Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
869/18.2JACBR-G.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
DETENÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O habeas corpus, que visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal, constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade.
II - Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art. 222.º, n.º 2, do CPP – ou de a prisão ter sido efectuada por entidade incompetente – al. a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al. b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al. c).
III - E há-de a privação de liberdade ilegal manter-se no momento em que providência é apreciada.
IV - Os prazos de duração máxima de prisão preventiva previstos no art. 215.º, do CPP contam-se a partir do momento em que o arguido é sujeito a essa medida de coacção, por despacho judicial.
V - A detenção, em flagrante delito ou fora de flagrante delito, ainda que imediatamente preceda a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, é uma situação de privação de liberdade distinta da prisão preventiva e, embora em certas circunstâncias produza os mesmos efeitos (v.g., desconto no cumprimento da pena de prisão, nos termos do art. 80.º, do CP), não se confunde com ela.
I. Para efeitos de contagem dos prazos de duração máxima de prisão preventiva só releva o tempo decorrido após a aplicação judicial de tal medida de coacção, neles não se computando o tempo da detenção.
II. Aos prazos máximos de prisão preventiva – tal como, aliás, ao prazo para apresentação judicial do arguido detido –, aplicam-se as regras de contagem do CC, arts. 296.º e 279.º.
III. O momento relevante para aferição do termo final (intercalar) dos prazos de prisão preventiva até a dedução da acusação – art. 215.º, n.os 1, al. a), 2 e 3, do CPP – é o da prolação do próprio libelo que não o da sua notificação ao arguido.
Decisão Texto Integral:


Proc. n. º 869/18.2JACBR-G.S1
5ª Secção
Habeas Corpus

acórdão
Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: 

I. relatório.
1. AA, (co-)arguido nos autos de Inq. n.º 869/18....... Secção …. do Departamento de Investigação e Acção Penal do Tribunal Judicial da Comarca .... – doravante, Requerente –, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, «vem requerer a concessão imediata da providência DE HABEAS CORPUS em razão da prisão ilegal, nos termos da alínea c) do nº 2 do art.º 222º do CPP, na medida em que se encontra ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva em que o Requerente se encontra, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:

O Requerente foi detido nos presentes autos a 27 de outubro de 2020.

Foi apresentado a primeiro interrogatório de arguido detido a 28 de outubro de 2020, tendo-lhe sido aplicado a Medida de Coação de prisão preventiva no dia 29 de outubro de 2020.

O requerente encontra-se assim, ininterruptamente, sujeito àquela Medida de Coação desde 29 de outubro de 2020 até à presente data.

No âmbito dos presentes autos está em causa a prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º do DL 15/93 de 22 de janeiro, tendo sido decretada a especial complexidade dos autos por decisão, ainda não transitada em julgado, a 27/04/2021.

Resulta da nossa lei processual penal, o seguinte:

Artigo 215.º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 6 meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro
b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;
c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respectiva passagem;
d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;
e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;
f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;
g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e 4 meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
5 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os correspondentemente referidos nos n.os 2 e 3, são acrescentados de seis meses se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.
6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.
7 - A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os prazos previstos nos números anteriores.
8 - Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são incluídos os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de permanência na habitação.

Ou seja, nos termos do nº 3 do art. 215º do CPP o prazo máximo da prisão preventiva do ora requerente é de 1 ano.

Ora, o arguido fez 1 ano que se encontra em prisão preventiva no dia de ontem – dia 29 de outubro de 2021 – sem que tenha sido proferida acusação pública, pelo que hoje a sua prisão preventiva é ilegal, devendo o mesmo ser restituído imediatamente à liberdade – o que se requer.

Nestes termos e nos melhores de Direito requer- se a V. Exas. a Concessão Imediata da Providência de Habeas Corpus, em razão de prisão ilegal do arguido AA, por se encontrar manifestamente ultrapassado o período máximo da MC de Prisão Preventiva 1 ano, e em consequência, V. Exas. determinem a libertação imediata do Arguido/requerente.
[…].».

