresenta traçado rectilínio, com uma via de trânsito em cada sentido de marcha e boas condições de visibilidade
11.Na altura não circulava qualquer veículo no sentido contrário ao seguido pelo R.
12.O tempo estava bom e o piso encontrava-se em bom estado de conservação
13. Após o embate CC foi transportado pelo INEM para os HUC, onde lhe foi diagnosticado um traumatismo craniano, uma fractura do terço médio do sacro, com ligeiro desvio do topo distal para diante e uma entorse das articulações interfalângicas, proximal e distal, do indicador da mão direita, que lhe demandaram 129 dias de doença com incapacidade para o trabalho
14. No cumprimento do contrato referido em 2, a A. pagou a CC a quantia de € 17500 a título de indemnização
15. Esse montante foi ajustado por acordo efectuado entre a ora A. e CC no âmbito do processo singular n° 1398/2.1TACBR que correu os seus termos pelo 3° Juízo Criminal de Coimbra, acordo que foi homologado por sentença transitada em julgado, nos termos constantes de f1s. 114 a 125, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
16. Por sentença proferida no âmbito desse processo, junta a fls. 126 a 129 - aqui dada por reproduzida, o ora R. foi condenado relativamente ao embate supra referido, como autor de um crime de omissão de auxilio, p. e p. pelo art° 200°, nos 1 e 2 do Cód. Penal, na pena de onze meses de prisão.
17. Por acórdão transitado em julgado em 13 de Janeiro de 2005, junto a fls. 149 a 160, foi essa pena declarada suspensa na sua execução, pelo período de 3 anos, condicionada ao pagamento de quantia aí fixada.».

Feita esta enumeração e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente começaremos por dizer que ele tem razão.
Com efeito, a questão fulcral e única a decidir é a de saber se a Autora recorrida Empresa-A tem o seu invocado direito de regresso ou não.
A solução desta questão prende-se com a interpretação da alínea c) do art.º 19 do D.L. 522/85 de 31/12, com o determinar se tendo havido abandono de sinistrado o direito de regresso da seguradora abrange toda a indemnização paga por esta ou apenas a que resulte especificadamente desse abandono ou do agravamento dos danos do acidente daí derivados.
Na decisão recorrida entendeu-se que o direito de regresso abrange a totalidade da indemnização, considerando que aquela norma tem cariz moralizador, estabelecendo uma "sanção civil", fundada tão só na prova do abandono do sinistrado.
Entendemos, contudo, que tal tese não é de seguir, sendo a outra a corrente maioritária e recente deste Supremo Tribunal (v. Ac. de 29/11/2005, C.J. Ac.s S.T.J. ano XIII tomo III, pág. 138, Revista 3380/05, e ainda o Ac. de 17/1/2006, Revista 2705/05, 1ª Secção ou interposta pela Empresa-A).
Ou seja, para que haja lugar a direito de regresso da seguradora necessário se torna que os prejuízos suportados por esta derivem, como consequência típica e adequada, do abandono de sinistrado, que seja feita a prova de que os prejuízos reclamados por aquela resultam especificamente de tal abandono, não sendo suficiente a mera alegação e prova deste, como o fez no caso presente a Autora recorrida.
Na verdade, estabelece-se na dita alínea c) do art.º 19 do D.L. 522/85 que satisfeita a indemnização a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado.
Ora cumpre salientar a este propósito que estamos aqui a analisar e decidir tão só um caso de abandono de sinistrado, mas é seguro que ele tem de suportar o mesmo enquadramento jurídico do caso de condução sob a influência do álcool, pois, ambas as situações apresentam, indubitavelmente, fortes pontos de contacto.
E quanto a este último decidiu o Ac. Uniformizador nº6/02 de 28/5/02 deste Supremo Tribunal de Justiça (D.R. 1ª -A de 18/7/2000) - que então subscrevemos - que:
A alínea c) do art.º 19 do D.L. 522/85 de 31/12 exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequado entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
A lei não distingue entre as várias hipóteses, nem se vê que o intérprete o possa e deva fazer.
Como se salienta naquele Acórdão "o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais do direito, uma vez que nenhuma disposição do D.L. 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral".
Assim, para se responsabilizar o Réu, ora recorrente, pela indemnização paga pela seguradora recorrida, teria que ser alegado e provado que do abandono do sinistrado praticado por aquele resultaram danos específicos para este ou a agravação dos que lhe derivaram do acidente.
E tal alegação e prova não foi feita pela Autora, pelo que não sendo o abandono, só por si, causador de prejuízo não se justifica a condenação do Réu, tendo a acção de ser julgada improcedente.
A Autora não alegou específicos danos do abandono, nem os mencionou ao acordar pagar a indemnização na transacção efectuada, pelo que não tem direito de regresso contra o Réu.
A isto nos conduz, em suma, a interpretação que temos por correcta da supra mencionada alínea c) do art.º 19º do D.L. 522/85, norteada pela necessidade de se procurar o sentido desta norma em função da própria razão de ser dela ou do seu sentido prático.
Sabe-se, como diz English in Introdução ao Pensamento Jurídico, 2ª ed; pág. 112 que "o preceito da lei deve na dúvida ser interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a cultura".
Como salienta o Prof. Castanheira Neves, in Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, "uma boa interpretação da lei não é aquela que, numa perspectiva hermenêntico-exegética determina correctamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério de decisão do problema concreto".
Finalmente o dizer-se que por vezes há que considerar uma determinada norma como afloramento de um princípio geral devendo, por isso, aplicar-se sempre que surjam situações merecedoras do mesmo tratamento.
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, procedem as conclusões das alegações da recorrente.

Decisão
1 - Concede-se a revista revogando-se o decidido na 1ª instância e absolvendo-se o Réu do pedido formulado pela Autora.
2 - Custas por esta última.

Lisboa, 30 de Maio de 2006
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
Silva Salazar