2. No momento previsto no art.º 223º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP) [1], a Senhora Juíza do Juiz ... do Juízo de Instrução Criminal ...... lavrou informação do seguinte teor:
─ «[…].
No âmbito destes auto, o arguido AA foi detido a 27/10/2020 e foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva a 29 de outubro de 2020, aplicada na sequência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido por se ter entendido que dos autos resultavam indícios fortes da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22 de janeiro (pena e prisão de 4 a 12 anos), para além de um sério e concreto perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e perigo de fuga.
A medida de coação foi reexaminada e mantida a 26 de janeiro de 2021 (fls. 3065-3066), a 27 de abril de 2021 (fls. 4127-4128), a 26 de julho de 2021 (fls. 4749) e 26/10/2021.
Por despacho de 12 de abril de 2021, foi declarada, nos termos e para os efeitos do disposto no art, 215º 3 e 4 do Código de Processo Penal, a especial complexidade dos autos.
O M.º P.º deduziu acusação contra o arguido a 29/12/2021, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos art. 21º do Decreto-Lei nº15/93 de 22 de janeiro e, por despacho judicial proferido na mesma data, foi reexaminada e mantida a medida de coação de prisão preventiva.
Nos termos do disposto no artº 215º, nºs 1, 2 e 3 do CPP, a prisão preventiva extingue-se quando, “desde o seu início” tiver decorrido um ano “sem que tenha sido deduzida acusação”.
A detenção, em flagrante delito nos termos art.º 254º n.º 1 e 255º do CPP – como no caso – ou fora de flagrante delito nos artºs 254º e 256º do CPP, ainda que imediatamente preceda – como também no caso – a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, é uma situação de privação de liberdade distinta desta outra e não se confunde com ela.
Por isso, para efeitos de contagem dos prazos de duração máxima de prisão preventiva só releva o tempo decorrido após a sua aplicação judicial, não se incluindo nos prazos previstos no art.º 215º do CPP o tempo da detenção.
Por outro lado, o que é relevante para efeitos do prazo máximo da prisão preventiva, entende-se, é a data da elaboração da acusação proferida no processo e não com o momento em que chega ao conhecimento do arguido e seu defensor.
(neste sentido, por todos, Ac STJ de 09-02-2011, in www.dgsi.pt)
Em face do exposto, não se mostra ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva (art. 215.º n.º 1 e 3 do CPP), pelo que se mantém a referida medida de coação.
[…].».

3. O procedimento vem instruído com certidão dos, entre outros, seguintes momentos processuais:
─ Da informação da detenção do Requerente e de sete co-arguidos, em 27.10.2020, à ordem do Inq. n.º 869/18.... referido, em cumprimento de mandado de detenção fora de flagrante delito emitido pelo Ministério Público por referência a forte indiciação de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1;
─ Do auto de primeiro interrogatório judicial do Requerente e dos co-detidos, realizado no dia 28.10.2020 pelo Juiz ... do Juízo de Instrução Criminal de .......
─ Dos despachos de 26.1.202, de 27.4.2021, de 26.7.2021 e de 26 e 29.10.2021 de reexame, nos termos do art.º 213º, do estatuto coactivo do Requerente de prisão preventiva decretado em 29.10.2020 a final da diligência de primeiro interrogatório judicial.
─ Do despacho de 12.4.2021 do juízo de instrução de ... a declarar a excepcional complexidade do procedimento, nos termos e para os efeitos dos n.os 3 e 4 do art.º 215º.
─ Do despacho de acusação de 29.10.2021, deduzida pelo Ministério Público contra, entre outros, o Requerente e vinte e três co-arguidos, imputando-lhe a co-autoria de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 e requerendo, além do mais, a manutenção/prorrogação da medida de coacção de prisão preventiva.

Já neste Supremo Tribunal de Justiça, providenciou-se pela junção de certidão do despacho da Senhora Juíza de Instrução que, em 29.10.2020, aplicou ao Requerente a medida de coacção de prisão preventiva e, entre outros, do despacho de 27.4.2021 da mesma magistrada – que indeferindo arguição de nulidades, manteve o despacho de 12.4.2021 referido – e do acórdão do Tribunal da Relação ..... de 23.7.2021 que, este, julgou improcedente o recurso que o Requerente interpôs do sempre referido despacho de 12.4.2021 e do despacho de 27 seguinte que o complementou, confirmando a declaração de especial complexidade do procedimento declarada em 1ª instância.
Recolheu-se, ainda, cópia do expediente de notificação ao Requerente e à sua Defensora da acusação deduzida.
E consultou-se o sítio dos CTT, onde se verificou que a carta registada remetida à Ilustre Defensora do Requerente para notificação da acusação foi expedida a 29.10.2021 e efectivamente recebida a 2.11.2021.

4. Convocada esta 5ª Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o Defensor do Requerente, realizou-se a audiência pública – art.os 223º n.os 2 e 3 e 435.º do CPP.    
Cumpre, assim, publicitar a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II. Fundamentação.

A. Factos.
5. Dos elementos documentais que instruem o processo e da informação prestada ao abrigo do art.º 223º n.º 1, emergem, com relevância para decisão, os seguintes factos e ocorrências processuais:

(1). Em execução de mandado de detenção fora de flagrante delito emitido pelo Ministério Público nos autos de Inq. n.º 869/18.... da ... Secção de ... do Departamento de Investigação e Acção Penal do Tribunal Judicial da Comarca  ...., foi o Requerente detido no dia de 27.10.2020 por referência à suspeita da prática de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1.

(2). Apresentado – aliás, ele e outros oito arguidos, igualmente, detidos –, a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte, determinou a final do acto, em 29.10.2020, a Senhora Juíza de Instrução do Juiz ... do Juízo de Instrução Criminal de ...... que o Requerente aguardasse termos na situação de prisão preventiva, a acrescer às obrigações próprias do Termo de Identidade e Residência já prestado e à «proibição de contactar com os demais coarguidos no processo já constituídos ou a constituir e com as testemunhas já inquiridas ou a inquirir nos autos».

(3). E tudo assim em razão da forte indiciação da prática de crime de tráfico de estupefacientes, da existência de perigo de perigo de perturbação do inquérito – concretamente, para a aquisição e conservação da prova –, de perigo de continuação da actividade criminosa, de perigo de fuga e da insuficiência cautelar de medida de coacção menos gravosa e com atenção ao disposto nos art.os 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 e nos art.os 191º, 193º, 202º n.º 1 al.ª a) e 204º al.as a), b) e c).

(4). Em despacho da Senhora Juíza de Instrução de 12.4.2021, foi «conferido» aos […] autos de inquérito o carácter de especial complexidade nos termos e para os efeitos previstos no art. 215°, n°s 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal.»; despacho esse mantido por despacho de 27 seguinte, que indeferiu a arguição de nulidade invocadas pelo Requerente.

(5). O Requerente interpôs recurso para o Tribunal da Relação …. desses despachos, porém, julgado totalmente improcedente por acórdão de 23.7.2021, que confirmou as decisões de 1ª instância.

(6). Em 29.10.2021, conforme certificação da assinatura digital na aplicação CITIUS da Senhora Procuradora da República subscritora – e não em 29.12.2021 como, por lapso, refere a Senhora Juíza de Instrução na informação prevista no art.º 223º n.º 1 –, o Ministério Público no DIAP de ... deduziu  acusação contra o Requerente e vinte e quatro outros co-arguidos, imputando-lhe a prática, em co-autoria com vinte e três daqueles, de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93.

(7). Em despacho do mesmo dia, a Senhora Juíza de Instrução reexaminou, nos termos do art.º 213º 1 al.ª b), os pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva imposta ao Requerente, mantendo-a para os ulteriores trâmites processuais.

(8). Anteriormente – em 26.1.2021, em 27.2.4.2021, em 26.7.2021 e em 26.10.2021 –, tinha reexaminado os mesmos pressupostos ao abrigo do art.º 213º n.º 1 al.ª a), sempre a medida detentiva tendo sido mantida e prorrogada.

(9). O despacho de acusação foi notificado ao Requerente, na sua própria pessoa, no mesmo dia 29.10.2021, por requisição ao EPRPJ ...., onde está recluído e, na pessoa dos seu defensor por via postal registada a 29.10.2020, presumível e efectivamente, recebida em 2.11.2021.

(10). O Requerente instaurou a presente providência no dia 30.10.2021 através da sua Defensora.

(11). O Requerente está ininterruptamente recluído em estabelecimento prisional desde 29.10.2020 até ao momento presente, em cumprimento da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada.

B. Direito.
6. O artigo 31º n.º 1 da Constituição da República figura o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Visando reagir contra tal abuso de poder, o habeas corpus constitui «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade» [2]: trata-se de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, de toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário» [3].

Os fundamentos do habeas corpus estão taxativamente enumerados nos artigos 220º n.º 1 e 222º nº 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de situação de detenção ilegal ou de prisão ilegal, respectivamente, só com base neles podendo ser deferido.
Sendo que, tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art.º 222º n.º 2 do CPP – ou de a prisão «ter sido efectuada por entidade incompetente» – al.ª a) –, ou de «ser motivada por facto por que a lei a não permite» – al.ª b) – ou de «manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial» – al.ª c).

E há-de tratar-se, ainda, de ilegalidade actual, é dizer de prisão ilegal que persista no momento em que é apreciado o pedido [4].

C. Apreciação.
7. Flui, então, da factualidade assente que:
─ Sob apresentação do Ministério Público, o Requerente foi submetido a interrogatório judicial em 28 e 29.10.2021 e viu ser-lhe aplicada, nesse acto, a medida de coacção de prisão preventiva por referência à forte indiciação de crime de tráfico de estupefacientes dos art.os 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, à existência de perigos de continuação da actividade criminosa, para a aquisição e conservação da prova e de perigo de fuga e à insuficiência cautelar de medida de coacção menos gravosa.
─ Por despacho do juiz de instrução de 12.4.2021, complementado pelo 27 seguinte, foi declarada a excepcional complexidade da investigação, nos termos e para os efeitos do art.º 215º n.os 2, 3 e 4; despachos que Requerente impugnou por via de recurso para o Tribunal da Relação ....., mas que aí saíram confirmados.
─ Por despacho do Ministério Público de 29.10.2021, foi o Requerente acusado pela prática, em co-autoria, de crime de tráfico de estupefacientes do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93.
─  Por despacho da mesma data, foi mantida e prorrogada a prisão preventiva a que o Requerente vem estando ininterruptamente sujeito desde o momento do seu decretamento. E
─ À data da apresentação do pedido de habeas corpus, o despacho acusatório já tinha sido notificado ao Requerente – o que aconteceu no próprio dia 29.10.2021 –, mas não à sua Defensora, o que veio, no entanto, a acontecer em 2.11.2021.

E diz, nesse enquadramento, o Requerente que no dia 29.10.2021 se completou um ano de privação da sua liberdade, sem que, até esse momento tenha sido deduzida acusação
Por isso que reputa de ilegal a sua prisão no posterior àquela data nos termos do art.º 222º n.º 2 al.ª c), por excedido o máximo dela fixado por lei.
E pelo que quer ser de imediato libertado.

8. Mas, salvo o muito devido respeito, não assiste ao Requerente – diz-se já – o fundamento de habeas corpus que invoca – nem, aliás, qualquer outro dos previstos no art.º 222º n.º 2 CPP –, havendo a sua pretensão de ser indeferida.
Com efeito:

9. Não havendo controvérsia quanto à circunstância de o prazo de duração máxima de prisão preventiva sem que seja deduzida acusação ser, no caso, o de um ano, nos termos das disposições conjugadas dos art.os 215º n.os 1 al.ª a), 2, 3 e 4 e 1º al.ª m), e 21º n.º 1 e 51º do Decreto-Lei n.º 15/93, a invocação do excesso de prazo pelo Requerente assenta na suposição de até ao final do dia 29.10.2021 não ter sido proferida acusação, o que, porém e como se vê de 5. - (6). supra, não corresponde à realidade dos factos isso pois que o Ministério Público deduziu o libelo precisamente nesse dia.
E – o que, se dúvidas ainda houvesse, lança definitivamente por terra qualquer arguição de ilegalidade! –, sobre ter sido efectivamente proferida acusação, acontece que não só era até esse momento que o acto deveria ter sido, como foi, praticado – na perspectiva, claro está, da salvaguarda do máximo de prisão preventiva na fase pré-acusatória –, como que, tal prática, mesmo desacompanhada da formalidade da sua comunicação aos intervenientes processuais – maxime, ao Requerente e à sua Defensora –, produziu em si e por si, aquele efeito acautelatório e, tanto como isso, serviu como marco da transição para os máximos, acumulados, da(s) fase(s) imediatamente seguinte(s), o de 1 ano e 4 meses sem que haja decisão instrutória – vindo, já se vê, a ser requerida a instrução – e o de 2 anos e 6 meses sem que haja condenação em 1ª instância.
É que:

10. Como resulta do que se recenseou em 6. supra, o Requerente foi detido em 27.10.2020, esteve presente em diligência de primeiro interrogatório judicial em 28 e 29 seguintes [5] e viu ser-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva nesta última data.
Ora, de acordo com o entendimento, pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal ilustrado, v. g., no recente AcSTJ de 2.6.2021 - Proc. n.º 156/19.9T9STR-A.S1, é a partir do momento da aplicação da prisão preventiva que se contam os prazos máximos da medida de coacção correspondentes à fase pré-acusatória previstos no art.º 215º n.os 1 al.ª a), 2 e 3 – no caso e como já dito, o de um ano –, e não do da detenção que o tenha precedido [6].     

Tendo, então, como termo a quo o momento do decretamento da prisão preventiva, o prazo em causa é, de outro lado, de natureza substantiva [7] que não processual.
Do que decorre que – e trata-se, de novo, de asserção incontestada na jurisprudência deste STJ, documentada, v. g. no Acórdão de AcSTJ de 21.6.2012 - Proc. n.º 62/12.8YFLSB.S1 [8] –, devendo computar-se nos termos dos art.os 296º e 279º do Código Civil, atinja o seu termo final – al.ª c) deste último preceito – «às 24 horas do dia que corresponda, dentro do último […] ano, a essa data», ou seja e no caso, no dia 29.10.2021 às 24.00 horas.

Qual deva ser esse acto – isto é, o de acusação tout court, como parece inculcar a letra do art.º 215º n.º 1 al.ª a) [9], ou o da sua notificação aos intervenientes processuais, maxime ao arguido, como com alguma frequência se vê sustentado – é ponto sobre que a jurisprudência deste STJ [10] também não denota hesitações, que unanimemente vem afirmando a relevância da acusação em singelo, sendo pela respectiva data que, no sistema faseado de prazos máximos da medida de coacção desenhado no art.º 215º [11], se confere a observância do máximo de privação da liberdade inicial e sendo por ela que se transita para o acumulado seguinte de, in casu, 1 ano e 4 meses sem que haja decisão instrutória ou o de 2 anos e 6 meses, sem que haja condenação em 1ª instância: é o que (também) se pode ver no Ac STJ de 21.6.2012 citado, mormente, nos passos em que afirma que «[a] norma processual não faz depender a passagem do prazo de uma fase para a seguinte da notificação do acto processual que escolheu como marco processual, servindo de terminus de cada uma das fases»; que, «[…] "a lei não exige, para este efeito, a notificação ao arguido, mas a simples e imediata prática do acto, porque o prazo é de injunção para as autoridades e o limite do prazo da lei é determinado pela prática do acto a quem é imposto – o Ministério Público.»; e que «a notificação da acusação tem como finalidade o conhecimento ao destinatário para que possa exercer direitos processuais próprios, que dependem da sua vontade, tendo, pois, uma função processual própria e autónoma e diversa da consideração do acto, em si, como termo final de um prazo máximo dirigido às autoridades de investigação e de acusação.» [12].
E – diga-se, para rematar neste ponto –, em nada surpreende a constância de tal entendimento que, sobre a literal, colhe inteira justificação lógica e teleológica, que bem se compreende que tenha sido o momento da acusação e não o da sua notificação o escolhido pela lei, «sob pena de, em caso de pluralidade de arguidos, o prazo se reportar a datas diversas, consoante os diferentes momentos de recepção da decisão, de, eximindo-se o destinatário ao recebimento da notificação, aquele prazo se prolongar indevida e indefinidamente, e mesmo de se fazer recair sobre os Serviços o cumprimento de um ónus que apenas pode imputar-se ao magistrado» [13].

11. Ora, relevando, assim e por tudo, o acto de acusação para o efeito de conferir a observância do prazo de um ano até à dedução da acusação previsto nos art.º 215 n.os 1 al.ª a), 2 e 3 e tendo-se aquela concretizado antes de esgotado aquele máximo intercalar da prisão preventiva, nenhum tempo-limite desta fixado por lei foi ultrapassado in casu e nenhuma ilegalidade se configura que possa integrar a previsão do art.º 222º n.º 2 al.ª c) e que, consequentemente, possa fundar o decretamento da providência de habeas corpus.
Providência que, nessa perspectiva, tem de ser indeferida.

12. Mas não só por tais razões a pretensão do Requerente está votada ao insucesso, que igualmente se lhe opõe a ideia da actualidade da ilegalidade da prisão que, como referido, constitui, igualmente, pressuposto do decretamento da providência.
Com efeito – e trata-se, por mais uma vez, de afirmação que colhe o consenso da jurisprudência –, sobre ter que padecer de algum dos vícios enumerados no n.º 2 do art.º 222º n.º 2 do CPP, a ilegalidade da prisão fundante da providência extraordinária do habeas corpus há-de ser actual, isto é, há-de persistir no momento em que é necessário apreciar o pedido [14].
Ora, mesmo que, por absurdo, se admitisse que o despacho acusatório não tinha sido proferido dentro do prazo de um ano contado da aplicação da prisão preventiva a verdade é que, deduzida a acusação em 29.10.2021 e efectuada a sua notificação no mesmo dia – na pessoa do Requerente – e em 2.11.2021 – na da sua Defensora –, conforme atestado em (9). dos factos, nunca poderá verificar-se qualquer excesso de privação de liberdade que, estando-se, ora, já na fase delimitada pelo despacho de pronúncia ou pela condenação em 1ª instância, os prazos relevantes são, como referido, respectivamente, o de 1 ano e 4 meses – art.º 215º n.os 1 al.ª b) 2, 3 e 4 – ou o de 2 anos e 6 meses – art.os 215º n.os 1 al.ª c), 2, 3 e 4 –, dentro dos quais o tempo de prisão preventiva já decorrido – aliás reexaminada e mantida por despacho de 29.10 p. p., nos termos do art.º 213º n.º 1 al.ª b) do CPP – perfeitamente se contém.

D. Conclusão.
13. Vale tudo o que precede por dizer que improcede o fundamento em que o Requerente apoia o pedido da sua libertação imediata por via de habeas corpus, não havendo sombra de ilegalidade que à luz do art.º 222º do CPP afecte a privação de liberdade a que está sujeito, sendo muito evidente que a medida de coacção de prisão preventiva foi decretada por entidade competente – por um juiz de instrução criminal –, por factos pelos quais a lei a admite – pela prática de crime de tráfico de estupefaciente cuja forte indiciação foi judicialmente reconhecida – e que se contém dentro dos limites legais e judiciais: iniciada em 29.10.2020, podia-se ter prolongado, nos termos dos art.º 215º n.os 1 al.ª a) 2 e 3 e 1ª al.ª m) e 21º n.º 1 e 51º n.º 1, estes do Decreto-Lei n.º 15/93, até à data de 29.10.2021 em que foi deduzida acusação; de momento, está, sujeita aos prazos-limite de 1 ano e 4 meses – até 28.2.2022, portanto [15] –, sem que seja emitida pronúncia, e de 2 anos 6 meses anos – até 29.4.2023, portanto –, sem que seja haja condenação em 1ª instância, por isso que estando muito longe do seu termo final.

Motivos por que nada mais resta do que indeferir o pedido.
E, apoiando-se tal pedido em entendimentos que patentemente contrariam jurisprudência firme deste STJ, não pode deixar de se considerado manifestamente infundado. Pelo que haverá, também, que condenar o Requerente nos termos do art.º 222º n.º 6, computando-se a sanção na soma de 7 UC's.
Como, tudo, imediatamente segue.

III. decisão.
14. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.os 3 e 4 al.ª a) do art.º 223º do CPP, acordam os juízes desta secção criminal em:
─ Indeferir o pedido da habeas corpus por falta de fundamento bastante.
─ Considerar o pedido manifestamente infundado, condenando o Requerente no pagamento da soma pecuniária de 7 UC's, nos termos do art.º 222º n.º 6 do CPP.
─ Condenar o Requerente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC's (art.º 8º n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

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Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, em 11.11.2021.




Eduardo Almeida Loureiro (Relator)

António Gama

António Clemente Lima


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[1] Diploma a que pertencerão todos os preceitos que se vieram a citar sem menção de origem.
[2] Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal II", Editorial Verbo, p. 260. 
[3] AcSTJ de 11.11.2018 - Proc. n.º 601/16.SPBSTB-A.S1, aliás, citando o AcSTJ de 16.3.2003 - Proc. n.º 4393/03.
[4] Neste sentido, v. g., Ac STJ de 25.6.2020 - Proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1, in www.dgsi.pt.
[5] Onde, aliás, guardou silêncio nos termos permitidos pelo art.º 61º n.º 1 al.ª d).
[6] Acórdão relatado pelo mesmo relator do presente, acessível em www.dgsi.pt e de cujo sumário, consta entre o mais o seguinte:
«IV - Os prazos de duração máxima de prisão preventiva previstos no art.º 215º do CPP contam-se a partir do momento em que o arguido é sujeito a essa medida de coacção, por despacho judicial.
V - A detenção, em flagrante delito ou fora de flagrante delito, ainda que imediatamente preceda a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, é uma situação de privação de liberdade distinta da prisão preventiva e, embora em certas circunstâncias produza os mesmos efeitos da prisão preventiva (v.g., desconto no cumprimento da pena de prisão, nos termos do artigo 80.° do Código Penal), não se confunde com ela.
VI - Para efeitos de contagem dos prazos de duração máxima de prisão preventiva só releva o tempo decorrido após a aplicação judicial de tal medida de coacção.
VII - Os prazos de prisão preventiva do artigo 215.° do Código de Processo Penal não incluem o tempo de detenção.».
No mesmo sentido do acórdão e entre muitos outros, Ac's STJ de 28.11.2018 - Proc. n.º 257/18.0GCMTJ-AF.S1, de 14.6.2018 - Proc. n.º 57/15.0T9SEI-C.S1 ou de 2.10.2014 - Proc. n.º 107/13.4P6PRT-B.S1, todos in SASTJ.
[7] Como o são, de resto, os prazos de apresentação de detido a autoridade judiciária previstos no art.º 254º, ou de prescrição do procedimento criminal ou da pena previstos nos art.os 118º e 122º do CP.
[8] In Colectânea de Jurisprudência Online.
Do respectivo texto:
– «Os prazos substantivos, como são os prazos máximos de duração da prisão preventiva, de prescrição do procedimento criminal e para apresentação do detido ao juiz, contam-se segundo as regras do Código Civil, não se aplicando as regras de contagem dos prazos processuais, conforme advoga Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, pág. 50). Ora, de harmonia com o disposto no art. 279º al. c) do Código Civil, o prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês.» – sublinhado acrescentado.
[9] E, por remissão, os seus n.os 2 e 3.
[10] E do próprio Tribunal Constitucional, como o confirmam os Acórdãos n.º 2/2008 e 280/2008, disponíveis no sítio respectivo.
[11] E faseado pois que, conforme Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 5ª ed., «Não há um prazo de prisão preventiva para cada fase processual, há é um limite máximo de duração da prisão preventiva até que se atinja determinado momento processual. Por isso, se o início da prisão preventiva só se verificar já na fase de instrução ou na de julgamento, os limites máximos até à decisão instrutória, condenação em 1.ª instância ou decisão transitada continuam a ser os mesmos. Por idêntica razão, se numa determinada fase se tiver esgotado o limite do prazo de duração da prisão, o arguido pode voltar a ser preso se se passar a outra fase e se se mantiverem as razões para determinar a sua prisão, desde que se não tenha ainda atingido o máximo da correspondente fase.».
[12] Sublinhados acrescentados.
[13] Ac STJ de 14.1.2021 - Proc. n.º 3/20.9FCOLH-E.S1, que se cita entre vários no mesmo sentido, por ser dos mais recentes..
[14] Neste sentido e para lá do de 25.6.2020 - Proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1 acima citado, veja-se, por todos, o Ac STJ de 28.10.2020 - Proc. n.º 12/17.5JBLSB-X.S1, in www.dgsi.pt.
[15] O mês de Fevereiro do ano (comum) de 2022 termina no dia 28, sendo esse o dia que, nos termos do art.º 279º al.ª c) do Código Civil, corresponde, no último ano e mês, ao de 29.10.2020 do início do prazo.